Você está na página 1de 14

Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

Ano 5, Vol X, nº 3 , pág. 95-108, Jul-Dez 2012 (Extra).

DUPLA EXCEPCIONALIDADE SUPERDOTAÇÃO E TRANSTORNO


DE ASPERGER: CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS

TWICE EXCEPTIONALITY GIFTEDNESS AND ASPERGER`S


SYNDROME: THEORETICAL CONTRIBUTIONS

Tânia Gonzaga Guimarães (Universidade de Brasília)

Eunice M. L. Soriano de Alencar (Universidade de Brasília)

Resumo: Há um reconhecimento crescente de que indivíduos superdotados


podem também apresentar características típicas daqueles com Transtorno de
Asperger. Entretanto, a literatura referente a esta dupla excepcionalidade é
muita escassa, com um reduzidíssimo número de estudos empíricos realizados
sobre a condição. Este artigo apresenta informações sobre o referido transtorno,
com ênfase no histórico e características associadas a síndrome. Descreve
também traços comuns e discrepantes entre indivíduos superdotados e aqueles
com o transtorno em diferentes esferas, como linguagem, humor e expressão da
afetividade. O artigo finaliza ressaltando a importância de os profissionais
responsáveis pela avaliação psicológica ou médica de indivíduos superdotados
ou com Transtorno de Asperger levarem em consideração a possibilidade da
coexistência da superdotação com o transtorno, sinalizando o que deve ser
levado em conta na avaliação e a necessidade de intervenções apropriadas que
possam ajudar o indivíduo com a dupla excepcionalidade a lidar com as
dificuldades associadas ao transtorno.

Palavras-chaves: Dupla excepcionalidade; Superdotação; Transtorno de


Asperger.

95
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

Abstact: There is an increasing recognition that gifted individuals may also


present typical characteristics of those with Asperger’s Syndrome. However,
the literature about this twice exceptionality is very scarce, with very few
empirical studies focusing this condition. This article presents information
about Asperger’s Syndrome, with emphasis on the history and characteristics
associated to the syndrome. The article also describes common and discrepant
traits between gifted individuals and those with the syndrome in different
spheres, such as language, humor and expression of affectivity. The article
finalizes highlighting that professionals responsible for the psychological or
medical assessment of gifted individuals or those with Asperger’s Syndrome
must take into account the possibility of the coexistence of the two conditions.
It points out features of the diagnostic evaluation and the need of appropriate
interventions that may help the individual with twice exceptionality to deal
with the difficulties associated with the syndrome.
Key words: Twice exceptionality; giftedness; Asperger’s Syndrome

Introdução

Uma análise da literatura sobre Superdotação/Altas Habilidades indica


que muitos avanços ocorreram nas últimas décadas, especialmente no que diz
respeito a procedimentos de avaliação/identificação, modelos/práticas
instrucionais e atenção diferenciada ao superdotado em países de distintos
continentes. Em que pesem estes avanços, muitos são os tópicos referentes ao
superdotado ainda pouco explorados e que merecem uma atenção maior dos
estudiosos e pesquisadores da área. Dentre eles, poder-se-ia apontar a dupla
excepcionalidade, incluindo distintos grupos específicos, como superdotados
que apresentam dislexia, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade ou
Transtorno de Asperger, sendo este último o foco do presente artigo. O mesmo
inicia com uma apresentação deste transtorno, seguido da descrição de traços
comuns e discrepantes entre indivíduos superdotados e com Transtorno de
Asperger. Ressalta-se que, embora muito tenha sido pesquisado e divulgado
tanto sobre superdotação quanto sobre a Síndrome ou Transtorno de Asperger,
especialmente nas duas últimas décadas, a literatura sobre superdotados com o
referido transtorno é extremamente escassa. Este não é, por exemplo, um tema

96
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

focalizado em dois dos mais completos textos da área, quais sejam Heller,
Mönks, Sternberg e Subotnik (2000) e Shavinina (2009)

Transtorno de Asperger

O Transtorno ou Síndrome de Asperger foi originalmente descrito em


1944, pelo pediatra vienense Hans Asperger em sua tese de doutorado.
Entretanto, somente foi oficialmente reconhecido como critério de diagnóstico
no DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual da Associação Americana de
Psiquiatria) em 1994, portanto 50 anos após a sua descrição original.
Segundo Asperger (citado por Attwood, 2000), os indivíduos com esse
transtorno apresentam uma interação social empobrecida, desenvolvimento de
interesses especiais e uso estereotipado e pedante da fala. Em sua tese, o autor
descreveu quatro meninos que se caracterizavam por habilidades sociais,
linguísticas e cognitivas atípicas, tendo utilizado o termo ´psicopatia autística`
para descrever o que considerava uma forma de desordem de personalidade
(Attwood, 2000). O estudo de Asperger permaneceu, entretanto, ignorado por
várias décadas, embora ele se dedicasse ao tratamento de crianças com o
referido quadro clínico, tendo inclusive sugerido que a síndrome tinha maior
probabilidade de ser observada entre crianças com alto nível de inteligência e
habilidades especiais (Neihart, 2000). O seu trabalho somente veio a causar
impacto, um ano após a sua morte, quando Wing (1981) publicou na língua
inglesa as características clínicas principais originalmente descritas por
Asperger, estimulando o interesse por novas pesquisas em relação à definição
desse quadro clínico. Nesta publicação, Wing descreve 34 casos que
apresentavam as mesmas características citadas por Asperger. Muitas dessas
crianças, com histórico precoce de sintomas autistas, demonstravam sérias
dificuldades na interação, prejuízos na comunicação, além de limitada
capacidade criativa, porém com nível cognitivo acima da média, se comparadas
às crianças autistas da mesma faixa etária. Wing denominou, então, este quadro
de Síndrome de Asperger, que passou a ser reconhecido cientificamente, e
pertencendo ao continuum autista (Attwood, 2000; Klin, 2006).

97
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

De acordo com o DSM-IV-TR (2002), as características principais do


transtorno de Asperger consistem em: (critério A) “dificuldade severa e
constante nas interações sociais; (critério B) desenvolvimento de padrões
restritos de comportamentos, interesses e atividades; (critério C) dificuldades
clinicamente significantes nas áreas social, ocupacional ou outras” (p. 111).
Diferentemente do Transtorno Autista, o indivíduo com Transtorno de
Asperger não apresenta atrasos clinicamente significativos na área da
linguagem. Durante os três primeiros anos de vida, não ocorrem atrasos no
desenvolvimento cognitivo manifestado na expressão de curiosidade normal
diante do ambiente ou na aquisição de habilidades de aprendizagem e
comportamento adaptativo, o que permite melhor adaptação social. Pode haver
comprometimento da interação social e na comunicação social, bem como nos
padrões restritos de interesses, embora possa precocemente apresentar
desajeitamento motor (American Psychiatric Association, 2002).
Portanto, a Associação Americana de Psiquiatria considera que o
Transtorno de Asperger é uma categoria, dentro dos Transtornos Globais do
Desenvolvimento, diferente do Transtorno Autista. A categoria Transtornos
Globais do Desenvolvimento refere-se aos transtornos que se caracterizam por
prejuízos severos e invasivos em diversas áreas do desenvolvimento. Os
prejuízos qualitativos representam um desvio em relação ao nível de
desenvolvimento do indivíduo, o que afeta sua adaptação social e educacional.
De maneira geral, as alterações se manifestam nos primeiros anos de vida e
podem aparecer associadas a vários quadros (neurológicos ou sindrômicos)
variando em grau e intensidade de manifestações. Sendo assim, o Transtorno
de Asperger deve ser compreendido a partir da combinação de um substrato
neurobiológico e de variáveis ambientais e esta intersecção afetaria o
desenvolvimento do indivíduo ao longo de sua vida. Ademais, o diagnóstico do
Transtorno de Asperger continua sendo clínico, baseando-se nos
comportamentos observados ao longo do desenvolvimento do indivíduo
inserido no meio social e cultural.
Neste sentido, a realização de um diagnóstico de indivíduos com
Transtorno de Asperger torna-se relevante quando se descrevem as

98
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

características destes nas áreas do desenvolvimento, e detectam as necessidades


e se oferecem estratégias de intervenção que ajudem a melhorar a qualidade de
vida desses indivíduos (Artigas, 2000). É, entretanto, fundamental ressaltar que
no quadro clínico do Transtorno de Asperger, há grandes variações nas
condutas apresentadas por distintos indivíduos: alguns podem sair muito bem
na escola, enquanto outros se caracterizam por desempenho muito aquém do
desejável; alguns têm sérios problemas de comportamentos, enquanto outros
não. Alguns apresentam hábitos inaceitáveis, o que nem sempre é o caso.
Quanto à prevalência, Gillberg (1998) relatou que a incidência de
Transtorno de Asperger era estimada em 7 para cada 1000 crianças entre 7 e 16
anos, e 5 a 10 vezes mais comum que o autismo. É também mais frequente
entre meninos do que entre meninas (Assouline, Nicpon, & Doobay, 2009). De
acordo com o DSM-IV-TR, porém, ainda não há dados definitivos quanto à
prevalência do Transtorno de Asperger (American Psychiatric Association,
2002). Ademais, as estimativas já apontadas podem ficar comprometidas em
função desta síndrome ser muitas vezes confundida com outros transtornos
mentais, como esquizofrenia, paranoia e outras desordens de personalidade
(Gillberg, 1998; Wing, 1981).
Fazendo uma análise histórica dos últimos anos, alguns autores
(Artigas, 2000; Assumpção, 2007; Gillberg, 1998; Klin, 2006; Myles &
Simpson, 2003; Schwartzman, 2003) têm contribuído significativamente para a
produção científica em relação às características do Transtorno de Asperger.
Entre eles, ressalta-se que Gillberg (1991), no início da década de 90,
apresentou seus próprios critérios para o diagnóstico do Transtorno de
Asperger na tentativa de conseguir um retrato clínico mais fiel dessa desordem.
São seis os critérios propostos por ele, a saber: 1- isolamento social, com
extremo egocentrismo; 2- áreas restritas de interesses; 3- rotinas e rituais
repetitivos; 4- peculiaridades de fala e linguagem; 5- distúrbios na
comunicação não-verbal; 6- desajeitamento motor - “Clumsiness”.
Também Assumpção (1997) levanta características importantes para a
realização do diagnóstico do Transtorno de Asperger, como inteligência
normal, desenvolvimento de habilidades especiais com interesses restritos,

99
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

desenvolvimento de padrões gramaticais elaborados precocemente com


tendência ao pedantismo e alterações da prosódia, dificuldades de compreensão
e de comunicação não verbal e déficit no contato social.
Segundo Myles e Simpson (2003), a maioria dos indivíduos com
Transtorno de Asperger começa a falar antes dos três anos de idade
apresentando bom desenvolvimento dos aspectos formais da linguagem, além
de fala “pedante” que pode ser descrita como o uso de palavras difíceis ou
pouco usuais para a idade cronológica e construção de frases rebuscadas,
provocando pouca espontaneidade. Em relação à compreensão, esta pode estar
comprometida tendendo a um entendimento literal, não conseguindo o
indivíduo abstrair o conteúdo metafórico ou de duplo sentido das expressões.
Na maioria das vezes, esses indivíduos utilizam o meio verbal em detrimento
de outras pistas de comunicação, pois o uso de gestos é reduzido e, quando
ocorre, é de forma desajeitada. Tais manifestações decorrem de falhas na
recepção, discriminação e compreensão de estados mentais de outra pessoa,
gerando uma inabilidade cognitiva em atribuir estados mentais ou de entender
as expressões faciais do interlocutor, dificultando a competência social e as
habilidades de adaptação social de forma geral (Howlin, 2003; Klin, Volkmar,
& Sparrow, 2000; Pastorello, 1996; Schwartzman, 2003).
O desenvolvimento motor pode ser normal ou um pouco atrasado, com
dificuldades psicomotoras leves, dando ao indivíduo com Transtorno de
Asperger um aspecto “desajeitado” (Gillberg, 1993; Penã, 2008). Para Wing
(1999, citada por Artigas, 2000), a coordenação motora no Transtorno de
Asperger é geralmente pobre, assim como a organização dos movimentos,
embora alguns indivíduos possam se destacar em áreas específicas de interesse,
por exemplo, tocar um instrumento musical.
Artigas (2000) relata que na maioria dos indivíduos com Transtorno de
Asperger as manifestações mais importantes situam-se no plano cognitivo e
comportamental, com características bastante específicas. Em complemento,
Myles e Simpson (2003) e Luiselli (2008) ressaltam que problemas, como
estresse e ansiedade, podem aparecer no decorrer do desenvolvimento do
indivíduo com Transtorno de Asperger, e esta combinação é uma das muitas

100
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

que pode ocorrer em comorbidade na sintomatologia destes indivíduos. Assim,


tem sido apontado que um percentual expressivo destes indivíduos apresenta
comorbidade com outros transtornos, como Transtorno do Desenvolvimento da
Coordenação, Síndrome de Tourette, Transtorno Obsessivo-Compulsivo,
Transtorno do Déficit de Atenção-Hiperatividade, dislexia, hiperlexia e
depressão. Tais comorbidades ou manifestações associadas podem surgir em
qualquer indivíduo em desenvolvimento sem comprometimento dessa natureza.
De forma similar, sintomas, como dificuldade de interação social e falta de
flexibilidade, observados no Transtorno de Asperger, são também comuns
entre a população geral e podem ser considerados traços de personalidade ou
uma forma de condição patológica. As características nucleares do Transtorno
de Asperger não diferem qualitativamente daquelas próprias de qualquer
indivíduo. A diferença está na expressão aumentada e severa de alguma destas
características, a ponto de interferir na vida social do indivíduo (Artigas, 2000;
Attwood, 2000).

Transtorno de Asperger e superdotação: Traços comuns e discrepantes

Como um número expressivo de indivíduos com Transtorno de


Asperger funciona em um nível intelectual médio ou acima da média,
notadamente nesta última década a ocorrência simultânea Transtorno de
Asperger e Superdotação tem chamado a atenção de especialistas da área de
superdotação. Estes têm buscado desenvolver estratégias instrucionais e
comportamentais que possam auxiliar na inclusão de alunos com esta dupla
excepcionalidade, oferecendo-lhes uma assistência especial para a sua
adaptação e melhor desenvolvimento. Para facilitar a identificação/avaliação
destes indivíduos, é importante conhecer características comuns de crianças
superdotadas e aquelas com Transtorno de Asperger e ainda aquelas
características que diferenciam os superdotados daqueles superdotados com
Transtorno de Asperger. Nota-se, entretanto, que embora alguns autores façam
referência a este grupo de indivíduos (Assouline, Nicpon, & Doobay, 2009;

101
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

Henderson, 2005; Jackson, 2003, Lovecky, 2004; Neihart, 2000), o número de


estudos empíricos com amostras destes indivíduos é reduzidíssimo. Assouline e
colaboradores, por exemplo, apontam apenas um único estudo realizado por D.
H. Huber, o qual em sua tese de doutorado descreveu 10 estudantes com QI
muito elevado e que também apresentavam o Transtorno de Asperger. No
Brasil, destaca-se o estudo de caso realizado por Guimarães (2009), em sua
dissertação de mestrado.
Entre as características que podem ser observadas em superdotados e
aqueles com Transtorno de Asperger, destacam-se: (a) fluência verbal, além de
excelente memória de fatos e informações sobre tópicos de interesse especial;
(b) interesse por letras ou números e prazer em memorizar informações
factuais em idade precoce; (c) grande interesse por um tópico específico,
apresentando o indivíduo um vasto repertório de informações sobre o tópico
que o fascina; (d) hipersensibilidade a estímulos sensoriais, como ruídos,
toques, textura e sabor de alimentos, níveis de iluminação e cores; (e)
assincronia entre distintas facetas do desenvolvimento, por exemplo, entre o
desenvolvimento cognitivo e o desenvolvimento social e afetivo; (f) excelente
desempenho em áreas específicas, paralelamente a um desempenho mediano
em outras áreas (Neihart, 2000).
Por outro lado, uma das características distintas é encontrada nos
padrões de discurso. Os indivíduos com Transtorno de Asperger, assim como
os que apresentam Superdotação, podem evidenciar discurso fluente
caracterizando um pensamento original e analítico. Embora ambos os grupos
sejam altamente verbais, indivíduos com Transtorno de Asperger apresentam
um discurso pedante, o que não é comum entre superdotados. Frith (1991)
sugeriu que uma diferenciação se encontra na falta de coesão do discurso, ou
seja, os indivíduos com Transtorno de Asperger demonstram uma combinação
pouco coesa de conhecimentos e relatos pessoais em suas respostas escritas ou
orais. Geralmente, eles falam ou escrevem misturando o conteúdo com
reflexões pessoais e ilustrações autobiográficas, sem ter muita preocupação
quanto a isto.

102
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

Outra diferença se apresenta na maneira como esses indivíduos


respondem à rotina diária. Mesmo que tanto os indivíduos com Transtorno de
Asperger quanto os Superdotados sejam descritos muitas vezes como
resistentes à rotina em casa ou na escola, indivíduos superdotados não são tão
rígidos quanto os que têm Transtorno de Asperger. Além disso, os primeiros
normalmente não apresentam as mesmas dificuldades em lidar com mudanças
como aqueles que apresentam Transtorno de Asperger. Estes podem
demonstrar enorme dificuldade com horários e rotinas da sala de aula e podem
se recusar a cooperar com tarefas comuns de aprendizagem na escola. Em
contrapartida, os superdotados podem apresentar baixa motivação em relação à
rotina escolar e podem resistir passivamente a ela, embora não costumem
entrar em pânico ou tornarem-se agressivos como os que têm Transtorno de
Asperger, os quais podem tornar-se mais obsessivos com a rotina diária (Klin,
& Volkmar, 1995).
Há também uma diferença em relação aos comportamentos bizarros que
caracterizam os indivíduos com Transtorno de Asperger. Neihart (2000)
ressalta que os indivíduos comuns têm consciência que os outros observam seu
comportamento excêntrico, enquanto os indivíduos com Transtorno de
Asperger não percebem e nem consideram o seu comportamento como
excêntrico. Essa falta de consciência sobre as convenções sociais é uma marca
do Transtorno de Asperger, o que provavelmente tem relação com a
impossibilidade do desenvolvimento da “Teoria da Mente” (Attwood, 2000).
Tais indivíduos demonstram grande dificuldade de entender a perspectiva do
outro, o que torna o seu ajustamento social tão desafiador (Neihart, 2000).
Outra distinção apontada encontra-se na “perturbação da atenção ativa”
(Asperger, 1944/1992), uma vez que indivíduos superdotados podem
apresentar dificuldades de atenção, tornando esta mais difusa e influenciada
por estímulos externos, enquanto que aqueles com Transtorno de Asperger
tendem a se distrair, mas é uma desatenção interna. A sua atenção é muito mais
voltada para o mundo interior, dificultando seu desempenho acadêmico.
A qualidade de humor é outra diferença. Os indivíduos superdotados
com Transtorno de Asperger podem ser criativos com jogos de palavras e

103
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

podem ter excelente performance em fazer trocadilhos, contudo falta neles a


reciprocidade que embasa o humor (Attwood, 2000; Grandin, 2000). Na
maioria das vezes, esses indivíduos não entendem as piadas. Por outro lado, os
indivíduos superdotados não apresentam dificuldade em compreender situações
com humor.
A expressão da afetividade é outra característica potencialmente
distinta. Geralmente, indivíduos com Transtorno de Asperger tendem a
apresentar comportamento automatizado em algum nível (Attwood, 2000). A
sua resposta emocional pode ser insípida ou restrita, ou podem rir, chorar ou
ficar ansioso de forma inadequada. Contrapondo a esta reação, uma expressão
de afetividade inadequada não é uma característica usual em indivíduos com
superdotação.
Alguns autores, como Neihart (2000), Szatmari (1998) e Wing (1981),
reconhecem que a característica mais provável que distingue os indivíduos
superdotados daqueles com Transtorno de Asperger é a enorme falta de
perspicácia e compreensão destes últimos com relação a sentimentos,
necessidades e interesses de outras pessoas. Os indivíduos com Transtorno de
Asperger geralmente falam incansavelmente sobre seu tema preferido de forma
monótona ou pedante, sem perceber que o ouvinte pode não estar interessado.
Muitas vezes, eles interrompem a conversa particular, entram ou saem
abruptamente de um local sem se preocupar com os as necessidades do outro.
Eles demonstram falta de consciência social em relação às mais simples regras
sociais de comportamento, um tipo de atitude não comumente encontrado em
indivíduos superdotados. Portanto, a participação dos indivíduos com
Transtorno de Asperger em programas para alunos superdotados pode se
transformar em um desafio para ele próprio e para os profissionais que estão
inseridos neste programa.

104
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

Conclusão

É imprescindível que se reconheça a coexistência de características de


Superdotação e Transtorno de Asperger para se realizar uma identificação mais
precisa. Como lembram Assouline e colaboradores (2009), a literatura relativa
à educação de superdotados tem apontado a importância de se compreender o
impacto da superdotação em um transtorno e, vice versa, de um transtorno na
superdotação. Sinalizam ainda que se um indivíduo superdotado apresenta
dificuldades de ordens diversas, é fundamental identificar a etiologia dessas
dificuldades, buscando-se entender se elas têm origem no ambiente ou se
estariam associadas a um dano que tem uma base interna, resultado de um
transtorno do neurodesenvolvimento.

Ressalta-se, entretanto, que as investigações referentes a esta dupla


excepcionalidade ainda se encontram em um estágio muito inicial,
constatando-se uma enorme carência de estudos empíricos sobre o tema. Tais
estudos certamente contribuirão para desmistificar tanto a concepção de que o
superdotado é um indivíduo que não apresenta dificuldades escolares,
comportamentais, socioemocionais ou desordens de ordem psicológica ou
neurológica, quanto para compreender melhor as condutas, muitas vezes,
atípicas apresentadas por alunos que se destacam por uma inteligência superior.

É fundamental que os profissionais responsáveis pela avaliação


psicológica ou médica de indivíduos superdotados ou com Transtorno de
Asperger levem em consideração a possibilidade dessa coexistência. Para tal,
sugere-se que a avaliação seja feita a partir da história do desenvolvimento do
indivíduo, buscando-se levantar dados referentes ao desenvolvimento social, da
comunicação, habilidades motoras e possíveis déficits sensoriais,
complementando com o uso de escalas, avaliações psicológicas, observação da
reciprocidade social do indivíduo em situações criadas para eliciar uma
variedade de comportamentos específicos e observação do uso da linguagem.
Devem-se identificar as características cognitivas, sociais, emocionais e
comportamentais, além do funcionamento neuropsicológico, realizando-se

105
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

ainda exames clínicos e psiquiátricos. Neste sentido, utilizar somente a


checklist de comportamentos, sugerida pelos critérios do DSM-IV-TR (2002),
mostra-se insuficiente quando se trata de crianças com inteligência superior e
sucesso escolar. O diagnóstico do superdotado com Transtorno de Asperger
requer, pois, a participação de uma equipe interdisciplinar com experiência. Os
pais devem estar ativamente envolvidos na avaliação em função da importância
da história do desenvolvimento e da história familiar de desordens psiquiátricas
ou desenvolvimentais (Amend, & Schuler, 2008; Neihart, 2000). Por esta
razão, devem-se utilizar também instrumentos que avaliem características de
superdotação. Ainda de fundamental importância é que a criança/adolescente
superdotada com Transtorno de Asperger, em função dos problemas
frequentemente observados nas áreas social, acadêmica, motora,
comportamental e sensorial, tenha o apoio de professores, pais e terapeutas,
sendo foco de intervenções apropriadas que possam ajudá-la a lidar mais
efetivamente com suas dificuldades.

Referências bibliográficas

American Psychiatric Association (2002). Manual diagnóstico e estatístico de


transtornos mentais – DSM IV-TR (4ª ed.). Porto Alegre: Artmed.
Amend, E. R., & Schuler, P. A. (2008). Giftedness and Asperger’s Disorder:
Sorting out the difference. Proceedings of the Annual Convention and
Exhibit National Association for Gifted Children, 55, p. 87.
Artigas, J. (2000). Aspectos neurocognitivos del Síndrome de Asperger.
Revista de Neurologia Clínica, 1, 34-44.
Asperger, H. (1944/1992). Autistic psychopathy in childhood. In U. Frith (Ed.),
Autism and Asperger Syndrome (pp. 37-62). Cambridge: Cambridge
University Press.
Asssouline, S., Nicpon, M. F., & Doobay, A. (2009). Profoundly gifted girls
and Autism Spectrum Disorder. Gifted Child Quarterly, 43, 89-105.
Assumpção Jr., F. B. (1997). Transtornos invasivos do desenvolvimento
infantil. São Paulo: Lemos Editorial.
Attwood, T. (2000). Asperger Syndrome: A guide for parents and
professionals. Philadelphia: Kingsley.
Frith, U. (1991). Asperger and his syndrome. In U. Frith (Ed.), Autism and
Asperger Syndrome (pp. 1-36). London: Cambridge University Press.
Grandin, T. (2000). Teaching tips for children and adults with autism. Center
for the Study of Autism, 2000. Disponível em www.autism.org.
Gillberg, C. (1991). Autism and pervarsive developmental disorders. Journal
of Child Psychology and Psychiatry, 31, 99-119.

106
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

Gillberg, C. (1993). Asperger Syndrome and clumsiness. Journal of Autism


and Developmental Disorders, 23, 686-687.
Gillberg, C. (1998). Asperger Syndrome and high-functioning autism. British
Journal of Psychiatry, 172, 200-209.
Guimarães, T. G. (2009). Estudo de caso de um aluno superdotado com
transtorno de Asperger; desenvolvimento, características cognitivas e
socioemocionais. (Dissertação de Mestrado). Universidade Católica de
Brasília, Brasília, DF.
Heller, K. A., F. J. Mönks, F. J. Sternberg, R. J., & Subotnik, R. F. (Eds.)
(2000), International handbook of giftedness and talent. Oxford: Elsevier.
Henderson, L. M. (2005). Asperger’s Syndrome in gifted individuals. Gifted
Child Today, 24, 28-35.
Howlin, P. (2003). Outcome in high-functioning adults with and without early
language delays: Implications for the differentiation between autism and
Asperger’s syndrome. Journal of Autism and Developmental Disorders,
33, 3-13.
Jackson, N. E. (2003). Young gifted children. In N. Colangelo & G. A. Davis
(Eds.), Handbook of gifted education (pp. 470-482). Bonton: Allyn and
Bacon.
Klin, A. (2006). Autismo e síndrome de Asperger: uma visão geral (2006).
Revista Brasileira de Psiquiatria, 28, 3-11.
Klin, A., & Volkmar, F. R. (1995). Guidelines for parents: Assessment,
diagnosis, and intervention of Asperger Syndrome. Pittsburgh, PA:
Learning Disabilities Association of America.
Klin, A., Volkmar, F., & Sparrow, S. (Ed.) (2000). Asperger Syndrome. New
York: Guilford Press.
Lovecky, D. V. (2004). Different minds: Gifted children with ADD/ADHD,
Asperger`s Syndrome, and other learning deficits. New York: Jessica
Kingsley.
Luiselli, J. K. (2008). Case demonstration of a fading procedure to promote
school attendance of a child with Asperger`s Disorder. Journal of Positive
Behavior Interventions, 2, 47-52.
Myles, B. S., & Simpson, R. L. (2003). Asperger´s Syndrome: A guide for
educators and parents. Austin, TX: PRO-ED.
Neihart, M. (2000). Gifted children with Asperger’s Syndrome. Gifted Child
Quarterly, 44, 222-230.
Pastorello, L. M. (1996) Síndrome de Asperger. In F. D. M. Fernandes, L. M.
Pastorello, & C. I. Scheuer (Eds.), Fonoaudiologia nos distúrbios
psiquiátricos da infância (pp. 45-59). São Paulo: Ed. Lovise.
Penã, J. R. A. (2008). Autismo y Síndrome de Asperger – Guía para familiares,
amigos e profesionales. Salamanca: Ed. Amarú Ediciones.
Schwartzman, J. S. (Org.) (2003). Síndrome de Down. São Paulo: Mennon.
Shavinina, L. V. (2009). International handbook on giftedness. Springer.
Szatmari, P. (1998). Asperger`s Syndrome: Diagnosis, treatment and outcome.
Psychiatry Clinics of North America, 14, 81-93.
Wing, L. (1981). Asperger`s syndrome: a clinical account. Psychological
Medicine, 21, 115-129.
Recebido em 30/9/2012. Aceito em 10/10/2012.

107
Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3415

Nota curricular sobre os autores:

Tânia Gonzaga Guimarães é Mestre em Educação pela Universidade


Católica de Brasília e psicóloga clínica, com especialização em avaliação e
atendimento a superdotados. É autora de vários capítulos de livros sobre altas
habilidades/superdotação.

Eunice Soriano de Alencar, Ph.D., é professora emérita do Instituto de


Psicologia da Universidade de Brasília e pesquisadora do Conselho Nacional
para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico. É autora de numerosos
livros e artigos publicados em revistas especializadas do Brasil e do exterior,
especialmente sobre superdotação e criatividade. Participa do conselho
editorial de distintos periódicos e é cidadã honorária de Brasília.

Endereço para envio de correspondência:


Profa. Eunice Soriano de Alencar
SHIS QL 10, conjunto 6, casa 14
71630-065 Brasília, DF
Email: eunices.alencar@gmail.com.

108

Você também pode gostar