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Autorização T.S.

Marcon

Conta-se que no final do século passado, numa cidade do interior gaúcho, no primeiro dia de
trabalho do Então Prefeito Eleito, foi convocada uma reunião. Abençoado pelo otimismo positivista,
cingido pela honradez do cumprimento das promessas de campanha, o Então Prefeito Eleito
anunciou, diante de sua ávida equipe:
— Vamos asfaltar as principais vias do centro da cidade. Quero estudos de custos e prazos
para ontem.
Acontece que o Então Prefeito Eleito era dado a esoterismos. Durante uma de suas
corriqueiras idas ao Centro Espírita, solicitou à médium que evocasse o espírito de um antigo
prefeito da cidade, chamado por nós de Velho Prefeito, que foi o responsável pelo primeiro
calçamento, em paralelipípedos de basalto, das principais vias do centro da cidade, lá pelo início do
século passado. É que o Então Prefeito Eleito queria uma autorização do Velho Prefeito, para que
pudesse cobrir com seu asfalto contemporâneo os antigos paralelepípedos. No meio de suas
microfraturas manchadas de suor, gasolina e sangue, aqueles cubos de pedra exalavam a irrepetível
história da cidade.
Conduzido a uma sala nos fundos do Centro Espírita, o Então Prefeito Eleito se sentou.
Persianas fechadas, um abajur aceso no canto, perto da porta. A voz da médium logo se alterou. O
transe místico se iniciava. Ciente de que poderia ser vítima de algum espírito zombeteiro, o Então
Prefeito Eleito quis ter certeza de que falava realmente com o Velho Prefeito. Precisava de uma
prova.
— O discurso que o senhor fará na Câmara de Vereadores, semana que vem — disse o Velho
Prefeito através da médium — está na segunda gaveta de sua mesa e começa com a frase: “Da
escola de guerra da vida: o que não me mata, me fortalece”. Ah, e a meia do seu pé esquerdo tem
um furo com uns 3 cm de diâmetro.
Uma descarga de adrenalina invadiu a corrente sanguínea do Então Prefeito Eleito. Ali
estava o espírito do Velho Prefeito, encarnado naquela jovem de lábios quase leporinos que, em
sintonia com o cabelo preso em rabo de cavalo, não paravam de vibrar.
— Por que me chama aqui?— disse ela, ou melhor, ele, o Velho Prefeito.
— Em campanha prometi que asfaltaria as principais ruas do centro. E agora não farei isso
sem a sua autorização, grande Velho Prefeito. Foste o pai que pavimentou nosso caminho ao
amadurecimento...
— Eu autorizo — interrompeu o Velho Prefeito. — Uma coisa o tempo não muda: a fome do
progresso. E dele não serei freio ou estorvo. Mas tem uma condição. Em cada pedra de
paralelepípedo dessas que serão cobertas eu quero as iniciais do meu nome gravadas. E também o
ano:1935.
Que a política é uma lente de aumento para a vaidade humana o Então Prefeito Eleito soube
logo que entrou na vida pública. Mas que ela, a vaidade, pudesses sobreviver nesses planos
insondáveis da eternidade, ah, isso até aquele momento ele não sabia. Bem, se a zombaria
sobrevive, porque a vaidade não?
Ainda hoje, várias décadas depois, policiais desta cidade do interior gaúcho prendem três ou
quatro pessoas por mês, em geral jovens ou imigrantes, que se botam a escavar o asfalto munidos de
talhadeiras ou rompedores, em busca da prova material que os faça crer no que, por aqui, os mais
velhos viram. E sempre nos contaram.

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