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QUEREMOS UMA DOUTRINA LÍQUIDA?

IDENTIDADE DOUTRINÁRIA E COOPERAÇÃO


Wanderley Lima Moreira1

A história mostra, que, desde os tempos dos Patriarcas e de Jesus, o povo de


Deus avançou através da soma de esforços, da cooperação, que é pressuposta também
em Hebreus 13.16 (ação mútua). Parece que hoje, o sentimento individualista tem
ganhado notoriedade no princípio de liderança batista. Por um lado, o risco de
fragmentação do principio batista que trata da natureza da igreja local: “a Igreja, no
sentido lato, é a comunidade fraterna de pessoas”. Por fraterno entendemos ser o que
“demonstra cordialidade e caridade [...] comungar da mesmas ideias ou convicções”
(HOUAISS, 2008, p.1388). Abrir mão da convicção, por outro lado, é ensinar às novas
gerações que a identidade não é importante, é valorizar uma “vida líquida” que muda de
formato de acordo com o recipiente a ser depositada; se assim for, em pouco tempo
haverá uma geração de líderes com ideais doutrinários fluídos biblicamente. É fragmentar
o corpo de princípios batistas e alimentar doutrinas que se encaixas no formato de
qualquer recipiente, a saber, líquida. Se assim for, no congelamento dos sentimentos e
ações solitárias formatará a doutrina singular de cada líder, diferente do outro e
(de)formada no aspecto comunitário.
Escrevo este rascunho após terminar a leitura do Livro: “Modernidade Líquida” do
sociólogo Zymunt Bauman; leituras que me fizeram perguntar se queremos uma doutrina
líquida em nossas igrejas. Lógico que também me preocupa a quantidade de pastores e
líderes que demonstram interesse pela igreja local, mas parecem querer se isolar da
macro instituição e suas organizações. Esta atitude pode comprometer a identidade
doutrinária batista. A conversa cotidiana com líderes demonstra que o medo, a solidão, a
insegurança e descontentamento tem tornado o isolamento uma marca deste tempo. Isso
é demonstrado no baixo número de partipação em congressos, treinamentos e
assembleias – onde temas importantes são debatidos, mantidos e modificados.
Cooperar é também manter a ordem complexa do sistema denominacional batista.
Bauman enfatiza o problema da individualidade ao defender a integração e a unidade dos
diferentes. Quando o ser humano se isola, faz emergir um sentimento de capacidade
própria e deixa de lado partes importantes que compõem a cooperação, além de produzir
novas gerações de líderes (des)institucionalizados ruir autoridades hierárquicas. Logo, a
ausência de submissão às autoridades, chega-se ao caos – na igreja local, na
denominação e na sociedade; uma vez que, a fragilização da autoridade é causador da
desobediência no contexto da Igreja na autoridade ignorada, na relativização da ordem e
na instalação do caos. Por esse motivo a Bíblia, nossa “regra de fé e prática”, deixa
evidente a necessidade de obediência aos pais (Cl 3.20), aos pastores (Hb 13.17) e às
autoridades (Rm 13.1-7), que não é apenas um problema bíblico, mas também ético.
Tem sido observado que “os fundamentos da ética estão em crise” (MORIN, 2011,
p. 27). Logo, vale ressaltar que, como Batistas, somos um povo com uma história
marcada pela ordem da práxis eclesiástica e teológica – o que envolve o direcionamento
do líder na igreja local e sua interação ajuda mútua com as convenções – tornando
urgente a “autonomia moral” sem o abandono da “religação ética” usando as palavra de
Edgar Morin (2011, p. 21,23) . A cooperação e ajuda mútua está explícita no Cap. VIII,
inciso 3 da Declaração Doutrinária Batista Brasileira: “as Igrejas devem relacionar-se com

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as demais Igrejas da mesma fé e ordem e cooperar, voluntariamente, nas atividades do
Reino de Deus”. Ainda que voluntariamente é preciso vivenciar a filosofia da Convenção
Batista Brasileira, uma vez que “a cooperação é a essência do sistema batista [...]
trabalhar junto tem sido o segredo da obra realizada.” (PACTO E COMUNHÃO, 2010,
p.73).
Somos um povo forte e conhecido pela luta (con)junta, pela presença em todos os
setores da sociedade. Somos fortes pela legalidade e autenticidade do chamado
missionário, por isso temos a marca, o corpo doutrinário e a essência pressupostos na
bíblia e que possui rigidez bíblica contrapostos à liquidez da cosmovisão pós-secular.
Assim posto, é preciso lembrar que a manutenção de nossa fidelidade à bíblia refletirá
nossa missão na Igreja e na sociedade e que a liquefação do princípio cooperativo fará
emergir o sintoma do que Bauman chama também de “fim da era do engajamento mútuo”
ele observa:
A desintegração da rede social, a derrocada das agências efetivas de
ação coletiva e a suposição de que as pessoas podem ser juízes
incompetentes de sua própria situação Não importa mais quem dá a
ordem [...] o fenômeno versus essência. (BAUMAN, 2001, p. 18-26)
É preciso cuidar da igreja na manutenção da essência solidária, descontruindo a
ideia de que é possível viver e agir sem ter que prestar contas a ninguém. Se faz urgente
deixar de lado as dúvidas levantadas acerca da legitimidade de cooperar e talvez uma
das soluções seja participar, debater e tentar enrijecer para não liquefazer devez os
sentimentos e a ações mútuas.
Vários estudos sobre este tema já foram apresentados em livros, revistas e
debates e no contexto batista. O fato é que o processo participativo em vários setores da
sociedade, requer a ajuda mútua e a contribuição que cada líder pode dar no objetivo
comum do crescimento do Reino de Deus, a partir de ações conjuntas. Para Bauman,
fragmentação de forças pode ser diminuída se “a tarefa de um compartilhada por todos
for realizada por cada um”, num nível de compartilhamento; o contrario não ajuda, pois
“induz à competição mais ríspida, em vez de unificar uma condição humana inclinada a
gerar cooperação e solidariedade.”(BAUMAN, 2001, p. 106). Para isso, os batistas
brasileiros criaram o Plano Cooperativo – que vai além de contribuições financeiras – com
o objetivo de aperfeiçoar, aprofundar, ampliar a ação das igrejas visando à edificação dos
crentes e expansão do Reino de Deus no mundo, como está expresso no Art. 2º, incisos
III e IV do Estatuto da Convenção Batista Brasileira:
A Convenção reconhece como princípio doutrinário a autonomia das
Igreja filiadas, sendo as recomendações que lhes são feitas
decorrentes do compromisso de mútua cooperação por elas assumido.
A relação da Convenção com as Igrejas é de natureza cooperativa.
(CBB, ESTATUTO, Cap. II, Inc. 3º e 4º)

Quando uma igreja se filia à Convenção, se submete aos seus documentos


reguladores, para manutenção da filosofia, dos princípios, da doutrina e do modus
operandi do sistema batista. Porém, a liquefação está as portas. Já ouço membros de
igreja dizendo que o NT não ensina sobre dízimo, outros afirmam que não precisam de se
filiar a uma igreja, que verdades explícitas em nossos documentos. Existem até os que
negam a autoridade e suficiência das Escrituras. Será que isso é saudável? O que
acontecerá no futuro com as igrejas locais? Ficaremos omissos diante da liquidez (não no
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sentido contábil) produzindo garrafas com embalagens diferentes ao ponto da
fragmentação da identidade batista permitir guetos a partir do isolamento? O que
acontecerá com as igrejas de periferia se o costume de não cooperar, por exemplo,
agregarem cada vez mais membros infiéis nos dízimos e nas ofertas? Terão condições
de serem pastoreadas por um líder bíblico e firme doutrinariamente?
O 8º capítulo da Declaração Doutrinária Batista Brasileira orienta que “as Igrejas
devem relacionar-se com as demais Igrejas da mesma fé e ordem e cooperar,
voluntariamente, nas atividades do Reino de Deus.”(DDBB, Cap. VIII). Logo, a
manutenção da ordem denominacional depende da atuação das Igrejas, para evitarmos o
que Stuart Hall chamou de “identidades descentradas.” É preciso somar forças. Quando
se fala em Reino de Deus é preciso ter consenso e uniformidade de opiniões e crenças –
deixando de lado as divergências periféricas da teologia e da eclesiologia na manutenção
coletiva e sólida da essência batista. Isso nos fortalecerá!
Leandro Karnal afirma que “quanto mais frágil a sociedade julga uma pessoa, mais
a atacará” (KARNAL, 2017, p. 54); me atrevo a parafraseá-lo forçando seu texto: quanto
mais frágil a sociedade julgar as igrejas batistas mais a atacará com as armas do
secularismo e do ceticismo.
Ajudar faz parte de nossa história, de nossa identidade e não é possível manter a
identidade batista sem preservar os aspectos mais relevantes desta – o princípio de
cooperação – pois, “a própria identificação com o passado torna presente a comunidade
de destino” (MORIN, 2012, p. 67). Segundo o historiador e pastor José dos Reis Pereira,
numa reunião no Rio de Janeiro, em 1956, a então Junta Cooperadora da Convenção
Batista do Distrito Federal lançou uma proposta de ajuda mútua financeira: “pedir às
Igrejas uma oferta regular proporcional e mensal”(PEREIRA, 2001, p. 206), em seu livro
História dos Batistas no Brasil, ele acrescenta:
Para o sustento do trabalho estadual e do trabalho nacional; para essa
oferta, o dízimo das entradas mensais das Igrejas seria o ideal mínimo
[...] A receptividade do plano foi total. (PEREIRA, 2001, p. 227)
A manutenção do trabalho dos batistas brasileiros teve como principal meio de
viabilidade, o Plano Cooperativo que foi oficializado em 1957, em Belo Horizonte; a partir
daí os batistas brasileiros agregaram mais ferramentas para espalhar o evangelho do
Reino de Deus. A proposta foi pressuposta na expansão do evangelho de salvação, para
Reis Pereira era o início de nova era, membros de várias Igrejas e não convertidos
podiam ouvir mensagens através do programa de rádio “Batistas em Marcha”. Reis
Pereira afirmou que “em 1960, o programa era transmitido por nove emissoras”
(PEREIRA, 2001, p. 233). É importante ressaltar que a através da cooperação entre as
Igrejas Batistas criamos Seminários Batistas para preparação de pastores, missionários e
líderes com formação teológica voltada para Declaração Doutrinária Batista Brasileira. É
temeroso que alguns jovens tem sua educação teológica formatada em instituições não
confessionais. A cooperação financeira da igreja local também ajuda a manter seminários
de confissão batista em todo o Brasil.
Quero concluir dizendo que a resposta ao tema é não e para isso precisamos nos
fortalecer, enrijecer o que é preciso. Reafirmar o sujeito cooperativo e nos membros das
Igrejas, nas Igrejas filiadas e continuar conservando uma identidade estável, para não
colhermos uma geração de crentes com uma doutrina fragmentada e composta uma
identidade que oscila e não constrói coletivamente. Vale lembrar que “o princípio de
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autonomia de cada igreja local não prejudica o outro princípio, que é o de trabalho
cooperativo, o qual é necessária para cumprimento do ide de Jesus.” (OLIVEIRA, 2011,
p.180). Esse trabalho expressa a participação do povo de Deus na expansão do
evangelho, cumprindo sua missão através de missões, da educação religiosa, da
educação teológica, da comunicação, e de várias outras ações. Como disse o saudoso
pastor Billy Graham: “o tempo da colheita é sempre o agora, constantemente presente.”
Deixo algumas perguntas para reflexão:
ü Uma Igreja que coopera, pode subjetivamente, estar ensinando o princípio
bíblico da fidelidade e mordomia aos seus membros?
ü Será que é possível ser uma denominação que mostra fortalecimento
institucional ao investirmos no Reino de Deus além das paredes da Igreja
Local?
ü A identidade doutrinária Batista depende de mantermos um corpo
denominacional coeso através de nossas organizações?
ü Queremos investir em organizações/instituições que ensinam e pregam de
acordo com nossa Declaração de Fé Batista (Declaração Doutrinária Batista
Brasileira)?
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Pr. Wanderley Lima Moreira
Pastor da Igreja Batista Ágape. Bacharel em Teologia pelo Centro de Educação Teológica Batista do
Espírito Santo (CETEBES). Bacharel em Administração de Empresas pela Faculdade Estácio de Sá de
Vitória (FESV). Mestre em Teologia Bíblica pela Faculdade Batista do Paraná (FABAPAR). Professor
de Teologia do Antigo Testamento e Hebraico no CETEBES. E-mail: wanderleylima@bol.com.br

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:


Zahar, 2001.
BÍBLIA SAGRADA – NAA. Traduzida por João Ferreira de Almeida. Nova Almeida
Atualizada. 3 ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017.
DECLARAÇÃO DOUTRINÁRIA BATISTA BRASILEIRA. Disponível no site:
http://www.convencaobatista.com.br/siteNovo/pagina.php?MEN_ID=22. Acesso em
04.02.2019.
HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2008.
KARNAL, Leandro. Todos contra um. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
MORIN A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 19 ed.
Tradução de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
MORIN, Edgar. O método 6: ética. Tradução de Juramir Machado da Silva. Porto Alegre:
Sulina, 2011.
OLIVEIRA, Zaqueu Moreira de. Um povo chamado batista: história e princípios. 2 ed.
Recife: Kairós, 2011.
PEREIRA, José dos Reis. História dos batistas no Brasil. 3 ed. ampliada e atualizada.
Rio de Janeiro: JUERP, 2001.
SOUZA, Sócrates Oliveira (org.). Pacto e comunhão: documentos batistas. 2 ed. Rio de
Janeiro: Convicção, 2010.

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