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ARLEQUIM E MODERNIDADE* Telé Porto Ancona Lopez Penso que que ousaram teorizar e que se depa- taram com uma multiplicidade nunca vista de caminhos e opgoes, A originalidade de Mario de Andrade e de Oswald de Andrade — os tinicos que buscaram uma cons- trugdo estética mais conseqilente do ponto de vista da modernidade — deriva certa- mente da tentativa de entender o(atrasoyeultiralldo)pats, utilizando-se de instru- mentagdo que as vezes é excessiva, mas que se enquadra numa proposta tiltima e subjacente: 0 conhecimento de nossa realidade, Entao, s6 se pode concordar com Femeira Gular, quando ele nos diz que a definlgao eivanguardalemiumpaissde® (@sseqpats, levando em conta.a arte como expressao da parti lade, determinada € concreta no mundo. Pensando. assim, torna-se realmente uma proposta vanguar- dista aqarlequinalidadendeyMariowdevAnGrad) que faz de Paulicsia desvairada, em 1922, a primeira obra realmente moderna, na medida em que jd aparece como Lefebvre). O livro, formado por um “Prefécio interessantfssimo”, 23 poemas e um oraté- tio profano, consegue uma sfntese harménica que supera os pormenores dos varios “Este texto é a refusdo ampliada de “Arlequin et modemité”, escrito em 1976 a convite do erftico francés Pierre Rivas para uma coleténea sobre o modernismo brasileiro que ele, entdo, organizava para a editora sufca L’age de "homme, A coletanea transformou-se no niimero mo- nogréfico de Europe, révue mensuelle, Le modernise brésilien (a. $7, n° 599, Paris), lancado em marco de 1979, onde este meu trabalho foi colocado (p. 137-53). Em sua elaboracao pude contar com a amizade de Rosemarie Erika Horch, que me ajudou na leitura dos textos alemies. 86 TELE PORTO ANCONA LOPEZ “ismos” que concorrem para sua realizagao, uma vez que as modernas tendéncias estéticas européias vao compor camadas de significa¢ao que partem do explicito e funcional, “épater le bourgeois”, para chegar ao mais rec6ndito do processo de cria- gdo, ao que une 0 estético ao ideolégico, sem esquecer as solugGes técnicas. E evidente que nfo se pode ver na perspectiva de um modemista de 1920; ou mesmo de 1922, uma conceituagao de pafs subdesenvolvido, pois est4vamos ainda muito distantes dessa consciéncia ou dessa formulagdo. O que se percebe é uma descoberta primeira, quase mesmo uma intui¢do, manifestando-sé com dinamismo e, as vezes, até com radicalidade (emocional), anunciando para a continuagao do movimento o que Antonio Candido chamaré delprésonsciencia de!nosso)subde> ‘senvolvimento”, ‘Analisando o traje te6rico de arlequim que veste Paulicéia desvairada, pode-se ver no jogo dos ajustes um Gomponente basico dalvanguarda que 6 olestetico procu> fandojexpriminumalverdade|delcaratersocial; contestando as relages estabelecidas na sociedade (Sanguineti), na medida em que toda a absorgo do material europeu pode ser amarrada a duas preocupacdes fundamentais do autor: @ldesejoldemmoder- nidade’e a necessidade de participacao nos destinos do mundo, sempre pensando na fealizagaojdoyhiomem. ‘Essa unido do projeto estético ao ideolégico, com o sentido de ruptura, teria suas rafzes na descoberta que, em 1927, Mério de Andrade faz dos poetas da Abadia e do Unanimismo, ao mesmo tempo que chega até aos respeitados mestres e aos “‘adhérants extéieurs” de Creteuil: Whitman, Verhaeren, Claudel. Sendo ‘assim, entende-se que, apesar de toda a imaturidade condoreira (ou busca da tonalidade elegfaca da Abadia?) e do Unanimismo tardio, o livro de estréia de nosso poeta, (Hallima|gotalde|sangue!em|cadalpoemia) vale, em 1917, como sua abertura para a modernidade. Ela estaria na poesia de participacao conhecida em Jules Ro- mains, que teria reforgado para Mario as propostas da Abadia: umajartewoltadalpata a/humanidade, ‘pelaqual, da mesma forma que em Whitman, 0 sentimento do poeta deveria 'miultiplicar-se"na’ identificagao!\com! a vida eos’ sentimentos dos outros Hiomiens) Estaria também na dimensdo de um cristianismo ligado ao cotidiano, como em Francis Jammes e Paul Claudel. E nos arrojos poéticos e imagéticos, vindos muito provavelmente da leitura de Verhaeren (sinestesias, onomatopéias, neologis- mos) € da versifica¢io de Claudel’. Hé uma gota de sangue'em cada poema, mesmo sendo uma “obra imatura”? ¢ipoesialquelavangalalém'do confessional amoroso, das ‘Hebulbsidadés| pentimbristas!ou da permanéncia de temas'e solugdes simbolistas € pamasianos|em) nossa) literatura.No’ anseio de’ participagao j4 aparece um traco que Tepercutird em: toda a trajetoria intelectual de nosso escritor:a procura do cristianis- ‘mo integral, ligado a uma reformulagdio do homem e da sociedade. Levando em conta estes dois aspectos — esforgo em direeao 4 modernidade é necessidade de participagao — vé-se que em Paulicéia desvairada comega a se estru- turar o trabalho de digerir e transformar, visando 4 adequagao, verdadeiro crivo 4Nessa época, Mario de Andrade ainda nao conhecia as experiéncias de Paul Fort. “Quando Mério de Andrade retine, para suas Obras Completas, em 1942; seus primeiros livros, e entre eles, Ha uma gota de sangue em cada poema, chamard o volume de Obra imatura. ARLEQUIM E MODERNIDADE st erftico que seleciona, verificando a conveniéncia das variad{issimas propostas das vanguardas européias. (Olctivoliaz|lcomiliquellolfatorinifuencialseltorne Umaniova perspectiva’ de! criagdo: dinamica, original; eriticay:capaz;’portanito, de nao se afun- darino ‘magma deitantas Solicitagdes'modernistas. E possivel que, para isso, tenha sido de grande’ valia a personalidade do intelectual estudioso que era Mario de An- drade, dotado de grande cultura e sempre’ atento, lutando contra a alienagao, na medida de suas possibilidades de andlise. Esse fato pode certamente lhe conferir 0 ‘bom senso de! examinar com’ cautela as ‘sedugdes!de seu tempo. Sua capacidade de evitar a aceitagdo técita — cabe consideré-la hoje como um empenho na conquista da consciéncia possivel (Goldmann) — comega a se mostrar em 1921, quando’em discussio com “Menotti del Picchia, no inicio da propaganda do modernismo na imprensa paulistana, desmascara a ineficdcia ideolégica do futurismo, perguntando muito simplesmente: “que futuro indireita?”>, Desejo abordar aqui Glguns!aspectos' da modernidade de Mario de-Andrade em Paulicéia \désvairada, ‘entendendo-a como tm! processo cognitive que busca a adequagaojeriticalalisetilitempo? Esses aspectos serao focalizados em seus vinculos com \as vanguardas em que parecem se apoiar; e podem ser procurados tanto no livro de poemas, como nas leituras que seu autor deve ter feito entre 1918 19219. © bindmio modemidade — participacdo e/ou vivéncia critica (que, alids, j4 lhe é: inerente) — precisa ser estudado em fungao do motivo que organiza estetica- mente Paulicéia desvairada: 0 arlequim, que é também o “clown”, ou seu adjetivo — “arlequinal” — isto 6, @HBOL6gismiolqule expressed los aspectos multiplos oulas ante nomias;Srepresentando,\sem divida) mal visaoldialética? “‘Arlequinal” é a palavra escolhida para conotar a realidade que apreende:e a expresso que, sob 0 Angulo da erftica, pode qualificar a obra, caso se interesse pela presenga de elementos de varias estéticas, compondo diferentes camadas de significacao. Quem oferece 0 primeiro’ significado do arlequim em’ Paulicéia desvairada € 0 préprio autor, contemporaneamente a redagao dos poemas, quando, em uma de suas cronicas “De Sao Paulo” na Illustracao Brasileira, o define como @@udaciaWwer: tical?4y(Rio de Janeiro, mar., 1921). Bsselepitetoldeltaiz futurista valoriza a metros pole modémaleleosmopolital(Sdo Paulo, entendendo-se us condigdes hist6ricas bra- sileiras), Gialvelozisvidalamericana”, tao propalada por Oswald e por Menotti no mesmo momento. Nao se esquecera, porém, de colocar em outra cronica, ainda que levemente, @lexistencialdaslcontradi¢oes sociais ouldelmostrar situagdes que se ‘OpOer\(dez., 1920). No texto de marco de’1921, além de revelar a naturezaido pri- meiro arlequim, o cronista defendeja\loucuralcomojumalnovalética, capaz de abalar os padrdes convencionais. Compreende-se entdo que, nesse instante da propaganda modemista, o arlequim poderia ser, da mesma forma que a loucura, @linstrumento: organizadoriquejse|dispoeta ver alémildaslaparencias) percebendo que o lirico pode- *ANDRADE, Mério de — “‘Curemos Pery: Carta aberta a Menotti del Picchia”. Jornal do Commercio. So Paulo, 31 jan., 1921. (Recortes — Arquivo M. de A.—IEB-USP). 0 Acervo Mario de Andrade, composto por seu Arquivo, sua biblioteca e sua colegao de artes, est no patriménio do Instituto de Estudos Brasileiros, USP.

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