A fábula que precede* só tem uma desculpa: ilustra o desarranjo a
que condições anormais de vida, durante um período prolongado, submetem o espírito do viajante. Mas o problema persiste: como o etnógrafo pode escapar da contradição que resulta das circunstâncias da sua escolha? Tem diante dos olhos, tem à sua disposição uma sociedade: a sua; por que resolve menosprezá-la e reservar a outras sociedades – escolhidas dentre as mais longínquas e as mais diferentes – uma paciência e uma dedicação que sua determinação recusa aos compatriotas? Não é por acaso se raramente o etnógrafo demonstra diante de seu próprio grupo uma atitude neutra. Se é missionário ou administrador, podemos inferir que aceitou identificar-se com uma ordem, a ponto de consagrar-se a sua propagação; e, quando exerce sua profissão no plano científico e universitário, há fortes possibilidades de que se possa descobrir no seu passado fatores objetivos que o mostram pouco ou nada adaptado à sociedade onde nasceu. Ao assumir seu papel, procurou um modo prático de conciliar a vinculação ao seu grupo com a reserva que nutre a seu respeito, ou, muito simplesmente, o modo de se beneficiar de um estado inicial de distanciamento que lhe confere uma vantagem para se aproximar de sociedade diferentes, a meio caminho das quais ele já se encontra. Mas, se está de boa-fé, coloca-se uma questão: o valor que atribui às sociedades exóticas – tanto maior, parece, quanto mais elas o forem - não tem fundamento próprio; é função do desprezo, e às vezes da hostilidade, que lhe inspiram os costumes vigentes no seu meio. Geralmente subversivo entre os seus e em estado de rebelião contra os costumes tradicionais, o etnógrafo encontra-se respeitoso, beirando o conservadorismo, desde que a sociedade estudada se revele diferente as sua. Ora, há nisso bem mais, e outra coisa, do que uma excentricidade; conheço etnógrafos conformistas. Mas o são de forma derivada, em virtude de uma espécie de assimilação secundária de sua sociedade àquelas que estudam. Sua finalidade vai sempre para estas últimas, e, se voltaram atrás na revolta inicial diante da sua, é porque fazem às primeiras a concessão suplementar de tratarem sua própria sociedade como eles gostariam que fossem tratadas todas as outras. Não escapamos do dilema: ou o etnógrafo adere às normas de seu grupo, e os outros só podem lhe inspirar uma curiosidade passageira da qual a reprovação jamais está ausente; ou é capaz de se entregar por inteiro a eles, e sua objetividade fica viciada porquanto, querendo ou não, para se dar a todas as sociedades ele se negou pelo menos a uma. Comete, pois, o mesmo pecado que critica nos que contestam o sentido privilegiado de sua vocação. Essa dúvida impôs-se a mim, pela primeira vez, durante a permanência forçada nas Antilhas que evoquei no início deste livro. Na Martinica, eu visitara as destilarias de rum abandonadas e rústicas; empregavam aparelhos e técnicas que pareciam os mesmos desde o século XVIII. Inversamente, em Porto Rico as fábricas da companhia que exerce uma espécie de monopólio de toda produção de cana ofereciam- me um espetáculo de reservatórios de esmalte branco e torneiras cromadas. No entanto, os runs da Martinica, provados ao pé de velhas cubas de madeira coalhadas de detritos, eram aveludados e perfumados, ao passo que os de Porto é de velhas cubas de madeira coalhadas de detritos, eram aveludados e perfumados, ao passo que os de Porto Rico são vulgares e brutais. A finura dos primeiros seria então resultado das impurezas cuja persistência é favorecida por uma preparação arcaica? Esse contraste ilustra, a meu ver, o paradoxo da civilização cujos encantos decorrem em essência dos resíduos que ela transporta em seu fluxo, embora não seja por isso que devamos nos proibir de purificá-la. Ao estarmos duplamente certos, confessamos nosso erro. Pois estamos certos quando somos racionais e procuramos aumentar nossa produção e baixar nossos preços de custo. Mas também estamos certos ao apreciar as imperfeições que tratamos de eliminar. A vida social consiste em destruir o que lhe confere seu aroma. Essa contradição parece reabsorver-se quando passamos da consideração de nossa sociedade à de sociedades que são diferentes. Porque, sendo nós mesmos arrastados pelo movimento da nossa, estamos, de certa maneira, envolvidos neste processo. Independe de nós querer ou não o que nossa posição nos obriga a realizar; quando se trata de sociedades diferentes, tudo muda: a objetividade, impossível no primeiro caso, nos é concedida graciosamente. Já não sendo agentes, mas espectadores das transformações que se operam, para nós é mais legítimo pôr na balança seu futuro e seu passado na medida em que estes são um pretexto para a contemplação estética e a reflexão intelectual, em vez de nos estarem presentes na forma de inquietação moral. Ao raciocinar como acabo de fazê-lo, talvez eu tenha esclarecido a contradição; mostrei sua origem e como é que conseguimos nos acomodar com isso. Não a resolvi, decerto. Será ela, então, definitiva? Foi o que se afirmou ocasionalmente , para daí se chegar à nossa condenação. Ao manifestarmos, por meio de nossa vocação, a preferência que nos leva a formas sociais e culturais muito diferentes da nossa – superestimando aquelas em detrimento desta -, demonstraríamos uma inconsequência radical; como poderíamos proclamar que essas sociedades são respeitáveis, senão nos baseando nos valores da sociedade que nos inspira a idéia de nossas pesquisas? Incapazes para sempre de escaparmos às normas que nos modelaram, nossos esforços para pôr em perspectiva as diferentes sociedades, inclusive a nossa, seriam mais uma maneira envergonhada de confessarmos sua superioridade sobre todas as outras. Por trás da argumentação desses bons apóstolos, não há mais do que mau trocadilho: pretendem apresentar a mistificação (a que se dedicam) como o contrário do misticismo (que nos criticam, erradamente). A pesquisa arqueológica ou etnográfica mostra que certas civilizações, contemporâneas ou extintas, souberam ou ainda sabem resolver problemas melhor do que nós, embora estejamos empenhados em obter os mesmos resultados. Para me limitar a um exemplo, foi só há poucos anos que aprendemos os princípios físicos e fisiológicos em que se baseia a concepção do vestuário e da habitação dos esquimós, e de que modo esses princípios que desconhecíamos, e não o hábito ou uma compleição excepcional, permitem-lhes viver em condições climáticas rigorosas. Isso é tão verdadeiro que entendemos ao mesmo tempo por que os supostos aperfeiçoamentos propostos pelos exploradores ao traje esquimó mostraram-se mais que inoperantes: contrários ao resultado esperado. A solução nativa era perfeita; para nos convencermos, bastava-nos apenas ter penetrado na teoria que a fundamenta. A dificuldade não é essa. Se julgarmos as realizações dos grupos sociais em função de fins comparáveis com os nossos, teremos, de vez em quando, que nos inclinarmos diante de sua superioridade; mas, ao mesmo tempo, conquistamos o direito de julgá-los, e, portanto, de condenar todos os outros fins que não coincidam com aqueles que aprovamos. Reconhecemos implicitamente a posição privilegiada de nossa sociedade, de seus usos e suas normas, já que um observador oriundo de outro grupo social proferirá diante dos mesmo exemplos veredictos diferentes. Nessas condições, como nossos estudos poderiam ambicionar o título de ciência? Para reencontrarmos uma posição de objetividade, deveremos nos abster de quaisquer julgamentos desse tipo. Teremos de admitir que, na gama das possibilidades abertas às sociedades humanas, cada uma fez determinada escolha e que essas escolhas são incomparáveis entre si: equivalem-se. Mas, então, surge um novo problema: pois se no primeiro caso estávamos ameaçados pelo obscurantismo na forma de uma recusa cega daquilo que não é nosso, arriscamo-nos agora a ceder a um ecletismo que, de uma cultura qualquer, nos proíbe repudiar tudo, até mesmo a crueldade, a injustiça e a miséria contra as quais, por vezes, protesta essa mesma sociedade que as tolera. E como esses abusos também existem entre nós, qual será nosso direito de combatê-los em casa, se basta que se produzam fora para que nos inclinemos diante deles? Portanto, a oposição entre duas atitudes do etnógrafo, crítica a domicílio e conformista fora de casa, encobre outra da qual lhe é ainda mais difícil escapar. Se deseja contribuir para uma melhoria de seu regime social, deve condenar, onde quer que existam, as condições análogas às que ele combate, e perde assim sua objetividade e sua imparcialidade. Em troca, o distanciamento que lhe impõem o escrúpulo moral e o rigor científico evita-lhe criticar sua própria sociedade, tendo em vista que não quer julgar nenhuma, a fim de conhecê-las todas. Ao agirmos em casa, privamo-nos de compreender o resto, mas, ao querermos tudo compreender, renunciamos a mudar qualquer coisa. Se a contradição fosse intransponível, o etnógrafo não deveria hesitar sobre a alternativa que lhe compete: ele é etnógrafo e quis sê-lo, que aceite a mutilação complementar à sua vocação. Escolheu os outros e deve agüentar as conseqüências dessa opção: seu papel será apenas compreender esses outros em nome dos quais não deveria agir, uma vez que o simples fato de que eles sejam outros impede-o de pensar, de querer em seu lugar, o que equivaleria a identificar-se com eles. Ademais, renunciará à ação dentro da sua sociedade, temendo tomar posição diante de valores que podem existir em sociedades diferentes, e, portanto, podem introduzir o preconceito em seu pensamento. Subsistirá apenas a escolha inicial, para a qual ele recusará qualquer justificação: ato puro, não motivado; ou, se pode sê-lo, por considerações externas, ligadas ao caráter ou à história de cada um. Não chegamos a esse ponto, felizmente; após termos contemplado o abismo que beiramos, que nos seja permitido procurar a saída. Esta pode ser conquistada, dependendo de certas condições: moderação do julgamento e divisão da dificuldade em duas etapas. Nenhuma sociedade é perfeita. Por natureza, todas comportam uma impureza incompatível com as normas que proclamam, e que se traduz de modo concreto numa certa dose de injustiça, de insensibilidade, de crueldade. Como avaliar essa dose? A pesquisa etnográfica consegue. Pois se é verdade que a comparação de um pequeno número de sociedades faz com que pareçam muito diferentes entre si, essas diferenças atenuam-se quando o campo de investigação se amplia. Descobre-se então que nenhuma sociedade é fundamentalmente boa; mas nenhuma é inteiramente má. Todas oferecem certas vantagens a seus membros, tendo-se em conta um resíduo de iniqüidade cuja importância parece relativamente constante e que corresponde talvez a uma inércia específica que se contrapõe, no plano da vida social, aos esforços de organização. Essa proposta surpreenderá o amante de narrativa de viagens, comovido pela lembrança dos costumes “bárbaros” deste ou daquele povo. Contudo, tais reações à flor da pele não resistem a uma apreciação correta dos fatos e a seu estabelecimento numa perspectiva mais ampla. Tomemos o caso da antropofagia que, entre todas as práticas selvagens, é sem dúvida a que nos inspira mais horror e repugnância. Teremos primeiro que dissociar as formas propriamente alimentares, isto é, essas em que o apetite de carne humana explica-se pela carência de outro alimento animal, como era o caso de certas ilhas polinésias. De voracidades como essas, nenhuma sociedade está moralmente protegida; a fome pode arrastar os homens a comer qualquer coisa: prova-o o exemplo recente dos campos de extermínio. Restam, então, as formas de antropofagia que podemos chamar de positivas, as que se referem a uma causa mística, mágica ou religiosa: tal como a ingestão de uma parcela do corpo de um ascendente ou um fragmento de um cadáver inimigo, a fim de possibilitar a incorporação de suas virtudes ou, ainda, a neutralização de seu poder; além de tais ritos se realizarem no mais das vezes de modo extremamente discreto, envolvendo quantidades mínimas de matéria orgânica pulverizada ou misturada com outros alimentos, temos de reconhecer que a condenação moral de tais costumes, mesmo quando se revestem das formas mais francas, implica, seja uma crença na ressurreição corporal que estaria comprometida pela destruição material do cadáver, seja a afirmação de um vínculo entre a alma e o corpo e o dualismo correspondente, isto é, convicções que são de natureza idêntica à daquelas em nome das quais o consumo ritual é praticado, e que não temos nenhuma razão de preferir às outras. Tanto mais que a desenvoltura em nome da memória do defunto, que poderíamos criticar no canibalismo, não é certamente maior, muito pelo contrário, do que a que toleramos nas aulas de dissecação. Mas, sobretudo, devemos nos convencer de que certos costumes que nos são específicos, se considerados por um observador oriundo de uma sociedade diferente, parecer-lhe-iam de natureza idêntica à dessa antropofagia que se nos afigura alheia à noção de civilização. Penso em nossos costumes judiciários e penitenciários. Ao estudá-los de fora, ficaríamos tentados a contrapor dois tipos de sociedades: as que praticam a antropofagia, isto é, que enxergam na absorção de certos indivíduos detentores de forças tremendas o único meio de neutralizá- las, e até de se beneficiarem delas; e as que, como a nossa, adotam o que se poderia chamar de ‘antropemia’ (do grego ‘emein’, “vomitar”). Colocadas diante do mesmo problema, elas escolheram a solução inversa, que consiste em expulsar esses seres tremendos para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem contato com a humanidade, em estabelecimentos destinados a este fim. Na maioria das sociedades que chamamos de primitivas, tal costume inspiraria um profundo horror; em seu entender, isso nos marcaria com a mesma barbárie que seríamos tentados a imputar-lhes por causa de seus costumes simétricos. Sociedades que nos parecem ferozes em certos aspectos sabem ser humanas e bondosas quando as encaramos de outro ângulo. Consideremos os índios das planícies da América do Norte, que são, neste caso, duplamente significativos, porque praticaram certas formas moderadas de antropofagia, e porque oferecem um dos raros exemplos de povo primitivo dotado de uma polícia organizada. Essa polícia (que era também uma instituição judiciária) jamais conceberia que o castigo do culpado devesse se traduzir numa ruptura dos laços sociais. Se um indígena infringisse as leis da tribo, era punido com a destruição de todos os seus bens: tenda e cavalos. Mas, com isso, a polícia contraía uma dívida para com ele; cabia-lhe organizar a reparação coletiva do prejuízo cuja vítima fora o culpado, devido ao castigo. A reparação transformava este último numa pessoa agradecida ao grupo, ao qual devia mostrar seu reconhecimento com presentes que a coletividade inteira - e a própria polícia – ajudava-o a reunir, o que de novo invertia as relações; e assim por diante, até que, ao final de toda uma série de presentes e contrapresentes, a desordem anterior fosse progressivamente extinta e a ordem inicial fosse restaurada. Não só tais costumes são mais humanos que os nossos, como são também mais coerentes, mesmo se formulam o problema nos termos de nossa psicologia: pela lógica, a “infantilização” do culpado, que a noção de punição implica, exige que se lhe reconheça um direito correlativo a uma gratificação, sem o que a primeira atitude perde sua eficácia, se é que não provoca resultados contrários aos que se esperavam. O cúmulo do absurdo é a nossa maneira de tratar ao mesmo tempo o culpado como uma criança, o que nos autoriza a puni-lo, e como um adulto, a fim de lhe recusar o consolo; e acreditar que realizamos um grande progresso espiritual porque preferimos mutilar física e moralmente alguns de nossos semelhantes, em vez de consumi-los. Tais análises, feitas com sinceridade e método, levam a dois resultados: instilam um elemento de moderação e de boa-fé na apreciação dos costumes e dos gêneros de vida mais afastados do nosso, sem por isso conferir-lhes as virtudes absolutas que nenhuma sociedade possui. E privam nossos costumes dessa evidência que o fato de não conhecer outros – ou de ter deles um conhecimento parcial e tendencioso – é suficiente para lhes atribuir. Portanto, é verdade que a análise etnológica eleva as sociedades diferentes e rebaixa a do observador; é contraditória neste sentido. Mas se quisermos refletir sobre o que acontece, veremos que a contradição é mais aparente do que real. Afirmou-se algumas vezes que a sociedade ocidental seria a única a ter produzido etnógrafos; que nisso reside a sua grandeza, a qual, na ausência de outra superioridades que eles lhe contestam, é a única que os obriga a se curvarem diante dela, uma vez que, sem a mesma, não existiriam. Poder-se-ia igualmente afirmar o contrário: se o Ocidente produziu etnógrafos, foi porque um remorso muito forte devia atormentá-lo, obrigando-o a confrontar sua imagem com a de sociedades diferentes, na esperança de que refletissem as mesmas taras ou ajudassem a explicar de que maneira as suas se desenvolveram em seu seio. Porém, mesmo se é verdade que a comparação de nossa sociedade com todas as outras, contemporâneas ou extintas, provoca o desmoronamento de suas bases, outras sofrerão a mesma sina. Essa média geral que eu evocava pouco acima faz surgir alguns ogros: ocorre que estamos incluídos entre eles. Não por acaso, pois, se não estivéssemos e se não houvéssemos, nesse triste concurso, merecido o primeiro lugar, a etnografia não teria surgido entre nós: não teríamos sentido sua necessidade. O etnógrafo pode se desinteressar de sua civilização e pouco se envolver com seus erros na medida em que sua existência mesma é incompreensível, a não ser como uma tentativa de se redimir: ele é o símbolo da expiação. Mas outras sociedades participaram do mesmo pecado original; não muito numerosas, talvez, e mais raras à proporção que baixamos na escala do progresso. Bastará que eu cite os Astecas, chaga aberta no flanco do americanismo, que uma obsessão maníaca pelo sangue e pela tortura (na verdade, universal, mas patente entre eles nessa ‘forma excessiva’ que a comparação permite definir) – por mais explicável que seja pela necessidade de domesticar a morte – coloca ao nosso lado não como os únicos iníquos, mas por o terem sido à nossa maneira, de forma ‘desmedida’. Contudo, essa condenação de nós mesmos, por nós mesmos infligida, não implica atribuirmos um prêmio de excelência a esta ou aquela sociedade presente ou passada, localizada num ponto determinado do tempo e do espaço. Aí residiria verdadeiramente a injustiça; pois, agindo dessa maneira, não levaríamos na devida conta o fato de que, se fizéssemos parte dessa sociedade, ela nos parecia intolerável: nós a condenaríamos pela mesma razão que condenamos esta a que pertencemos. Chegaríamos, então, à condenação de qualquer estado social que seja? À glorificação de um estado natural a que a ordem social só teria levado à corrupção? “Desconfiai de quem vem pôr ordem”, dizia Diderot, cuja posição era essa. Para ele, a “história abreviada” da humanidade resumia-se da seguinte maneira: “Existia um homem natural; introduziu-se dentro desse homem um homem artificial; e eclodiu na caverna uma guerra contínua que dura a vida inteira”. Tal concepção é absurda. Quem diz homem diz linguagem, e quem diz linguagem, diz sociedade. Os polinésios de Bougainville (em cujo “suplemento de viagem” Diderot propõe essa teoria) não viviam em sociedade menos que nós. Ao pretender outra coisa, vamos de encontro à análise etnografia, e não no sentido que ela nos incita a explorar. Quando revolvo esses problemas, convenço-me de que só admitem a resposta que deu Rousseau; Rousseau, tão caluniado, pior conhecido do que jamais o foi, exposto à acusação ridícula que lhe atribui uma glorificação do estado natural – no que podemos enxergar o erro de Diderot, mas não o seu -, pois disse exatamente o contrário e continua a ser o único a mostrar como sair das contradições em que nos metemos, no rastro dos seus adversários; Rousseau, o mais etnógrafo dos filósofos: se nunca viajou por terras distantes, sua documentação era tão completa quanto possível para um homem de seu tempo, e ele a vivificava – a diferença de Voltaire – por meio de uma curiosidade cheia de simpatia pelos costumes camponeses e pelo pensamento popular; Rousseau, nosso mestre, Rousseau nosso irmão, por quem demonstramos tanta ingratidão mas a quem cada página deste livro poderia ser dedicada se a homenagem não fosse indigna de sua grande memória. Pois, da contradição inerente à posição do etnógrafo, somente sairemos repetindo por conta da própria démarche que o fez passar das ruínas deixadas pelo ‘Discurso sobre a origem da desigualdade’ à ampla construção do ‘Contrato social’, cujo segredo ‘Émile’ revela. A ele devemos o fato de saber como, após termos aniquilado todas as ordens, ainda podemos redescobrir os princípios que possibilitam edificar uma nova. Jamais Rousseau cometeu o erro de Diderot, que consiste em idealizar o homem natural. Não há perigo de ele misturar o estado natural com o estado de sociedade; sabe que este último é inerente ao homem, mas provoca males: a única pergunta é saber se esses males são eles próprios inerentes ao estado. Por trás dos abusos e dos crimes, procuraremos, pois, a base inabalável da sociedade humana. Para tal procura, a comparação etnográfica contribui de duas maneiras. Mostra que essa base não poderia ser encontrada em nossa civilização: de todas as sociedades observadas, é talvez a que mais se afasta disso. Por outro lado, ao destacar os caracteres comuns à maioria das sociedades humanas, ela ajuda a constituir um tipo que nenhuma reproduz fielmente mas que define a direção em que a investigação deve se orientar. Rousseau pensava que o gênero de vida a que hoje chamamos de neolítico apresenta a imagem experimental mais perto disso. Pode-se ou não concordar com ele. Sou um tanto propenso a crer que tinha razão. No Neolítico, o homem realizou a maioria das invenções que são indispensáveis para garantir a sua segurança. Vimos por que podemos excluir a escrita**; dizer que ela é uma arma de dois gumes não é sinal de primitivismo; os modernos cibernéticos redescobriram essa verdade. No Neolítico, o homem pôs-se ao abrigo do frio e da fome; conquistou o tempo para pensar; sem dúvida, lutou duramente contra a doença, mas nada garante que os avanços da higiene tenham feito mais do que transferir para outros mecanismos, como as grandes fomes e as guerras de extermínio, a incumbência de manter um equilíbrio demográfico, para o que as epidemias contribuíam de uma maneira que não era mais terrível do que as outras. Nessa idade do mito, o homem não era mais livre do que hoje, mas a sua simples humanidade tornava-o um escravo. Como sua autoridade sobre a natureza permanecia muito reduzida, ele se achava protegido – e em certa medida liberado – pelo acolchoado amortecedor de seus sonhos. À medida que estes foram se transformando em conhecimento, o poderio do homem aumentou; porém, ao nos colocou – se podemos dizer assim – “em ligação direta” com o universo, esse poderio, do qual tanto nos orgulhamos, que é ele na verdade, se não a consciência subjetiva de uma fusão progressiva da humanidade com o universo físico cujos grandes determinismos agem, doravante, não mais como estranhos que infundem temor, mas, por intermédio do próprio pensamento, colonizando-nos em benefício de um mundo silencioso do qual nos tornamos agentes? Rousseau tinha certamente razão ao acreditar que, para nossa felicidade, teria sido melhor a humanidade manter-se em “um meio- termo entre a indolência do estado primitivo e a petulante atividade de nosso amor-próprio”; que esse estado era “o melhor para o homem”, e que, para tirá-lo daí, foi preciso “algum funesto acaso” no qual se pode reconhecer esse fenômeno duplamente excepcional – porque único e porque tardio – que foi o surgimento da civilização mecânica. No entanto, fica claro que esse estado médio não é de modo algum um estado primitivo, e que supõe e tolera certa dose de progresso; e que nenhuma sociedade descrita apresenta a imagem privilegiada disso, mesmo se “o exemplo dos selvagens, que foram quase todos encontrados nesse nível, parece confirmar que o gênero humano era feito para aí permanecer para sempre”. O estudo desses selvagens traz outra coisa além da revelação de um estado natural utópico, ou a descoberta da sociedade perfeita no coração das florestas; ajuda-nos a construir um modelo teórico da sociedade humana, que não corresponde a nenhuma realidade observável, mas graças ao qual conseguiremos deslindar “o que há de originário e de artificial na natureza atual do homem e conhecer bem um estado que não existe mais, que talvez não existiu, que provavelmente jamais existirá, e acerca do qual é necessário, porém, ter noções exatas para bem julgar nosso estado presente”. Já citei essa fórmula para demonstrar o sentido de minha pesquisa com os Nambiquara; pois o pensamento de Rousseau; pois o pensamento de Rousseau, sempre adiantado em relação a seu tempo, não dissocia a sociologia teórica da pesquisa de laboratório ou de campo, cuja necessidade ele percebeu. O homem natural não é anterior nem exterior à sociedade. Cabe-nos encontrar sua forma, imanente ao estado social fora do qual a condição humana é inconcebível; portanto, traçar o programa das experiências que “seriam necessárias para chegar a conhecer o homem natural” e determinar “os meios de realizar essas experiências no seio da sociedade”. Mas esse modelo – é a solução de Rousseau – é eterno e universal. As outras sociedades talvez não sejam melhores do que a nossa; mesmo se somos propensos a acreditar nisso, não temos à nossa disposição nenhum método para prová-lo. Ao conhecê-las melhor, ganhamos, porém, um meio de nos distanciarmos da nossa, não porque esta seja absolutamente má, mas porque é a única da qual devíamos nos libertar: já estamos naturalmente liberto das outras. Assim, colocamo-nos em condições de abordar a segunda etapa que consiste, sem nada reter de nenhuma sociedade, em utilizá-las todas para extrair esses princípios da vida social que nos será possível aplicar à reforma dos nossos próprios costumes, e não daqueles das sociedades estrangeiras: em virtude de um privilégio contrário ao precedente, apenas a sociedade a que pertencemos é que somos capazes de transformar sem nos arriscarmos a destruí-la; pois as mudanças que aí introduzimos também partem dela. Ao colocar fora do tempo e do espaço o modelo em que nos inspiramos, certamente corremos um risco, que é o de subestimar a realidade do progresso. Nossa posição equivale a afirmar que os homens, sempre e em todo lugar, empreenderam a mesma tarefa atribuindo-se o mesmo objetivo, e que no decorrer de sua evolução só os meios diferiram. Confesso que essa atitude não me inquieta; parece a mais de acordo com os fatos, tais como nos são revelados pela história e pela etnografia; e, acima de tudo, parece-me mais fecunda. Os zelosos partidários do progresso expõem-se a desconhecer, pelo seu pouco caso, as imensas riquezas acumuladas pela humanidade de um lado e outro da estreita linha em que mantêm os olhos fitos; ao subestimar a importância dos esforços passados, depreciam todos os que nos falta realizar. Se os homens se dedicaram apenas a uma tarefa, que é construir uma sociedade vivível, as forças que animaram nossos distantes ancestrais estão igualmente presentes em nós. Nada é definitivo; podemos tudo recomeçar. O que foi feito e falhou pode ser refeito: “A idade de ouro que uma cega superstição colocara atrás [ou na frente] de nós, está ‘em nós’”. A fraternidade humana ganha um sentido concreto ao apresentar-nos, na tribo mais pobre, nossa imagem confirmada e uma experiência da qual, junto com tantas outras, podemos assimilar as lições. Inclusive reencontraremos nestas um antigo frescor. Pois, sabendo que há milênios o homem só conseguiu se repetir, alcançaremos essa nobreza do pensamento que consiste, para além de todas as repetições, em tomar como ponto de partida de nossas reflexões a grandeza indefinível dos começos. Visto que ser homem significa, para cada um de nós, pertencer a uma classe, a uma sociedade, a um país, a um continente e a uma civilização; e que para nós, europeus e apegados à terra, a aventura ao coração do Novo Mundo significa antes de mais nada que ele não foi o nosso, e que carregamos o crime de sua destruição; e que, em seguida, não haverá outro igual: saibamos ao menos, reduzidos a nós mesmos por essa confrontação, expressá-la nos seus termos primeiros – em um lugar, e nos transferindo para um tempo em que nosso mundo perdeu a oportunidade que lhe fora oferecida de escolher entre as suas missões.
................................. *Lévi-Strauss se refere ao ensaio de um romance logo abandonado de que trata o capítulo anterior do livro (‘Apoteose de Augusto’).
**aqui faz referência ao uso simulado de uma “escrita” que um
nambiquara, observando as anotações do antropólogo, emprega pretendendo assim adquirir ascendência sobre os demais membros de seu grupo.