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Resenha

Raça e racismo é uma síntese que pretende repensar as


relações raciais no Brasil.
no Brasil São dois os objetivos. O primeiro é
“reexaminar os argumentos apresentados
por ambas as gerações de acadêmicos”
Paula Miranda-Ribeiro e José (p. 24), uma composta por Gilberto Freyre
Alberto Magno de Carvalho * e seus seguidores e a outra liderada por
Florestan Fernandes. A primeira geração
defendia, na primeira metade do século
TELLES, Edward. Racismo à brasileira: passado, a tese da democracia racial e das
uma nova perspectiva sociológica. relações horizontais, ou seja, das relações
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. entre indivíduos da mesma classe social,
347 páginas. ao passo que a segunda, nos anos 50,
estava preocupada com a desigualdade e
Racismo à brasileira: uma nova a discriminação, ou seja, com as relações
perspectiva sociológica, de Edward Telles, verticais. Os trabalhos de Hasenbalg e
foi recebido com muito entusiasmo pela Silva, iniciados na década de 70, corro-
mídia. Em sua coluna no jornal Folha de S. boram a existência de desigualdade e
Paulo, de 19/10/2003, Elio Gaspari rasga discriminação no Brasil e se somam às
elogios ao autor, ao livro e aos seus acha- evidências da segunda geração. Telles, por
dos. Lançado no Encontro da Associação sua vez, parte da premissa de que “pode
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em existir, ainda que de maneira limitada,
Ciências Sociais (Anpocs), em Caxambu alguma forma tanto de inclusão quanto de
(MG), assim como em Belo Horizonte, São exclusão” (p. 25) e sustenta que as relações
Paulo e Rio de Janeiro, Racismo à brasileira raciais brasileiras são mais bem entendidas
alcançou também grande visibilidade quando vistas da perspectiva das relações
na comunidade acadêmica. O livro é muito horizontais e verticais.
bem recomendado, levando-se em consi- O segundo objetivo do livro é comparar
deração o prefácio, escrito por Joaquim as relações raciais no Brasil, nos Estados
Barbosa Gomes, primeiro negro a ocupar Unidos e, em menor medida, na África do
o cargo de ministro do Supremo Tribunal Sul. A comparação entre os países é
Federal, e a contracapa, que traz comen- baseada em indicadores quantitativos.
tários de Antônio Sérgio Guimarães, Carlos No caso brasileiro, os dados vêm dos
Hasenbalg e Thomas Skidmore, grandes Censos Demográficos de 1960, 1980 e
autoridades no assunto e com décadas de 1991, da amostra da amostra do Censo
pesquisa na área. 2000 e das PNADs de 1976, 1981, 1986,
O livro está dividido em dez capítulos. 1993, 1996 e 1999. O autor utilizou, ainda,
Após a introdução, os dois primeiros a Pesquisa DataFolha de 1995 e dados de
capítulos tratam do contexto histórico pesquisa realizada em 2000 pelo Centro
(supremacia branca, democracia racial e de Articulação de Populações Margina-
ação afirmativa), os cinco capítulos sub- lizadas (CEAP) da Universidade Federal
seqüentes apresentam evidências sobre Fluminense (UFF).
as relações raciais (classificação racial, A mídia e os acadêmicos têm toda
casamentos inter-raciais, segregação razão em celebrar o livro do professor Telles.
residencial, desigualdade racial e dis- Racismo à brasileira cobre uma enorme
criminação racial), o seguinte examina as lacuna no estudo das relações raciais
implicações da questão racial brasileira nas brasileiras e sistematiza uma série de
políticas sociais e, por fim, o último capítulo idéias pulverizadas em outros trabalhos.

*
Professores do Departamento de Demografia e pesquisadores do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar)
da Universidade Federal de MInas Gerais (UFMG).

R. bras. Est. Pop., Campinas, v. 20, n. 2, p. 307-310, jul./dez. 2003


Miranda-Ribeiro, P. e Carvalho, J.A.M. Raça e racismo no Brasil

A temática do livro é extremamente consultor técnico. Por outro lado, parece


relevante, na medida em que as relações que seu papel na definição do ques-
raciais brasileiras são complexas e estão tionário do censo foi apenas marginal,
interligadas a vários dos nossos proble- contrariamente ao que se crê na comuni-
mas sociais. Neste sentido, a Demografia dade demográfica brasileira. Como afirma
tem muito a contribuir. O livro faz referên- o próprio Mortara (1985, p. 85; tradução
cia aos movimentos sociais e é acessível nossa): “quando eu cheguei ao Brasil [no
aos leitores não iniciados na Sociologia início de 1939] os rascunhos dos questio-
ou na Demografia, prestando-se bem como nários do censo já haviam sido produzidos
livro-texto de cursos de graduação. No pela comissão de consultores técnicos.
entanto, o leitor precisa tomar alguns Os questionários já estavam prontos e, nas
cuidados, que apontamos a seguir. reuniões das quais participei, nenhuma
Pelo que fomos informados, o texto grande mudança foi feita”. Muito pro-
original em inglês teve de ser traduzido vavelmente, a inclusão do quesito sobre
em tempo muito curto, assim como ocorreu raça não se deveu à sua presença e/ou
com a publicação do livro. O fato de não influência.
ter sido possível fazer uma revisão cri- A segunda observação diz respeito à
teriosa do texto em português gerou posição da ditadura militar sobre a questão
variações na qualidade da tradução. Além racial no Brasil. Ainda que não explicitado
disso, há uma série de equívocos aos no livro, pode-se inferir do texto que a
quais devem estar atentos os leitores. Por exclusão do quesito sobre cor/raça no
exemplo, com certa freqüência aparece a Censo de 1970 tenha sido por decisão, ou
palavra negro no lugar de preto, e vice- pressão, ou influência do governo. Como
versa, o que leva a ambigüidades sérias, se trata de convicção assaz generalizada
dado o tema em discussão. No caso de entre os estudiosos do tema no Brasil,
uma nova edição, deveria haver maior aproveito a oportunidade para registrar
cuidado com este aspecto. Sugerimos aqui a informação transmitida pelo pro-
também cuidado no uso do termo gênero, fessor Isaac Kerstenetzky, presidente do
que parece estar sendo empregado IBGE no período de preparação do censo
equivocadamente no lugar do termo sexo. daquele ano e que, à frente dessa insti-
A análise feita à página 125, com o tuição, conseguiu manter uma posição de
subtítulo Gênero, claramente remete a autonomia em relação aos então donos do
diferenças por sexo. Curiosamente, na poder. Segundo testemunhou o professor
página seguinte, ao analisar diferenças Isaac em uma das reuniões da Comissão
regionais, o autor afirma que raça é um Consultiva do Censo de 1991, a decisão
conceito relacional, mas a mesma de não incluir aquele quesito no Censo de
referência não é feita ao tratar de gênero, 1970 foi inteiramente do IBGE, convencido
o que reforça o argumento de que o termo que estava da má qualidade da infor-
correto é sexo. mação obtida através da autoclassifica-
Do ponto de vista da história da demo- ção de cor, em resposta a uma pergunta
grafia brasileira, duas observações são que só admitia algumas categorias prees-
pertinentes. Em primeiro lugar, o livro tabelecidas. Em busca de uma melhor
afirma que “a nomeação de Giorgio alternativa, e com o professor Isaac ainda
Mortara como diretor do primeiro censo à frente do IBGE, a PNAD de 1976, em
moderno do Brasil, em 1940, também foi pleno regime militar, introduziu uma per-
importante para a inclusão da questão gunta aberta sobre o assunto, que teve
sobre raça [...]” (p. 56). Deve-se esclarecer como resposta mais de cem termos
que, na verdade, o diretor do Censo de referentes à cor dos brasileiros, razão pela
1940 foi o professor José Carneiro Felipe, qual, no Censo de 1980, retornou-se ao
tendo Mortara exercido a função de quesito tradicional.

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Miranda-Ribeiro, P. e Carvalho, J.A.M. Raça e racismo no Brasil

A análise da dinâmica demográfica dos perdido em torno de 7% e 39%, res-


diversos grupos de cor (brancos, pretos e pectivamente. No decênio 1980-1990,
pardos), na seção intitulada “O empar- entre aqueles de 10 anos e mais em 1990,
decimento da população brasileira: 1940- comparados com a população total em
1991”(p.61-62), deixa a desejar, uma vez 1980, o ganho dos pardos teria sido de
que desconhece a produção recente sobre aproximadamente 4% e a perda de
o tema desenvolvida no país, inclusive no brancos e pretos, de 2% e 10%,
âmbito da ABEP. Acrescente-se a isso o fato respectivamente. Deve-se atentar para o
de que o segundo parágrafo da referida fato de que as taxas do primeiro período
seção, que seria o mais importante do ponto são, pelo menos em parte, signi-
de vista da dinâmica demográfica, está ficativamente maiores do que as do último,
praticamente ininteligível, certamente uma vez que as primeiras se referem a
devido a problemas de tradução. transferências feitas durante três decênios
Para o fenômeno da “migração” entre e as últimas, ao longo de um decênio.
grupos de cor, o autor reporta-se a um tra- Obviamente, aquelas transferências nada
balho de Charles Wood publicado em têm a ver com a miscigenação.
1991. No entanto, há de se chamar a Como bem chama a atenção o autor,
atenção para o fato de que o trabalho surpreendentemente o Censo de 2000
seminal de Wood adotou uma técnica mostra uma diminuição do peso dos pardos
de estimação precária e limitou-se à e um aumento da proporção dos brancos
“migração”, entre 1950 e 1980, daqueles, e pretos na população total brasileira,
em cada grupo de cor, que tinham de 10 quando se compara com os resultados do
a 19 anos no início do período. Desenvol- Censo de 1991. Eis aí um bom tema para
vimentos posteriores levaram a um aper- os pesquisadores da área! No entanto,
feiçoamento da técnica, o que resultou Telles comete um equívoco ao levantar a
em dois trabalhos publicados (Wood e hipótese de que uma das possíveis causas
Carvalho, 1994; Carvalho et al., 2003), dessa reversão seria o uso da expressão
sendo o último posterior à preparação do cor ou raça, em lugar de somente cor, no
livro aqui resenhado. Censo de 2000, “o que pode ter levado
Não há dúvida de que o crescimento alguns entrevistados a escolher ‘preto’ ou
real da participação da população parda ‘branco’” (p. 62). Na realidade, o quesito
no Brasil, entre 1940 e 1991, deve-se, já incluía a expressão cor ou raça desde o
principalmente, ao fenômeno da mis- Censo de 1980.
cigenação. No entanto, o crescimento No capítulo 4, “Classificação racial”,
mostrado pelos dados censitários em nenhum momento o autor faz
brasileiros está muito além do crescimento referência aos prováveis efeitos das
real. O aumento do número absoluto diferenças nas estruturas etárias de
daqueles que se declararam pardos nos brancos, pardos e pretos sobre os
censos brasileiros deveu-se, prova- resultados encontrados. Caso tenham
velmente, mais à “migração” de brancos e sido realizados exercícios de padro-
pretos para a categoria parda do que à nização com o objetivo de verificar as
miscigenação. As estimativas dos autores possíveis distorções, seria interessante
citados acima apontam para o seguinte mencioná-los em pé de página.
quadro: entre as pessoas com mais de Finalmente, um desafio! Pouco tempo
30 anos em 1980, comparadas com a após o lançamento de Racismo à brasileira
população total em 1950, em cada foram disponibilizados os dados da amos-
categoria de cor, o grupo pardo teria inflado, tra do Censo 2000. Esperamos que uma
via transferências entre categorias, cerca segunda edição do livro inclua também
de 33%, enquanto brancos e pretos teriam esses dados.

R. bras. Est. Pop., Campinas, v. 20, n. 2, p. 307-310, jul./dez. 2003 309


Miranda-Ribeiro, P. e Carvalho, J.A.M. Raça e racismo no Brasil

Referências bibliográficas

CARVALHO, J.A.M., WOOD, C.H. e Omaggio a Giorgio Mortara: vita e


ANDRADE, F.C.D. Notas acerca das cate- opere. Roma: Universita degli Studi di
gorias de cor dos censos e sobre a Roma “La Sapienza”, 1985. p. 61-94.
classificação subjetiva de cor no Brasil:
WOOD, C.H. e CARVALHO, J.A.M. Catego-
1980/1990. Revista Brasileira de Estudos
rias do censo e classificação subjetiva de
de População, v. 20, n. 1, 2003, p. 29-42.
cor no Brasil. Revista Brasileira de Estu-
MORTARA, G. Memories of a life-time. In: dos de População, v. 11, n. 1, 1994, p. 3-17.

Recebido para publicação em 30/9/2003.


Aceito para publicação em 21/11/2003.

310 R. bras. Est. Pop., Campinas, v. 20, n. 2, p. 307-310, jul./dez. 2003

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