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O HOMEM NA MULTIDÃO

Resenha do conto de Edgard Allan Poe

Publicado em 1840, o conto “O homem na Multidão do escritor norte-americano


Edgard Allan Poe expressa os sinais de um novo tempo. O século XIX ficaria
marcado, entre outras coisas, pelo encontro da “modernidade” com seu
apogeu, cuja representação máxima se dava na figura das grandes cidades
impulsionado pelos projetos urbanísticos e pela industrialização acelerada.
Este novo ambiente – que traz uma nova configuração de sociabilidade – como
não poderia ser diferente, irá transformar também a vida do homem,
redefinindo suas constituições identitárias e criando novas formas de perceber
a realidade.

É este ponto específico que trata o conto de Edgard Allan Poe. A história é
relativamente banal se comparada com as formas de romance do realismo
europeu – movimento que já surgia naquela época em contraponto com o
romantismo. Em resumo: um homem recém-saído do hospital senta-se à janela
de um café para observar as pessoas na rua. Ele passa a descrever cada um
dos “tipos” num exercício quase etnográfico; para, em seguida, focar-se num
único personagem – um velho decrépito na casa de seus 60 anos. A partir daí
ele é conduzido – quase que “convidado” – a submergir na multidão, enquanto
segue este homem sem nenhum proposito aparente.

A própria atividade de “parar e observar pela janela” já é indicativo desses


“sinais de um novo tempo” a que me referi no primeiro parágrafo – está
diretamente ligada ao surgimento da cidade, ao surgimento da noite em si,
enquanto forma de lazer, trabalho e vida social. Sem o advento das luzes, o
homem era escravo do sono no que diz respeito à noite – era refém daquilo
que a natureza lhe impunha. A cidade, portanto, traz essa ruptura importante e
uma coleção de outras possibilidades.

A epígrafe do conto também é reveladora. Ela diz: “Que grande infortúnio, o de


não poder estar sozinho”, referindo-se ao homem moderno que está fadado a
conviver com os outros. E, seguindo este mote, Allan Poe construirá a base
para sua história. Pois a multidão traz outra marca da modernidade: a
interpenetração, a diluição daquilo que conhecemos por público e privado. O
personagem (cuja história pouco conhecemos) passa seu tempo observando
os outros, de certa forma, invadindo suas vidas, ainda que restrito e guiado
pela própria imaginação.

Neste exercício de voyeurismo, a personagem de Poe bate os olhos num tipo


que lhe chama a atenção, e sai da condição de espectador para a condição de
participante, pois, tamanho é seu interesse pela figura, que ele se levanta do
café e passa a segui-lo pelas ruas da cidade. A perseguição vai subindo de
ritmo e intensidade conforme os dois se dirigem para as áreas mais obscuras
da cidade e, ao contrário do que espera o narrador, este homem não tem
proposito aparente, não vai para nenhum lugar específico ou apresenta
qualquer ambição clara. Após uma pequena jornada, o narrador desiste e
conclui que este sujeito é o próprio “homem da multidão”, “o tipo e o gênio do
crime profundo”, que se recusa a estar só, concluindo ainda que nada poderá
saber a respeito dele ou de seus atos.

O caráter errático e difuso do homem perseguido é a expressão que Poe


encontra para falar do homem moderno em geral, cuja essência não pode ser
capturada pela razão. Dessa forma, Edgard Allan Poe consegue evidenciar
todos os problemas inerentes da modernidade e que não são expostos por
seus agentes institucionais. A ambiguidade da personagem também é retrato
desta linha entre público e privado, regida sempre pelas próprias experiências,
mas que é impossível de se captar por inteiro. A arte de Poe revela o caráter
maligno e contraditório deste tempo que nos foi imposto como a “solução” para
o atraso e a vida medieval.

O “Homem na Multidão” é uma leitura mais do que necessária para entender


um período da história do homem, mas também para dar uma prova, de que,
invariavelmente, é na arte que estão grande parte das interpretações da vida e
da sociedade.

JOÃO P.R TOGNONATO – RA 00240402

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