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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA

INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA

RENATE GIERUS

“Além das grandes águas”:


mulheres alemãs imigrantes que vêm ao sul do Brasil a partir de 1850.
Uma proposta teórico-metodológica de historiografia feminista a partir de
jornais e cartas.

São Leopoldo
2006
2

RENATE GIERUS

“ALÉM DAS GRANDES ÁGUAS”:


MULHERES ALEMÃS IMIGRANTES QUE VÊM AO SUL DO BRASIL A PARTIR DE
1850. UMA PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA DE HISTORIOGRAFIA FEMI-
NISTA A PARTIR DE JORNAIS E CARTAS.

Tese de Doutorado
para obtenção do grau de Doutora
em Teologia
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação
Área: Teologia e História

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Willy Rieth

São Leopoldo
2006
3

GIERUS, Renate. “Além das grandes águas”: mulheres alemãs imigrantes que vêm ao sul do
Brasil a partir de 1850. Uma proposta teórico-metodológica de historiografia feminista a partir
de jornais e cartas. São Leopoldo: IEPG, 2006.

SINOPSE

Esta pesquisa pretende delinear perfis de mulheres alemãs imigrantes


que vêm ao sul do Brasil na segunda metade do século XIX. Este deli-
neamento ocorre a partir de três jornais e de cartas escritas por estas
mulheres. Entrelaçado a isto, a pesquisa quer lançar um olhar crítico a
uma visão de mulher existente no senso comum, que a considera limi-
tada a sua “sagrada missão” de esposa-dona-de-casa-mãe. Ao utilizar,
neste contexto, a teoria feminista e a noção de gênero, fundamenta-se a
crítica aos perfis traçados. Surgem fissuras e brechas, momentos de re-
significação de cotidianos e experiências tantas vezes pré-definidos.
Estruturar o trabalho de forma a romper com dualismos e propor a
questão teórico-metodológica de uma historiografia feminista como
questão-chave desta tese, finaliza, temporariamente e em uma proposta
plural, a reflexão em torno do tema.
4

GIERUS, Renate. “Além das grandes águas”: mulheres alemãs imigrantes que vêm ao sul do
Brasil a partir de 1850. Uma proposta teórico-metodológica de historiografia feminista a partir
de jornais e cartas. São Leopoldo: IEPG, 2006.

ABSTRACT

This research intends to delineate the profiles of German immigrant


women, who came to the south of Brazil in the second half of the nine-
teenth century. This delineation is based on three newspapers and on
letters written by these women. Intertwined to this, the research wants
to cast a critical look on a view of women that exists in the common
sense, considering her limited to her “sacred mission” of wife-
housewife-mother. The feminist theory and the notion of gender used
in this context, found the critique on the outlined profiles. Ruptures
and gaps arise as well as moments of re-signification of daily experi-
ences, so often predefined. To structure this work so that it breaks up
with dualisms and to propose the theoretical-methodological question
of a feminist historiography as the key-question of this thesis con-
cludes temporarily and with a plural proposition the reflection around
this theme.
5

BANCA EXAMINADORA

1° Examinador: Prof. Dr. Ricardo Willy Rieth (Presidente)

2° Examinador: Prof. Dr. Wilhelm Wachholz (EST – IEPG)

3ª Examinadora: Profa. Dra. Elaine Gleci Neuenfeldt (EST – IEPG)

4ª Examinadora: Profa. Dra. Dagmar Elisabeth Estermann Meyer (UFRGS)

5ª Examinadora: Profa. Dra. Wanda Deifelt (Luther College/EUA)


6

AGRADECIMENTOS

Estes últimos anos foram de intensa dedicação a esta pesquisa. Ela orientou um de
meus cotidianos e me cumulou de experiências junto a um grupo de mulheres, antepassadas
de tantas histórias e memórias esparsas. Unir meio século de vidas nestas páginas não seria
possível sem a participação financeira do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico.

Quando a lide se tornou difícil e a certeza do caminho trilhado havia se transformado


em dúvida e falta de direção, quero agradecer e lembrar aqui de meu pai, Friedrich Gierus,
que colocou em minha frente no que importa se concentrar. Quero agradecer e lembrar tam-
bém de minha mãe, Helga Gierus, ouvindo tantas vezes a cantiga vinda de uma voz nem sem-
pre clara em seus propósitos.

Ao Deus da vida, que me segurou em seu colo nos momentos em que não caminhava
pelos próprios pés. A todas as pessoas, de longe e de perto, que me auxiliaram na procura de
documentos, me indicaram bibliografia, me proporcionaram momentos de lazer e de ócio, tão
necessários quanto os de duro trabalho junto ao computador.

Tal qual as escritoras das cartas o fizeram, quero lançar mão da bênção de Deus para
as pessoas que me lêem:

Que Deus abençoe as vidas vividas


na complexidade de um momento.
Que Deus abençoe mulheres e homens
à procura de suas memórias.
Que Deus abençoe as relações humanas
estabelecidas face a face.
Que Deus abençoe toda a criação,
estarrecida e perplexa pelas mudanças ocorridas.
Que Deus abençoe você
ao possibilitar seu caminho até aqui.
7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 9

I. A MULHER ..................................................................................................................................... 23

1. O GRANDE DESAFIO ....................................................................................................................... 24


2. POSSIBILIDADES HISTORIOGRÁFICAS FEMINISTAS ........................................................................ 26
3. OLHARES ANALÍTICOS ................................................................................................................... 37
4. A CONSTRUÇÃO DO NOVO: RE-SIGNIFICAR ................................................................................... 40
5. MULHERES OPTAM NÃO SOMENTE POR ATITUDES PRÉ-ESTABELECIDAS ...................................... 45
6. MULHERES OPTAM A PARTIR DE CONVICÇÕES DE FÉ .................................................................... 49
7. O TRIPÉ ESPOSA, DONA-DE-CASA, MÃE ......................................................................................... 58
7.1 Casamento: a esposa.............................................................................................................. 58
7.2 A cozinha e a alimentação: a dona-de-casa........................................................................... 61
7.3 A mulher dentro de casa: maternidade .................................................................................. 65

II. A MULHER ALEMÃ .................................................................................................................... 67

1. A ALDEIA DE HANNA .................................................................................................................... 67


2. O TRABALHO ................................................................................................................................. 76
3. O QUE AS MULHERES FALAM ATRAVÉS DE SUAS CARTAS ............................................................. 80
3.1 Carta 1.................................................................................................................................... 81
3.2 Carta 2.................................................................................................................................... 84
3.3 Carta 3.................................................................................................................................... 87
3.4 Carta 4.................................................................................................................................... 90
3.5 Carta 5.................................................................................................................................... 94
3.6 Carta 6.................................................................................................................................. 100
3.7 Carta 7.................................................................................................................................. 101
3.8 Carta 8.................................................................................................................................. 102
3.9 Carta 9.................................................................................................................................. 108
3. 10 Carta 10............................................................................................................................. 110
3.11 Carta 11.............................................................................................................................. 112
3.12 Carta 12.............................................................................................................................. 114

III. A MULHER ALEMÃ IMIGRANTE ....................................................................................... 116

1. TORNAR-SE UMA MULHER ALEMÃ IMIGRANTE ........................................................................... 116


2. “DIÁRIO DE UM IMIGRANTE”....................................................................................................... 120
8

3. O PERTENCIMENTO ÉTNICO-CULTURAL ...................................................................................... 138

IV. EXPERIÊNCIAS E COTIDIANOS.......................................................................................... 147

1. TEXTOS DOS JORNAIS NOS QUAIS AS MULHERES ALEMÃS FALAM OU DELAS É FALADO ............ 149
1.1) “Por medo, angústia e dores, por lutas e temores.”.......................................................... 150
1.2) Amor de mãe. ...................................................................................................................... 164
1.3) De um casamento americano. Não acerca de uma mulher................................................. 167
1. 4) Uma criança no ninho – isto é o melhor............................................................................ 171
1.5) “Advertência e palavra de consolo para mulheres jovens e para tais que o querem ser.” 175
1.6) Saúde e beleza da mulher.................................................................................................... 178
1.7) Os exemplos que vêm do céu............................................................................................... 179

CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 181

EPÍLOGO .......................................................................................................................................... 187

BIBLIOGRAFIA............................................................................................................................... 188

ANEXOS ............................................................................................................................................ 196


9

INTRODUÇÃO

Olhar através dos olhos das mulheres. Conhecer através dos olhos das mulheres. Estas
são as intenções e as motivações de fundo para a presente pesquisa. São olhares específicos
para contextos históricos amplos e gerais. São olhares perscrutadores de silêncios e esqueci-
mentos. São olhares de suspeita. São olhares diferenciados dos olhares dos homens.

Cada olhar tem uma fala. Cada olhar diz alguma coisa. Um não pode falar pelo outro.
Cada olhar vislumbra uma experiência, cada olhar toma a forma desta experiência. São expe-
riências da falta de dinheiro, são experiências amarradas à cor da pele, à cor dos olhos, ao jei-
to de viver e ver a vida.

Os olhares moldam um tempo passado, vivenciam o tempo presente e esperam pelo


tempo futuro. O futuro de uma vida melhor, concebido e sonhado pelas mulheres alemãs imi-
grantes como o resultado de um trabalho ininterrupto, em uma ininterrupta rede de relações
entre mães e filhas.

Ao redor da mesa da cozinha, a família, reunida, conta e reconta fatos do dia. Trazem
à presença divina a gratidão profunda pelo que foi, pelo que é, pelo que será. Olhos nos olhos,
comunicam a incansável certeza de que, juntos, cada um do seu jeito, poderão alcançar aquele
instante de sonho, idealizado por um grupo de homens em alguma aldeia alemã, na pátria sau-
dosa. Sem medo, expressam a sua inabalável fé no Deus da vida, trilhando caminhos nem
sempre gratificantes.

Para esta tese, a experiência e o cotidiano vão estabelecer a base do que eu denominei
de possibilidades historiográficas feministas. Sobre esta base vão se constituir, não necessari-
amente de forma piramidal, os demais conceitos que proponho no capítulo um sob Possibili-
dades historiográficas feministas. O capítulo um intitula-se A mulher e quer apontar para ca-
minhos teóricos e Olhares analíticos em torno deste controvertido (e tão plural) termo.

Escrever esta tese é enfrentar O grande desafio. Pois é um grande desafio escrever so-
bre nós mesmos, sobre mim como pesquisadora e como autora. É um grande desafio escrever
sobre as motivações pessoais e sobre a própria experiência de vida, que, afinal, resultaram
10

nesta tese. Somos uma família chegada ao Brasil, com todos os parentes deixados na Alema-
nha de 1966. Carrego em minha imaginação de menina da primeira infância, as histórias que
minha mãe me conta sobre uma das viagens de navio, feitas entre Brasil e Alemanha.

Uma sensação de falta de família permeou a minha meninice e juventude: éramos


sempre somente nós cinco. O pai, a mãe, eu, o irmão, a irmã; tios, tias, primos, primas, avó
eram sinônimo de Alemanha. Receber notícias tristes de falecimentos parecia uma porta se
fechando no meio de nossos rostos, sem maiores explicações, sem condições e possibilidades
de mais uma palavra, mais um gesto, o último, de adeus.

Nascida em solo brasileiro, carrego a Alemanha no coração. Tornei-me teuto-


brasileira? Não sei. Me digo brasileira e sinto saudades da terra alemã. Todas estas experiên-
cias me motivaram, nem sempre conscientemente, a enveredar por uma trajetória acadêmica
de graduação e de mestrado, que colocasse no ar inquietudes e possibilidades plurais.

A temática do feminismo brotou em minhas leituras e estudos no curso de Teologia.


As mulheres me acompanharam desde então. O mestrado veio permeado do feminismo, das
mulheres, da história, de uma proposta historiográfica feminista. Esta tese se propõe a percor-
rer os caminhos de mulheres alemãs chegadas ao Brasil a partir de 1850, à luz da proposta
lançada no mestrado1.

O objeto desta pesquisa são as mulheres alemãs imigrantes. Estas mulheres não podem
ser vistas como um grupo social homogêneo. O que se delineia de antemão na história da imi-
gração a respeito delas, parece ser um perfil muito específico e unilateral, ausente de peculia-
ridades e singularidades. Como destacar e expressar justamente a diversidade, com certeza
também vivida por estas mulheres do século XIX?

Não sei se minhas antepassadas aportaram em terras brasileiras. Ainda hoje me sinto
com a família na Alemanha. Minhas antepassadas vieram da Ucrânia, da Polônia e procura-
ram um lugar ao sol primeiramente na Alemanha de 1940. Tenho família também no Canadá
e na Austrália. Assim, a vida de migrante parece pulsar em mim. Estas experiências, de uma
forma ou de outra, me conduziram a perseguir e a perscrutar a vida e a história das antepassa-
das alemãs do século XIX.

1
Cf. Renate GIERUS. História das mulheres cristãs: uma historiografia feminista do cristianismo na Amé-
rica Latina e no Caribe.
11

Um dos conjuntos do material de pesquisa precisa ser apresentado. Refiro-me aqui aos
jornais. São eles Der Deutsche Ansiedler (O colono alemão) - DA, Sonntagsblatt (Folha Do-
minical) - SB e Deutsche Post (Correio Alemão) – DP, escritos em alemão gótico. Esta pes-
quisa baseia-se, em parte, nas informações obtidas destes jornais do século XIX.

Os dois últimos jornais mencionados têm um cunho e interesse religioso-confessional.


São jornais de igreja (apesar de o DP entender-se também como um jornal político2) que cir-
culam no sul do Brasil, nos quais procura-se divulgar, entre outros, o ser alemão evangélico.
René Gertz afirma que estes jornais são os que têm uma vida mais longa e uma tiragem maior
devido ao público específico que procuravam alcançar3. Na seqüência, cabem algumas pala-
vras a respeito de cada um dos periódicos.

Der Deutsche Ansiedler

O valor da pátria somente se aprende a estimar, quando não a se tem mais.

DA (fevereiro 1884)

Os dados extraídos deste jornal percorrem os anos de 1882 a 1884. Em princípio, esta
delimitação é aleatória, pois não há nenhum acontecimento histórico amplo que classificasse
tal escolha. 1882, porém, é o ano em que inicia a publicação deste jornal. A partir desta data,
rastreei informações sobre a mulher alemã imigrante e seu contexto e estas se constituem, en-
tão, no material a ser lido doravante, entremeado no decorrer do presente trabalho.

O DA era um jornal publicado na Alemanha pela Sociedade Evangélica de Barmen.


Através dele, os editores procuravam divulgar a Sociedade Evangélica e, principalmente, con-
seguir pessoas que doassem dinheiro para o trabalho junto às famílias emigradas. Segue uma
lista de alguns nomes de mulheres que fizeram doações4 e cujos recibos foram publicados no
DA. Há nomes repetidos em meses diferentes, o que mostra o interesse e a participação finan-
ceira das mulheres na obra missionária da Sociedade.

2
René E. GERTZ, Imprensa e imigração alemã, p.103: “O fato de serem [jornais] políticos não exclui a pos-
sibilidade de defenderem causas de ordem específica, não diretamente política. Os exemplos mais clássicos
são os jornais Deutsches Volksblatt e Deutsche Post. Ambos se entendiam, inequivocamente, como jornais
políticos, e como tais agiam.”
3
Ibid., p.102.
4
Os homens também fizeram doações à Sociedade Evangélica de Barmen. Quero, porém, destacar o nome das
mulheres, mesmo de forma parcial, pois, na maioria das vezes, somente aparecem seus sobrenomes. Também
desta forma torna-se visível sua história.
12

Srta. Hübschmann, Merseburg [localidade], 9 [valor do recibo em marcos]; Sra. Condessa


Harrach, 6; Condessa von Portales, Srta. v. Buddenbrock, Plehn, 4; Sra. Condessa Schwe-
rin, Stettin, 5.5
Sra. Lina [...], 50; Srta. Kulenkampf, 5; Condessa Lippe, 10.6
Srta. v. Arnold, Dorpat, 10; Sra. A. Völseker, Goddentorf, 6.7
Sra. Rentier, nascida Holtz, viúva, 2; Sra. Konsul, nascida Metzler, viúva, Stettin, 3.8
Srta. Hübschmann, 9; Sra. Condessa Harrach, Breslau, 6; Sra. Conselheira Borsig, 3; Sra.
Hengstenberg, 3; Srta. Flehn, 3; Sra. Rentier Wernicke, 3; Srta. von Buddenbrock, 3; Sra.
Condessa Pourtales, 3; Sra. Condessa Schwerin, 1,50; Srta. Hopfer, 1; Sra. Luise Heister,
0,50; Srta. von Wedde, 0,50.9
Srta. Mulert, Rummelsberg, 5; Sra. Dilthey, Rheydt, 5; Srta. Agnes Lentz, Wolverton
Hall, 6,10; Sra. Diemer, Dresden, 4; Sra. Henkel, Hackenberg, 6.10
Ao doarem seu dinheiro para uma Sociedade Missionária, estas mulheres se mostram
informadas a respeito deste trabalho, se mostram administradoras de suas próprias finanças,
ocasionando brechas em uma situação normativa. A norma seria que a maioria delas, princi-
palmente por terem boas condições de vida, somente se interessassem por suas vidas dentro
de casa, no espaço privado. Aqui se dá, necessariamente, uma re-significação de papéis soci-
ais.

Wilhelm Wachholz informa, em sua tese sobre a atuação da Sociedade Evangélica de


Barmen, que ocorreu uma “unificação” da Sociedade Evangélica de Langenberg (SEL) e do
Comitê para os Alemães Protestantes no Sul do Brasil (CAPSB11), formando a Sociedade E-
vangélica para os Alemães Protestantes na América (SEAPA). Esta unificação levou à publi-
cação do DA, periódico que “foi originado do ‘Der Ansiedler im Westen’ que vinha sendo
publicado desde 1º de janeiro de 1863 como órgão de comunicação da Sociedade para a Mis-
são Evangélico-Alemã na América de Berlim (fundada em 1852).”12

A necessidade de comunicação entre os pastores/missionários e professores enviados


pela Sociedade Evangélica de Barmen e a própria Sociedade era grande e já se fazia sentir an-
tes da publicação do DA. É devido a isso que uma das primeiras decisões tomadas quando da

5
DA. Ano 21, Langenberg : Pastor Griesemann, junho 1883. p. 48.
6
Ibid., agosto 1883, p. 64.
7
DA. Ano 21, Langenberg : Pastor Griesemann, março 1884, p. 24.
8
Ibid., abril 1884, p. 32.
9
Ibid., junho 1884, p. 48.
10
Ibid., julho 1884, p. 56.
11
Martin N. DREHER, A participação do imigrante..., p.95: Este Comitê “tratava de conseguir obreiros e
meios para manter o trabalho pastoral entre os imigrantes alemães luteranos no Rio Grande do Sul.”
12
Wilhelm WACHHOLZ, “Atravessem e ajudem-nos”, p. 190.
13

criação da SEAPA foi a publicação do mesmo. Não somente a necessidade de comunicação


era grande, mas também a necessidade de divulgar o trabalho realizado pela Sociedade bem
como o seu financiamento. O próprio jornal noticia isto, com palavras veementes, em sua edi-
ção de julho de 1884: “É extremamente necessário fortalecer as mãos da Sociedade Evangéli-
ca para os Alemães Protestantes na América, a fim de que possa continuar a luta contra o rei-
no de Satanás com mais força do que até agora [...].”13

O “Colono Alemão” tem um formato menor, comparado com o SB e o DP. Tem a me-
tade do tamanho deles. Cada página é dividida em duas colunas, como o SB. Já o DP tem
quatro colunas. A capa do DA, que também é a sua primeira página, imprime sempre uma
gravura. Aliás, são três em uma: à esquerda, algumas casas de colônias alemãs ao sul do Bra-
sil, com araucárias enfeitando a paisagem; à direita, uma casa em construção, no estilo coloni-
al da América do Norte. Abaixo destas duas imagens, ao meio delas, um barco, navegando de
leste para oeste, “indicando não somente a emigração, mas também o envio de pregadores e
professores”14.

Tudo se encontra enquadrado e dividido por galhos secos de árvores e, no espaço livre
deixado pela imagem do barco, o qual não alcança nem a margem esquerda, nem a direita, lo-
caliza-se a data do periódico de um lado e, do outro, o seu ano de circulação. O todo desta
gravura corresponde “à tarefa assumida pela SEAPA de assistir os emigrados na diáspora nor-
te e sul-americana.”15

Na parte superior direita da gravura, encontra-se a seguinte frase, em letras miúdas:


“Eu sou os dois, o teu peregrino e o teu cidadão, como todos os meus antepassados.”16 E na
parte inferior, ao meio, com letras já maiores, encontra-se o nome das instituições publicado-
ras do jornal: “Órgão da Sociedade Evangélica para os Alemães Protestantes na América (em

13
DA. Ano 22, Langenberg : Pastor Griesemann, julho 1884. p.50. Original: “Es thut dringend not, der
Evangelischen Gesellschaft für die protestantischen Deutschen in Amerika die Hände zu stärken, damit sie
den Kampf gegen Satans Reich noch kräftiger als bisher führen [...] könne.”
14
W. WACHHOLZ, op. cit., p. 191.
15
Ibid., p. 191.
16
“Ich bin beides, dein Pilgrim und dein Bürger, wie alle meine Väter.” Texto baseado no Salmo 39.12.
14

Barmen) e da Sociedade Berlinense para a Missão Teuto-Evangélica na América.”17 Segue,


ainda, o índice daquela edição, novamente em letras miúdas.

O DA procura conquistar pessoas doadoras para financiar viagens de alemães imigran-


tes ou pastores/missionários. Ou, ainda, para manter e apoiar comunidades no além-mar. Nes-
ta perspectiva, devem ser lidos muitos trechos do jornal, pois relatam a respeito das condições
de atendimento espiritual ou da vinculação das famílias imigradas a outras denominações.

O DA também cita muitos relatos e experiências das famílias alemãs imigradas para
outros países que não o Brasil. Não descartei estas informações, pois creio que elas trazem,
em nível mais amplo, um retrato das famílias alemãs imigrantes, mostrando que suas experi-
ências e cotidianos, apesar de parecidos, possuem suas peculiaridades. É importante perceber
que ambos são conceitos que podem e devem ser historiografados.

O Jornal de Köln enviou, na última primavera, um correspondente para a América do Sul.


Ele deveria dar atenção especial às colônias alemãs de lá, bem como a sua situação e de-
senvolvimento. [...] Aos leitores do “Colono Alemão”, as próximas notícias irão causar a
impressão, como pensamos, de que realmente é necessário apoiar, muito mais do que até
agora, os nossos compatriotas alemães na América do Sul.18
A seriedade com que foi tratado no relatório passado [da Sociedade Evangélica para os
Alemães Protestantes na América] o dever da cristandade alemã evangélica em participar,
com sacrifício fraternal, do fornecimento de pregadores e professores para os seus com-
panheiros de fé no exterior, não mudou este ano. Ele continua o mesmo.19
A periodicidade do DA é mensal, pagando-se uma anuidade como assinatura no valor
de 1,50 marcos, caso o jornal seja enviado pelo correio ou adquirido em livraria, e, no valor
de 1,25 marcos, caso seja adquirido na expedição da Casa de Missão de Barmen. Quem paga
uma anuidade de, no mínimo, quatro marcos para a Sociedade Evangélica para os Alemães

17
“Organ der evangelischen Gesellschaft für die protestantischen Deutschen in Amerika (zu Barmen) und der
Berliner Gesellschaft für die deutsche evangelische Mission in Amerika.”
18
DA. Ano 20, Barmen: Dr. Schreiber, março 1882. p. 18. “Die Kölnische Zeitung hat im letzten Frühjahr einen
Korrespondenten nach Südamerika entsandt, welcher insbesondere den dortigen deutschen Kolonieen und
deren Lage und Entwicklung seine Aufmerksamkeit schenken sollte. [...] Den Lesern des ‘Deutschen
Ansiedlers’ werden die nachfolgenden Mitteilungen, wie wir denken, den Eindruck machen, daß es ernstlich
not thut, unsre deutschen Landsleute in Südamerika nachdrücklicher als bisher zu unterstützen.”
19
Ano 21, Langenberg : Pastor Griesemann, encarte do relatório da Sociedade mencionada, entre os meses de
outubro e novembro de 1883. s.p. “Der Ernst der im vorigen Berichte dargelegten Pflicht der deutschen
evangelischen Christenheit, an der Versorgung ihrer im Auslande angesiedelten Glaubens-genossen mit
Predigern und Lehrern sich in opferwilliger Bruderliebe zu beteiligen, ist in diesem Jahre unverändert
derselbe geblieben.”
15

Protestantes na América, recebe o jornal gratuitamente. Se a pessoa adquirir o jornal no meio


do ano, os números já publicados serão encaminhados ao novo assinante.20

Nas fontes pesquisadas, não encontrei informações a respeito do público leitor do DA.
A pergunta pela penetração do jornal no Brasil do século XIX é pertinente e trabalho a partir
de suspeitas. O jornal tinha o objetivo de divulgar o trabalho realizado pela Sociedade Evan-
gélica de Barmen, de conseguir dinheiro para enviar pastores e missionários ao sul do Brasil,
entre outros países, de angariar fundos para apoiar as comunidades já formadas.

Suspeito, então, que o principal público leitor tenham sido as lideranças nas comuni-
dades das colônias alemãs, os editores de jornais religiosos em terras brasileiras, os próprios
pastores e missionários que, além de leitores, eram aqueles que enviavam os relatórios sobre
os acontecimentos nas comunidades para os editores em Barmen. Também suspeito que os
professores eram leitores do DA e, como existia a “promoção” de receber o jornal gratuita-
mente quem pagasse quatro marcos ao SEAPA, estes também eram seus leitores, além dos as-
sinantes propriamente ditos. Nas cartas escritas por mulheres alemãs imigrantes e que se en-
contram detalhadas no capítulo dois, uma das autoras afirma assinar um dos jornais que circu-
lava na colônia de Blumenau/SC, o Kolonie Zeitung (Jornal da Colônia).

Sonntagsblatt

“Eu possuo [!] uma esposa valente e que teme a Deus.”

SB – 12.01.1890

Sonntagsblatt, Folha Dominical, é uma abreviação minha para o nome deste jornal.
Seu nome completo é Sonntagsblatt für die Evangelischen Gemeinden in Brasilien, ou seja,
Folha Dominical para as Comunidades Evangélicas no Brasil. Faz-se necessário esclarecer al-
gumas questões em torno do nome deste periódico, para evitar confusões. Os autores Arndt e
Olson, em sua lista de jornais da imprensa de língua alemã no Brasil, citam o Sonntagsblatt
der Riograndenser Synode como sendo o jornal que eu pesquiso e o consideram já como um
jornal independente, ou seja, sem mencionar que ele foi um encarte do Deutsche Post21. Há,
no entanto, uma observação muito esclarecedora destes autores sobre o jornal: a variedade de
títulos para este encarte. Sonntagsblatt für die Evangelischen Gemeinden in Brasilien é o

20
As informações deste parágrafo constam em uma pequena nota ao pé da página do DA. Ano 22, Langenberg:
Pastor Griesemann, julho 1884. p.56.
21
Veja mais adiante, no item sobre o Deutsche Post, detalhes sobre cadernos adicionais deste jornal.
16

nome até 1913 e, após esta data, Riograndenser Sonntagsblatt.22 São Leopoldo é o berço da
edição deste jornal.

O jornal por mim pesquisado leva sempre o nome Sonntagsblatt für die Evangelischen
Gemeinden in Brasilien, indicado no início do parágrafo anterior. Diante das informações ob-
tidas na bibliografia sobre a imprensa e a imigração alemã, pude verificar que existem dife-
renças entre alguns autores quanto ao nome do mesmo. Para esta tese assumo o nome indica-
do no próprio jornal e assumo 1888 como ano de início de publicação, pois consta ano 1 e n.1
na data de 01.07.1888.23

O SB publica um folhetim, levando ao público leitor os mais variados contos, uma


maneira interessante de divulgar o pertencimento étnico-cultural entre as famílias alemãs na
dispersão. A sutileza dos contos já se dá na escolha dos nomes das personagens. Eva, por e-
xemplo, pode ser o nome de uma mulher tentadora, que faz tudo para ficar ao lado do homem
que lhe interessa. Além do que, cria nele sentimentos profundos e incontroláveis. “Sobreveio-
me um calafrio com estas palavras de Eva e senti fixar-se a tentação em torno de minha alma
com seus ganchos de aço, começando a apoderar-se de mim.”24

Da edição de 21.12.1890 podemos obter a informação de que a tiragem do jornal, nes-


te momento, é de 1710 exemplares.25 O SB tem uma periodicidade semanal. Foram pesquisa-
dos quatro exemplares de 1888; 15 exemplares de 1889; um de 1890, 1891, 1892 e 1893, res-
pectivamente, perfazendo um total de vinte e três exemplares. É apenas uma amostra do mate-
rial existente; mesmo assim, muito rico nos aspectos pesquisados.

22
Karl J.R. ARNDT; May E. OLSON, The German Language Press..., s.p.
23
René Gertz também publica uma lista, baseada, entre outros, nos autores Arndt e Olson. Nesta lista aparece o
Riograndenser Sonntagsblatt como sendo editado em Porto Alegre a partir de 1887 (René E. GERTZ, Im-
prensa e imigração alemã, p.121.). Não creio tratar-se do jornal pesquisado para esta tese, pois, apesar do
nome semelhante, a publicação é realizada em Porto Alegre. Além disso, a mesma lista ainda cita o Sonn-
tagsblatt der Riograndenser Synode, editado em São Leopoldo a partir de 1886, o que coloca o jornal pesqui-
sado para esta tese mais próximo deste segundo nome da lista de Gertz. O autor coloca aqui uma nota de ro-
dapé, referindo-se a Bertholdo Weber e seu texto “90 anos de imprensa evangélica”, publicado nos anais do
3º Simpósio de imigração e colonização alemã no Rio Grande do Sul pela EST de Porto Alegre em 1980.
“Weber indica o ano de 1888 como data de surgi-mento [do Sonntagsblatt der Riograndenser Synode], na
forma de encarte da Deutsche Post”.
24
SB. Ano 1, São Leopoldo : Wilhelm Rotermund, 17.02.1889. “Mir ist bald heiß und bald kalt geworden bei
diesen Worten der Eva und ich hab es gefühlt, wie die Versuchung ihre ehernen Klam-mern um meine Seele
legte und mich an sich zu reißen anfing.”
25
Ano 3, São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 21.12.1890.
17

O SB quer ser o jornal para as comunidades evangélicas no Brasil, conforme diz em


sua folha de rosto. Como tal, vem preencher uma lacuna também no espaço cultural das pes-
soas imigrantes, além do espaço religioso-eclesiástico, aliás, sua função principal. O jornal é
um veículo transmissor da vivência étnico-cultural alemã, mesmo que muitas pessoas não te-
nham acesso a ele, fortalecendo os lares constituídos em terras brasileiras.

Segundo o relato de Nilza Huyer Ely, o SB foi um dos primeiros jornais a chegar ao
Vale do Três Forquilhas/RS. Para os colonos, as assinaturas de jornais eram caras. Somente o
pastor e outras lideranças financeiramente bem situadas, recebiam o jornal em suas casas.26
Havia, em conseqüência disto, o hábito de emprestar os jornais lidos, os quais deveriam ser
devolvidos “com o máximo de cuidado e em perfeita ordem.” E Nilza continua: “Assim, sem-
pre que o tempo permitia, minha mãe buscava emprestado o jornal do pastor, que era lido no
domingo à tarde ou à noite, depois de um dia de exaustivo trabalho na lavoura, sob a luz da
lamparina.”27

O SB foi um semanário impresso em alemão gótico e editado pela Livraria Evangélica


(Evangelische Buchhandlung), “empresa fundada por pastores e professores luteranos”28 em
São Leopoldo, tendo como redator Wilhelm Rotermund. O SB não era um jornal para atender
apenas uma colônia, mas, de preferência, onde houvesse pessoas/famílias alemãs. É possível
suspeitar também que sua circulação não conseguisse suprir verdadeiramente todas as comu-
nidades: o número de assinantes era baixo e a dificuldade com o correio, seja para receber ar-
tigos ou para enviar os exemplares, era enorme.

O SB tem formato tablóide, possui quatro páginas, cada página dividida ao meio, for-
mando duas colunas. As páginas, de início, não são numeradas. Aproximadamente em agosto
de 1891, ou seja, três anos após o início da sua circulação, o jornal aparece com numeração
contínua de páginas.

Vários temas eram tratados, entre eles: relatos de viagem, contos, conversas sobre es-
tados d’alma (por exemplo: irritabilidade e mansidão), budismo (no sentido de tomar cuidado
com esta religião), novo hinário para as comunidades, Congo (no sentido de perceber a escu-
ridão em que está mergulhado o povo pagão do Congo). Sempre há uma reflexão em torno de

26
Nilza Huyer ELY, O acesso à imprensa..., p.221.
27
Ibid., p. 222.
28
Martin N. DREHER, A participação do imigrante..., p.94.
18

algum texto bíblico; há informações sobre algumas comunidades, sobre as famílias que bati-
zam, sobre casamentos, enterros e doações em dinheiro para a comunidade.29

Deutsche Post

“Devo emigrar para o Brasil?”

DP

Este jornal foi publicado pela primeira vez em 18 de dezembro de 1880. A edição re-
gular inicia mesmo em janeiro de 1881, após serem superadas várias dificuldades iniciais30.
Os anos de 1882 e 1883 não constavam do acervo por mim pesquisado nos microfilmes da
UNISINOS (Universidade do Vale do Sinos/São Leopoldo)31. Assim, algumas datas vão
comportar os anos de 1880-1881 e haverá um salto para o ano de 1884, sendo que o último
número lido foi a edição de 22.03.1884.

Este jornal utiliza muitos anúncios em suas páginas, que vão se repetindo de exemplar
em exemplar. Também se repetem as listas de preços de mercadorias em Porto Alegre (amen-
doim, feijão, etc.), bem como propagandas para corrida de cavalos, com a indicação dos prê-
mios. Entre os anúncios encontram-se muitos obituários, algo característico do DP.

Foi através de obituários ou necrológios que Gisela Lermen, em sua pesquisa sobre
mulheres imigrantes alemãs católicas, realizou o que denomina de resgate da história destas
mulheres nos anos de 1850-1939.32 O subtítulo de sua tese é: “Contribuição ao resgate da his-
tória de mulheres imigrantes alemãs católicas, na região colonial alemã do Brasil Meridional,
durante a época da Restauração Católica (1850-1939)”. Na introdução do trabalho, quando a
autora apresenta o quadro teórico do mesmo, ela escreve a respeito da “integração das mulhe-
res na história”33.

29
Várias das informações relatadas aqui sobre o Sonntagsblatt já foram publicadas em GIERUS, Renate.
Sonntagsblatt e imagem de mulher, p.225-251.
30
Hans GEHSE, Die deutsche Presse..., p.43. “Die Probenummer [der Deutschen Post] trägt das Datum des 18.
Dezember, und von Neujahr 1881 ab erschien dann, nachdem allerlei anfängliche Schwie-rigkeiten
überwunden waren, das Blatt regelmäßig wöchentlich.” (O número de amostra [do DP] é datado de 18 de de-
zembro. No ano novo de 1881, o jornal surge, após as dificuldades iniciais inerentes, com regularidade sema-
nal.)
31
Este acervo encontra-se abrigado no Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros (NETB) do Programa de Pós-
Graduação de História da UNISINOS.
32
Gisela LERMEN, Mulheres e igreja, p. 252ss.
33
Ibid., p. 11.
19

Resgatar e integrar são verbos que tendem a mostrar que as mulheres ou precisavam
ser salvas de alguma situação (resgatar) ou que as mulheres haviam sumido do palco da vida
e, conseqüentemente, da história (integrar). No entanto, a clara situação que se apresenta e sob
a qual, em parte, se fundamenta a história tradicional, é a da invisibilidade e invisibilização
das mulheres na história, ou seja, não precisamos resgatar ou integrar a mulher na história,
pois a mulher não parou de agir e de viver em nenhum momento. É preciso, isto sim, historio-
grafar suas experiências de vida, seus cotidianos. Escrever a história de mulheres torna-se a
tarefa primordial de historiadoras feministas e da própria história de mulheres.

Antes de sua primeira edição, o nome do Deutsche Post estava sendo discutido e deve-
ria ser Deutsch-brasilianische Post (Correio Teuto-Brasileiro). “A falta de tipos, porém, im-
pediu a composição do brasilianisch.”34

O DP era publicado, em média, a cada três ou quatro dias, mais especificamente nas
quartas-feiras e nos sábados, como consta na capa do próprio jornal. “O Deutsche Post foi pu-
blicado até 1928 como jornal semanal e diário.”35 É um jornal do e para o mundo teuto-
brasileiro. Foi criado pelo Dr. Wilhelm Rotermund e editado em São Leopoldo/RS, na mesma
Livraria Evangélica em que também foi editado o Sonntagsblatt. Aliás, o SB nasceu como um
encarte do DP. “O jornal contou [neste caso o Deutsche Post] com diversos cadernos adicio-
nais. Desde 1888, um desses cadernos era denominado de Sonntagsblatt der Riograndenser
Synode (Folha Dominical do Sínodo Rio-Grandense). Este caderno segue circulando, agora
com o nome Jornal Evangélico Luterano.”36 O mesmo afirma René Gertz: “Comparável ao
Jornal Evangélico Luterano (antigo Sonntagsblatt) [...]”37.

A assinatura anual do DP é de 9$000 réis, pagos com antecedência. Ao lado direito do


título na capa do jornal, consta a informação de que todas as remessas de material para o jor-
nal sejam enviadas ao Dr. Wilhelm Rotermund, em São Leopoldo.38 O DP, segundo Martin N.
Dreher, “cobre os principais acontecimentos políticos, religiosos, sociais e culturais da colô-

34
M. N. DREHER, op. cit., p. 96.
35
Ibid., p. 94.
36
Ibid., p. 96.
37
R. E. GERTZ, op. cit., p. 102.
38
“[...] Alle die ‘Deutsche Post’ betreffenden Sendungen sind zu adressiren an Dr. Wilhelm Rotermund in São
Leopoldo.”
20

nia alemã no Brasil, situando-a nos mais importantes acontecimentos políticos do país [...]”39.
Rotermund fez dele o “porta-voz [...] dos interesses teutos, lutando por direitos políticos, cul-
turais e étnicos.”40

O fim do DP foi violento. Conforme relatam Arndt, Olson, Dreher e o próprio jornal,
dia 29.09.1928, a loja, as máquinas e os tipógrafos manuais foram destruídos. Não foi mais
possível publicá-lo da maneira como vinha se fazendo e a decisão foi de acabar com as edi-
ções.41

Em diversas oportunidades, a gráfica de Rotermund sofreu atentados [...] O jornal, que


durante 48 anos fora o centro da vida cultural dos teutos protestantes, deixava de existir, e
não teve sucessor à altura.42
René Gertz entra em detalhes sobre tais acontecimentos, ao escrever um capítulo intei-
ro a respeito dos episódios finais do DP43. Envolvidas estavam manifestações patrióticas por
parte de estudantes, que queriam defender o Brasil e suas instituições. Segundo eles, o DP ti-
nha chamado estudantes brasileiros de populacho, o que os levou a demonstrações violentas
contra o patrimônio da firma Rotermund. Esta, por sua vez, através do DP, deixou claro que a
intenção não era ofender ninguém e que não se podia ter o direito de atacar violentamente um
local. O DP se considerava um jornal brasileiro e não um estrangeiro que quisesse ofender o
Brasil.

39
M. N. DREHER, op. cit., p. 92.
40
Ibid., p. 95.
41
Karl J. R. ARNDT; May E. OLSON, The German Language..., s.p., item nº 499. Os autores citam a última
edição do DP do dia 13.10.1928, onde aparece um comunicado aos leitores, explicando os motivos do fe-
chamento do jornal. Há também agradecimentos aos amigos que se mostraram fiéis ao jornal durante os qua-
se 50 anos de existência do mesmo: “An unsere Leser! Wie durch die Blätter des Staates bekannt geworden
ist, wurden in den Morgenstunden des 29. September dieses Jahres [1928] unser Verkaufsladen, die
Maschinen und Handsetzerei zerstört. Veranlaßt durch die Unmöglichkeit, die Zeitung in absehbarer Zeit im
alten Umfange herauszugeben, mußten wir uns entschließen, die Deutsche Post einzustellen. Wir beschließen
die beinahe 50-jährige Tätigkeit der Deutschen Post mit einem aufrichtigsten, herzlichen Dank an alle
Freunde, die uns die Treue bewahrt haben.” (Aos nossos leitores! Como se tornou conhecido através do Diá-
rio Oficial do Estado, foram destruídas, nas primeiras horas do dia 29 de setembro deste ano [1928], a nossa
loja, as máquinas e a tipografia manual. Motivados pela impossibilidade de publicar o jornal nas antigas pro-
porções e no tempo previsto, nós tivemos que nos decidir pela suspensão do DP. Nós encerramos os quase 50
anos de atividades do DP com um agradecimento sincero e cordial a todos os amigos que permaneceram fiéis
a nós.)
42
M. N. DREHER, op. cit., p. 96.
43
René GERTZ, O aviador e o carroceiro, p. 237-247.
21

Trabalhei nestes três jornais a partir de palavras-chave44, que me possibilitaram extrair


informações direcionadas ao assunto da minha pesquisa. O assunto a ser tratado neste estudo
são as mulheres alemãs imigrantes na segunda metade do século XIX no sul do Brasil. Além
destas fontes primárias, o assunto da pesquisa enfoca estas mulheres a partir de cartas, o se-
gundo conjunto que compõe o material de pesquisa, as quais também servem de base docu-
mental para o presente trabalho.

O que me levou a escolher o assunto das mulheres alemãs imigrantes no Brasil oito-
centista é um olhar feminista sobre a historiografia da imigração alemã. Sua relevância em re-
lação a outros possíveis temas é visibilizar um conteúdo tratado costumeiramente de forma
tangencial e/ou equivocada. A explicitação historiográfica a partir daí demonstra uma possibi-
lidade epistemológica alternativa, pois não se trata apenas de falar sobre e de mostrar a mu-
lher alemã imigrante como tal. Trata-se, também, de desenvolver, simultaneamente, um pro-
cesso de construção de conhecimento a respeito desta mulher, que inclua modos alternativos
de pesquisa, de estruturação da temática, de composição das fontes, mesmo de perscrutá-las.

Assim, outrO grande desafio constitui-se em transformar, epistemologicamente, estru-


turas de pesquisa, de escrita e de estudo da história. Assim, possibilita-se A construção do no-
vo ao re-significar visões de documentos históricos, espaços de ação e/ou reação das mulhe-
res, rompendo dicotomias e bipolaridades, lendo nas entrelinhas as mensagens dos discursos.

As mulheres optam não somente por atitudes pré-estabelecidas, mas também optam a
partir de convicções de fé. As principais funções que marcam suas experiências vivenciais
formam o tripé que sustenta o modelo patriarcal de sociedade, O tripé esposa-dona-de-casa-
mãe. Estes modelos, construídos e forjados nas cabeças dos homens, mas vividos nos corpos
das mulheres, precisam perder aos poucos sua aura de exclusividade, como se fossem as úni-
cas experiências e cotidianos que as mulheres viveram. Aqui não se trata de perpetuar uma di-
cotomia. Trata-se, antes, de perceber com clareza a existência da dicotomia, nomeá-la, perce-
ber a sua realidade hierárquica, de sujeição, submissão e de exclusão das mulheres de espaços
de decisão.

44
As palavras-chave escolhidas foram: mulher, homem, alemão, imigrante, emigrante, Heimat, imigração, emi-
gração, nacionalidade, Alemanha, Brasil, Rio Grande do Sul, Porto Alegre, São Leopoldo, mãe/pai, feminino,
Vaterland, filho/filha, nação, colono, viúva, esposa.
22

O Casamento, A cozinha e a alimentação e A mulher dentro de casa trazem, próximo


ao olhar de historiadoras/es, uma maneira de ser e saber dentro de padrões pré-estabelecidos.
Estes também são espaços ocupados pelas mulheres alemãs imigrantes. Há, porém, uma série
de questionamentos sendo feitos a este respeito no decorrer do primeiro capítulo.

Inicio o capítulo dois, intitulado A mulher alemã, usando a narrativa como interlocuto-
ra entre um texto do passado e o/a historiador/a. A aldeia de Hanna torna-se o palco por onde
passam os personagens que vivem na aldeia alemã que ela deixou ao embarcar no navio rumo
à América junto com seu marido e filhos. O trabalho é a companheira constante de Hanna e
de todas as mulheres alemãs.

As narrativas permitem o ato de construir e reconstruir. Isto torna o cotidiano das mu-
lheres alemãs, que se tornam imigrantes, plural e dinâmico, portanto não passível de ser en-
quadrado em um único perfil dominante. O próprio pertencimento étnico-cultural vai se cons-
tituindo à medida que os dias vão passando, fazendo delas mulheres teuto-brasileiras.

É neste capítulo que apresento e discuto as cartas escritas pelas mulheres. Elas formam
um conjunto de doze cartas, trazendo informações diretamente de mulheres alemãs que vie-
ram à colônia de Blumenau, em Santa Catarina. Creio ser importante localizar as cartas nesta
parte da tese, pois é o ponto intermediário entre o capítulo dois e o três, entre A mulher alemã
e A mulher alemã imigrante, entre ser alemã e tornar-se imigrante. As cartas trazem o conteú-
do desta transição através da saudade expressa, através da alegria de receber notícias, através
das fotografias enviadas de lá e de cá (quando possível). Esta é a transição que as mulheres
vivem e que não pode deixar de ser mencionada como uma de suas experiências e cotidianos.

O capítulo três, intitulado A mulher alemã imigrante, aponta concretamente para mais
uma categoria no amplo perfil, na ampla imagem de mulher na história da imigração: tornar-
se imigrante, ser imigrante. Tornar-se uma mulher alemã imigrante é o primeiro subtítulo
nesta parte do trabalho, que avalia justamente este vir-a-ser não como algo dado e definitivo
ou como um alvo bem concreto a ser atingido. Tornar-se mulher alemã imigrante é um pro-
cesso que leva a um outro pertencimento étnico-cultural.

“Diário de um imigrante”, mais uma narrativa criada a partir da existência de outra,


elabora a vinda e as primeiras vivências de uma família alemã a São Leopoldo/RS, em 1824.
Destaque será dado ao aspecto da alimentação, visto ser esta a tarefa primordial desincumbida
pelas mulheres e a que sempre as envolve.
23

A experiência e o cotidiano são o palco de acontecimentos da história destas mulheres,


que são alemãs e se tornaram imigrantes, que vieram ao sul do Brasil no século XIX. Aqui
encontraram não somente outras mulheres de seu pertencimento étnico-cultural, como tam-
bém foram mulheres que, no ir e vir de seu cotidiano, fundaram experiências e vivências que
se constituem hoje como integrantes da identidade teuto-brasileira.

O capítulo quatro trata de Experiências e cotidianos, impressos e estampados em arti-


gos dos jornais pesquisados. São sete textos nos quais as mulheres alemãs falam ou delas é
falado. Ver os jornais como documentos que divulgam e publicam o dia-a-dia das mulheres é
a proposta aqui lançada.

Considerados documentos históricos oficiais, este tipo de material prima por corrobo-
rar a cientificidade, a objetividade e a verdade em torno de fatos e acontecimentos históricos.
Lançar sobre eles olhares de mulheres, com o intuito de conhecê-las, abre e alarga, até implo-
de uma dicotomia em torno do jornal como documento, em contraposição, no caso desta pes-
quisa, à carta como “simples” material empírico.

Os textos dos jornais não são material somente oficial, com capacidade de comprovar
cientificamente atos e fatos. Estes textos igualmente comprovam e corroboram experiências e
cotidianos de mulheres. Experiências e cotidianos que nem sempre espelham realidades con-
cretas. Muitas vezes, espelham realidades desejadas, moldadas para as vidas das mulheres.
Jornais e cartas precisam trocar olhares e tornar-se material empírico tanto quanto documento
oficial.

O epílogo fala de uma canção, fala de olhares e de saberes. Fala de mulheres e de o-


lhares face a face, sem medo. A coragem de falar e a coragem de escrever todos estes capítu-
los surgiu da possibilidade de olhar no rosto e nos olhos, no coração destas antepassadas. A
sua ousadia imprime firmeza nos atos, nas decisões, nos caminhos escolhidos ou não. Escre-
ver destas mulheres de forma a empoderar suas descendentes com a memória de todas estas
décadas, revela-se como mais um capítulo de suas histórias.

I. A MULHER

As palavras aí estão, uma por uma: porém minha alma sabe mais.
24

Cecília Meireles

1. O grande desafio
Ler os jornais pesquisados para esta tese significa necessariamente envolver-se na lei-
tura de discursos. Cabe, portanto, desenvolver a discussão e a reflexão em torno dos mesmos.
Estes vão além das informações encontradas nos jornais, ancoram-se na mentalidade social
vigente e pautam parágrafos, linhas e títulos dos mesmos. Porém, “Não há uma correspondên-
cia reflexa entre concreto real e concreto pensado, e é só pela trama das relações humanas que
podemos enveredar pela trilha de decifração dos símbolos inscritos no discurso.”45

Os discursos não existem e não sobrevivem em uma via de mão única. As relações
humanas são o seu caminho de ir e vir. Isto significa que os jornais não são somente meros
papéis com notícias, mas são um canal de constituição do comportamento e do jeito de ser de
pessoas, as quais são as interlocutoras e agenciadoras, até mantenedoras de discursos vigentes,
dominantes, em voga ou de discursos em transição.

É através dos discursos, muitas vezes em suas entrelinhas, que são divulgadas idéias,
ideais, comportamentos, papéis sociais. Os discursos aparecem na linha editorial do jornal, na
colocação e na escolha de cada palavra e de cada sinal de pontuação. “[...] a produção de um
texto tem por referência o contexto, e na mediação entre ambos é que é possível desvendar o
significado do discurso.”46 O discurso vem pautado por símbolos e por significados, incorpo-
rados ou não nas relações humanas. E quando se fala em relações humanas, é necessário falar
delas em uma perspectiva de gênero, de constituição do que é ser homem e do que é ser mu-
lher.

Esta pesquisa, portanto, busca ir além de somente obter informações dos jornais, que-
rendo perceber os discursos a respeito da mulher divulgados pelos mesmos. O tema central
para (l)focalizar estes discursos é a mulher. Não basta pinçar e descrever as informações, os
discursos requerem olhares analíticos, ou seja, uma busca profunda, nas entrelinhas e por de-
trás das palavras, destas informações.

Segundo Margareth Rago,

45
Sandra Jatahy PESAVENTO, Os pobres da cidade, p. 105.
46
Ibid., p. 105.
25

A filosofia pós-moderna [...] postula a noção de que o discurso não é reflexo de uma su-
posta base material das relações sociais de produção, mas produtor e instituinte de “re-
ais”47.
Ou seja, a produção de conhecimento, a criação de hábitos, costumes, o jeito de ser
das pessoas e de suas relações sociais está diretamente ligado ao discurso que se tem em torno
de uma prática social, está diretamente ligado ao cotidiano das pessoas, tornando gestos, cor-
pos, sentimentos uma realidade muito concreta e palpável. O discurso não é mais algo etéreo,
mas institui o que Rago chamou de reais. Assim, o que o jornal propaga é uma realidade, faz
parte e quer fazer cada vez mais parte das experiências das pessoas.

Céli Regina Jardim Pinto escreve: “[...] discurso, seguindo Saussure, são, portanto, as
formas de apropriação pelo indivíduo falante do universo da língua.”48 A língua que alguém
fala, constitui sua maneira de expressão no mundo e ao mundo. Constitui, também, o seu pró-
prio mundo, por vezes inatingível para pessoas fora dele. O discurso é pautado por um proces-
so de aprendizagem, de educação, de apropriação, conforme a citação. O jornal é um dos mei-
os deste aprendizado e apropriação. Pinto cita Kristeva: “O discurso implica, portanto, a parti-
cipação do sujeito na sua linguagem.”49 Assim, o sujeito não é somente dominado pelo discur-
so, mas também domina o mesmo, em um ir e vir constante.

“O discurso, portanto, nada mais é do que o local onde estas práticas [as práticas soci-
ais] são materializadas na linguagem”, escreve Pinto 50. A esta fala, eu acrescentaria a questão
do tempo: o discurso é o local das práticas sociais e também é o tempo histórico das mesmas,
a época em que tais práticas são/foram realizadas, pensadas, idealizadas pelo sujeito. “Para
Kristeva o sujeito é central no discurso: é ao mesmo tempo seu enunciador e seu efeito.”51

Olhando para a pesquisa sobre as mulheres alemãs imigrantes é possível afirmar que,
como sujeitos, estas mulheres são centrais nos discursos sobre germanidade. Este discurso,
por exemplo, identifica as mulheres em relação a seu trabalho contínuo, um trabalho sem des-
canso. Neste discurso, as mulheres são, também, enunciadoras em seu papel de mãe da nação.
Dagmar Meyer fala das mães da nação como cuidadoras, como iniciadoras da língua materna
e da religião. Além disso,

47
Margareth RAGO, Epistemologia feminista, gênero e história, p. 26.
48
Céli Regina Jardim PINTO, Com a palavra o senhor presidente..., p. 17.
49
Julia Kristeva, apud C. R. J. PINTO, op. cit., p. 18.
50
Ibid., p. 19.
51
C. R. J. PINTO, op. cit., p. 19.
26

Ser mãe da nação inclui conhecer, exercitar e incutir costumes e comportamentos sociais
e culturais adequados, modos apropriados de comer, vestir, cuidar da casa e do lar e, prin-
cipalmente, fazer tudo isso, no âmbito de casamentos aprovados e legitimados pela cole-
tividade em questão.52
No discurso da germanidade, as mulheres são, ao mesmo tempo, resultantes dos dis-
cursos proferidos por outros ou por elas mesmas (aqui é interessante lembrar o papel dos jor-
nais na divulgação de discursos), bem como suas enunciadoras e representantes (aqui as cartas
têm o papel relevante na percepção do tipo de discurso do qual as mulheres se apropriam).

Seria um erro pensar que um discurso substitui outro de forma automática. Uma sim-
ples substituição ou um encadeamento de discursos não leva a transformações nem a mudan-
ças. Somente outros sujeitos são excluídos. Pinto afirma:

Ao concordar com o filósofo [Lyotard] deve-se, entretanto, ter o cuidado de, ao criticar
um grande relato [ou um discurso], não se incorrer no erro de cair em outro, ou em nome
de uma liberdade teórica colocar modelos totalizantes lado a lado sem a preocupação com
as suas naturezas excludentes.53
Ou seja, o discurso feminista não almeja uma simples substituição do discurso andro-
cêntrico e patriarcal. Seria uma tomada de poder pela vaidade de, finalmente, ter poder. Muito
menos o discurso feminista almeja encadear-se ao discurso androcêntrico e patriarcal, tornan-
do-se um novo círculo fechado, onde os de fora são aquelas pessoas que não se encaixam no
discurso totalizante das pessoas de dentro do círculo e, só por isso, precisam ficar do lado de
fora.

A teoria feminista propõe uma percepção não-hierárquica do mundo, uma percepção


não-dicotômica, na qual as mulheres, sujeitos excluídos dos círculos patriarcais, tenham a
possibilidade de exercer suas capacidades e de exercitar vida de forma menos competitiva,
mais solidária, em rede. A teoria feminista propõe uma transformação de conceitos, epistemo-
logias e estruturas de pesquisa, priorizando a dinamicidade das experiências e dos cotidianos.
Incluir tais práticas nas teorias científicas e acadêmicas é um grande desafio.

2. Possibilidades historiográficas feministas


Para fazer frente a questões que fazem da mulher um sujeito sem vez e voz na lineari-
dade histórica, torna-se necessária a inserção pelo caminho nada linear da suspeita, do silên-
cio, da leitura nas entrelinhas, do uso de documentos alternativos (como as cartas) para a pes-

52
Dagmar E. Estermann MEYER, Identidades traduzidas, p. 85.
53
Ibid., p. 22.
27

quisa histórica e de óculos hermenêutico ajustado às experiências cotidianas das pessoas. Vá-
rios conceitos fazem parte de um conjunto de possibilidades historiográficas feministas.

A desconstrução é um destes conceitos. Ele capacita a implosão de verdades únicas,


de verdades como a dos papéis sociais de homens e mulheres. Questiona, assim, visões cen-
tradas em blocos historiográficos homogêneos, “[...] revertendo-se e deslocando-se a constru-
ção hierárquica [...]”, afirma Rachel Soihet.54

Surge o rompimento e a inclusão. Uma vez implodidas ou abaladas em sua existência


estrutural, as verdades únicas sobre os papéis sociais rompem-se, às vezes imperceptivelmen-
te, como pequenas rachaduras nestes grandes blocos. Surgem as fissuras e as brechas, peque-
nos espaços re-significados, espaços de subversão à ordem dada, à norma construída, à domi-
nação permitida. As mulheres alemãs que doam dinheiro à obra missionária da Sociedade E-
vangélica de Barmen55 representam uma fissura no papel social da mulher que está mais aten-
ta ao mundo privado do que ao mundo público.

Os espaços que se dão a perceber em decorrência das fissuras, e que também são cons-
truídos por sujeitos autônomos, possibilitam a inclusão de outras visões a respeito dos papéis
sociais. Começa a se distinguir uma pluralidade e uma diversidade, dois conceitos que andam
muito próximos um do outro. Com a inclusão de mais olhares sobre os papéis sociais de ho-
mens e mulheres, sobre as relações humanas, envolvidas por símbolos, significados e discur-
sos, o que era único torna-se plural, trazendo à tona a diversidade, submersa pela linearidade
histórica.

Fica clara, também, a descontinuidade que subjaz a blocos hermeticamente fechados.


A vida das pessoas é feita de rupturas, novos inícios, novas rupturas, mas não necessariamente
nesta seqüência ou ordem. Assim, imigrar é uma ruptura, construir uma choupana no meio da
floresta é um novo início, assar e comer um pão de milho ao invés de um pão de trigo é uma
nova ruptura. A historiografia feminista precisa sempre de novo revelar esta descontinuidade
dos acontecimentos cotidianos, que se mostra no balanço de romper e iniciar, romper e inici-
ar... ultrapassando limites, criando novas fronteiras.

54
Rachel SOIHET, Enfoques feministas e história..., p. 64. Veja ainda, mais adiante, maiores detalhes a respei-
to do conceito desconstrução: A construção do novo, p. 27ss.
55
Acima, neste capítulo, p. 2.
28

O conceito de papéis sociais é delimitado pela noção de gênero, este último um con-
ceito clássico na análise e teoria feministas. Os papéis sociais se definem (e são definidos) a
partir das relações de gênero, redesenhando os perfis de homens e mulheres, outrora esculpi-
dos somente pela sociedade patriarcal. Frisa Rachel Soihet que “O gênero sublinha o aspecto
relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, nenhuma compreensão de qualquer um dos
dois pode existir por meio de um estudo que os considere totalmente em separado.”56

Joan Scott parte do princípio de que “[...] gênero era um termo proposto por aquelas
que sustentavam que a pesquisa sobre as mulheres transformaria fundamentalmente os para-
digmas disciplinares.”57 Ou seja, aplicando isto à história, gênero tem como objetivo não so-
mente contar, descrever, visibilizar a história das mulheres, mas também criar outros modelos
historiográficos, com outras premissas, pressupostos, metodologias e princípios dos tradicio-
nalmente vigentes. A proposta de Joan Scott é, portanto, a de não aceitar o que é dado como
verdade absoluta. É importante questionar e suspeitar dos fatos históricos, colocando de lado
uma visão binária e absoluta dos acontecimentos.

Os cotidianos e as experiências são o chão fértil da desconstrução. A partir do dia-a-


dia (que aqui não significa apenas uma simples repetição de acontecimentos ou quaisquer ro-
tinas) de homens e mulheres e a partir do que experimentam na convivência diária, constrói-se
uma nova interpretação do passado, dando vez e voz a sujeitos calados pela invisibilização e
conseqüente esquecimento. Os cotidianos fazem história, mesmo a história oficial, a dos he-
róis. Mesmo esta é feita de um desenrolar de dias consecutivos, nos quais são tomadas estas
ou aquelas decisões e são realizados estes ou aqueles feitos.

O conceito cotidiano é de importância fundamental na história das mulheres. No coti-


diano, as pessoas vivem as suas relações umas com as outras, acumulam experiências de vida,
crescem enquanto individualidades. O cotidiano consiste, assim, de complexidades, de des-
continuidades, de inconstâncias, de verdades, de histórias, de saberes informais.

O cotidiano define um campo de múltiplas interseções para transcender categorias e pola-


ridades ideológicas. Interseções que diluem conceitos como público e privado, biológico
e mental, natureza e cultura, razão e paixões, sujeito e objeto.58

56
R. SOIHET, op. cit., p. 63.
57
Joan SCOTT, Gênero: uma categoria útil..., p. 73.
58
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Teoria e método dos estudos feministas..., p. 51-52.
29

É nestas interseções que acontecem as trocas de saberes, de experiências, de poderes.


Sendo trocas tão múltiplas, elas não cabem dentro de bipolaridades. Como a historiografia
costuma constituir-se a partir delas, os cotidianos, que também não são lineares (por isso não
são repetitivos ou rotineiros exclusivamente), encontram dificuldades em serem usados en-
quanto olhares analíticos.

O estudo do cotidiano nas sociedades em transformação, ao resvalar por experiências de


vida, escapa ao normativo, ao institucional, ao dito, ao prescrito e aponta para o vir a ser,
para papéis informais, para o provisório e o improvisado, em geral para o vivido, o con-
creto, o imponderável e o não dito, sobretudo quando confrontado com regras, valores
herdados e papéis prescritos [...].59
Nos cotidianos também se espelham construções sociais, ou seja, modos de agir, de
conhecer, de saber, de fazer, de ser. Estas construções sociais influenciam a vida dos seres
humanos e determinam suas ações, decisões e relações. Como são construções, elas podem
ser modificadas. A questão aqui é perceber quem as modifica, por que e para que seriam mo-
dificadas. “Por um lado, assumimos estereótipos, analogias e esquemas já elaborados; por ou-
tro, eles nos são impingidos pelo meio em que crescemos e pode-se passar muito tempo até
percebermos com atitude crítica esses esquemas recebidos, se é que chega a produzir-se tal a-
titude.”60

Agnes Heller coloca vários outros aspectos do cotidiano, que são bastante ilustrativos.
Ela fala em “vida cotidiana”.

A vida cotidiana é a vida de todo homem [sic] [...] é a vida do homem [sic] inteiro [...] é
[...] heterogênea [...] A característica dominante da vida cotidiana é a espontaneidade. [...]
O pensamento cotidiano orienta-se para a realização de atividades cotidianas e, nessa me-
dida, é possível falar de unidade imediata de pensamento e ação na cotidianidade.61
Uma afirmação muito importante para a historiografia feminista é a que Agnes Heller
faz a seguir: “A vida cotidiana não está ‘fora’ da história, mas no ‘centro’ do acontecer histó-
rico [...].”62 É para este centro que a história das mulheres precisa mover-se, visto que os coti-
dianos lhe são uma parte intrínseca.

Os cotidianos e as experiências vão pautar a história de uma forma não linear, não he-
róica, não patriarcal, não hierárquica. Aqui terá lugar também o lado excluído da visão bipolar

59
Ibid., p. 375.
60
Agnes HELLER, O cotidiano e a história, p. 44.
61
A. HELLER, op. cit., p. 17, 18, 29, 31.
62
Ibid., p. 20.
30

de mundo: as mulheres, as crianças, as pessoas idosas, pessoas negras, indígenas, pobres, por-
tadoras de deficiência, imigrantes, juntamente com seus saberes diferenciados. Rachel Soihet
aponta em seu texto para uma história das mulheres a partir de seu cotidiano, de sua experiên-
cia enquanto grupo social.

Tal panorama [o do movimento crítico do racionalismo abstrato na historiografia a partir


da década de 60 do séc. XX] torna mais factível a integração da experiência social das
mulheres na história, já que sua trama se tece basicamente a partir do cotidiano, e não a
partir de pressupostos rígidos e de grandes marcos.63
Junto aos cotidianos, inseridos neles, se desenrolam os papéis sociais das mulheres,
possibilitando a “apreensão das vivências” bem como “de suas formas de luta e de resistên-
cia”.64 Usar os cotidianos como enfoque para a vivência destes papéis sociais, aponta para
“[...] pistas que possibilitem a reconstrução da experiência concreta das mulheres em socieda-
de, que têm desempenhado um papel ativo na criação de sua própria história.”65

Joan Scott trata o conceito experiência separadamente do conceito cotidiano, além de


fazer algumas ressalvas. Para ela, a experiência não pode assumir um lugar central na cons-
trução do conhecimento histórico, para o qual todos os olhares analíticos estão ou serão lan-
çados. A historiadora afirma isto, pois “Questões acerca da natureza construída da experiên-
cia, acerca de como os sujeitos são, desde o início, constituídos de maneiras diferentes, acerca
de como a visão de um sujeito é estruturada – acerca da linguagem (ou discurso) e história –
são postas de lado.”66

A experiência está ligada a uma determinada pessoa e/ou a um determinado grupo so-
cial. Mas ela não prescinde deles como se fosse uma relação causa-conseqüência. A ligação
que a experiência tem com pessoas e grupos existe simultaneamente, em uma troca constante
e descontínua de vivências e construções/definições identitárias. É uma relação dinâmica,
processual, passível de ser desconstruída, sendo necessário olhá-la analiticamente de forma a
perceber os discursos nela implicados.

Como já afirmei na Introdução, para esta tese as experiências e os cotidianos vão esta-
belecer a base das possibilidades historiográficas feministas. Considero os dois conceitos lado

63
R. SOIHET, op. cit., p. 60.
64
Ibid., p. 60.
65
Ibid., p. 73.
66
J. SCOTT, op. cit., p. 26.
31

a lado, procurando unir o que Rachel Soihet apresenta a respeito de cotidiano, como sendo o
que pauta a história das mulheres, com a ressalva que Joan Scott faz a respeito de experiência,
justamente porque sua ressalva afirma que a experiência não deve ser vista como categoria
auto-evidente.67 Não sendo auto-evidente, a experiência é relacionada também ao cotidiano e
vice-versa.

A simultaneidade é um conceito importante, pois enxerga os fatos históricos não mais


como uma seqüência (previsível) de acontecimentos, mas como acontecimentos simultâneos,
que ocorrem ao mesmo tempo. Isso é relevante, tendo em vista um aspecto específico da pes-
quisa das informações que realizei nos jornais. Recolhi histórias e textos que não mencionam
necessariamente o espaço geográfico delimitado para esta tese, ou seja, o sul do Brasil.

A simultaneidade em que ocorreu a imigração alemã para vários países, espalhando


pessoas e famílias alemãs por vários locais nas Américas, mostra a não-linearidade histórica.
Assim, acontecimentos ocorridos nas vidas de mulheres alemãs imigrantes que chegaram aos
Estados Unidos ou ao Brasil, criam relações de pertença. Por outro lado, a simultaneidade
também faz perceber algumas diferenças entre as distintas regiões geográficas.

O conceito de subjetividade quer tratar diretamente do sujeito, tornando-o protagonista


de sua história, de sua vida. As experiências vividas vão moldá-lo; com as suas intervenções e
decisões, o sujeito vai influenciar o meio em que vive. As mulheres alemãs imigrantes prota-
gonizaram a sua subjetividade.

Até a década de 70 [1970], muito se discutiu acerca da passividade das mulheres frente à
sua opressão, ou da sua reação apenas como resposta às restrições de uma sociedade pa-
triarcal. Tal visão empobrecedora obscurece seu protagonismo como sujeitos políticos a-
tivos e participantes da mudança social e de sua própria mudança, assim como suas alian-
ças e, inclusive, participação na manutenção da ordem patriarcal.68
Protagonizar sua própria subjetividade, participar de mudanças ou manter a ordem, en-
fim, influenciar o meio, são espaços legítimos de re-significação, são fissuras em torno da vi-
são hegemônica de ser mulher passiva.

Intrinsecamente ligada à subjetividade está a identidade, que vai se constituindo à me-


dida em que passam os dias. Na convivência e na troca com o/a outro/a, estabelecem-se rela-
ções, que alimentam o espectro do que caracteriza um sujeito, do que o identifica. Da identi-

67
Ibid., p. 40.
68
R. SOIHET, op. cit., p. 62.
32

dade fazem parte o dizer-se, o nomear-se, criando a necessária autonomia no processo de sub-
jetivação.

A identidade vem influenciada não somente por um nomear-se, mas também por um
ser nomeada. Nomear-se caracteriza a autonomia de um sujeito. Algumas regras sociais e ci-
vis, porém, nem sempre permitem esta caracterização. As mulheres alemãs imigrantes, quan-
do casavam, assumiam o nome de família do marido. De repente não eram mais Johanna S-
chmidt, mas Johanna Müller. Isto são dois nomes bem diferentes, mas da mesma pessoa. Duas
identidades? Ou o esquecimento/invisibilização de uma delas?

Na lista de nomes de mulheres apresentada na Introdução, percebe-se isto claramente,


quando é acrescido ao nome de casada das mulheres, o seu nome de solteira (p.ex.: Sra. Ren-
tier, nascida Holtz). Estas mulheres assumiam não somente uma nova vida, uma vida diferen-
te, mas assumiam duas novas identidades: a de mulher casada e a pertença a uma outra famí-
lia.

A memória, repleta de vivências do cotidiano e do passado, mostra-se como um con-


ceito eficaz para dentro da história. Nela e no corpo do sujeito, imprimem-se as marcas da dor
ou da alegria, do sofrimento ou da felicidade. Estas marcas fazem a história individual ou co-
letiva de um determinado período, se compartilhadas.69

Compartilhar vivências, falar delas, mostrá-las, cria uma rede de relações, outro con-
ceito que merece destaque no conjunto de possibilidades historiográficas feministas. Os elos
que compõem a rede são as experiências de cada sujeito, bem como o seu encontro com o ou-
tro/a outra, que pode ser um seu igual ou alguém de fora de suas relações familiares e/ou étni-
cas.

As marcas do cotidiano e da memória no corpo levam ao conceito de corporeidade.


São os gestos e as atitudes deste corpo, parte intrínseca do sujeito, que mostram muito da vida
dinâmica e plural de que é feita a história. A memória e o corpo são lugares de poder e de
empoderamento. Ter memória é ter uma história, é ter uma identidade, é ter um nome. Nome-
ar-se é ter poder, o poder da autonomia e não da dependência e da submissão. Empoderar a
mulher é dar-lhe nas mãos as decisões sobre sua vida.

69
Trato com maiores detalhes sobre a questão da memória no início do capítulo 4, Experiências e cotidianos, p.
92ss.
33

A proposta do feminismo é empoderar as mulheres. O feminismo aqui é compreendido


como uma postura teórico-prática, que transforma o sacrifício, a passividade, a doação e o so-
frimento das mulheres em decisão e escolha própria para suas vidas. Um feminismo que vê na
solidariedade, na acolhida, na afetividade, na receptividade não somente valores femininos,
mas valores a serem vividos e partilhados por homens e mulheres, entre homens e mulheres.
Um feminismo que busca a inclusão de homens e mulheres em novas relações humanas, soci-
ais e interpessoais, em novas relações étnico-culturais e religiosas. Um feminismo que é di-
nâmico, que é movimento.

Um feminismo que vê na diferença, no múltiplo e no plural a oportunidade de viver


com justiça em um mundo complexo e global, onde a igualdade não é sinônimo de homoge-
neização, mas capacidade de construir, em equipe, solidariamente, a liberdade e a vida digna.
Um feminismo que empodera e não destitui, pois, “quando não se marca uma diferença, se
invisibiliza um poder”.70 Um feminismo que encoraje as mulheres a olhar para si mesmas, pa-
ra suas necessidades, desejos, sonhos, incentivando o processo de percepção de si como sujei-
to e como agente de sua própria história.

Um feminismo que atenta para a subordinação das mulheres no âmbito das religiões,
procurando não só descortinar um sofrimento enquadrado e justificado no e pelo sagrado, mas
também fortalecer vivências de auto-estima dentro e a partir destas mesmas religiões. Um fe-
minismo que não reproduza, perpetue e interpele discursos fundados em justificativas religio-
sas, explorando e oprimindo as mulheres. Um feminismo que procura incorporar as experiên-
cias e os cotidianos das mulheres para dentro do fazer teológico, para dentro do serviço co-
munitário, para dentro das igrejas, para dentro das expressões de fé.

Um dos papéis da Teologia Feminista consiste em perceber a religião cristã como sen-
do patriarcal e androcêntrica. A religião, por sua vez, é um marcador identitário. Isto significa
que mulheres e homens trazem, no bojo de sua identidade, jeitos e modos de viver sua fé. Es-
tes jeitos e modos de fé são vividos no cotidiano, traduzindo-se em experiências religiosas.
Uma visão de mundo a partir da religião influencia as tomadas de decisão nos vários âmbitos
da vida privada e pública de mulheres e homens.

70
Marcela Bosch, téologa feminista latino-americana, quando se apresentou como candidata à cadeira de Teolo-
gia Feminista na Escola Superior de Teologia em São Leopoldo/RS, no dia 19.11.04.
34

Ao afirmar que a escrita da história em perspectiva feminista se dá a partir dos cotidi-


anos e das experiências das mulheres, o olhar da Teologia Feminista destaca deste cotidiano o
aspecto religioso. Assim, história e religião se encontram amalgamadas, desvelando-se a par-
tir do lugar e da contribuição do conhecimento teológico.

A teologia contribui para compor uma historiografia que se quer feminista no momen-
to em que revela a “função da religião como legitimação da ordem patriarcal, ou seja, como
‘manutenção do mundo’”.71 A história das mulheres também é a história da humanidade, mas
é a história que procura, além de revelar, desconstruir esta legitimação, para assim, falar em
liberdade e libertação.

As possibilidades historiográficas feministas trazem à tona, porém, um certo medo por


parte da tradicional academia, de que o olhar da ciência histórica pousará, doravante, sobre
um constante relativismo, sobre o que Pinto chama de liberdade teórica.

Talvez uma possibilidade de solução seria não a liberdade teórica, mas uma espécie de re-
lativismo teórico que envolveria pelo menos dois encaminhamentos: o abandono de mo-
delos rígidos e uma relação mais próxima com as sociedades e os processos históricos
que se pretende estudar [...].72
Justamente esta relação mais próxima com as sociedades e com os processos históricos
mencionados por Pinto é que vão trazer à idéia totalizante de história, não o seu oposto, ou se-
ja, um relativismo ad infinitum, e sim, a necessária autocrítica e a evidente dinamicidade das
sociedades em seus processos históricos. Ao ter em sua base as experiências e os cotidianos
das mulheres, o feminismo elabora esta autocrítica e percebe a dinamicidade e pluralidade da
história e da vida de mulheres e homens.

Retomando a questão dos discursos, afirmo que os mesmos são um fenômeno históri-
co e, por isso, podem ser historiografados, visto que estão ligados a épocas históricas bem es-
pecíficas. Assim, os discursos podem (e devem) ser analisados no seu momento histórico. Isto
não significa que aí estejam presos ou que fossem válidos somente para tal período. É um re-
corte possível e necessário para o estudo da história das mulheres e para a avaliação do que os
discursos contribuíram (ou não) para a própria historiografia feminista.

71
Mary DALY apud. Elisabeth S. FIORENZA, As origens cristãs..., p.49.
72
C. R. J. PINTO, op. cit., p. 22.
35

O discurso não nasce pronto, ele torna-se discurso por meio do conhecimento de um
determinado espaço lingüístico. Assim, é possível afirmar que o discurso é construído “para
dentro” das pessoas que compartilham deste espaço. O jornal é um veículo excelente para a
disseminação de discursos, sendo que seu layout, formato e distribuição de textos em suas pá-
ginas, fazem parte do mesmo, ultrapassando o meramente estético ou o marketing. Já as cartas
trazem à tona os discursos em voga de uma determinada época, l(f)ocalizando experiências.

Os jornais desta pesquisa recebem, em seu layout, características do seu espaço de cir-
culação: além de serem editados em língua alemã, especialmente os produzidos aqui no Bra-
sil, dão conta de notícias e informações pertinentes à manutenção da cultura alemã para as
pessoas e famílias emigradas, publicando notícias a respeito da Alemanha73, do imperador a-
lemão, publicando contos que retratam a vida e o cotidiano de pessoas alemãs. As poesias
também não faltam e sempre relembram “o lado de lá”. Alguns exemplos:

O imperador alemão voltou de sua viagem à Noruega, onde foi grandemente enaltecido;
viaja para visitar o czar da Rússia.74
A maravilhosa pátria do outro lado,
os caros amigos que vocês lá deixaram!
Vocês já se afligiram muito [...]75
Do sul do Brasil chega mais esta queixa: “Quantas vezes uma mãezinha não desejou que
seus filhos [e filhas] tivessem podido ouvir um dia, aqui no Brasil, o soar alemão de sinos
e o som alemão do órgão, mas acabou sendo levada à sepultura a despeito de sua vonta-
de?”76
A demanda por criadas alemãs era muito grande, de modo que nem a quinta parte da
mesma pôde ser atendida.77
Quando os alemães da província do Rio Grande do Sul olham para o êxito de décadas de
trabalho, assim eles podem, com certa razão e com orgulho, afirmar: ‘Nós, isto é, o ele-
mento alemão, soubemos conquistar uma posição privilegiada e imponente aqui no Bra-

73
Ida Kleine, autora de algumas cartas analisadas no capítulo dois, que segue, escreve, no dia 29.10.1888: “Os
jornais locais trazem muita bobagem mas nada da pátria.” 2 – Mulher alemã/Carta 8/parágrafo (g), p. 86.
Assim, segundo a opinião de uma leitora de jornal, nem sempre as notícias a respeito da Alemanha eram su-
ficientes Talvez esse também não fosse o foco editorial de todos os jornais publicados no contexto da imigra-
ção alemã, no final do século XIX.
74
SB. Ano 3. São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 31.08.1890. p. 4. “Der Deutsche Kaiser ist zurückgekehrt von
seiner Reise nach Norwegen, wo er hochgefeiert worden, auf Besuch zum Czaren von Rußland gereist.”
75
SB. Ano 3. São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 02.11.1890. p. 3. “Die wunderschöne Heimat drüben, / Die
teuern Freunde ließ’t ihr dort! / Ihr habt euch viel gegrämt schon, [...]”.
76
DA. Ano 20. Düsseldorf : Pastor Griesemann, junho 1882. p. 42. “Und aus Süd-Brasilien kommt die Klage:
‘Wie manches Mütterchen hat oft gewünscht, daß ihre Kinder doch einmal deutsches Glocken-geläute und
deutschen Orgelton hier in Brasilien hören möchten, und man sie über ihre Wünsche zu Grabe getragen.”
77
Ibid., p. 43. “Die Nachfrage nach deutschen Dienstmädchen war sehr groß, so daß nicht der fünfzigste Teil
derselben befriedigt werden konnte.”
36

sil, através de nossa aplicação, energia e perseverança. A nós é que a província deve o seu
desenvolvimento comercial e cultural.78
Também o discurso do que não é o alemão aparece nos jornais:

Através de três características, vários de nossos camponeses alemães na América do Nor-


te têm se portado de maneira a se tornarem desprezíveis: através de sua incredulidade, a-
través de seu descuido com a roupa branca e – através de sua viciosa bebedeira.79
Dr. Rotermund, o incansável, hábil e talentoso pastor em São Leopoldo, permite [...] que
em seu excelente Kalender für die Deutschen in Brasilien [Almanaque para Alemães no
Brasil], um experiente colono fale sobre os alemães das cidades: ‘Através de seu contra-
bando, eles arruínam a indústria; nenhum artesão pode trabalhar por tão pouco, como eles
vendem a sua mercadoria contrabandeada, que, além disso, muitas vezes é refugo ordiná-
rio.’80
Estes poucos exemplos querem mostrar a produção de certos discursos em torno do
que é ou não o alemão, do que estas pessoas sentem falta, o que é importante para a manuten-
ção da cultura alemã na dispersão.

Os óculos hermenêuticos é que definem o lugar do olhar: o sujeito que olha, o sujeito
que recebe o olhar. O sujeito que recebe o olhar nesta pesquisa é a mulher alemã imigrante da
segunda metade do século XIX, que vem instalar-se ao sul do Brasil neste período. O lugar do
meu olhar como pesquisadora é o do feminismo e o da história de mulheres.

A emergência da história das mulheres como um campo de estudo envolve [...] uma evo-
lução do feminismo para as mulheres e daí para o gênero; ou seja, da política para a histó-
ria especializada e daí para a análise.81
Estes olhares são como um programa, uma metodologia, a teoria que perpassa também
a situação específica da mulher alemã imigrante. Tornam-se relevantes, então, os olhares ana-
líticos.

78
DP. Ano 4, São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 05.03.1884. p. 1. “Wenn die Deutschen der Provinz Rio
Grande do Sul auf die Erfolge ihrer jahrzehndelangen Arbeit zurückschauen, so können sie mit einem
gewissen Recht und mit Stolz behaupten: Wir, d.h. das deutsche Element, haben uns hier in Brasilien durch
Fleiß, Energie und Ausdauer eine bevorzugte, eine achtunggebietende Stellung zu erringen verstanden, wir
sind es gewesen, denen die Provinz ihre commerciale und culturelle Entwickelung zu verdanken hat.”
79
DA. Ano 20, Langenberg : Pastor Griesemann, junho 1882. p. 52. “Durch drei Eigentümlichkeiten haben sich
nicht wenige unserer deutschen Landsleute in Nordamerika auffallend und verächtlich gemacht: durch ihren
Unglauben, durch ihre Vernachlässigung der LeIbid., wäsche, und – durch ihr lasterhaftes Trinken.”
80
Ano 21, Langenberg : Pastor Griesemann, junho 1883. p. 42. “Dr. Rotermund, der unermüdlich thätige, reich
begabte Pfarrer in São Leopoldo, läßt [...] in seinem trefflichen ‘Kalender für die Deutschen in Brasilien’
einen erfahrenen Kolonisten über die Deutschen in den Städten sagen: ‘Durch ihre Schmuggelei ruinieren sie
die Industrie; kein Handwerker kann so billig arbeiten, wie sie ihre eingeschmuggelten Waren verkaufen, die
nebenbei auch oft gemeiner Schund sind.”
81
J. SCOTT, op. cit., p. 65.
37

3. Olhares analíticos
Um discurso não se pauta somente sobre acontecimentos e interpretações rígidas, mas
sobre a dinamicidade e a multiplicidade de atores e vozes sociais em seu cotidiano. Os olhares
analíticos necessitam de um exercício de interdisciplinaridade.

Apóiam-se [os novos campos de pesquisa na história] em outras disciplinas – tais como a
literatura, a lingüística, a psicanálise, e, principalmente, a antropologia – com o intuito de
desvendar as diversas dimensões desse objeto [as mulheres]. Assim, a interdisciplinarida-
de [...] assume importância crescente nos estudos sobre as mulheres.82
Maria Izilda S. de Matos enumera os seguintes pressupostos que deveriam caracterizar
o olhar sobre este sujeito de estudos: 1) a invisibilidade da mulher na historiografia; 2) o uso
da análise de gênero, bandeira erguida pelos estudos feministas na pesquisa histórica; 3) o
discurso universal masculino, que justamente esconde e silencia esta e outras histórias; 4) o
espaço da experiência como o “contador da história”83 e, a meu ver, como o formador do dis-
curso identitário das mulheres.

A autora também afirma que o cotidiano, visto como político, abre a abordagem histó-
rica para os estudos da mulher, gerando transformações e questionamentos sociais. Matos a-
firma ainda que novas perspectivas como esta, reorientam o enfoque da história, não mais
centrada em histórias de heróis masculinos e de elites, nem na universalidade do discurso his-
tórico.84 Abre-se a possibilidade de um olhar plural sobre o passado, que levanta e desvenda
múltiplas questões. Percebe-se o olhar e a subjetividade do/da historiador/a sobre este passa-
do, quando este/a constrói o discurso sobre ele.85

Um outro olhar analítico é lançado por Dagmar E. Estermann Meyer, que escreveu um
importante livro para o período da imigração alemã, em que investiga a “cultura e docência
teuto-brasileiro-evangélica no Rio Grande do Sul”.86 Ela baseia a sua pesquisa no conceito de
desconstrução, de Derrida, no conceito de poder, de Foucault e nos estudos culturais e femi-
nistas, na crítica pós-estruturalista. Dagmar analisa de perto conceitos como etnia, etnicidade,
nação e cidadania. Estes conceitos são importantes para perceber como as pessoas concilia-
vam a nacionalidade alemã e a cidadania brasileira.

82
R. SOIHET, op. cit., p. 276.
83
Maria Izilda S. de MATOS, Por uma história da mulher, p. 7.
84
Ibid., p. 11.
85
Ibid., p. 12.
86
D. E. E. MEYER, Identidades traduzidas, subtítulo do livro.
38

A partir da noção de gênero, dos estudos feministas e da crítica pós-estruturalista, esta


autora elabora um “redimensionamento” do que se entende por poder, linguagem e identida-
de. Alguns marcadores sociais “estiveram profundamente imbricados”87 no que se chamou de
cultura teuto-brasileiro-evangélica no Rio Grande do Sul: raça/etnia, nacionalidade, religião,
gênero e classe. Eles provêm de alguns “lugares” específicos: a Europa branca, masculina,
cristã do Iluminismo, da ciência positivista, políticas de colonização, fortalecimento dos esta-
dos nacionais.88 Tanto a cultura como a noção de gênero são marcas importantes na delimita-
ção de grupos e seus pertencimentos.

Já Pinto chama a atenção aqui sobre as práticas não-discursivas, no sentido de que


também estas devem ser consideradas nos olhares analíticos. E o que são as práticas não-
discursivas? Elas aparecem como contraponto às práticas discursivas. Estas últimas são ob-
servadas, por exemplo, nos gestos e atitudes de um policial, nos textos publicados por um jor-
nal, na ordem e limpeza das donas-de-casa alemãs imigrantes. Destes exemplos, as práticas
não-discursivas são justamente a instituição Polícia, o prédio onde o jornal é elaborado e as
casas das mulheres.

Existe uma relação entre as práticas discursivas e as não-discursivas. O discurso, as


práticas discursivas não podem existir sem as não-discursivas. Porém, Pinto afirma: “O dis-
curso, portanto, tem uma relação necessária com as práticas não-discursivas, relação esta que
é, principalmente, de duas naturezas: uma diz respeito à estreita e necessária relação entre as
duas práticas, outra ao caráter de não-causalidade desta relação.”89

Ou seja, a prática discursiva sempre precisa de um espaço físico, geográfico, estrutu-


rado, uma infra-estrutura para ocorrer. Só que a prática não é a causa da não-prática e vice-
versa. Não há linearidade neste processo e, sim, dinamicidade. Para existir o discurso das do-
nas-de-casa, precisa existir uma casa na qual este discurso possa ser mantido, ensinado, aper-
feiçoado, corroborado. Por outro lado, a casa também é transformada pelo próprio discurso. E
isto acontece para os dois outros exemplos também.

A relação que se estabelece entre as práticas discursivas e as não-discursivas não é de


causalidade, mas de reciprocidade e de simultaneidade, diria eu. Tomando em consideração

87
Ibid., p. 60.
88
Ibid., p. 63.
89
C. R. J. PINTO, op. cit., p. 23.
39

esta dinamicidade, os olhares analíticos sobre um discurso não poderão ser ad infinitum ou
por demais extensos. Os olhares analíticos sobre um discurso precisam ser, temporariamente e
para fins didáticos, apreciados no seu contexto histórico, geográfico e interpessoal.

Neste sentido, algo/alguém ficará de fora. Sendo que este “de fora” faz parte da com-
plexa rede discursiva de um momento histórico pontual. Não é um “de fora” que fica margi-
nalizado. Os contextos não abarcados em um determinado discurso, devido ao recorte dado,
fazem parte do discurso. Por isso um discurso analisado passa a ser, de qualquer forma, um
discurso incompleto.

Incorporando um pouco mais a noção de interdisciplinaridade, é importante estabele-


cer que a mesma leva à produção de conhecimento. E de um conhecimento multifacetado. Ve-
jamos o que diz Céli Regina a respeito:

A interdisciplinaridade modifica as disciplinas nelas envolvidas, assim como o abandono


de modelos teóricos rígidos modifica cada um dos modelos usados para analisar um dado
problema e é esta qualidade que dá sentido ao esforço e que permite o avanço no processo
de produção de conhecimento.90
O que significaria a interdisciplinaridade na perspectiva dos olhares analíticos sobre a
mulher nos jornais pesquisados? Que conhecimento produz? Produz, por exemplo, o conhe-
cimento sobre uma mulher, que é alemã e que é imigrante. Se lançarmos o olhar interdiscipli-
nar da história de mulheres e dos estudos feministas sobre a categoria mulher, perceberemos
que esta categoria não é homogênea, não é unilateral, não é um universal em si mesma. A ca-
tegoria mulher abrange, pelo menos para este trabalho, no mínimo, uma característica a mais,
a do pertencimento étnico-cultural alemão.

Caracterizar desta forma a mulher, exclui e inclui, pois nem todas são mulheres alemãs
no período pesquisado. Há uma demarcação de fronteiras, uma delimitação de espaços, de co-
nhecimentos, de pertencimentos, de papéis sociais, de condicionamentos. Ser e dizer-se mu-
lher e alemã aumenta a possibilidade de discursos históricos e a visibilidade de cotidianos. Se
à característica étnico-cultural ainda acrescentarmos a condição de imigrante, agrega-se mais
um traço ao desenho desta mulher. A produção de conhecimento continua. O conhecimento
torna-se cada vez mais multifacetado.

90
C. R. J. PINTO, op. cit., p. 15.
40

É desta mulher, nesta interdisciplinaridade e com estes traços que desejo falar aqui.
Também é desta mulher que falarão, veladamente, os jornais. Provavelmente não desta mu-
lher multifacetada, pois trago em mente a hipótese de que os jornais têm, antes, um modelo
rígido e fixo de mulher, que se espalha e espelha, ainda hoje, pela história da imigração ale-
mã. Basta fazer uma comparação com o conteúdo das cartas que estas mulheres escreveram.
Tanto em um como em outro, elas apresentam aspectos bastante distintos.

4. A construção do novo: re-significar


Como homens e mulheres são construídos em sua subjetividade social e a constroem,
também existe a possibilidade de des-construir tais imagens, tais idéias, tais discursos. A des-
construção implica rever afazeres e saberes de homens e mulheres, refazer posturas e atitudes,
operar uma abertura ao outro e enfrentar de conflitos e tensões.

Levanto a hipótese de que outras subjetividades sociais já existiam entre homens e


mulheres, mas não se tornaram públicas e não foram historiografadas devido à hegemonia de
um único discurso: o do homem público e o da mulher privada. Para o contexto desta pesqui-
sa, isto implica dizer que existem outras subjetividades sociais para a mulher alemã imigrante
do que aquela que reflete a mulher que trabalha, organiza, limpa, cuida e resolve tudo. Estas
outras subjetividades foram alcançadas no manejo com re-significações de espaços e condutas
sociais.

Uma das lutas feministas, também da teoria que a partir delas se constituiu, está em
desconstruir uma visão bipolar e dicotômica de mundo, visão esta que pesa sobre a mulher. A
teoria feminista objetiva romper com esta visão. A visão dicotômica de mundo divide as pes-
soas em boas e más. Divide as ações, atitudes e pensamentos delas em masculinas e femini-
nas, em pretas e brancas, em ricas e pobres, em velhas e jovens, exaltando sempre um dos pó-
los.

Coloca-os hierarquicamente em uma “ordem” e aceita como verdadeiro, como fiel,


como bem feito aqueles/as e aquilo que respeita, que observa e cumpre com o lado hegemôni-
co, com o lado que foi discursivamente construído como tendo poder. As pessoas, que não
pertencem a este lado, são automaticamente desligadas da vida, da sociedade, da história. Não
contam mais, são excluídas.

Para as mulheres, vivendo ao lado das pessoas excluídas no que se refere principal-
mente às decisões sobre sua vida, caminhar em um mundo visto em dois pólos, é difícil. Al-
41

go/Alguém precisa romper com a visão de mundo que dita o valor das coisas a partir destes
dois pontos. É preciso romper, sim, pois há muitas histórias mais a serem contadas do que as
existentes nestes dois pólos. É preciso, pelo menos para começar a romper dicotomias, consi-
derar nuances; espalhar o olhar ao redor e começar a perceber a riqueza, a diversidade e a plu-
ralidade da vida entre dois pontos, além de não considerá-los como limitantes.

O discurso que coloca o público e o privado em dois pólos opostos torna-se mais evi-
dente a partir da citação de um trecho da biografia de Luísa Amélia de Queirós, escritora pi-
auiense no século XIX, escrita por Rosana Cássia Kamita: “As mulheres eram criadas para o
espaço privado, para perpetuar um sistema familiar que as mantinha numa posição inferior na
sociedade.”91

No romance histórico escrito por Josué Guimarães, intitulado “A ferro e fogo”, Sofia,
uma moça de, aproximadamente, 18 anos, alemã, pobre, largada na colônia de São Leopoldo
por um homem qualquer – depois de haver passado pelas mãos de vários deles - assustada,
amedrontada, é acolhida por Gründling, também alemão, comerciante, rico, muito mais velho
do que ela.

Um pensamento de Gründling esclarece os objetivos educacionais para as mulheres


burguesas (ou as que se tornam tais, como no caso de Sofia) no século XIX: “Pois agora a-
prenderia a ler, começaria o aprendizado de grande dama, mandaria buscar cartilhas, uma
lousa para desenhar letras, depois as declinações [...]” Um pouco mais acima, no mesmo con-
texto: “Ensinada por Mariana, começara a bordar razoavelmente [...] Frau Felipina Grub ensi-
nando as primeiras letras, boas maneiras e trabalhos domésticos.”92

Estes dois exemplos mostram o discurso construído que existe em torno da mulher,
que precisa aprender a ser uma dama, aprender as lides domésticas, aprender a ficar dentro de
casa. Isto acaba sendo um conceito de mulher ampla- e naturalmente aceito, apreendido e en-
sinado pela sociedade da época.

Quero considerar, a partir da luta e da teoria feminista, a desconstrução também da vi-


são bipolar de mundo. Não existem somente pessoas boas ou más, uma natureza ou essência
feminina ou masculina; não existem somente imigrantes ou nativos; não existe somente o pú-

91
Rosana Cássia KAMITA, Luísa Amélia de Queirós, p. 30.
92
Josué GUIMARÃES, A ferro e fogo, p. 93. Os grifos são meus.
42

blico e o privado. Existe uma simultaneidade de concepções não-hierárquicas. Perceber esta


simultaneidade como algo que pertence à vida, ao cotidiano e à experiência das pessoas, rom-
pe com esta visão bipolar e dicotômica e instaura um processo de conscientização pela plura-
lidade.

Um dos destaques que Margareth Rago dá à filosofia pós-moderna é a da busca por


“revelar o processo artificial de construção das unidades conceituais, temáticas supostamente
naturais”, ou seja, além de revelar processos artificiais, a filosofia pós-moderna, incluídas aí
as teorias feministas, busca “a desconstrução das sínteses, das unidades e das identidades di-
tas naturais, ao contrário da busca de totalização das multiplicidades.”93

Existe a idéia e até o conceito sobre a mulher alemã imigrante de que seja alguém que
somente trabalha. Esta idéia não é divulgada apenas pelos jornais pesquisados. As próprias
mulheres se apresentam como “trabalhadeiras”. As cartas escritas pelas mulheres são um tes-
temunho de que o trabalho era uma constante em suas vidas. Elas não o mencionavam assim,
mas, de uma maneira geral, diziam que o tempo era curto.

Em uma fotografia de Blumenau/SC, onde aparece uma casa da colônia (Kolonisten-


haus) e a família à frente da casa, as mulheres usam avental. Segundo Joana Maria Pedro, his-
toriadora e autora do artigo onde está publicada a foto, o avental é um símbolo de limpeza e
eficiência.94 Ele representa o trabalho das mulheres.

Neste artigo ela ainda escreve que “dependia das mulheres” manter os “hábitos” e
“costumes alemães”. “Apesar disso”, continua , “o que se observa é que somente os homens
são considerados responsáveis pelo desenvolvimento da região”. Pedro remete, então, ao tra-
balho de Cristina Scheib e Wolff sobre mulheres, cotidiano e trabalho na colônia de Blume-
nau, Santa Catarina, entre 1850-1900, onde é defendida a tese de que a representação da mu-
lher como trabalhadeira contribui para sua invisibilidade.95

As mulheres se dizem trabalhadeiras, os jornais defendem esta idéia, a realidade mos-


tra que elas não deixavam as mãos descansar e, mesmo assim, sua história é invisibilizada.
Será que não há, ainda, outra realidade que poderia compor esta imagem e aproximá-la um

93
Margareth RAGO, Epistemologia feminista, gênero e história, p. 26.
94
Joana Maria PEDRO, Mulheres do sul, p. 297.
95
Ibid., p. 288-9.
43

pouco mais do cotidiano da mulher alemã imigrante, um cotidiano de muitos movimentos,


que parece sumido em uma historiografia universalizante? A desconstrução ajuda nesta apro-
ximação e ajuda a afirmar que existe algo além do discurso da mulher trabalhadeira.

Margareth Rago escreve uma livro intitulado “Entre a história e a liberdade”, que trata
da biografia de Luce Fabbri, anarquista. Neste livro ela relata o que Luce Fabbri lhe dissera a
respeito de autodidatismo. Este tema está sob o tópico “Desejo de cultura”. Acabei formulan-
do para mim que o autodidatismo do qual Luce Fabbri fala, está diretamente ligado ao desejo
de cultura, no caso do livro citado, ao desejo de cultura dos trabalhadores e operários. Luce
Fabbri dizia a Margareth Rago que os

[…] operários que à noite iam buscar livros [na biblioteca popular em Bolonha] não bus-
cavam aqueles que os capacitassem ao ofício [...] simplesmente queriam inteirar-se, sa-
ber, algo que não se dá muito nem mesmo nas universidades.96
Luce Fabbri “destaca, nesse movimento de autoformação, a construção autônoma da
própria existência”. E Rago continua, com base em Michel Foucault, afirmando que são “es-
paços próprios da auto-subjetivação, o que implica exercício da liberdade, resistência às estra-
tégias sutis disciplinarizantes.”97 Quero trazer para a minha discussão estes últimos elementos:
construção autônoma da existência, espaços de auto-subjetivação, exercício da liberdade e re-
sistência a estratégias disciplinarizantes. Todos eles ajudam a desconstruir, entre outros, a i-
magem da mulher alemã imigrante que somente trabalha.

Não existiria para elas também um momento de construção autônoma da existência?


Algo que vá além do trabalho? Ou um momento em que elas exercitassem a sua liberdade, re-
sistissem a estratégias disciplinarizantes, criassem espaços de auto-subjetivação, de criação de
um sujeito autônomo? Enfim, momentos de serem elas mesmas ou outras do que só aquelas
que trabalham? A auto-formação, a autonomia, a auto-subjetivação são importantes fissuras
no edifício social patriarcal. Perceber e historiografar não somente o trabalho na vida da mu-
lher alemã imigrante, re-significa a exclusividade de certas imagens que circulam no presente
e que reduzem cotidianos passados.

Tenho a hipótese de que tais momentos construtivos e experiências existiam. No en-


tanto, volto a afirmar que falta historiografá-los e trazê-los junto a uma história de trabalho da

96
M. RAGO, op. cit., p. 219.
97
Ibid., p. 221.
44

mulher alemã imigrante já contada e registrada, mas que não é única e exclusiva. Segundo
Rago, herdamos uma tradição historiográfica que se vê como verdadeira e que reivindica esta
verdade para si somente, invalidando outras possibilidades de leitura do passado.98

Falar em mulher alemã imigrante é falar também de uma identidade. Identidade tem
muita proximidade com a imagem, com o perfil de uma pessoa ou de um grupo social. Tam-
bém tem muita proximidade com o discurso daquela pessoa ou grupo. O que se sabe a respei-
to de homens e mulheres e de suas relações é que são construções sociais, como eu já escrevi.
Estas construções vêm permeadas de discursos, ambos em circulação em determinada época
histórica. Discursos constroem imagens. Se, portanto, os discursos são construções, então a
imagem que se tem da mulher alemã imigrante, expressa nos jornais, nas idéias e nos imagi-
nários das pessoas, também são construções. As mulheres escrevem suas cartas a partir de
construções sociais, ao mesmo tempo em que as constroem.

Discursos construídos são discursos passíveis de manipulação por outros discursos e


construções sociais. Há uma inter-ação/trans-ação entre eles. No caso da mulher alemã imi-
grante, o discurso do patriarcado manipula o que se sabe (ou não) em torno dela. Manipula
sua imagem. O mesmo papel manipulativo assume o discurso da imigração e o discurso ecle-
siástico/religioso, para citar somente alguns. Em tempo: discursos construídos também podem
ser des-construídos.

A imagem que se tem da mulher alemã imigrante e que se expressa nos jornais, está
pautada sobre um discurso patriarcal, foi pesquisada por uma ciência androcêntrica e escrita
por uma historiografia hierarquizada e heroicizante. A imagem da mulher alemã imigrante
que trabalha, trabalha e trabalha é um exemplo de mulher-herói. E a ela se dá exclusividade.
Este discurso é construído com o objetivo de uniformizar e homogeneizar imagens e cotidia-
nos, invisibilizando, assim, histórias, memórias e identidades de mulheres.

Ao procurar pela imagem da mulher alemã imigrante nesta pesquisa, o faço com o in-
tuito de me aproximar o máximo dela mesma, observando os discursos que a constituem e os
espaços em que circulam tais discursos. Os discursos são maleáveis, indo em direção à voz
emergente e recorrente de suas épocas.

98
M. RAGO, op. cit., p. 25.
45

Faltarão peças para a imagem da mulher alemã imigrante. Não somente porque elas
viveram no longínquo século XIX. Faltarão peças para a imagem desta mulher pela hegemo-
nia do discurso patriarcal, que sufocou cotidianos, experiências, identidades e linguagens, re-
velando somente tais que corroborassem e justificassem a sua própria existência.

O processo de conscientização da pluralidade da vida também é um discurso construí-


do a partir de práticas sociais de certas pessoas e/ou grupos. É uma das bandeiras dos estudos
feministas. As práticas sociais ou articulatórias das pessoas acontecem em seu cotidiano, e-
mergindo de sua experiência com e a partir dele. Ao mesmo tempo em que se procura romper
com um discurso dicotômico ou patriarcal, é novamente construído um outro discurso. É a di-
nâmica dos discursos. Isto, para mim, implica dizer que discurso não é um termo pejorativo,
indicando sempre algo negativo e/ou ruim. Os discursos nos quais se acredita, normalmente
não são ruins ou negativos. Ruins e negativos são os discursos dos outros, perante os quais eu
preciso tomar uma posição, criando outras idéias, mudando ou rompendo com as já conheci-
das. É novamente a dinâmica dos discursos.

Um discurso “novo” que “entra em cena”, “atinge” pessoas/sujeitos pelo fato de estar
eventualmente mais próximo do momento histórico e social vivido por elas, localizando-se
em espaços de ação e inter-ação. Uma mudança ou um rompimento de discurso leva à cons-
trução de alternativas em relação ao discurso “enfrentado”. Leva a re-significações. E isto é
um processo, doloroso para alguns, libertador para outros.

A construção destas alternativas, porém, não é fácil. Há muito trabalho, muita luta,
muita escolha, muita decisão, muitos erros neste caminho. Historiografar a mulher alemã imi-
grante, de maneira a romper com as dicotomias sobre ela discursadas, é um processo que pro-
cura alternativas e que procura não estacionar em um discurso, mas manter os olhos sempre
abertos para ver e avaliar o que rodeia a construção do novo.

5. Mulheres optam não somente por atitudes pré-estabelecidas


Para a situação da mulher, “Pensar na construção social do sujeito pressupõe abrir mão
[...] de princípios essencialistas [...]”99. Os estudos feministas afirmam a necessidade de se ter
outra forma de pensar a respeito da mulher. Não existe uma essência ou uma natureza de mu-
lher, algo que nasça com ela e que a torne mulher através deste sinal ou marca. Como sujeito

99
M. RAGO, op. cit., p. 16.
46

social, a mulher é tornada mulher durante toda sua vida.100 É a construção social de um sujei-
to.

Escreve Céli Regina:

[...] o conceito de discurso e de discursividade do social rompe com toda e qualquer dico-
tomia entre o real e o aparente, entre o material e o pensamento. Se o real só é apreendido
através de práticas articulatórias, a essência não existe enquanto tal, mas enquanto práti-
ca.101
Justifica-se a existência da mulher e da obrigação de ficar reclusa ao lar, de realizar ta-
refas domésticas, de casar e de ter filhos/as, através de uma visão natural e essencialista da
mesma, como se tudo isso nascesse com ela. Não nasce, mas desde muito cedo é colocado no
berço e embalado no seu cotidiano de menina. É uma prática. As próprias mulheres começam
a pensar que são assim, que o mundo é assim, que as mulheres fazem esta tarefa e os homens
aquela e que não tem porque mudar alguma coisa, pois só vai trazer conflito, briga e mal-
entendidos.

Trago um exemplo a partir das cartas das mulheres. A sra. Meyer escreve: “Custou
muito escrever esta carta, deixei isto a cargo do Franz, mas ele é muito preguiçoso em escre-
ver.”102 Ela deixou o ato de escrever a carta como responsabilidade de Franz, como uma tarefa
de homem. Para a sra. Meyer, a parte da casa que envolve papelada e escrita não tem, em
princípio, nada a ver com ela. O mundo é assim, esta é a prática usual. No entanto, a preguiça
de Franz a fez escrever (talvez para não criar conflitos com ele), a fez realizar uma tarefa apa-
rentemente de homem. A prática da escrita já mostra uma opção da sra. Meyer por atitudes al-
ternativas, não pré-estabelecidas. Eis mais uma fissura na estrutura patriarcal.

Margareth Rago considera que a mulher

[…] não deveria ser pensada como uma essência biológica pré-determinada, anterior à
História, mas como uma identidade construída social e culturalmente no jogo das relações
sociais e sexuais, pelas práticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes.103
As idéias essencialistas e naturalistas são profundamente arraigadas, são discursos que
fluem nos corpos das mulheres e que constroem a sua subjetividade, sua dependência, sua

100
Quero lembrar aqui da já tão conhecida frase de Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mu-
lher.” Simone de BEAUVOIR, O segundo sexo, p. 9.
101
Ibid., p. 20. Grifo meu.
102
2 – Mulher alemã/O que as mulheres falam através de suas cartas/Carta 1/parágrafo (e), p. 63.
103
Margareth RAGO, Epistemologia feminista, gênero e história, p. 27.
47

submissão, sua obediência, sua falta de coragem de romper com sofrimentos e violências e de
construir alternativas para suas vidas. Como sujeito social que é, o homem também é constru-
ção social. A idéia de natureza da mulher e tudo o que esta idéia traz consigo, existe em seu
cotidiano e nela também o homem baseia seu leque de atitudes em relação à mulher.

Para chegar a tais afirmações, tornam-se importantes as noções de gênero e de relações


de gênero, que ajudam e impulsionam o estudo das construções sociais do feminino e do mas-
culino. Afirmar que ser homem e ser mulher são construções sociais só é possível a partir da
aplicação direta desta noção. Além de visIbid., ilizar a mulher, sua história, seu cotidiano, a-
lém de exercitar a identidade da mulher, no sentido dela dizer-se, criando autonomia, auto-
estima e empoderamentos, a noção de gênero traz para a reflexão acadêmica e para outros es-
paços sociais a percepção relacional entre os sexos, social- e historicamente construídos.

Matos envereda por este caminho, ao afirmar que

Por sua característica basicamente relacional, a categoria gênero procura destacar que a
construção do feminino e masculino definem-se um em função do outro, uma vez que se
constituíram social, cultural e historicamente em um tempo, espaço e cultura determina-
dos. [...] Tendo entre suas preocupações evitar as oposições binárias fixas e naturalizadas,
os estudos de gênero procuram mostrar que as referências culturais são sexualmente pro-
duzidas por símbolos, jogos de significação, cruzamentos de conceitos e relações de po-
der, conceitos normativos, relações de parentesco, econômicas e políticas.104
As mulheres alemãs imigrantes também optam e vivem certas atitudes pré-
estabelecidas e têm suas cabeças cheias de pensamentos a respeito de maternidade, lides do-
mésticas e casamento, de tal forma que se reconhece nelas, aparentemente, um jeito de ser,
uma essência e uma natureza femininas típicas. Mas o que é típico só existe assim, interiori-
zado e sendo levado adiante e para dentro da vida das mulheres, enquanto discurso, dado e
instruído como sendo a essência de suas vidas, a razão de seu viver. E isto pode ser mudado.

A partir da afirmação de uma feminista inglesa, Frances Wright, em 1822, citada por
Margareth Rago, é possível perceber que a mente das mulheres, ao ser preenchida com outros
discursos e com outras práticas, pode levá-la a outros pensamentos e atitudes:

Ouso dizer que às vezes você se espanta com minha maneira independente de andar pelo
mundo como se a natureza me tivesse feito de seu sexo, e não do da pobre Eva. Acredite

104
M. I. S. de MATOS, op. cit., p. 76.
48

em mim, querido amigo, a mente não tem sexo, a não ser aquele que o hábito e a educa-
ção lhe dão.105
Esta poderia ser a fala de muitas mulheres que se tornaram viúvas ao longo de suas vi-
das e que agora precisam gerenciar e administrar os afazeres que antes seus maridos organi-
zavam. A vida pública era, então, uma constante para elas.

O hábito e a educação são discursos. Discursos igualmente passíveis de serem constru-


ídos socialmente e, assim, fazerem parte do imaginário das mulheres, incorporadas a suas ati-
tudes. O conteúdo do hábito e da educação, o conteúdo do discurso é que vai estabelecer a ba-
gagem que as mulheres irão carregar consigo e optar ou não por atitudes pré-estabelecidas,
naturalizando-as ou re-significando-as.

Céli Regina cita Barthes em seus estudos e ele, então, afirma “que existem sentidos
construídos socialmente, isto é, conotativos, que alcançam uma tal pertinência histórica e são
assimilados de forma tal pela sociedade, que se impõem como se fossem naturais, isto é, de-
notativos. A denotação, portanto, é um processo de ‘naturalização’ dos sentidos.”106

É possível afirmar que existe uma naturalização de atitudes, opções, decisões que, em
princípio, não poderiam ser tomadas de outra forma, pois já sempre se fez e se agiu assim. Por
isso é tão escandaloso quando alguém pensa e age diferente, quando alguém propõe mudan-
ças. Para mudar e criar alternativas é preciso muita força de vontade, muita auto-estima, muita
coragem.

Ao aceitar as condições pré-estabelecidas para suas vidas, as mulheres o fazem ao as-


sumirem um discurso de aceitação. Rachel Soihet cita Chartier em seu texto. Ele alerta que,
“[...] uma tal incorporação da dominação não exclui a presença de variações e manipulações
por parte dos dominados.” A partir disso, a historiadora conclui que “[...] a aceitação pelas
mulheres de determinados cânones não significa, apenas, vergarem-se a uma submissão alie-
nante, mas, igualmente, construírem um recurso que lhes permita deslocar ou subverter a rela-
ção de dominação.”107, re-significando suas vidas.

105
Margareth RAGO, Feminizar é preciso..., s.p.
106
C. R. J. PINTO, op. cit., p. 21.
107
R. SOIHET, op. cit., p. 72.
49

6. Mulheres optam a partir de convicções de fé


A vida humana, entretecida pelos marcadores sociais, é uma complexa rede, complexa
e densa rede de relações de gênero. Conforme Fritjof Capra:

Numa rede social, nós trocamos idéias, pensamentos, informações. Para entender uma re-
de social, não basta desenhar um mapa mostrando quem fala com quem. É preciso saber o
que é dito.108
Ou seja, em uma rede social, discursos mostram quem fala com quem, discursos são
trocados entre homens e mulheres. Além disso, precisamos saber quais os discursos que estão
sendo trocados: o que o homem diz à mulher e o que a mulher diz ao homem. Gênero, nesta
rede social, pretende ser um discurso que desmascara o patriarcado e a sociedade androcêntri-
ca profundamente arraigados nela.

O homem e a mulher, embebidos por seus contextos específicos e por suas redes soci-
ais, vivem o seu cotidiano, estabelecendo entre si códigos de comportamento, de linguagem e
jeitos de ser, oriundos também do seu contexto religioso. Por isso é tão importante saber o que
é dito e não só mostrar quem fala com quem. Esta necessidade de saber e não só de mostrar
também precisa ser aplicada à religião. Pela histórica opressão e supressão sofridas pelas mu-
lheres em suas vidas, infere-se que os códigos religiosos foram formatados por homens, foram
dit(ad)os por homens muito mais do que estabelecidos pelas mulheres. As mulheres os assu-
miram para si, os assumiram como se fossem sua própria experiência.

As mulheres alemãs imigrantes movem-se sobre e a partir de suas convicções de fé, de


sua religiosidade. A partir da Bíblia e da teologia, cria-se a necessária justificativa para que
essas mulheres continuem com sua visão bipolar de mundo, sem lhes propor um rompimento.
E a religião cala fundo; mais até do que os sentidos construídos socialmente e mais do que a
naturalização destes sentidos.

A religião é que carrega a natureza e a essência do ser mulher, do feminino, e por isso
é tão mais complexo romper, soltar, mudar. As mulheres alemãs imigrantes vêm imbuídas de
uma profunda religiosidade, recebem e assumem a tarefa de passá-la aos/às filhos/as. Então,
além de mães da nação, de trabalhadeiras e de guardiãs da cultura, são, também, as propulso-
ras da fé cristã.

108
EXTRA CLASSE, Entrevista, p. 6. O livro mencionado de Fritjof Capra “[...] tenta integrar as ciências bio-
lógicas com o cognitivismo e as ciências sociais.”, procurando encontrar um “[...] ponto comum entre estas
três áreas [...]”. E o ponto comum é a rede.
50

Os movimentos que as mulheres empreendem enquanto mulheres cristãs estão inti-


mamente ligados a suas vidas como esposas, mães e donas de casa. Manter o casamento está-
vel, o lar tranqüilo e harmonioso, a educação dos/das filhos/as com o objetivo de torná-los a-
dultos piedosos, honestos e trabalhadores, são modos de ser mulher, de organizar e manter a
vida cotidiana dentro de princípios cristãos.

Este ideal de mulher e de família é pautado pela religião e teologia cristã e patriarcal,
ensinada e pregada nos púlpitos e igrejas. As opções das mulheres em relação à sua vida de fé
são apontadas somente através da suspeita. A religião é tão normativa que esconde subjetivi-
dades teológicas. Suspeito que, por trás das convicções de fé nascidas e experimentadas den-
tro da religião cristã patriarcal, as mulheres alemãs imigrantes tenham criado possibilidades
de viver sua religiosidade de modo autônomo, a partir das experiências de seus cotidianos,
implicando, por exemplo, no movimento de abençoar os parentes através das cartas que es-
creviam.

Ivone Gebara analisa a inferência do religioso na vida das mulheres a partir do exem-
plo da “teologia da vida religiosa”. Ela afirma que esta teologia parte da realidade masculina.
O voto de castidade, de pobreza e de obediência nasceu da necessidade masculina de aproxi-
mar-se do evangelho de Jesus. Os homens, sentindo o peso da corrupção através “do poder,
do ter e do prazer” e, com isso, distanciando-se da vida cristã, quiseram restaurá-la, ao criar
“projetos de vida religiosa”, que incluíam justamente os votos acima mencionados.109 Para e-
les a restauração acontecera. E para as mulheres?

As mulheres, por sua vez, para fugirem ao controle masculino exercido na família pelo
pai, pelo irmão e/ou pelo marido, optaram pela vida religiosa, lá assumindo como suas as ex-
periências oriundas novamente de homens e de suas realidades. Tanto em casa como no con-
vento, o poder, o ter e o prazer não eram extensivos a elas. Aqui, Gebara faz uma ressalva ao
afirmar que as mulheres, como “reprodutoras da tradição”, assumiam o poder hierárquico e de
exclusão enquanto diretoras nos conventos, por exemplo.110 O poder nos moldes masculinos
chegou a elas.

Continua Tânia Quintaneiro:

109
Ivone GEBARA, Rompendo o silêncio, p. 154.
110
Ibid., p. 154.
51

[...] o rigoroso controle sobre as mulheres, fruto, em parte, da devassidão dos homens fora
de casa e de sua desconfiança dentro dela, é observado em todas as camadas da socieda-
de, assim, “brancos, mulatos e pretos são iguais; cada um trata de fechar sua mulher a sete
chaves a fim de poder gozar mais livremente suas paixões” [...] Emparedadas, privadas do
relacionamento livre com o mundo, aqui as mulheres mostravam-se tímidas e ariscas, o-
primidas pelo dever de preservar sua honra e, por extensão, a de seus guardiães. E ai da-
quelas que se recusassem a obedecer a pais e maridos!... os recolhimentos dos conventos
mantinham sempre as portas abertas para quem tivesse desafiado o interdito.111
A religião tornou-se e permaneceu um código normatizador para as mulheres pois, se-
gundo feministas mencionadas por Fiorenza:

[...] a religião bíblica (e a teologia) é sexista no seu cerne. Não pode ser recuperada para
as mulheres, uma vez que ignora as experiências das mulheres, fala da divindade em ter-
mos masculinos, legitima posições de submissão e impotência das mulheres, e promove a
dominação e a violência dos varões contra as mulheres.112
As mulheres reproduzem e perpetuam, ao assumirem experiências masculinas, todo o
cabedal de instruções patriarcais, recebidas através de uma sociedade baseada na ideologia
normativa androcêntrica113. Religião, cultura e sociedade se constroem simultaneamente, as-
sim, “os ensinamentos e normas católicos [bem como ensinamentos e normas religiosas de
forma geral] se encontram amalgamados à cultura, transcendem seu espaço meramente religi-
oso para converter-se em valores comuns da cultura brasileira.”114 As experiências religiosas
masculinas tornaram-se parte da cultura social brasileira e, com isso, da vida das mulheres.

Mas elas não são somente vítimas de um discurso dominante e/ou agentes manipula-
das por seus modelos masculinos. Justamente por estarem imbuídas de poder, elas, segundo
palavras de Rosemary R. Ruether, “Também colaboraram com o sexismo na violência lateral
para consigo mesmas e outras mulheres.”115 Aqui é importante lembrar do conceito de rom-
pimento, no sentido de romper com dicotomias e visões bipolares existentes. “Surge [...] a
importância de enfoques que permitam superar a dicotomia entre a vitimização ou os sucessos
femininos, buscando-se visualizar toda a complexidade de sua atuação.”116

111
Tania QUINTANEIRO, Retratos de mulher, p. 41. O grifo é meu.
112
E. S. FIORENZA, op.cit., p. 15.
113
Androcentrismo refere-se a uma visão centrada no homem. Conseqüentemente, a conditio humana é igualada
às necessidades de vida dos homens. O homem torna-se modelo para tudo o que é humano. O preconceito
androcêntrico invisibiliza a vida de mulheres. Androcentrismo refere-se também a uma estrutura de pensa-
mento, que é característica da organização da sociedade patriarcal. Ina PRAETORIUS, Androzentrismus, p.
17-18.
114
Yury Puello OROZCO, Mulheres, Aids e religião, p. 23.
115
Rosemary R. RUETHER, Sexismo e religião, p. 139.
116
R. SOIHET, op. cit., p. 62.
52

A vitimização das mulheres é um discurso masculino e hierárquico, um discurso con-


trolador e normatizador, pois tira certo poder das mãos das mulheres. Há que se reconhecer
que a mulher foi esquecida e silenciada ao longo da história, que foi moldada para dentro da
“sua” religião, para dentro da Igreja, para ser e viver o que a religião/Igreja queria. Vitimizá-
la é colocar a mulher como frágil e sem poder, como emotiva, como incapaz, como subalter-
na em relação ao homem, o herói da história, o ser que pode aproximar-se muito mais do sa-
grado do que a mulher.

As mulheres repetem e perpetuam gestos, códigos e atitudes de submissão e opressão


religiosa. Como guardiãs da religião, elaboram seus ensinamentos religiosos para a família, a
partir de modelos construídos sobre séculos de normatizações e regras específicas, que cabe à
mulher e, por extensão, ao filho e à filha, seguir. Há alguma liberdade ou criatividade em ser
guardiã religiosa? Creio que não. Há, por parte das mulheres, um profundo respeito pelo papel
que lhes é dado viver. Mas o vivem dentro das concepções masculinas de religião e de teolo-
gia.

A experiência religiosa de mulheres alemãs imigrantes também vem impregnada da


teologia masculina. Toda a simbologia religiosa cristã é prioritariamente masculina. “Convém
imitar a vida de Jesus, dos apóstolos, e ser perfeito como Deus Pai.”117 O jornal SB, em janei-
ro de 1890, publica uma fala a respeito do batismo, através do qual se estabelece uma relação
com o Deus da revelação, que “nos fez suas crianças; nós o louvamos, nós o honramos como
Pai.”118

Um mês antes, o mesmo jornal publica uma confissão de fé: “Quem é Jesus Cristo? O
nosso Salvador, o nosso Juiz, o nosso Redentor; o nosso irmão e filho de Deus, em cujas mãos
está o nosso eterno destino.”119 E na história de uma criança surda , que foi ao bosque apren-

117
I. GEBARA, op. cit., p. 156.
118
SB, n.33, 19.01.1890, p. 1. “Dieser Religion gehören wir seit unsrer Taufe an; durch dieselbe sind wir mit
dem Gott der Offenbarung in Verbindung getreten; er hat uns zu seinen Kindern aufgenommen; wir haben
ihn gelobt, ihn als Vater zu ehren.”
119
SB, n.30, 29.12.1889, p. 1. “Wer ist Jesus Christus? Unser Heiland, unser Richter, unser Seligmacher; unser
Bruder und der Sohn Gottes, in dessen Hand unser ewiges Geschick liegt.”
53

der sobre a vida e sobre Deus, o jornal afirma a importância da criança saber que existe um
Pai no céu e que todos os caminhos, também os escuros e tortuosos, levam a Ele.120

Alguns versos no SB também mencionam uma imagem masculina de Deus, ao retratá-


lo como “[...] Senhor em todo lugar [...]”.121 E o último verso da poesia confirma a imagem de
Pai: “Confiem firmemente em Deus, o Pai”.122 Também o jornal DA, de janeiro de 1884, têm
frases do tipo: “O teu Pai no céu ainda te ama, mesmo quando te perdes para longe dele.”123

Ver Deus como pai não é o problema. Ver Deus somente como pai é restringi-lo a uma
imagem aparentemente única e verdadeira. Deus mesmo cria e recria a diversidade, dando-a
de presente a cada ser humano que nasce. A simbologia e o discurso cristãos também podem
(e devem) ter outros rostos, a fim de possibilitar o rompimento do androcêntrico como norma-
tivo e diversificar o senso comum. O discurso cristão que acredita em uma essência e em uma
natureza feminina, fundamenta muitas teologias e experiências religiosas. Para Maria José F.
Rosado Nunes, esse discurso “[...] produz e reproduz desigualdades de gênero, designando à
população feminina um lugar social, e religioso, de subordinação.”124

A mulher vive sua fé como resistência, não como liberdade ou como criatividade. Ela
não é livre para expressar sua opinião, a sua criatividade é podada pela obediência. A sua reli-
gião é resistência e luta, pois seu cotidiano não difere muito disso: resistir e lutar são sinôni-
mos de trabalhar.

A vida de fé das mulheres como resistência, como luta, como trabalho, mantém uma
estrutura patriarcal que necessita ser rompida desconstruída. Resistir é criativo e libertador no
momento em que as fissuras e brechas surgidas do rompimento, re-significam o fazer teológi-
co das mulheres. Mesmo se a presença da instituição igreja não foi tão marcante, tão concreta,
na vida das mulheres alemãs imigrantes quando de sua chegada ao Brasil, a presença dos dis-
cursos provindos desta instituição organizaram e normatizaram o dia-a-dia delas.

120
SB, n.23, 14.12.1890, p. 4. “So führte Gott das taubstumme Kind durch den großen Wald dahin, wo es zu
einem neuen Leben erwachen, lernen und erfahren sollte, daß es einen Vater im Himmel giebt und daß alle
dunklen Wege sein Kind nur zu Ihm führen sollen.”
121
“Gott ist der Herr an jedem Orte.” Além da imagem masculina “Senhor”, esta palavra explicita uma hierar-
quia, senhor-subordinado/a.
122
“Auf Gott, den Vater, fest vertrau’t!”
123
DA. Ano 22. Langenberg : Pastor Griesemann, janeiro 1884. p. 7. “Auch dein Vater im Himmel hat dich
noch lieb, selbst wenn du dich weit Von ihm verirrt hast.”
124
Maria José F. R. NUNES, Autonomia das mulheres..., p. 68.
54

Pedro Nava escreve: “Não se pode ser contra a ordem estabelecida sem ser contra seu
principal apoio – a religião.”125 Domesticar implica normatizar, colocar em ordem, criar uma
ordem das coisas a tal ponto que não é possível viver sem ela; somente viver nela e com ela.
A religião organiza mundos, cotidianos e experiências. As mulheres tiveram seus corpos do-
mesticados e seus mundos ordenados pela religião. Assumir seus papéis não lhes era difícil,
somente seus olhos as traíam. Eles eram a imagem do surdo grito pela liberdade de expressão,
seja de corpos, de papéis sociais, de experiências religiosas.

É através da religião que o homem normatiza, dita e controla a vida (tão misteriosa) da
mulher. Parto e menstruação são tabus perto dos elementos sagrados. A impureza-mulher pre-
cisa constantemente ser afastada, seguir regras de purificação constantes. Há pouco tempo a
mulher ganhou uma alma; pessoas indígenas, crianças e mulheres eram tidas como deforma-
das (colocadas em outra fôrma) pela natureza e, por isso, não mereciam alçar as alturas da
morada do divino (ainda na idéia de que o céu é a única morada de Deus e que este
céu/morada, fica no alto, longe, distante, de difícil acesso às pessoas comuns). Este caminho
ao céu somente um homem com alma poderia fazer.

O rosto, o cabelo, o corpo da mulher precisa ser/estar escondido, pois poderia tentar a
pureza de um homem religioso. As mulheres são ouvintes dos homens, os quais pregam e di-
zem a religião. E nesta condição de ouvintes geram desconforto, caso não venham a público

devidamente ocultadas por suas vestimentas e por sua condição de inferioridade126. Este ato de
ocultar também está presente quando mulheres prendem os seus cabelos em compridos “rabos
de cavalo” trançados ou em redondos coques; quando usam golas altas, mangas compridas e
saias longas.

As mulheres alemãs imigrantes são ouvintes. E transmissoras. Com fervor e piedade,


transmitem a seus filhos e filhas a religião que recebem. O SB registra: “Quando eu, com do-

125
Pedro NAVA, Baú de ossos, p. 101.
126
Uta Ranke-Heinemann descreve esta condição de inferioridade imposta às mulheres, ao falar dos teólogos ca-
tólicos e dos ensinamentos da Igreja, os quais afirmam Jesus como alguém que “[...] não teria sentido prazer
algum durante todo o processo de redenção.” Ela afirma: “A hostilidade de Jesus ao prazer também teve con-
seqüências para a imagem que os teólogos faziam das demais mulheres [de todas as outras, além de Maria,
mãe de Jesus]. A imagem que oferecem é de inferioridade. Só servem para ter filhos, a menos que se dedi-
quem à auto-santificação, como fazem as virgens.” Uta RANKE-HEINEMANN. Eunucos pelo reino de
Deus, p. 17.
55

ze anos, viajei para a escola superior, a minha piedosa mãe colocara a sua própria Bíblia na
minha bagagem.”127

Este mesmo jornal procura auxiliar pais e mães a educar filhos e filhas. Para chamar a
atenção, ele expõe um conjunto de 14 regras que, se obedecidas, irão, efetivamente, des-
educar as crianças. No que se refere à religião, a terceira regra afirma que mandamentos a se-
rem obedecidos pelas crianças, devem ser deixados de lado pelas pessoas adultas; ou, as cri-
anças devem ir à igreja, mas os adultos não precisam preocupar-se com isso.128

As escolas exerceram grande influência na vida das famílias alemãs imigrantes. Junto
com as igrejas, elas mantinham vivas as lembranças da pátria e davam unidade a um grupo ét-
nico disperso desde a origem. Através do ensino da língua alemã, através das canções, através
do conteúdo das aulas, mantinha-se a germanidade e criava-se uma forma teuto-brasileira de
vivê-la129. Também o fervor religioso encontrava ali um espaço de aprendizado. Escreve Mar-
tin Dreher, na apresentação ao livro de Erica Sarlet: “Na escola, a criança estudava o Cate-
cismo Menor de Lutero, aprendia as histórias bíblicas, contidas no Religionsbuch e cantava os
hinos do Hinário. Durante muito tempo, Escola e Igreja formaram uma unidade insepará-
vel.”130

E o DA acrescenta:

Da carta de um professor [...] nós partilhamos o seguinte: ‘Merecem alta consideração os


pais aqui do país, o qual não conhece a obrigatoriedade escolar. Eles mantêm uma escola
alemã a altos custos, a fim de não deixar as crianças sem formação; e uma evangélica, a
fim de salvá-las do cetro de Roma, que tem aqui um grande poder através dos jesuítas.131
Há algumas mulheres que negam e se opõem a qualquer tipo de influência religiosa
para si e para os filhos. Assim nos relata o DA:

127
SB. Ano 3. São Leopoldo : Wilhelm Rotermund, 10.08.1890. p. 4. “Als ich meinem zwölften Jahre nach der
Hochschule abreiste, legte meine fromme Mutter ihre eigene BIbid., el in meinen Koffer.”
128
Para a lista completa destas regras, SB. Ano 11. São Leopoldo : Wilhelm Rotermund, 07.11.1897. p. 75s.
129
Veja discussão mais detalhada acerca desta “forma teuto-brasileira de viver” no capítulo três, onde trato da
questão da mulher alemã imigrante.
130
Erica Dorotéa SARLET, “... ainda hoje plantaria minha macieira...”, p. 7.
131
DA. Ano 22, Langenberg : Pastor Griesemann, janeiro 1884. p. 4-5. “Aus dem Briefe des Lehrers [...] teilen
wir Folgendes mit: Es verdient hohe Anerkennung, daß die Eltern hier in einem Lande, das keinen
Schulzwang kennt, mit großen Kosten eine deutsche Schule unterhalten, um ihre Kinder nicht verwälschen
zu lassen, und eine evangelische, um sie vor dem Zepter Roms zu retten, das durch die Jesuiten hier eine
große Macht hat.”
56

Em uma de nossas grandes cidades na América, vivia uma mãe que tinha somente um fi-
lho; ela tinha uma aversão em relação à fé cristã e mantinha o filho medrosamente à dis-
132
tância de todo tipo de influência religiosa.
De onde provém e porque existe esta aversão, não é explicitado. De qualquer forma
não é possível afirmar que a religião, no caso a cristã, seja um ponto de consenso geral,
sendo aceita e transmitida inquestionavelmente pelas mulheres. Como será que esta mãe
reagiria ao ler as 14 regras mencionadas acima?

Poder mostrar o rosto elucida o oculto, desvela identidades, encara realidades, trans-
forma atualidades. Os rostos exprimem muito das experiências e do cotidiano de mulheres e
homens. No caso das pessoas imigrantes, são expressões cansadas, perdidas, com o olhar fito.
O olhar grave de quem sofreu muito, não só fisicamente, devido ao cansaço do duro trabalho
de abrir uma floresta a machadadas, mas emocionalmente, devido às perdas e aos adeuses da-
dos e nunca esquecidos. São olhos de imigrante. São os olhos da Käthe. Ela mesma conta:

Carne de porco e torradas velhas, café preto e carne de gado seca, as tempestades cortan-
tes da pradaria, o sol queimando, saudades de casa, medo dos selvagens, febre, dores de
cabeça e coisas do tipo tiveram o seu efeito. Käthchen Malcolm estava irreconhecível; ela
era uma múmia, com a pele amarela e seca e com grandes, penetrantes e fundos olhos.133
Dentro dos espaços normatizados, a mulher não deixou de viver, de sentir, de amar, de
construir. Na camisa-de-força-religião-Igreja, a mulher aprendeu a resistir, justamente para
que pudesse viver e respirar. A sua liberdade e criatividade não estão necessariamente em ter
ensinado seus/suas filhos/as as histórias bíblicas, mas em querer fazê-lo, na hora e no espaço
que considerar apropriado, apesar da (o)pressão vinda de fora.

A alegria ao encontrar tempo para fazer as orações no seu livro de orações, não está
calcada no alívio de ter organizado o dia e suas tarefas (mil) de tal forma que agora pudesse
sentar sobre a cama de casal e orar. Sua alegria está em ter escapado do cotidiano e ter conse-
guido, dentro das normas e regras estabelecidas, ser feliz, ser ela mesma. Ela ora, mas ela
também pode simplesmente despir-se de suas vestes sociais e ter procurado a si mesma, seus

132
DA. Ano 22. Langenberg: P. Griesemann, fevereiro 1884. p. 12. “In einer unserer großen Städte in Amerika
lebte eine Mutter, die nur einen einzigen Sohn hatte; sie hatte gegen den christl. Glauben eine bittere
Abneigung und hielt ihren Sohn von allen religiösen Einflüssen ängstlich fern.”
133
DA. Ano 22. Langenberg: P. Griesemann, março 1883, p. 20. “Schweinefleisch und alter Zwieback,
schwarzer Kaffee und getrocknetes Rindfleisch, die schneidenden Stürme der Prärie, die brennende Sonne,
Heimweh, Angst vor den Wilden, Fieber, Kopfschmerzen u. dergl. Mehr hatten ihre Wirkung gethan.
Käthchen Malcolm war nicht wieder zu erkennen; sie war eine Mumie mit gelber, trockner Haut und großen,
stechenden, hohlen Augen.” O grifo é meu.
57

sonhos, anseios e sua felicidade neste momento furtivo do seu dia-a-dia. Assim ela se refaz,
este é seu espaço de poder e de ação por si mesma, para si mesma e não para outros. São estes
os momentos construtivos e de vivência que vão muito além do que o duro trabalho diário.
São os espaços re-significados.

Neste espaço para si mesma, os minutos fluem devagar e, liturgicamente, a mulher tira
da gaveta ou do seu baú de noiva, aquele caderno de poesias e recordações, dado por uma a-
miga antes do embarque no navio. A leitura das mesmas alimenta a saudade, dá certeza da
amizade e renova a esperança, fortalece o ânimo para um dia-a-dia extenuante.

As palavras de incentivo e de coragem, escritas pelos(as) amigos(as), foram certamente


reconfortantes ao chegar na “nova pátria”. Possivelmente, por isso, por ter um significado
tão especial, este álbum foi cuidadosamente guardado, talvez lido e relido entre as lides
do dia-a-dia.134
Creio que a religião pode ser pensada de forma não tradicional, a fim de abrir possibi-
lidades-outras de leituras para a religiosidade experimentada pelas mulheres alemãs imigran-
tes. A forma tradicional para mim seria, no contexto desta pesquisa, a oração, a ida à igreja, a
leitura da Bíblia e provavelmente tantas outras formas que caberiam dentro do termo tradicio-
nal e que não foram mencionadas aqui.

Nos jornais pesquisados, não há expressão própria da religiosidade das mulheres ale-
mãs imigrantes. Elas vivem a sua religiosidade em relação e para outros: para os filhos, para o
marido, para o pastor. Se, no entanto, a) mudarmos a visão tradicional para uma visão de sus-
peita, para uma hermenêutica da suspeita; b) se pensarmos a religião também como espiritua-
lidade de luta, de resistência, abrem-se condições para um olhar mais inclusivo e abrangente
de possibilidades da experiência de fé e da vida de fé destas mulheres.

Já a religiosidade expressa nas cartas, aponta para um Deus da bênção, onde as missi-
vistas invocam a bênção de Deus para seus familiares distantes. Aponta também para um
Deus que indica o caminho a ser seguido e que, mesmo nas horas ruins, é um Deus da confi-
ança, pois é ele que sabe o que está fazendo da vida de cada pessoa. Tudo é colocado nas
mãos de Deus.

Para as mulheres alemãs imigrantes, que expressam a sua religiosidade pelo que tra-
zem na bagagem, que eu denominei de tradicional, encontram nela e além dela, ou seja, na

134
Janine Gomes da SILVA, Saudades, expectativas..., p. 62.
58

espiritualidade de luta e resistência, um ato impulsionador, motivador e criador de sentido pa-


ra sua vida não muitas vezes fácil. Estas mulheres precisaram enfrentar situações de desacon-
chego, de dificuldade, de falta de dinheiro. Sentindo na própria pele e em seus corpos as agru-
ras, elas extrapolam o tradicional, resistindo, lutando e trabalhando para também sentirem,
nesta vida de migrantes, sinais de libertação. Uma visão de suspeita desestabiliza a religião
como um código normatizador, abrindo brechas para uma compreensão menos rígida, enqua-
drada e pronta da espiritualidade da mulher alemã imigrante, ressignificando-a.

Trago aqui a reflexão de Dom José Maria Pires sobre o “Deus da vida nas comunida-
des afro-americanas e caribenhas”. Esta reflexão mostra a presença e a revelação deste Deus
junto ao povo negro, ajudando-o a recuperar a sua identidade, tanto pessoal quanto comunitá-
ria.135 A procura por identidade também marca a vida das mulheres alemãs imigrantes; penso
aqui especialmente em sua identidade religiosa. Saber da presença de Deus no meio de suas
vidas não cria somente a fé, mas possibilita experimentar transcendência, forjando uma iden-
tidade e uma espiritualidade de luta e resistência, anunciando, assim, libertação.

O Deus da vida coloca nestas mulheres aquele segundo de insight, “[...] surgiu qual-
quer coisa como uma iluminação dentro de mim. Um insight, uma luz mesmo.”, como escreve
Lélia Almeida em seu romance.136 É aquele segundo do olhar para fora da rotina abnegada,
capacitando as mulheres a expressarem uma religiosidade desligada da constante doação ao
outro. É a luz que brilha através das fissuras e brechas da estrutura patriarcal, iluminando sub-
jetividades e criando a possibilidade de vivência a partir de suas convicções de fé.

7. O tripé esposa, dona-de-casa, mãe


7.1 Casamento: a esposa
Segundo Rambo, que analisa a situação da mulher alemã imigrante a partir de caracte-
rísticas e da organização social dos povos germânicos da Idade Antiga e Média, “O edifício
social dos povos germânicos tinha, no casamento, o seu fundamento.”137 A referência é o ca-
samento monogâmico indissolúvel. Mas não é somente nas tradições germânicas antigas e
medievais que se fundamenta esta concepção de casamento e nem mesmo o tripé social ba-

135
Dom José Maria PIRES, O Deus da vida..., p. 31.
136
Lélia ALMEIDA, Querido Arthur, p. 107.
137
Arthur Blásio RAMBO, Na sombra do carvalho, p. 47.
59

seia-se somente no legado deste povo. O que concebeu e o que sustenta a ambos é a estrutura
social patriarcal em que estão inseridos.

Para assegurar a tradição do casamento monogâmico e indissolúvel até o século XIX,


no caso desta pesquisa, a sociedade patriarcal elabora o discurso da esposa submissa e fiel,
modelo de mulher a ser seguido. Wilhelmine Buchholz publica em jornais algumas advertên-
cias para as jovens mulheres sobre casamento:

[...] as nossas jovens senhoras aprendem hoje tanto, que antigamente um professor pode-
ria se virar muito bem com tal conteúdo; [...] e se elas estão casadas com toda a sua for-
mação, logo o marido sente onde há dificuldades; e o seu bolso percebe que a esposa não
sabe como administrar a casa com pouco [...].138
A questão do casamento está intimamente ligada à administração da casa. Imgart
Grützmann, em sua pesquisa sobre almanaques em língua alemã, fala de uma imagem de mu-
lher que é transmitida através dos mesmos, na seção de administração do lar. “Basicamente
dedicada às leitoras, a rubrica constituía-se de um local que defendia as idéias de poupança,
frugalidade, limpeza, temperança e moderação, veiculando, desse modo, uma imagem de mu-
lher centrada nas virtudes consideradas femininas e domésticas.”139

Die Liebe geht durch den Magen – “O amor passa pelo estômago”140 é o que se costu-
mava dizer às moças casadoiras, a fim de que se sentissem animadas e motivadas a aprender a
arte de cozinhar bem como a lide doméstica que vem aí atrelada.

Segundo Peter Gay:

O homem [burguês] se situa no mundo feio e impiedoso dos negócios e da política; para
ele, gratificar suas ambições e procurar o lucro são coisas tão imperativas quanto satisfa-
zer a paixão afetuosa. A mulher, por sua vez, guardiã do lar e da pureza familiar, tem o
tempo e o dever, nada menos que a missão sagrada, de pôr o amor em primeiro lugar.141
Com esta fala de Peter Gay, ficam expressas quatro hipóteses com as quais venho tra-
balhando: 1) o homem é um ser público; 2) a mulher é um ser privado, no triplo sentido da pa-
lavra: privado como destituído de algo/alguma coisa, privado como antônimo de público e

138
DA. Ano 21, Langenberg : Pastor Griesemann, outubro 1883. p. 77-78. O editor do DA retirou este artigo do
periódico Chr. Botsch. (Mensageiro Cristão). “Unsere jungen Damen lernen heute ja so viel, daß früher ein
Professor ganz gut damit hätte auskommen können; [...] und sind sie mit all ihrer Bildung verheiratet, dann
spürt der Mann gar bald, wo es hapert; und sein Geldbeutel merkt, daß die Gattin es nicht versteht, mit
wenigem hauszuhalten [...].” Veja o texto traduzido na íntegra no capítulo 4, As histórias de vida/Textos dos
jornais nos quais as mulheres alemãs falam ou delas é falado/nº 5. p. 31ss.
139
Imgart GRÜTZMANN, Leituras sob o céu..., p. 189.
140
Lissi Iria Bender AZAMBUJA, Forno e fogão, p. 19.
141
Peter GAY, A experiência burguesa..., p. 55.
60

privado por ser posse de alguém. A mulher é um ser da casa, do lar, de propriedade particular;
3) a mulher é responsável pela harmonia dentro deste lar e entre seus/suas moradores/as, ou
seja, filhos/as, marido, eventualmente outros parentes e empregados/as; 4) o lugar da mulher,
a casa, o privado, e sua atividade e responsabilidade dentro dele são uma missão sagrada. É o
divino que justifica e explica a situação em que a mulher se encontra.

O homem, enquanto um ser público, é colocado como um ser em evidência, em desta-


que, em movimento, tomando decisões, emitindo e ouvindo opiniões, coletando informações.

[...] o homem público desempenha um papel importante e reconhecido. Mais ou menos


célebre, participa do poder. [...] O homem público, sujeito eminente da cidade, deve en-
carnar a honra e a virtude142. [...] Público tem aqui dois sentidos que parcialmente se re-
cobrem. A “esfera pública”, por oposição à esfera privada, designa o conjunto, jurídico ou
consuetudinário, dos direitos e dos deveres que delineiam uma cidadania; mas também os
laços que tecem e que fazem a opinião pública.143
Para a mulher alemã imigrante o homem como ser público significa submissão às de-
cisões do marido. Gisela Lermen apresenta relatos das experiências de mulheres que emigra-
ram. Um destes relatos mostra a profundidade da submissão e do silêncio da mulher e a liber-
dade autoritária do marido.

Ao longo de muitas visitas, Walfrieda [Hollerbach Marx] conseguiu juntar, trecho por
trecho, as reminiscências da avó: “[...] Quando todos [os homens] se retiraram, ouvi mi-
nha mãe [a bisavó de Walfrieda], que sempre se calava, dizer: ‘Não estou gostando disto
tudo. É melhor pensar, é preciso indagar e ver. Não estou gostando desta história de mu-
dar tão longe, para lugar que ninguém conhece [...].’ E meu pai respondeu: ‘Já calculamos
e conversamos muito, nós homens, e achamos que é bom. Decidimos ir. [...] Amanhã co-
meçamos os preparos.’”144
A missão sagrada de ser esposa, mãe e dona-de-casa cala fundo: por ser uma questão
transcendente e por divinizar certas atitudes, gestos e jeitos de ser da mulher. A divinização de
seu papel social já vem desde a infância: ela é educada à missão do amor, da doação. O ingre-
diente sagrado/transcendente grava mais profundamente em seu corpo-alma-mente o destino a
que veio: ser uma boa esposa, mãe e dona-de-casa, sempre amorosa e pronta para sacrificar-se
pelo bem, pela tranqüilidade, pela harmonia e pela pureza do lar. E mais: a mulher preci-
sa/deve também preservar sempre sua própria pureza e recato, agora como mulher casada, an-
tes, como solteira.

142
É interessante observar que a mulher, enquanto mãe, deve ensinar aos homens, seus filhos, os valores da hon-
ra e da virtude no lar desde o berço!
143
Michelle PERROT, Mulheres públicas, p. 7,8.
144
Gisela LERMEN, Mulheres e igreja..., p. 120.
61

Segundo Wilhelmine Buchholz, o casamento ideal e feliz é conseguido através da boa


cozinha, da boa comida, da mulher que sabe servir uma boa mesa sem muitos gastos, que sabe
cuidar da alimentação em uma festa muito mais do que cuida do entretenimento das pessoas.

O casamento não é uma opção, é uma imposição. Para fugir desta linearidade, pode-se
perguntar: o que mais há para as mulheres além do casamento e de uma educação voltada para
ele e para a sua manutenção? O que mais há além do tripé esposa-dona-de-casa-mãe e que
sustente a imagem da mulher alemã imigrante no séc. XIX da mesma forma? Fazem-se neces-
sários óculos hermenêuticos ajustados às experiências cotidianas das pessoas. Os olhares ana-
líticos sobre o passado, re-significando-o, é que poderão historiografar a vida das mulheres
para além de um casamento.

Roberto Zub Kurylowicz compartilha de uma outra concepção de casamento a partir


de suas pesquisas com a imigração eslava no Paraguai. Segundo ele, o matrimônio restrito ao
grupo étnico-cultural, deixou de ser uma censura, pois sempre que existe mais de uma etnia
compartilhando um mesmo espaço, a cultura e a etnicidade serão suscetíveis ao estabeleci-
mento de casais interétnicos.145

Pode-se dizer, porém, que houve grande probabilidade de terem existido conflitos e
tensões entre as famílias antes de ser aceito o casamento interétnico (e até inter-religioso). I-
magino que também para a comunidade eslava no Paraguai, olhava-se primeiramente para um
casamento entre as próprias famílias. E suspeito que o casamento era monogâmico e indisso-
lúvel, mesmo depois entre os casais interétnicos.

7.2 A cozinha e a alimentação: a dona-de-casa


A cozinha é o lugar social da mulher dentro da casa. Ali ela organiza o seu mundo e o
de sua família. Dali sai o sustento e a alimentação de cada pessoa. Ali “reinava tranqüilidade”,
como intitula Lissi Bender Azambuja uma parte do livro de receitas146. Ela continua:

A cozinha não era apenas um espaço para trabalhos domésticos, mas era principalmente o
lugar mais aconchegante do lar. Lá a família gostava de se reunir à noite para conversar,
ler, remendar, bordar e cantar na companhia de um chimarrão.147

145
Roberto ZUB KURYLOWICZ, Tierra, trabajo y religión, p. 199.
146
L. I. B. AZAMBUJA, Forno e fogão, p. 13.
147
Ibid., p. 31.
62

A cozinha é o coração do lar, lugar central de atuação das mulheres. Ali eram ensina-
dos os modos de comer e de cuidar da casa, pois é a partir da cozinha que irradia o fluxo do
trabalho doméstico, espalhando-se e espelhando-se pela casa toda. Ali criam-se hábitos ali-
mentares e conquistam-se as moças para a arte de cozinhar.

Já Wilhelm Rotermund embutiu esta idéia em um de seus textos:

O estômago é o ponto central do ser humano e, em geral, de todo o mundo. Quando ele
não é atendido, há mau humor. Christian achou que a comida de sua mãe era muito me-
lhor, e Sulmire percebeu que a vida não é tão fácil assim quanto parece. Com o tempo,
porém, as coisas melhoraram um pouco, mas a cozinha, o lugar onde a dona de casa ale-
mã comprova seus dotes e do qual se orgulha, ficou sendo para Sulmire o lugar mais des-
confortável da casa; [...]148
Quando a mulher se sente deslocada ou sem dotes suficientes, a cozinha deixa de ser
um lugar aconchegante, para ser um de tortura. Existe o ideal da dona-de-casa perfeita, que
sabe cozinhar bem, até quando há poucos recursos. Este ideal impregnou-se na imagem da
mulher alemã imigrante e passou a ser um desconforto para aquela que não consegue alcançá-
lo.

Zub afirma que a cultura de um povo se compõe da família, da moradia/arquitetura, da


língua e da culinária. Ele denomina estes itens de variáveis, as quais dão a perceber a continu-
idade e/ou mudança de um determinado povo.149 Os colonos se adaptam e modificam suas
formas de ser (as variáveis culturais), ao ponto de suas particularidades originais desaparece-
rem lentamente e darem lugar a um ser culturalmente diferente.150

Quero destacar aqui uma das variáveis: a culinária. Para Zub, a culinária é uma tradi-
ção, marcada pela re-criação como conseqüência da imigração, levando a maleabilizar a etni-
cidade.151 É o pertencimento étnico-cultural que dá espaço a mudanças e descontinuidades,
criando outros pertencimentos, também étnico-culturais. Segundo Zub, a tradição alimentar é
um meio para estudar a herança cultural eslava e suas modificações a partir do encontro com a
culinária paraguaia.152

148
Wilhelm ROTERMUND, Os dois vizinhos..., p. 52. O grifo é meu.
149
Roberto ZUB KURYLOWICZ, Tierra, trabajo y religión, p. 190.
150
Ibid., p. 189.
151
Ibid., p. 200.
152
Ibid., p. 217.
63

No século XIX, para a mulher alemã imigrante (e imagino para a mulher eslava imi-
grante também) um lugar que deixou marcas, que estabeleceu relações e que invadiu a cultura
e a tradição étnica, foi a cozinha. A culinária se cria e se desenvolve neste espaço de trocas de
saberes e fazeres.

Observar a localização da cozinha na casa também é relevante, pois esta recebe um lu-
gar de esmero, apesar de encontrar-se muitas vezes nos fundos da casa. A necessidade do uso
do forno à lenha, da água e da horta, podem ter influenciado nesta localização. Também a i-
déia da mulher em ficar “protegida” dentro do lar leva ao uso dos fundos da casa como local
de sua maior permanência.

Cora Coralina, em seu livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, conta da vida
de mulheres e remete à situação de deixar a mulher dentro de casa, longe das vistas de “todo
mundo”, perto de seus afazeres domésticos, da sua faina diária. O poema é Do beco da Vila
Rica153 :

[...] Estas e outras visitas se faziam


passando pelo portão.
Andar pelas ruas. Atravessar pontes e largos,
as moças daquele tempo eram muito acanhadas.
Tinham vergonha de ser vistas de “todo mundo”...

“Todo mundo...”
Expressão pejorativa muito expressiva.
Muito goiana. Muito Brasil
colonial, imperial, republicano.

[...] Mulheres entrarem pelo portão.


Saírem pelo portão.
Darem voltas, passarem por detrás.
Evitarem as ruas do centro,
serem vistas de todo mundo. [...]

Quero citar o diário de Helena Morley154, em um diálogo com sua mãe a respeito da
mulher que gosta de passear (que era o caso de Helena) e com isso tornar-se “mulher de má
fama”:

153
Cora CORALINA, Poemas dos becos de Goiás..., p. 71-72.
154
Helena Morley escreveu um diário no final do século XIX. Ela morava em Diamantina/MG e nascera em
1880. Faleceu em 1970, sendo que seu diário acompanha sua vida dos anos de 1893 a 1895, dos seus treze
64

Poucas são as vezes que entro em casa que mamãe não repita o verso:
A mulher e a galinha
Nunca devem passear;
A galinha bicho come,
A mulher dá que falar.
E depois diz:

Era por minha mãe nos repetir sempre este conselho, que fomos umas moças tão recata-
das. Vinham rapazes de longe nos pedir em casamento pela nossa fama de moças casei-
ras. Eu sempre respondo: “As senhoras eram caseiras porque moravam na Lomba. E de-
pois, a fama foi o caldeirão de diamantes que vovô encontrou. Moça caseira, a senhora
não vê que não pode ter fama? Como? Se ninguém a vê?155
Para a pesquisa sobre as mulheres alemãs imigrantes, a culinária passa a ser, assim,
um aspecto no estudo de seu pertencimento étnico-cultural. O cotidiano da cozinha e do pre-
paro dos alimentos prescinde de conhecimentos geracionais, agora adaptados ou em fase de
adaptação e mudança ao novo contexto étnico-cultural. É bom lembrar aqui, por exemplo, do
uso da farinha de milho e de mandioca na feitura dos pães, ao invés da conhecida farinha de
trigo.

Alguns alimentos do dia-a-dia eram: arroz, ovos, feijão, legumes, batatas, mandioca.
Também havia leite e nata. Carne, frango, massas, sobremesa de sagu com creme de leite e-
ram os alimentos do final-de-semana, especialmente do domingo. Em dias festivos havia cuca
ou bolo de mel ou um bolo mármore (feito com dois tipos de massa, a de chocolate e a de
baunilha) ou biscoitos amanteigados. “Quando se abatia porco, havia sempre lingüiça, morci-
lha, queijo de porco e outras delícias no café da manhã.”156 Para a janta, costumava-se fazer
uma sopa de legumes com alguma carne ou frango. Pão também era servido. Repolho e pepi-
no eram colocados na conserva.

Na época de Natal a alimentação ganhava um toque e um colorido especiais. “As cri-


anças participavam da confecção das delícias natalinas.”157 Era a época de fazer os biscoitos
de Natal e de se preparar para a comemoração em família durante todo o dia. Também a Pás-
coa trazia consigo suas próprias tradições. Amendoins eram açucarados e colocados dentro de
cascas secas de ovos de galinha, ganso ou pato. Também havia os ovos açucarados.

aos quinze anos. Seu diário foi levado ao cinema brasileiro, em 2005, com o título de Vida de menina, sendo
o filme dirigido por Helena Solberg.
155
Helena MORLEY, Minha vida de menina, p. 186-187. Este diálogo data de 18.03.1895.
156
L. I. B. AZAMBUJA, op. cit., p. 25.
157
Ibid., p. 13.
65

7.3 A mulher dentro de casa: maternidade


Meninas não têm porque serem eruditas, elas não nasceram para estudar. [...] Para que serve uma mu-
lher erudita? Uma cachopa não deve meter o nariz em coisas de homens, ela já tem o suficiente ao realizar suas
próprias obrigações. [...] A mulher, assim se diz, não é capaz de produzir algo valioso na erudição.158

Uma das funções bem demarcadas, delineadas para as mulheres alemãs imigrantes é a
de ser mãe. Para isso, ela é educada pelas próprias mães e passa este legado, por sua vez, para
suas filhas. Uma mulher só pode sentir-se completa, competente, perfeita e no lugar certo,
quando é mãe. E não basta ser mãe. É preciso educar filhos e filhas em amor, em oração e
com muita abnegação. O sacrifício e a passividade fazem parte do cotidiano da mulher-mãe.
Ser mãe é destino e função de toda e qualquer mulher.

Peter Gay traz uma citação de Byron, em que este afirma: “O amor [...] é toda a exis-
tência da mulher”159. O amor já começa envolvendo toda a questão da maternidade, passando
pelo casamento, pelo serviço doméstico, pelo sacrifício. Maternidade-amor-doação é outro
tripé, concomitante e paralelo ao tripé esposa-dona-de-casa-mãe, e que também dá sustento à
imagem da mulher no séc. XIX, seja ela imigrante, burguesa ou da classe popular. Não só a
imagem da mulher é calcada por este tripé, mas a própria identidade da mulher. Ela se identi-
fica com este jeito de ser mulher, com este discurso sobre a mulher e por isso também o de-
fende, o aceita e convive com ele.

Helena Morley, em seu diário, fala assim de sua mãe e de suas tias, mostrando a expe-
riência vivida em Diamantina/MG:

Todas as minhas tias só se ocupam dos maridos e dos filhos. A pessoa delas não vale na-
da. Nunca vi mamãe ou qualquer de minhas tias comer uma coisa antes dos maridos e dos
filhos. Se alguma coisa na mesa é pouca, elas nem sabem o gosto.160
Maria Luiza Renaux caracteriza assim a imagem da mulher alemã imigrante:

Foi alto o preço pago pelo ideal de terra e casa própria a realizar-se na América: no papel
da colona se repetia o modelo da casa global alemã161 onde a mulher assumia todas as

158
Werner QUEDNAU, Die Ärztin Dorothea Christiana, pp. 8 e 10, respectivamente. “Mädchen geht die
Gelehrsamkeit nichts an, sie sind zum Studieren nicht geboren.” (p. 8) “Wozu ist eine gelehrte Weibsperson
nütze? Ein Frauenzimmer soll seine Nase nicht in Männersachen stecken, es hat gerade genug eigene
Pflichten zu erfüllen.” (p. 8) “Die Frau, so wird behauptet, sei nicht fähig, etwas Tüchtiges in der Gelehrsam-
keit zu leisten.” (p. 10).
159
P. GAY, op. cit., p. 55.
160
H. MORLEY, op. cit., p. 177. Este relato de vida foi escrito no dia 21.02.1895.
161
A casa global alemã é considerada a “unidade econômica de base e residência da família num mundo ainda
articulado pelas concepções feudais, o papel de esposa, mãe, dona de casa não se separava do papel da mu-
66

funções: ao mesmo tempo em que cuidava do domicílio e orientava os filhos e emprega-


dos, teve de abrir roças em meio à mata, ao lado do marido. Nessa função esgotava suas
forças, apenas não esmorecendo em repassar seus princípios de fé, disciplina, organização
e trabalho aos filhos, a quem normalmente ensinava as primeiras letras.162
Sobre a mulher alemã imigrante pesavam censuras patriarcais. Controle também havia
em suas casas e sobre a educação dos filhos: se a casa não estivesse bem organizada ou se os
filhos se desviassem do caminho, a culpa era da mulher, que não havia cumprido bem com a
sua tarefa. A partir desta citação, é possível suspeitar da fraqueza que acometia as mulheres
no pós-parto. Com forças já esgotadas devido à dupla jornada, ela ainda precisava encontrar
forças para parir, talvez o décimo filho/a. Um cansaço debilitante era a conseqüência. Nas car-
tas, Ida K. escreveu duas vezes ao irmão relatando que a filha se sentia fraca depois do parto e
que inclusive uma vez precisou de ajuda médica. Os partos eram realizados em casa, através
das mãos de uma parteira.

Uma mulher, com sua bagagem, aportou em terras brasileiras. Uma mulher com um
grande desafio a enfrentar. Uma mulher com possibilidades de melhorar sua vida. Uma mu-
lher que carregava no olhar muitas esperanças e saudades. Uma mulher capaz de construir e
re-significar suas tradições, seus costumes, sua bagagem. Uma mulher com a opção de agir de
forma a também lembrar de si. Uma mulher entregue a uma fé inabalável no Deus da vida.
Uma mulher que carrega sobre suas costas a tarefa de ser esposa-dona-de-casa-mãe “além das
grandes águas”. É a mulher alemã.

lher que produz, envolvendo isso uma solidez de princípios capaz de assegurar a educação de filhos e depen-
dentes, mas igualmente, a reputação de todo o negócio que garantia a sobrevivência da família.” Maria Luiza
RENAUX, O outro lado da história, p. 217.
162
Ibid., p. 217.
67

II. A MULHER ALEMÃ

1. A aldeia de Hanna163
Hanna, uma mulher alemã, conta a sua história e a da sua aldeia na Alemanha do sécu-
lo XIX. Hanna pode ser qualquer uma das mulheres que trabalha e vive ali. Seu nome é o de
muitas Hannas e todas poderiam ter uma história parecida. Entremeando minha própria narra-
tiva ao texto de Philippe Fix164, conto a história de Hanna, personagem criada por mim e que
não aparece no livro de Fix. Hanna começa sua história assim:165

“Certa feita, decidiram sair da Alemanha, minha pátria, meu país. Vim junto, de cora-
ção apertado, rezando para em breve rever minha família, meus pais, minha avó, minhas pri-
mas e tias. Eu ia, seguia meu marido na travessia do mar para chegar à América, palavra má-
gica, um maravilhoso mundo de novidades e oportunidades a nos esperar, diziam. Meus dois
filhos iam com a alegria estampada no rosto, felizes por viverem uma aventura. Estávamos no
porto, esperando que o navio zarpasse.

163
O nome Hanna é um apelido surgido do nome alemão Johanna.
164
Philippe Fix é autor do livro infantil sobre a vida de uma aldeia européia no século XIX.
165
Colocarei aspas nas falas de Hanna. Elas, porém, não se referem a uma citação direta do livro de Fix, por isso
o parágrafo não aparece formatado para tal. Quando uma parte da fala dela termina e necessito detalhar al-
gum assunto, surgem os parágrafos sem aspas. Nestes, as aspas, quando aparecem, se referem a citações de
outros/as autores/as. Os parágrafos das falas de Hanna possuem um recuo da margem esquerda e um espaça-
mento maior no início e no fim dos mesmos.
68

Na Alemanha, vivíamos numa pequena e típica aldeia de artesãos, que eram mestres
nas mais diversas habilidades. Alguns eram vendedores ambulantes, dos quais conheci uma
família que emigrou devido a esta profissão do marido.166 Outros eram agricultores, que se a-
legravam cada vez com a chegada de um deles.”

O jornal DA relata a partida de um mestre-carpinteiro da Alemanha devido ao chama-


do de Deus. Ele viajara para o Chile.

De Valdívia, no Chile, escreve um mestre-carpinteiro: ‘Há um ano e meio [ou seja, em


meados de 1883, presumivelmente] eu, com minha querida esposa, fui levado por vários
caminhos do Senhor a decidir abandonar a Alemanha; duas outras famílias cristãs de artí-
fices juntaram-se a nós.167
Eis um testemunho da ida das mulheres junto com os maridos.

Hanna prossegue em seu relato:

“Havia os mais diversos tipos de vendedores: uns faziam simplesmente trocas – um


almanaque168 por uma porção de tabaco, por exemplo; outros vendiam botões, tesouras, pen-
tes, tecidos; outros, ainda, vendiam livros, gravuras e também os almanaques. Neles consta-
vam, entre outras informações, os feriados religiosos.

Outra coisa que os colonos compravam destes vendedores para sua proteção bem co-
mo para a proteção da casa e dos animais eram gravuras de santos. Havia também os caixeiros
viajantes mais aparelhados, que carregavam sua mercadoria não mais nas costas, como a mai-
oria, mas faziam seu transporte em veículo puxado por um burro ou por um cavalo.169 As car-
roças trafegavam abarrotadas de ferragens e produtos domésticos para serem vendidos. Co-
nheci um casal que negociou a sua carroça de mercadorias para abrir uma loja de produtos co-
loniais.

Em nossa cidadezinha trabalhavam, além disso, um taberneiro e um ferreiro. Vez ou


outra aparecia de passagem um grupo de ciganos, de cantores e de músicos. Alguns destes

166
Philippe FIX, Kaum hundert Jahre ist es her, p. 5. “Manche sind wegen ihres Handels sogar bis nach
Amerika ausgewandert!” (Alguns até emigraram para a América devido ao seu comércio!)
167
DA. Ano 22, Langenberg: Pastor Griesemann, março 1884. p. 21. “Aus Valdivia in Chile schreibt ein
Tischlermeister: Vor 1 ½ Jahren wurde ich samt meiner l. Frau durch allerlei Führungen des Herrn zu dem
Entschluß gebracht, Deutschland zu verlassen; zwei andere christlich gesinnte Handwerkerfamilien schlossen
sich uns an.”
168
P. FIX, op. cit., p. 6. “Die Leute auf dem Land brauchen den Almanach sehr nötig.” (As pessoas no campo
necessitam muito do almanaque.)
169
Ibid., p. 7. “Ein richtiger fahrender Laden!” (Era realmente uma loja sobre rodas!)
69

músicos exibiam um realejo, muito querido pelas crianças do lugar. Também havia comerci-
antes dos mais diversos tipos de produtos: o homem que vendia figuras de gesso, o afiador de
facas e tesouras, o homem que consertava porcelana quebrada. Um homem trabalhava como
limpador de chaminés, outro como vidraceiro e outro ainda como costureiro. Era raro encon-
trar um homem nesta profissão, a de costureiro. Na maioria das vezes eram mulheres que a
exerciam. Eu, por exemplo, trabalhava como costureira.”

Hanna era costureira. É bem possível que faça uso deste conhecimento não somente
para as costuras domésticas, como o sabemos de muitas mulheres alemãs que emigraram, mas
que, chegando ao Brasil, ela possa vir a trabalhar para alguma indústria têxtil ou de calçados,
a qual emprega costureiras. Eram as costureiras a domicílio. Sandra Pesavento não menciona
explicitamente o emprego de mulheres alemãs pelas fábricas, mas fala da exploração que esta
categoria (mulheres viúvas, casadas pobres, solteiras) sofria, ganhando salários bem menores
“do que o trabalho desempenhado”170. Os salários eram diminuídos através de multas ou do
uso de material da fábrica necessário para a confecção do produto final. “Naquela fábrica171,
as costureiras pagam todo o material que gastam, linha, grude, agulhas de máquinas, etc.”172
“Na fábrica173 dos Srs. J. Silva & C. paga-se multa por vir tarde, paga-se multa por conversar,
paga-se multa por cuspir no chão, paga-se multa por fumar [...].”174

Suspeito que as mulheres alemãs também trabalhavam nestas condições, pois muitas
famílias de imigrantes, que vinham ao sul do Brasil despossuídas, não tinham, automatica-
mente, uma melhora de vida. É bem possível que procurassem outras formas de ocupa-
ção/renda, principalmente as que moravam no entorno de Porto Alegre, um espaço urbano
com produção fabril e trabalho operário.

A minha suspeita se baseia ainda no fato de haver anúncios de empregos para costurei-
ras. A jornada era de doze horas e a mulher recebia um salário e comida.175 Creio que muitas
mulheres alemãs que imigraram para o Brasil realmente trabalharam nas fábricas, pois Pesa-
vento fala igualmente de um “forte contingente de alemães no proletariado urbano da capital

170
Sandra Jatahy PESAVENTO, Os pobres da cidade, p. 36.
171
Segundo o relato de um artigo do jornal Democracia Social, do dia 17.12.1893, pesquisado pela autora.
172
S. J. PESAVENTO, op. cit., p. 54.
173
Segundo o relato do jornal Democracia Social, do dia 15.10.1893.
174
S. J. PESAVENTO, op. cit., p. 53.
175
Ibid., p. 45.
70

[Porto Alegre] [...]”176. Estes alemães dos quais fala a autora, não são necessariamente todos
homens. “Os baixos salários dos trabalhadores [...] eram compensados pelos reforços advin-
dos do ingresso de outros membros da família na empresa, como as mulheres e as crianças.”177
Sob a palavra alemães esconde-se um sexismo, que exclui a história de vida de mulheres e de
crianças.

Hanna continua seu relato:

“Os poucos homens que eram costureiros na minha aldeia, não eram bem vistos pelos
outros homens. Estes últimos diziam dos primeiros que não eram fortes para agüentar o pesa-
do trabalho do campo como eles. Para mim, isto é falta de visão da parte dos homens bem
como de capacidade de se colocar na pele de outras pessoas. Só porque é homem, não tem que
ser igual a eles, penso eu. Nós mulheres não tínhamos problemas com os costureiros: eram
nossos companheiros de profissão.178

O trabalho da costura pode ser muito diversificado e rico. Conheci um senhor que era
um “costureiro itinerante”. Ele ia costurar de casa em casa, de fazenda em fazenda, de sítio
em sítio, lá onde moravam pessoas bem afastadas, no meio dos campos, no interior das aldei-
as. Além de costurar, que é uma coisa da qual gosto muito, imagino que deve ser bem interes-
sante conhecer outros lugares e pessoas.

Isto me faz lembrar que eu mesma estou viajando para um lugar desconhecido e vou
me encontrar com pessoas nunca vistas antes. A única e grande diferença é que o costureiro i-
tinerante voltava para sua casa de tempos em tempos. Bem, eu... eu vou viver numa outra ter-
ra, no meio de outra gente. Também vou encontrar conterrâneos, mas não é a mesma coisa. E
esta idéia me assusta um pouco. Este deixar-tudo-para-trás dá a sensação de que um pedaço
meu fica aqui na Alemanha e nunca irá me acompanhar para a América. É um sentimento um
tanto confuso. Como me encontrarei por lá?

Na aldeia que deixei, quem quisesse lindos bordados, procuraria um bordador. Para as
festas de casamento, por exemplo, havia camponeses que contratavam um costureiro itineran-
te. Ele morava com a família até costurar todas as roupas para a festa. Como havia muito ser-

176
Ibid., p. 82.
177
S. J. PESAVENTO, op. cit., p. 59.
178
P. FIX, op. cit., p. 10.
71

viço, o costureiro contratava um bordador. Seu trabalho era bordar e enfeitar os gibões179 ou,
ainda, ornamentar com fitas de seda, rendas, bordados ou fitas coloridas os corpetes para as
mulheres.

Havia na aldeia, também, a profissão de tecelão. Esta pessoa usava lã, linho ou câ-
nhamo como matéria-prima e assim tecia os panos e tecidos, com estampas ou lisos, usados
pelos camponeses, os quais confeccionavam suas roupas, camisas e enxovais. As mulheres é
que sentavam à noite para fiar e deixar tudo preparado para o trabalho do dia seguinte.180 Ha-
via ainda a profissão de sapateiro, de passarinheiro, de caldeireiro, de curandeiro, de lavadei-
ra, de barbeiro.

Um lugar muito agradável para ir é a mercearia. É o lugar ideal para encontrar algu-
mas amigas e conversar um pouco.181 Mas sempre faço as coisas na pressa quando vou à ven-
da, pois meu trabalho em casa fica à espera... A vontade de conversar acaba ficando pelo ca-
minho. Será que encontrarei na América algo parecido com uma venda?

Nós usamos uns sapatos de madeira, em forma de tamancos. Na aldeia vivia uma fa-
mília que se dedicava a este trabalho. Ela morava praticamente na floresta, perto do local onde
cortavam as árvores para o feitio dos tamancos. Ali construíam suas choupanas com terra e
troncos. Como não tenho certezas pela frente, acabo me fazendo muitas perguntas. E agora,
ao me lembrar desta família e de suas moradias, fico me perguntando como serão as casas na
América? Iguais a estas ou totalmente diferentes? E se não houver casas, construiremos algu-
mas no meio da floresta como a dos tamanqueiros, de barro e de troncos?182

Também havia guardas na aldeia bem como torneiros, pastores, o moleiro e pessoas
mendigando. Havia também os catadores de trapos ou trapeiros. Eram os negociantes de tra-

179
Conforme o Dicionário Aurélio, gibão era uma vestidura antiga, que cobria os homens desde o pescoço até a
cintura. Era uma espécie de casaco curto, que se vestia sobre a camisa.
180
P. FIX, op. cit., p. 11. “Die Frauen hatten sie [die Wolle, den Flachs oder den Hanf] abends beim Zusam-
mensitzen in der Spinnstube mit dem Spinnrad gesponnen.” (As mulheres haviam fiado [a lã, o linho ou o
cânhamo] à noite, enquanto estavam juntas, sentadas na sala de fiar, com as suas rodas de fiar.)
181
Ibid., p. 19. “Der Krämerladen ist auch bekannt als ein beliebter Treffpunkt, wo die Frauen ein Schwätz-chen
halten.” (A mercearia também é conhecida como o lugar preferido de encontros, onde as mulheres podiam
trocar entre si as novidades do dia.)
182
Ibid., p. 20. “Sie [die Holzschuhmacherfamilie] lebten in Erd- und Laubhütten, die sie dort am Ort, wo sie
Bäume fällten, errichteten.” (Ela [a família de tamanqueiros] morava em choupanas de barro e folhas, as
quais construíam ali, no local onde derrubavam as árvores.)
72

pos ou aquelas pessoas que os apanhavam na rua ou nas casas e os vendiam, ganhando, desta
forma, um dinheirinho.”

Hanna quase não menciona dificuldades sociais existentes em sua aldeia. Esta menção
aos mendigos e aos catadores de trapos ou trapeiros é uma das poucas vezes em que transpa-
rece uma situação de pobreza na vida daquelas pessoas aldeãs. Continuando seu relato, ela
diz:

“Havia em nossa aldeia aqueles que negociavam peles, os peleiros, e havia os contado-
res de histórias. Ah, estes últimos eram adorados não somente pelas crianças! Nós adultos,
homens e mulheres, sentávamo-nos ao seu lado para ouvir as belas histórias que nos conta-
vam. Isto fazia com que esquecêssemos um pouco das nossas preocupações e, junto com o
contador de histórias, mergulhássemos em um mundo de contos de fada, com seus duendes,
demônios, animais que falavam, gigantes e dragões.

De tempos em tempos aparecia na aldeia um domador de ursos. Junto com ele vinha
um grupo de ciganos, que parava na aldeia para mostrar suas habilidades artísticas e, depois
de alguns dias, novamente seguia caminho. Eles moravam em trailers, organizados com mui-
ta simplicidade. Nestes trailers havia também um cantinho sagrado, onde eles, imagino eu,
faziam as suas orações.183

A nossa aldeia, e tantas outras ao redor, possibilitavam trabalho para muitas pessoas.
Algumas delas faziam cestos de todos os tipos e tamanhos. Havia também os comerciantes de
cavalos e me lembro agora da senhora Leonhard, conhecida como mãe (Mutter) Leonhard.
Ela era a “mulher dos colchões”. Quem queria comprar um colchão novo ou remendar um an-
tigo, tinha necessariamente que recorrer a ela. Era durona e mandona, mas... era a “mulher dos
colchões” e isso bastava.184

Só que a situação atual de muitas famílias da aldeia, assim como foi com a nossa, e de
outras aldeias, não estava boa. Alguns falavam em ir para a América e tentar adquirir um pe-

183
P. FIX, op. cit., p. 26. “Im Wohnwagen geht es einfach zu: ein Bett, auf dem sich Decken und Federbetten
auftürmen, ein Buffet, ein Ofen, ein Teppich und eine Gebetsecke voller frommer Gegenstände, Kerzen und
Heiligen-bilder.” (No trailer é tudo muito simples: uma cama, sobre a qual se avolumavam cobertas e cober-
tores de pena, um bufê, um fogão, um tapete e um local de oração, cheio de objetos religiosos, velas e figuras
de santos.)
184
Ibid., p. 29. “Mutter Leonhard ist eine energische Frau, autoritär und anspruchsvoll.” (A mãe Leonhard é
uma mulher enérgica, autoritária e exigente.)
73

daço de terra e, assim, ter um lugar melhor para viver. Agora nós já embarcamos no navio,
buscando a nossa sorte. Para esta viagem, nos organizamos, preparando a bagagem que preci-
samos levar e que acreditamos, iremos usar na América.

Bem, muitas de nós mulheres trabalhávamos em casa para aumentar a renda da famí-
lia. Era o caso das passadeiras e também o meu , como costureira, bem como o das rendeiras,
das chapeleiras, das luvistas, das que faziam bibelôs, bijuterias ou flores artificiais.185 Serviço
não nos faltava, pois ainda havia toda a casa a ser cuidada, os filhos que precisam de ajuda, o
marido que quer nossos ouvidos. O que nos falta é um pouco de distração e não sentir culpa
por querer ficar na venda conversando... Será que isto muda na América?

Conheci, na aldeia vizinha, onde mora uma tia minha, um moço que faz brinquedos.186
Às vezes encomendávamos algumas coisas dele na época de Natal, a fim de alegrar as crian-
ças. E como se alegravam! Outro moço, que trabalhava com esculturas em madeira, também
fazia alguns brinquedos. Dele adquirimos, certo Natal, um presépio. Este presépio, hoje, faz
parte de nossa bagagem. Assim, no próximo Natal, teremos, pelo menos, alguma coisa conhe-
cida e de nossa pátria sob a árvore, e que nos liga à terra da qual partimos há alguns dias.

Um dos nossos vizinhos era um relojoeiro e, do outro lado da rua, moravam uma pro-
fessora e um professor. Os meninos e meninas iam para a escola. Com mais ou menos 11 a-
nos, os meninos acabavam deixando os estudos para ajudar o pai na lavoura ou para ser a-
prendiz de algum ofício ou para ser um criado junto à outra família camponesa. As meninas,
por sua vez, ajudavam suas mães nos serviços domésticos e cuidavam dos irmãos e irmãs me-
nores. Algumas até saíam de casa, indo trabalhar como criadas.”187

185
P. FIX, op. cit., p. 30. “Viele Frauen arbeiten zu Hause. Firmen, die Kleidung und Wäsche herstellen, be-
schäftigen Näherinnen, Spitzenklöpplerinnen, Hutmacherinnen und Handschuhmacherinnen. Andere Frauen
fertigen Nippsachen an, Modeschmuck oder künstliche Blumen.” (Muitas mulheres trabalham em casa. Em-
presas que fabricam vestuário e roupas, ocupam costureiras, rendeiras, chapeleiras e luvistas. Outras mulhe-
res confeccionavam bibelôs, bijuterias ou flores artificiais.)
186
Ibid., p. 31. “Natürlich gab es viel Spielzeug, aber auch religiöse Schnitzereien, Krippenfiguren, Kuckucks-
und Wanduhren.” (É claro que havia muitos brinquedos, mas também esculturas religiosas, presépios, reló-
gios-cuco e de parede.)
187
P. FIX, op. cit., p. 32. “Im Alter von elf bis zwölf Jahren verläßt ein Junge endgültig die Schule. Wenn sein
Vater Bauer ist, arbeitet er von nun an mit ihm. Ist er der Sohn eines Tagelöhners, verdingt er sich als Knecht
auf einem Hof oder fängt eine Lehre bei einem Handwerker an. Die Mädchen bleiben zu Hause, helfen der
Mutter und sorgen für die jüngeren Geschwister, oder sie verlassen die Familie und nehmen eine Arbeit an
als Magd oder Zimmermädchen.” (Na idade de 11 a 12 anos, o menino deixa a escola definitivamente. Caso
seu pai seja colono, de agora em diante trabalhará com ele. Caso seja filho de jornaleiro, ele serve como cria-
do em uma lavoura ou inicia o aprendizado de algum ofício. As meninas ficam em casa, ajudam a mãe e cui-
74

Maria Luiza Renaux cita a fala de um jornalista da revista Kosmos, de Berlim:

A mulher do colono alemão no sul do Brasil não conhece horas de lazer, para ela existe
só trabalho e novamente trabalho. [...] a mulher tem ajuda somente das filhas mais cresci-
das, enquanto os garotos já bem cedo auxiliam o pai na lavoura.188
Desta forma, as mães ensinam às filhas o trabalho doméstico e as meninas aprendem,
desde cedo, que a vida é trabalho e mais trabalho, que a vida é ser mãe, dona-de-casa e espo-
sa. Ordem, limpeza, conforto e simplicidade são valores altamente cultivados e preservados,
passados de geração a geração. E Hanna finaliza seu relato:

“Nas famílias onde o pai trabalhava como jornaleiro (Tagelöhner), a situação finan-
ceira nem sempre era boa. Muitas destas famílias juntavam o pouco que tinham e arriscavam
sua sorte na América.189 Preciso ainda mencionar para vocês o farmacêutico, o oleiro, o co-
merciante de louças, o vidraceiro, o cordoeiro e um menino que trabalha para este último, gi-
rando uma manivela, que, presa a uma roda dessas de carroça, vai enrolando a corda.

Quando havia alguma festa da igreja, quem tinha muito trabalho era o moço que fazia
velas. Ele usava cera de abelhas e, quando queria imprimir alguma gravura ou imagem na ve-
la, ele usava um molde de madeira. Ele fazia muitas velas para batismos, casamentos e enter-
ros. Duas pessoas que cruzavam a aldeia de tempos em tempos eram o contador de casos e o
peregrino. Antes de começarmos nossa viagem à América, vi também o peregrino passar per-
to de casa. Por onde será que ele anda agora? E que casos estará contando o prosador?

Bem, em rápidas palavras esta é a nossa aldeia, não muito diferente de tantas outras
vizinhas a ela neste final de século XIX. Já estou com muitas saudades. Como este sentimento
dói! O consolo é a oração e a fé de que Deus está lá com as pessoas que amamos e que dei-

dam dos irmãos menores, ou elas deixam a família e aceitam um trabalho como empregadas ou como criadas
de quarto.)
188
Maria Luiza RENAUX, O outro lado da história, p. 109-110.
189
Assim, não eram somente agricultores que emigravam, mas também pessoas que viviam de serviços ocasio-
nais ou tinham outras profissões. Todas, em um primeiro momento ou praticamente como única alternativa
ou como meta mesmo, recebiam um lote de “terra” (leia-se aqui floresta) para cultivar. Os agricultores já co-
nheciam as lides da terra; os que não eram, aprendiam a lide pelo princípio do erro e do acerto. Muitos con-
seguiam, com grande sacrifício e sofrimento, alcançar melhorias em suas vidas e ser donos de terras, animais
e plantações. Assim observa Ilg, ao comentar a felicidade de uma pessoa que, na Alemanha, fazia serviços
ocasionais e agora era proprietário de um pedaço de terra e de animais. “Wie mag sich der einfache Tagelöh-
ner aus Deutschland ob dieses seines Besitzes erfreut haben, wenn dieser herangewachsen war und er sich
deshalb auch als vollwertiger Kolonist fühlen konnte.” (Como deve ter se alegrado, ao ver crescer a sua pro-
priedade, o simples jornaleiro da Alemanha. Desta forma, podia sentir-se como um colono de verdade.) K.
ILG, op. cit., p. 128.
75

xamos para trás. Ele pode estar presente e se fazer sentir justamente onde nós não podemos
mais ir/estar. Preciso crer nisto, para poder viver o meu dia-a-dia. Preciso voltar às minhas ta-
refas. Aqui no navio elas também precisam ser feitas, senão os dias ficam muito longos e
meus pensamentos e sentimentos não me deixam em paz.”

Estas são as últimas palavras de Hanna, ao terminar de apresentar a sua aldeia e a sua
gente querida.

A desventura dos imigrantes teve início no momento da despedida da Europa quando a


mulher sofre mais em deixar para trás o que até então lhe fora querido: os familiares que
permaneciam na Alemanha, a casa, a igreja, os amigos, enquanto os homens, na expecta-
tiva de aventura e as crianças, diante do novo, se sentiam descompromissados ao sair da
pátria.190
O cotidiano de uma aldeia pode dizer muito a respeito da própria aldeia e das pessoas
que nela moram. A história, construída e escrita a partir dali, conta outras verdades, estabelece
outras relações, faz perceber e dar importância a outras situações. A escritora brasileira Emília
Freitas também relata o cotidiano de aldeias no sertão do Ceará oitocentista:

Nos lugares pequenos, nas aldeias, as novidades são poucas ou antes nenhumas, quando
passa ali um viajante, se traz a sobrecasaca abotoada, só faltam desatacá-la para ver se o
colete tem botões! Se ele traz consigo mulher, irmã ou filha, a primeira coisa que notam é
se ela usa brincos, se os não usa, serve isto de assunto para uma semana de conversação
na vizinhança.191
Imagino que na aldeia de Hanna as novidades também despertavam inúmeras curiosi-
dades e olhares. Ao chegarem os ciganos, o prosador e o contador de histórias, por exemplo, a
aldeia inteira fervilhava ao seu redor, ávida em informar-se e mais ávida ainda em transmitir e
trocar estas informações. É o cotidiano relatando-se.

Para a história das mulheres, a historiografia pautada no cotidiano faz brotar intenções
escondidas, faz viver gestos reprimidos, faz crescer a auto-estima e o pertencimento a um de-
terminado grupo social, com suas memórias, costumes, jeitos. Faz dinamizar a história “ver-
dadeira”, implodindo-a e vendo em cada pedaço, pedaços de verdade antes ofuscados por uma
hegemônica presença do herói e do vencedor.

As mulheres alemãs, que se tornaram imigrantes, têm tido poucas possibilidades de


registro na historiografia brasileira. A proposta desta pesquisa é proporcionar-lhes mais espa-

190
M. L. RENAUX, op. cit., p. 217.
191
Emília FREITAS, A Rainha do Ignoto, p. 51.
76

ço, representando-as como sujeitos visíveis e capazes de agir e interferir na história de suas
vidas neste país.

2. O trabalho
Fix usa reiteradamente a imagem masculina para descrever as profissões. A pergunta é
se tais profissões são necessariamente todas masculinas e se as citadas como femininas real-
mente são exercidas somente por mulheres. Um exemplo foge à regra da divisão do trabalho
entre os pólos masculino e feminino: o caso do costureiro. Este faz do trabalho tradicional-
mente feminino da costura a sua profissão e, por isso, é desprezado pelos demais homens.
Como será com as outras profissões? Realmente o trabalho parece ser a mola propulsora para
a rotina diária do povo desta aldeia.

Cito, aqui, novamente, Pedro Nava em seu livro autobiográfico:

Adivinho a vida de minha avó pelo que eu vi na casa de suas filhas – que eram exímias na
arte de terem seus dias cheios, como são cheias as horas nos conventos. Porque trabalho
ordenado, obrigações em hora certa, deveres cronometrados e labutas pontuais prendem o
corpo mais fortemente que cadeados e trancas. Sujeitam o pensamento solto. Anulam a
divagação preguiçosa. Previnem a descida dos três degraus sucessivos da abominação:
pensamento, palavra e obra. [...] Nunca vi minhas tias paternas banzando ou paradas e, se
havia intervalos entre suas tarefas, elas o calafetavam – segundo o tamanho da intermi-
tência – com um mistério, com um terço ou com um rosário inteiro.192
Estas poucas frases trazem à tona o que significa uma vida de trabalho, orientada pelo
trabalho. O lazer destas mulheres era somente uma tarefa diferente da realizada até então. Na
descrição de Pedro Nava, o trabalho toma a forma de domesticar corpos. Surge, assim, uma
pergunta imprescindível: para que ou para quem domesticá-los?

No século XIX, a medicina descobria e, na mesma medida, proibia o corpo da mulher.


Muitos pastores eram médicos, mas não podiam exercer a obstetrícia, por exemplo.193 A divi-
são de corpos dentro da igreja era nítida: mulheres de um lado dos bancos, homens do outro.
Que corpo perigoso era este? Margareth Rago afirma que uma leitura misógina do corpo fe-
minino pela medicina, especificamente pelos médicos no século XIX, levou a uma visão de-
limitadora e limitante da mulher no espaço físico, intelectual, moral e público da sociedade.

192
Pedro NAVA, Baú de ossos, p. 36-37.
193
“Os pastores formados na Casa de Missão de Barmen adquiriam noções básicas em medicina durante os estu-
dos seminarísticos, pois a atividade médica era necessária nos campos de missão para onde em princípio seri-
am enviados pela SMR [Sociedade Missionária da Renânia]. [...] Borchard [Hermann Borchard], no entanto,
fez a ressalva: os pastores não deveriam exercer a obstetrícia.” Wilhelm WACHHOLZ, Atravessem e aju-
dem-nos..., p. 514.
77

Para controlar este corpo tão perigoso, surgem as formas disciplinadoras e de domesticação
do mesmo.194

Guacira Lopes Louro fala desta domesticação ao mencionar a “produção” de professo-


ras pelas escolas normais a partir de meados do século XIX. Estas escolas foram espaços dis-
ciplinadores, moldando o corpo e o pensamento das mulheres. Também ali era tudo planejado
e controlado. Não havia hora sem que se estivesse fazendo alguma coisa. Sempre havia ativi-
dades e trabalhos. “Elas [as jovens que desejavam ser professoras] devem estar sempre ocu-
padas, envolvidas em atividades produtivas.”195

A atividade que era colocada nas mãos das mulheres tinha a visão sempre presente da
produção, da utilidade, da praticidade e da funcionalidade desta atividade. Não era “qualquer
coisa” que as mulheres faziam e com o que preenchiam as suas horas. Era com atividades
produtivas; uma mulher sempre é produtiva. Isto nos mostra Helena Morley em seu diário:
“Mamãe nunca nos deixou perder um instante desde pequeninas. Até para receber visitas te-
mos sempre um crochê para fazer.”196

A atividade produtiva também está na bagagem das mulheres alemãs. O seu lazer é fa-
zer um bordado, costurar ou remendar alguma roupa da família. O lazer é algo produtivo, não
é tempo e espaço dedicado ao prazer e ao ócio. Rita Bromberg Brugger, através de Johann,
personagem do livro Diário de um imigrante, afirma o seguinte: “Domingos à tarde descan-
samos. [...] as mulheres sempre encontram algo para costurar ou remendar, e eu aproveito pa-
ra desenhar e pintar.”197 É a relação da mulher com o trabalho, não conseguindo ela ficar sem
fazer nada, ou, simplesmente, sentar-se e olhar as crianças brincar . O discurso do trabalho
cria uma profunda identidade para estas mulheres. Johann diz de si mesmo que aproveita as
tardes de domingo para desenhar e pintar. Para ele, isto é um descanso dos afazeres diários.

Se havia a necessidade de uma atitude de domesticação, será que estes corpos agiam
de forma impensada, na preguiça da hora do almoço? O que estes corpos procuravam? O pra-
zer da vida? Uma vida de prazeres? Os homens domesticavam seus corpos? Para quem as mu-

194
Margareth RAGO, Feminizar é preciso..., s.p.
195
Guacira Lopes LOURO, Mulheres na sala de aula, p. 455. O grifo é meu.
196
Helena MORLEY, Minha vida de menina, p. 195-196. O relato desta experiência é datado de 29.04.1895.
197
Rita Bromberg BRUGGER, Um diário de imigrante, 14.04.1825.
78

lheres domesticavam os seus corpos? Para elas mesmas? Para darem conta do que esperavam
delas enquanto mães, esposas e donas-de-casa?

Eu creio que a preguiça seja uma inimiga ferrenha das mulheres alemãs. Com um pla-
no de trabalho em mãos, a preguiça vai embora. O ser humano não tem dentro de si uma má-
quina, ele não é uma máquina. Assim, os corpos das mulheres alemãs procuravam os prazeres
da vida e uma vida de prazeres. Por que não? Uma rotina extenuante sempre encontra uma re-
significação em um momento de devaneio. Os homens não domesticavam os corpos para o
trabalho ininterrupto, mas observavam constantes momentos de lazer em suas vidas. As mu-
lheres domesticavam seus corpos para corresponder à expectativa de outras pessoas. Para elas
mesmas, pouco ou nada faziam, visto estarem envolvidas com a maternidade, com a casa,
com o marido.

O trabalho, a produção constante, os afazeres sem fim, os minutos preenchidos e auto-


controlados, domesticam. Domesticam e controlam eventuais atos de rebeldia e de enfrenta-
mento que poderiam ocorrer e que deveriam ser reprimidos de antemão. O mesmo controle e
domesticação dá-se nas fábricas através das multas, cujos exemplos mencionei antes. Não
somente o trabalho constante e ininterrupto é uma forma de domesticação, mas a infração de
leis e regulamentos vigentes no ambiente fabril , cuja conseqüência são as multas, “devem ser
entendidas como estratégia de controle empresarial para obtenção da disciplina no interior da
empresa. [...] A disciplina é uma estratégia de organização do espaço, e a fábrica se apresenta
como o espaço privilegiado de realização do poder burguês.”198

Sandra Jatahy Pesavento fala de discursos elaborados no século XIX, que objetivavam
enquadrar as pessoas pobres, sujas, feias no imaginário burguês da ordem, da beleza, da higi-
ene. Tais discursos incluíam as pessoas imigrantes.

Práticas e discursos são, por sua vez, acompanhados da elaboração de imagens sobre [...]
personagens: Zé Povinho, o operário, vagabundo, a prostituta, o trapeiro. [...] assim, ne-
gros serão os criminosos [...]; mestiço ou mulato é o Zé Povinho, e de aparência imigrante
européia, o trabalhador.199
Esta citação de Sandra Pesavento aprofunda ainda mais a visão de trabalho que, em
um primeiro momento, coloquei sobre as mulheres alemãs, já nas reflexões do capítulo ante-
rior. A autora trabalha com a “elaboração de imagens” que se tem, entre outros, em relação às

198
S. J. PESAVENTO, op. cit., p. 55.
199
Ibid., p. 9.
79

famílias imigrantes. No caso da minha pesquisa, a mulher e o homem alemão imigrante


transmitem e sobre eles é colocada a imagem de pessoas trabalhadoras, independentemente se
realmente o são ou não.

A imagem é aquela que fala por si e deixa a sua mensagem. Não se trata de uma ima-
gem autônoma ou isolada , mas construída por uma sociedade recém saída de uma organiza-
ção escravocrata e que precisa substituir esta mão-de-obra pela dos brancos imigrantes. O jor-
nal DP tem um depoimento muito interessante a este respeito: “Também no Pará foi fundada,
no dia 17 de dezembro [1883], uma ‘Sociedade Central de Immigração’, a qual fará conheci-
do no exterior, o Brasil e suas riquezas. Também irá atrair, apoiar, guiar e proteger imigrantes
brancos do exterior.”200

Pesavento lembra a situação da pecuária gaúcha e da produção de charque no Rio


Grande do Sul durante o processo de abolição da escravatura:

A pecuária gaúcha, tradicional elemento de sustentação da província de São Pedro, en-


contrava-se diante de um impasse: a crise da mão-de-obra, motivada pela progressiva ex-
tinção da escravatura no País, afetava diretamente a charqueada rio-grandense, consumi-
dora de trabalho negro.201
Uma das soluções para esta crise foi a introdução do trabalho de pessoas imigrantes.
Dias piores aguardavam as pessoas negras, ex-escravas, pois “Na repontuação valorativa do
trabalho que acompanhara a formação de um mercado de mão-de-obra livre, a força redentora
do País era identificada com o imigrante europeu.”202 As pessoas negras, até então considera-
das trabalhadoras, são vistas como preguiçosas e vagabundas.

A minha suspeita de que as mulheres alemãs vivem e transmitem também outras ima-
gens e representações do que a da mulher trabalhadeira é corroborada com a afirmativa de que
discursos e práticas criam, conforme o interesse de quem os cria, imagens de trabalho, ordem
e limpeza. Estas imagens são lançadas sobre um determinado grupo social, neste caso, as fa-
mílias alemãs imigrantes. As mulheres recebem o dobro do peso destas imagens, pois delas já

200
DP. Ano 4, São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 06.02.1884. p. 2. “Auch in Pará wurde am 17. December
eine ‘Sociedade Central de Immigração’ gegründet, welche Brasilien und seine Reichtümer im Auslande
bekannt machen und weiße Einwanderer aus dem Ausland heranziehen, unterstützen, führen und beschützen
will.”
201
S. J. PESAVENTO, op. cit., p. 31.
202
Ibid., p. 119.
80

se espera que sejam sempre produtivas em suas lides domésticas e em seus papéis de esposa e
mãe.

Esta idéia de imagem e de representação é forte e está ancorada profundamente na i-


dentidade da mulher alemã. É possível desconstruir esta imagem, já pelo simples fato de sus-
peitar que a mulher alemã não vive somente de trabalho. Esta desconstrução possibilita visibi-
lizar os espaços de resistência que as mulheres elaboraram. Estes espaços até o momento pou-
co foram historiografados e por isso predominam idéias e imagens lineares sobre as mulheres
alemãs.

Além disso, estes espaços são espaços de subversão/revolta de uma ordem patriarcal,
que quer as mulheres caladas, obedientes e atarefadas em seus lares, mas que, muitas vezes,
nem a esta imagem podem corresponder, pois a situação financeira da família o impedia. “Em
suma, o lugar da mulher era no lar, no trato da família, ao resguardo da vida ‘fora de casa’,
aspiração esta negada pelas precárias condições de existência do proletariado urbano.”203

A presença das mulheres dentro ou fora de casa era mal-vista. Por outro lado, ambos
eram o caminho reservado a elas. Dentro de casa viviam uma espécie de clausura, viver fora
de casa era falta de consideração com a sua família e a pureza e recato de sua existência. As-
sim há que se perguntar: qual é o lugar da mulher na sociedade brasileira do século XIX, en-
quanto mulher alemã? O lugar marcado pela burguesia, pelo patriarcado? Qual lugar a mulher
escolheria para viver a sua história? Quais lugares, além da casa e da rua, foram espaços de li-
bertação e de construção identitária autônoma e protagonista para a mulher alemã? As cartas
das mulheres podem trazer respostas a estas perguntas.

3. O que as mulheres falam através de suas cartas


As cartas são material de pesquisa com outras características, se comparadas aos jor-
nais. Naquelas, as mulheres se mostram mais escritoras, mais como elas mesmas são. Nestes,
por sua vez, sua presença como escritoras se rarefaz . Nos jornais, as mulheres aparecem co-
mo deveriam ser.

Tanto em cartas quanto em jornais há discursos. Mesmo que as cartas expressem as


experiências e os cotidianos das mulheres que as escreveram, tais experiências não devem ser
as únicas a centralizar a narrativa histórica. As experiências destas mulheres vêm marcadas

203
S. J. PESAVENTO, op. cit., p. 63.
81

pelo contexto em que vivem e, por isso, são experiências de um dado momento histórico. As-
sim, as narrativas compostas a seguir a partir das cartas de mulheres alemãs imigrantes na se-
gunda metade do século XIX, são narrativas que mostram uma das possibilidades historiográ-
ficas deste grupo social.

Trago, a seguir, a fala das mulheres alemãs imigrantes a partir de suas cartas. São falas
que registram sua memória, são cartas que mostram a sua escrita. Isto carrega consigo uma
outra possibilidade historiográfica feminista, pois, ao escrever suas memórias, as mulheres es-
tão escrevendo história.

As pessoas destinatárias destas cartas são, em sua grande maioria, pessoas da própria
família: filha, genro, neto, irmã, irmão, cunhado, sobrinho. Duas cartas foram escritas para re-
solver uma situação financeira. O destinatário é um “Doutor”. Imagino que seja um advogado.
As cartas são apresentadas na íntegra. Subdivido cada uma delas em parágrafos, cada parágra-
fo recebe uma letra para facilitar sua localização e vem formatado como citação. Entremeadas
à fala das mulheres, faço minhas observações.

3.1 Carta 1204


6ª carta205
Blumenau, 13 de fevereiro de 1867.
(a) Muitas lembranças para a filha, genro e neto!
Se todos estão com saúde ainda muito nos alegrará.
Nós estamos todos bem de saúde e os maus tempos devido a Guerra também acontece-
ram. Fritz já está há um ano e meio como voluntário na Guerra, mesmo contra nossa von-
tade ele foi. Parece que ele esteve doente, é muito longe daqui umas 500 milhas e seja di-
to muitos dos nossos morreram, mas ele ainda está vivo como dizem, dizem que são bem
tratados.
Através deste trecho da carta, temos um testemunho do significado da Guerra do Para-
guai (out. 1864 - mar. 1870) para muitas famílias que tiveram seus filhos arrebatados às filei-
ras de soldados na época. Eles iam mesmo a contragosto dos pais e mães, iam para defender a
sua nova (ainda?) pátria (será este um sinal ao pertencimento teuto-brasileiro?). Ficavam do-
entes, muitos morriam e as famílias sofriam e se preocupavam.

204
Todas as cartas me foram apresentadas em alemão gótico manuscrito, juntamente com a tradução para o por-
tuguês, disponibilizada pelo próprio Arquivo Histórico de Blumenau. Para esta tese, faço uso da tradução,
mas revisando-a em certos momentos a partir da leitura do original. – Sra. Meyer, de Blumenau, para sua fi-
lha, genro e neto, no dia 13.02.1867.
205
Esta numeração foi encontrada na própria carta. O número seis localiza-se no canto superior direito do origi-
nal, apesar de ser uma numeração do arquivo e não da autora. Afirmo isto, pois a grafia da sra. Meyer para
este número é outra no decorrer da carta. Parece ser algo classificatório de um conjunto de cartas, pois na ca-
talogação, o número do documento é 3.M.10 doc-06.
82

(b) O que diz respeito ao dinheiro é culpa do Fritz. Fritz recebeu sua parte e imediatamen-
te depositou o mesmo com o administrador na Alemanha e deste dinheiro faço uso agora,
não o fiz antes por falta de tempo. Agora também está ruim para a Colônia e todas as e-
conomias são gastas e decaiu muito. Nós somos velhos e não podemos mais trabalhar no
pesado. Eu completei no dia 28 de abril 60 anos e o Pai 62.
Novamente o assunto financeiro é de importância. A situação na colônia Blumenau
não parece ser das melhores. A sra. Meyer já se considera velha para o trabalho que precisa
enfrentar. Disso é possível concluir que a situação em Blumenau (que já fora melhor) não era
somente difícil quanto ao dinheiro, mas também quanto ao tipo de trabalho (“pesado”) que
precisava ser feito. Além disso, era um trabalho ininterrupto.

(c) Minha mãe também convidou-me gentilmente a voltar para a Alemanha, mas o pai
não quer ir. A viagem custaria tudo o que temos aqui e voltar sem nada também não é
bom viver na Alemanha.
Uma maneira de contornar uma situação que parece se repetir ( a de falta de dinheiro,
demais recursos e qualidade de vida ) é o que nomino agora de re-migração, ou seja, voltar ao
lugar de onde se veio para buscar uma melhora de vida. A proposta para esta re-migração par-
te da família que ficara na Alemanha. O “pai” não pensa em voltar de onde veio e a sra. Me-
yer parece ceder para mais esta decisão do marido. Ela escreve que é o “pai” que não quer
voltar e, na continuidade de seus pensamentos, os verbos aparecem no plural.

A justificativa apresentada parece lógica: não se quer voltar de mãos vazias. Seria uma
vergonha para o “pai”. Não creio que a sra. Meyer se importasse em voltar a viver com sua
mãe, tendo ou não uma situação financeira melhor. Ela não se sentiria envergonhada em vol-
tar à Alemanha. Pelo contrário, a idéia lhe pareceu viável e agradável. O convite era da sogra
e não do sogro – como ficaria este sogro diante do fracasso do genro? Em uma sociedade pa-
triarcal o homem tem que dar conta das decisões, dos êxitos ou fracassos do casal.

(d) Agora um assunto confidencial e de confiança, agora em 1877 será tudo pago, preza-
do genro, peço gentilmente procurar o administrador e dizer que recebeu esta carta. Agora
deve vencer uma letra e pede a ele o número da mesma, se ele não a tem, peça-lhe que a
envie e mande este número também para mim, deposito toda confiança em sua pessoa.
Em maio vence a letra de 10 Taler (moeda da Alemanha de prata) [sic]206 e que nos seria
enviado, mas quando vencer, poderá ficar com a metade, caso falte um pouco, creia eu
não tenho mais, o restante peço enviar para nós. Os sapatos que a Augusta enviou não
serviram ao pai, eram muito grandes e os meus pequenos.

206
Em português, táler é uma antiga moeda alemã, de prata, como se encontra o verbete no dicionário Aurélio. A
explicação que aparece na própria carta deve ter sido colocada pelas pessoas que trabalham no Arquivo His-
tórico em Blumenau/SC, local de onde consegui as cartas. Ou talvez seja uma observação feita pela pessoa
que traduziu a carta. No original não há nenhum detalhamento a seu respeito.
83

Como donas-de-casa, a administração também passa pela economia no lar. As ques-


tões financeiras (“assunto confidencial e de confiança”) são geridas pelas mulheres que, de
perto, acompanham e resolvem várias situações. Estas incluem, desde dívidas e dinheiro que
precisa ser enviado, até a situação de sapatos que a família necessita. A mulher administra, o-
rienta, mas são os homens que depositam o dinheiro nos bancos ou começam a desanimar di-
ante de dificuldades.

(e) É muito bom saber que o avô virá para cá, então os netos também receberão alguma
coisa. O rapé o pai faz mesmo e valem 10 Taler e leva o ano inteiro para fazer. Agora
preciso terminar. Custou muito escrever esta carta, deixei isto a cargo do Franz, mas ele é
muito preguiçoso em escrever.
Escrevam sempre que podem
Sra. Meyer.
Escrever: um trabalho custoso. Mesmo assim, a sra. Meyer se põe a fazê-lo, pois é im-
portante receber e dar notícias. Algumas razões podem ser levantadas para entender porque a
sra. Meyer acha difícil escrever uma carta: a sua idade, não escrever com freqüência, dedos
enrijecidos pelo trabalho e pela idade, trabalho ininterrupto e pesado, com o tempo permanen-
temente ocupado por atividades produtivas. A preguiça de Franz a move ao papel e à tinta.
Escrever mantém vivo um contato familiar imprescindível para o cotidiano no país adotivo.

Para a sra. Meyer é trabalho. Talvez ela usasse a luz do lampião ou enxergasse pouco.
Ela distribui tarefas: Augusta envia sapatos, Franz deve escrever as cartas. Mas Franz se mos-
tra preguiçoso, algo consideravelmente contrário a uma atitude que se esperaria dentro da éti-
ca germânica do trabalho.

A alegria da vinda de um parente é grande. Ao mencionar os netos que “receberão al-


guma coisa”, a sra. Meyer fica feliz, pois eles talvez serão supridos com roupas e outros obje-
tos necessários e em falta naquela família. Os laços são fortalecidos e a certeza do passo certo
dado marca e festeja a vinda de pessoas da família para também viverem no Brasil. Apesar
disto não estar explícito na carta, imagino que o avô não venha somente a passeio, mas para
ficar em Blumenau. Fazer coisas para vender sempre ajuda a aumentar a renda familiar. Neste
caso, o “pai” faz o rapé207, com uma entrada de 10 táleres extras no final do ano.

207
Segundo o dicionário Aurélio, rapé é tabaco em pó para cheirar. Dicionário Aurélio, p. 550. Já a enciclopédia
online wikipedia registra que rapé vem do francês “râper”, ralar, raspar. http://pt.wikipedia.org/wi
ki/Rap%C3%A9. As pessoas queriam, ao cheirar o pó de tabaco, espirrar.
84

3.2 Carta 2208


Colônia Blumenau, 10 de novembro de 1883.
Querida irmã e cunhado.
(a) Vocês certamente ficaram surpresos em receber uma carta escrita por mim. Eu sempre
esperava que o Franz o fizesse, ele escreve melhor do que eu. Mas como ele não tomou
nenhuma iniciativa eu resolvi escrever. Como sei querida irmã, você gostaria de saber
como está a mãe de saúde. O prezado cunhado que não se admire dos muitos erros grama-
ticais que faço, pois minha parte escrevo com maior boa vontade.
A timidez das mulheres na hora de escrever é grande, sua intrepidez, também. Apesar
dos maridos não serem companheiros nestas horas (a carta anterior já demonstra isto), elas fa-
zem questão de mandar notícias para sua família. Sinto ser este o ponto central que explica
tomar para si uma tarefa penosa, que requer iniciativa, requer tomar a frente em uma questão
que deveria ser resolvida pelo marido, requer coragem para escrever a um outro homem,
mesmo com erros.

Mandar notícias para a família, “com maior boa vontade”, é um fundamento para as
relações familiares que se mantém firme, tecendo e arrematando nós nas redes sociais inter-
continentais. Além disso, mandar notícias para a família na língua alemã é sentir-se alemão, é
sentir-se pertencente àquele ethos, àquele modo de ver o mundo.

(b) Nós passamos por vários anos difíceis, a saúde da mamãe e a grande enchente há três
anos passados nos prejudicou muito. A água subiu tão alto que as pessoas tiveram que
abandonar suas casas e abrigar-se em igrejas construídas nos morros. Nós estávamos a-
brigados na Igreja Católica por três dias. Algumas pessoas dormiam no chão, eram aque-
las que conseguiram salvar alguma roupa de cama. Quando as [sic] saíram das casas vi-
mos realmente o estrago que causou. Em nossa casa tinham desmoronado paredes inter-
nas que eram de barro. A casa do nosso vizinho, que era bem grande e tinha sido constru-
ída há apenas um [sic] tinha desmoronado e atingido uma parte do nosso telhado. O Chi-
queiro com três porcos tinha sido arrastado pelas águas, todas as cercas em volta das ca-
sas muitas tábuas e casas tinham sido levadas pelas águas. Para nós ela trouxe muitos ou-
tros dissabores ainda. Nós não estávamos nem oito dias outra vez em nossa casa, onde tí-
nhamos que dormir no chão, pois tudo estava molhado ainda e continuava a cair uma
chuva fina e as casas não secavam. Eu estava justamente lavando as portas cheias de la-
ma, quando mamãe levando uma pá, resolveu subir ao sótão para ajudar na limpeza. Subi-
tamente ouvi atrás de mim um barulho e vi que mamãe tinha escorregado nos primeiros
degraus da escada, como seus chinelos eram de couro com água e a lama tinham se ras-
gado ela usava tamancas e tinha provavelmente pisado em falso.
Grandes dificuldades, e não uma vida fácil na terra prometida, foi o que muitas mulhe-
res e homens enfrentaram ao chegarem e se instalarem ao sul do Brasil. A floresta, cortada a
machadadas, a construção de uma choupana com telhado de folhas de palmeira, a organização

208
Auguste WACKERNAGEL, Colônia Blumenau, para sua irmã e cunhado, do dia 10.11.1883.
85

do pátio209, da horta, dos animais, tudo é serviço longo, penoso, pesado. Por fim, uma grande
enchente leva todo este trabalho sem compaixão, fazendo com que estas famílias continuem a
escrever sua história intimamente vinculada à dor e ao sofrimento.

A enchente revela um modelo de conforto moderno (cama, quarto). Para as pessoas


nativas havia a rede. Projetar uma cidade em um vale torna a enchente um fenômeno natural
possível em tal contexto geográfico.

Auguste Wackernagel conta que sua mãe escorregou dentro de casa quando ambas es-
tavam fazendo a limpeza após a enchente. São histórias e memórias de um cotidiano que é
história e memória de uma colônia, hoje cidade de Blumenau/SC. Destacar os aspectos corri-
queiros de limpeza após uma enchente como aspectos históricos emoldurados por um cotidia-
no específico (tão outro do cotidiano anterior e do posterior à enchente), traz à história e à
memória da imigração não somente a grande enchente daquele ano, mas detalhes de como as
pessoas experimentaram e delinearam tal história a partir da perspectiva da limpeza, por e-
xemplo.

Olhar a história através da experiência destas mulheres e no cotidiano de uma grande


enchente, emergência que assolou Blumenau repetidas vezes, possibilita um registro, uma
percepção, um estudo e uma pesquisa da vida de uma cidade, de seus inícios, de sua popula-
ção de forma mais próxima, mais incorporada, e não oficialmente etérea como costumam ser
as histórias dos municípios, relatando a vida de seus prefeitos e dos feitos da câmara de vere-
adores. Eis porque considerar as cartas como documentos que contêm registros de fatos histó-
ricos e, assim, como tais, colocá-las lado a lado com os jornais.

(c) Começou então um longo tempo enferma no leito, durante 10 semanas tratei dela dia e
noite. Havia muito trabalho, a plantação estava arruinada, tínhamos que replantar tudo
novamente. A perna da mamãe ficou paralisada, ela mancava com uma perna só e só se
locomovia com uma bengala. O pai depois da enchente arruinou sua saúde isto devido
muito trabalho e também porque no primeiro tempo andava sempre descalço na lama e
sujeira. Adoeceu certo dia com hidropisia e teve três longos meses um triste leito de en-
fermo. Ele tentava, mas não conseguia engolir nada. Além disso tudo, sempre estava fe-
bril, uma vez forte, outra vez menos. Como não se alimentava, aos poucos foi morrendo
de fome [o que aconteceu] a 6 de dezembro de 1881, quando tinha 76 anos e 11 meses.210

209
Pátio aqui é a tradução usada para o termo alemão Hof. maiores detalhes acima, nos Textos dos jornais nos
quais as mulheres alemãs falam ou delas é falado/1) “Por medo, angústia e dores, por lutas e temo-
res”/parágrafo (m), p. 103s.
210
Hidropisia, segundo o dicionário Aurélio, é uma “acumulação anormal de líquido seroso em tecidos ou em
cavidade do corpo”. Dicionário Aurélio, p. 341.
86

Saúde e doença são temas constantes nas cartas, cartas escritas por mulheres. Este te-
ma recorrente justifica-se, pois também são elas que cuidam das pessoas enfermas, elas são
sua responsabilidade. O pai e a mãe de Auguste adoeceram em conseqüência da enchente. A
mãe ficou longas semanas de cama, o pai chegou a falecer, pois ficou hidrópico211 e não con-
seguia se alimentar. A notícia da morte foi dada à família na Alemanha dois anos depois de
acontecida. A data do falecimento é dezembro de 1881, a carta, por sua vez, é datada de no-
vembro de 1883. As doenças faziam parte do cotidiano do século XIX. Havia poucos trata-
mentos, pouca higiene e muitas epidemias.

Além da questão da saúde de familiares, o que pesa aqui é o novo começo após a en-
chente. A plantação precisa ser refeita, mãe e pai exigem cuidados especiais e outras ativida-
des extras preenchem o dia-a-dia já tão atarefado de Auguste . Ela fala no singular quando o
assunto é cuidar da mãe; parece que assumiu esta tarefa sozinha. Ela fala no plural, quando o
assunto é a roça; parece que ali não esteve sozinha, mas acompanhou o marido ou alguém da
família na realização deste trabalho. De qualquer modo, Auguste W. assume tanto a tarefa de
cuidar da mãe, quanto a de ir para a roça. Uma destas atividades, a de cuidar da mãe, parece
ser eminentemente de sua alçada, a outra, ela realiza, pois se vê como apoio e esteio da famí-
lia nestes tempos difíceis. As duas atividades, porém, são inquestionavelmente incumbência
de Auguste , seja porque ela opta e organiza o seu dia em função disso, seja porque se espera
dela, enquanto boa esposa e dona-de-casa, que assuma a responsabilidade pelo andamento do
lar.

(d) Eu vivo com a mãe e meu filho. Os pais tinham alguns 100 mil réis emprestados a ju-
ros, mas na grande enchente já foram ultrapassados e tivemos prejuízos depois da morte
do pai mais ainda.
A enchente trouxe grandes prejuízos, as doenças e a morte também. Auguste W. se vê
em dificuldades financeiras e isto a preocupa.

(e) Além de tudo isso a mamãe ficou demente212 e isto foi comentado de forma tão cruel
por todos, inclusive meus irmãos insinuavam que eu tentei colocar veneno em sua comida
porque certo dia das 10 horas da manhã até outro dia às 11 horas ela não tinha bebido
nem comido nada. Apesar de todos os comentários permaneci ao lado dela. Certo dia per-
guntei-lhe se durante toda a sua enfermidade mesmo anterior eu uma [sic] levei comida

211
Hidrópico é a pessoa que tem hidropisia.
212
Hoje em dia existem vários tipos de demência. Um deles é o mal de Alzheimer, doença degenerativa, que afe-
ta, entre outros, a memória das pessoas. Na época em que vivia a mãe de Auguste W., esta doença ainda não
era conhecida. Ela foi descrita pela primeira vez em 1907.
87

estragada para ela, aí parecer [sic] que ela teve um sentimento de lucidez e começou a
chorar eu pensei que agora tinha terminado esta demência.
As situações de conflito na família são tema nesta carta. Auguste acaba ouvindo de
seus irmãos que trata mal de sua mãe, pois esta, aparentemente ou por causa de uma demên-
cia, ficou um dia inteiro sem comer. Para os irmãos, a culpa desta situação é de Auguste, que
não sabe cuidar direito da mãe. Por isso ela é criticada. Não transparece na carta nenhum
momento em que os irmãos estivessem ajudando Auguste com sua mãe ou oferecendo tal aju-
da. A responsabilidade é dela.

A mulher é considerada e ensinada a ser responsável não somente pelas crianças da


casa, mas também pelas pessoas idosas e doentes. Qualquer coisa errada que aconteça ou que
simplesmente não esteja ao agrado de algum dos homens da família, é motivo de crítica, de
zombaria, de insulto, de comentários cruéis. Esta é uma violência cometida contra a mulher
com muita regularidade e, como tal, desconsiderada. Somente se vê em Auguste , e em tantas
outras como ela, a mulher que precisa viver conforme os papéis sociais o exigem.

(f) Querida irmã, agora você pode ver que tempos horríveis passamos. Meu marido já está
internado em um manicômio no Rio de Janeiro há 10 anos. A Colônia tem progredido e
temos boa comunicação e uma estrada de ferro também será construída. Por motivo de
doença esta carta seguiu para o correio mais tarde do que o previsto. Dê lembranças a seu
marido e seus filhos.
De meu filho Karl e de sua irmã
Auguste Wackernagel.
Blumenau, 2 de maio de 1884.
Quando Auguste W. escreve esta carta, ela se tornara chefe de família há mais de dez
anos. O marido estava no manicômio desde 1873. Não somente por ser dona-de-casa lhe é co-
brada toda a responsabilidade pelo lar e pelas pessoas que nele moram, mas também por nele
assumir uma posição de liderança, por assumir a posição, o papel social de pai. A carta é en-
viada seis meses depois da data registrada em seu cabeçalho.

3.3 Carta 3213


Carta n° 13214
Blumenau, 1° de dezembro de 1889.

213
Leopoldine MEYER, Blumenau, para seu cunhado, do dia 01.12.1889.
214
Esta é novamente uma numeração encontrada no topo da carta, podendo ter sido colocada por alguma pessoa
do Arquivo Histórico em Blumenau/SC. Desta vez, o número do documento e esta numeração não são as
mesmas.
88

Prezado Cunhado!
(a) Como meu marido é muito preguiçoso para escrever, eu pego a pena para noticiar que
recebemos sua carta, também a anterior com as fotografias, ficamos contentes e agradeci-
dos.
A frase inicial desta carta revela o quanto as próprias mulheres escreviam, aparente-
mente mais do que os homens. Para as mulheres é imperioso deixar a família a par da situação
vivida no Brasil. Também uma carta recebida não deveria ficar sem a devida resposta. Elas
pegam na pena, pois os maridos não o fazem e há uma tarefa a cumprir .

(b) Eu encontro certa semelhança entre seu filho Emil e nosso Emil. Aqui é muito caro
senão já teríamos enviado fotografias de nossas filhas. Alegra-nos saber que seu filho Wi-
lhelm casou novamente. Nosso Bruno ainda não encontrou quem substituísse a primeira
esposa. Os outros estão todos bem de saúde. Tio Fritz já está casado há mais de 10 anos
mas não tem filhos. Ao que se refere a Tia Auguste é que ela esta com saúde mas sempre
preocupada com seu filho único que está longe.
Este trecho traz informações das famílias de ambos os lados. Contam-se as histórias
dos filhos e filhas, de casamentos, também a saúde é tematizada. Vive-se família através da
correspondência, laços familiares são mantidos desta forma, estabilizando uma rede de conta-
tos vital para os que foram embora e para os que ficaram. As cartas também eram um momen-
to importante de desabafar assuntos pessoais, renovando o ânimo para quem não tinha muito
com quem conversar e em quem confiar.

As fotografias são registros por excelência das relações familiares. A sra. Leopoldine
usa a imagem recebida para fazer comparações entre os primos Emil. Ela lamenta não poder,
do mesmo modo, enviar fotografias de suas filhas para o cunhado, por falta de dinheiro para
um tão grande investimento.

Estar casado e ter filhos/as é estar em boa situação social ou em uma situação social
estável e segura, dentro dos padrões esperados. Wilhelm e Bruno já estiveram casados uma
vez. O primeiro voltou a casar e espera-se que o segundo também o consiga. Um casamento
de anos que não tenha gerado filhos/as é incompleto. Assim nasce o comentário sobre o Tio
Fritz. A preocupação pelo filho é uma constante na vida de Tia Auguste, o que a enquadra na
imagem de mãe sempre ocupada com outros.

(c) Quanto à herança posso dizer-lhe que continua tudo no mesmo depois que recebemos
sua procuração a mesma foi publicada no jornal oferecendo a casa à venda, mas como já
expliquei anteriormente, a casa está em ruínas, a cozinha desmoronou totalmente. No
Brasil nada é construído bem, e agora estávamos numa péssima época. Até o presente
momento não se apresentou nenhum comprador; os irmãos também não querem se desfa-
zer dela por uma bagatela. Portanto é preciso paciência até que seja vendida, quando isto
89

acontecer o senhor receberá imediatamente a parte que lhe toca. Mas deixe que proceda-
mos com paciência.
Estas linhas demonstram o conhecimento das mulheres a respeito dos negócios da fa-
mília. Mesmo não sendo elas a negociar diretamente a casa e o terreno (“os irmãos não que-
rem se desfazer dela”), elas sabem detalhes do processo de sua venda e em qual estágio se en-
contra o mesmo no momento. Elas aplicavam a diplomacia familiar, regada pelo sentimento.
É interessante observar que a cozinha é a única peça da casa à venda mencionada explicita-
mente por Leopoldine M. É a peça que ela mais conhecia. As famílias alemãs construíam suas
casas de barro – como os nativos – e afirmam que a casa não dura. É uma outra lógica de du-
ração e isto é um empecilho para a maneira germânica de pensar o tempo.

Até agora, a questão da alimentação, da cozinha, do preparo dos alimentos não é trata-
da pelas mulheres em suas cartas. Será pelo fato de ser óbvio que seu lugar seja ali? Na carta
anterior, a alimentação aparece ligada à enfermidade do pai da missivista e do comentário dos
irmãos quanto a envenenar a comida da mãe. A cozinha é o lugar de saberes e de trocas das
mulheres, mas é o lugar menos tratado nestas cartas. Estes saberes parecem intrínsecos e pa-
recem surgir no e a partir do papel social (o de boa dona-de-casa) que a elas compete. A escri-
ta custa esforço. As mulheres não vão escrever sobre obviedades.

Então, o que as próprias mulheres fazem com o papel da boa dona-de-casa? Aparen-
temente a cozinha, como o espaço ocupado por excelência pelas mulheres , revela-se explici-
tamente um construto social. Elas mesmas não o mencionam como notícia, como informação,
como relato de vida em suas cartas aos parentes distantes. Relatam como são ruins as constru-
ções, que não são cozinhas como se encontram na Alemanha, que desmoronam facilmente.

(d) Como estão todos vocês? Já deve fazer bastante frio, nós provavelmente teremos um
Natal muito quente, temos tido quase que diariamente uma temperatura de 28 a 30 graus
Resmur215 na sombra. Mas agora vou finalizar esta na esperança que a mesma encontre
todos com saúde e respondam logo a sua cunhada
Leopoldine Meyer
A necessidade por notícias sempre é urgente. Pedir por elas, também. Querer saber
como estão todos, mostra como a família procura acompanhar-se, mesmo à distância. O calor

215
Esta é uma medida de temperatura. O correto seria Reamur. Eu não possuo o original desta carta e na tradu-
ção aparece o termo como transcrito acima. A escala Reamur surgiu por volta de 1730, através das pesquisas
de René-Antoine Ferchault de Reamur (1683-1757). A temperatura Reamur (RE) é 4/5 mais alta, no cálculo
matemático, do que a temperatura dada em Celsius (C). Ou seja, 24°C são equivalentes a 30°RE. Agradeço
estas informações à Profa. Ms. Erika Collischonn.
90

devia incomodar muito, era um natal sem neve, sem frio. Encontrar todos com saúde era mui-
to difícil, pois havia muitas doenças na Europa, pouca medicação ou tratamento. Havia um
vasto desconhecimento em relação a doenças graves e ainda não existia a penicilina.

(e) Compêndio da carta:216


Prezado Emil!
Os pais pedem a você que responda a carta com mais delicadeza. Agora gostaria de per-
guntar, você pode conseguir para mim um despertador? Se for o caso, por favor mande
um para mim. Os pais anexam uma fotografia da pequena Katarina.
Muitas lembranças enviam os pais e Otto. Prezado Emil nós temos hoje roupa, você deve
ter esperado muito por ela mas a mulher nunca tinha tempo.
Chama a atenção o pedido por objetos provavelmente não disponíveis nas colônias ou,
se disponíveis nas vendas ou com mercadores ambulantes, muito caros. Penso no despertador,
pedido aqui, e indiretamente na roupa. Esta última não é pedida explicitamente, mas a palavra
“hoje” coloca a necessidade de roupa para um futuro talvez nem tão distante.

As fotografias são, com grande freqüência, lembradas como um elo profundo entre as
famílias. Histórias, memórias, cotidianos e experiências estão expressas nestes pequenos pa-
péis, guardados com carinho em algum álbum de família ou enquadrados e colocados em lu-
gar de honra nas paredes da sala de estar da nova casa. É a materialidade da presença do ou-
tro, ele não está, mas a carta escrita e a fotografia são registros palpáveis para a lembrança.

Brochura

Família Kleine – Brochura contendo cartas de Ida Kleine no período de 1857, 1863,
1884, 1888, 1896 a 1903 e 1911.217

3.4 Carta 4218


Blumenau, 4 de setembro de 1857.
05.11.1857.219
(a) Meu muito querido irmão!
A sua carta me fez imensamente feliz, é um lenitivo por tudo que difícil eu tenho que pas-
sar aqui. Que venha sempre tal alegria!

216
Este compêndio, ou resumo, aparece na carta traduzida e datilografada. Esta é a única da qual eu não tenho
uma cópia do original manuscrito.
217
Para esta pesquisa, considerei as cartas da brochura que foram até 1899.
218
Ida KLEINE, Blumenau, para seu irmão, do dia 04.09.1857.
219
Aparecem duas datas na carta traduzida, a de setembro e a de novembro. No original manuscrito, consegui
localizar apenas a de novembro e ela aparece desta forma: 5.11.57.
91

A alegria de receber notícias também se expressa aqui. Ida Kleine220, inclusive, consi-
dera o recebimento da carta do irmão uma espécie de consolo, alívio, conforto para a vida di-
fícil que está levando. A colônia Blumenau foi criada em 1850. Existe, portanto, há apenas se-
te anos e a situação toda certamente é marcada por grande precariedade. É possível que a fa-
mília de Ida K. tenha chegado há pouco tempo e ainda encontre tudo, isto é, casa, pátio, horta,
curral, chiqueiro, roça e muito mais, ainda por fazer. Tudo por fazer dentro de um modelo de
roça, de criação, de casa – alemão. Imitar os nativos que aqui viviam e aí fazer as idiossincra-
sias não era nada fácil.

(b) Eu recebi com muita emoção e gratidão o dinheiro que você enviou, ele chegou bem
em tempo, mas não fique demasiado preocupado. Como eu quero rezar por você, pois sa-
bes bem o que isto significa para nós. Em comprar um maior complexo de terra agora,
não podemos. Mas um pedaço pequeno que já esteja cultivado, mais tarde podemos pen-
sar em outro; 36 m o Blumenau nos descontou, 20 m e agora a sua amável ajuda. Já de-
mos um bom passo a frente e compramos, [sic] que agora estão no curral. Mas não pode-
mos ficar inativos pois nada virá sem esforço. Mas tudo, tudo de bom vem de você!
As quatro cartas até agora testemunham a evidente falta de dinheiro e recursos para
começar uma vida nova. Com bastante apreensão aguarda-se por uma ajuda da família e seu
recebimento é motivo de gratidão. Ida Kleine afirma não querer que seu irmão fique preocu-
pado e revela interceder por ele a Deus em oração. Escreve acerca da situação em que vivem,
mas não detalha as dificuldades pelas quais passa.

As cartas, como material de pesquisa, possuem discursos e notícias em suas entreli-


nhas. Diferente dos jornais, o crivo nas cartas passa pela própria autora, que escolhe o que vai
dizer e com qual detalhamento. Nos jornais, esta é a tarefa do editor. O público leitor de am-
bos os materiais tem, por sua vez, uma maneira própria de reter ou não estas ou aquelas in-
formações. O leitor das cartas, por exemplo, tem a emoção, a saudade do parente, a existência
material que este parente está vivo em terras tão distantes.

Ida Kleine detalha assuntos de ordem econômica, como a compra de terra e, aparen-
temente, de animais. A carta traduzida deixa lacunas, pois menciona somente o curral. Há la-
cunas também no tratamento com o diretor da colônia, o Dr. Blumenau. Ele descontou 36m
do pedaço de terra, talvez a título de pagamento de dívida. E o que há com os 20m? A ajuda

220
Ida Konstanze Cölestine Maria Josephine Kleine, nascida Dittrich, é filha do jurista Johann Joseph Dittrich e
de Ana Maria Theresia Weyrich. Karl KLEINE, Blumenau einst, p. 5.
92

financeira do irmão de Ida Kleine parece ter aliviado as contas da família e ter possibilitado a
ampliação das instalações de sua propriedade.

(c) Ah! Se tivesse passado já um ano, aves podemos ter e tratar com o próprio milho plan-
tado, a plantação não fica muito distante da casa, que vamos comprar. É suficientemente
grande para nós, mas ainda precisamos cercá-lo, do contrário não podemos manter ani-
mais. Os vizinhos os matariam logo. Tudo isto requer muita paciência. Na compra de uma
vaca podemos pensar mais tarde, já é muito trabalhoso assim, não poder comprar o que
mais necessitamos, o que é a semente. O mesmo custa 14 st. de acordo com nosso dinhei-
ro.
Ida Kleine suspira para que o tempo passe depressa e que tudo esteja devidamente ins-
talado. Será possível suspeitar, com base nesta frase inicial, que sua família chegou há menos
de um ano na colônia Blumenau? A euforia com que escreve a carta para o irmão pode dar a
entender que recentemente se afastaram um do outro. Há uma informação mais precisa a este
respeito. Ida Kleine e seu marido, Theodor Kleine, emigraram para a colônia Blumenau no
verão de 1856, lá chegando um pouco antes do natal.221

Desta informação se conclui que, na data em que Ida K. escreve a sua carta, ainda não
havia completado um ano da estadia da família em Blumenau. Karl Kleine descreve assim a
chegada:

Finalmente! – Finalmente atracamos pela última vez! – Perto da foz do Garcia os barcos
acostaram e o Patrão disse: “Não continuamos (ou: Não há mais nada ali adiante!)! Aqui
é Blumenau!” - A nossa chegada foi bem triste! Ninguém nos recebeu! [...] Nós somente
víamos um pedaço de terra desmatada a nossa frente, que estava cheio de inço.222
As aves, o milho, a plantação, a casa, a cerca em torno dela para delimitar o pátio
(Hof), a vaca e as sementes são preocupações de Ida Kleine. Os vizinhos também não esca-
pam à sua atenção. Tudo é relatado ao irmão. A questão é: tudo fica somente no relato? Ou
será que Ida Kleine também é responsável por todas estas atividades? Por sua organização e
execução? Será que o “difícil” com que ela descreve o seu tempo em Blumenau está relacio-
nado a estes cuidados todos, a todo este trabalho? Ou à necessidade de ter paciência constan-
temente?

221
K. KLEINE, op. cit., p. 5.
222
Ibid., p. 51-52. “Endlich! – Endlich landeten wir zum letzten Male! – Dicht unter der Mündung der Garcia
legten die Boote an, und der Patron sagte: “Nix weiter! Hier Blumenau sein!” Unsere Ankunft war sehr
traurig! Niemand empfing uns! [...] Wir sahen nur ein abgeholztes Stück Land vor uns, das voll Unkraut
war.”
93

Suspeito que o trabalho ininterrupto fez parte da vida da missivista. Este precisava ser
organizado e adequado ao tempo disponível. Ser paciente e ter perseverança eram fundamen-
tais para o período histórico em questão e para as mulheres especificamente. Ser paciente e
ser mulher eram faces da mesma moeda.

(d) Ainda peço a você, caso Julius vier ele trazer de Hamburgo, tecido grosso para vesti-
dos baratos e também um pequeno forno onde eu possa assar alguma coisa, este lá é mui-
to barato, se custar demais você pode descontá-lo de nossa reserva. Para as crianças são
necessárias roupas simples e resistentes.
Também aqui o parente (ou conhecido) que vem ao Brasil precisa trazer encomendas:
tecido grosso, um forno, roupas infantis. São utensílios que fazem falta na colônia e que me-
lhorariam a qualidade de vida da família. Fica mais barato alguém trazer um forno do que
comprá-lo na colônia, pois as famílias alemãs imigrantes que entram no Brasil, não precisam
pagar taxas alfandegárias pelo que trazem.

Pelas cartas é de se supor que há uma reserva em dinheiro ou bens para casos de ne-
cessidade, guardada pelas famílias na Alemanha, seja com os próprios familiares, seja com
terceiros (administradores223, procuradores).

(e) Que Julius traga de qualquer maneira para ele roupa simples e grosseira, porque no
que se refere a roupa, aqui estamos mal servidos.
Adquirir roupa é uma grande dificuldade nas colônias. Já o comentava Johann, perso-
nagem apresentado no capítulo três224.

(f) Antes de nossa partida de Hamburgo ninguém nos preveniu a respeito do que nos es-
perava aqui, mas estamos muito felizes por ter encontrado uma pequena propriedade.
Esta frase é muito significativa. Ela contraria toda a propaganda feita de que a imigra-
ção seria um sucesso. A imigração, sob muitos aspectos, foi considerada uma empresa bem
sucedida. O que nem sempre conferia eram as condições encontradas in loco, que eram muito
aquém do bom e do melhor dado a entender pelos agenciadores. A América e, por extensão, o
Brasil, principalmente o sul do país, eram alardeados como locais onde “mana leite e mel”225.
América era a palavra mágica que resolveria todos os problemas de terra e de dinheiro que as
famílias experimentavam na Europa em industrialização. O verbo “prevenir” usado pela mis-
sivista, atesta dificuldades encontradas, e estas não eram poucas.

223
Veja Carta 1, parágrafos (b) e (d), p. 127.
224
Mulher alemã imigrante/”Diário de um imigrante”, p. 73.
225
Êxodo 3.8.
94

(g) Eu ainda queria escrever várias cartas, mas não há mais tempo e só posso escrever a
você querido irmão pois já é noite. Os nossos filhos estão com saúde, sentem um pouco a
mudança, mas estão com saúde e contentes nos ajudam na plantação de milho. Precisa-
mos terminar, apesar de ter ainda muito a dizer-lhe. Passe bem, eu estou sempre contigo e
escreva muito... Sua irmã Ida Kleine.
A vontade de escrever é grande. Ida Kleine não se refere a esta atividade como uma
coisa penosa em si ou como uma tarefa sendo realizada no lugar do marido. Ela tem vontade
de escrever “várias cartas”, pois teria muito para dizer e teria muito mais notícias para dar.
Em um trecho fica evidente a quantidade de trabalho que Ida K. tem a realizar, pois somente
consegue escrever à noite, sendo este também um dos motivos por não escrever o quanto gos-
taria. Só a noite lhe é reservada para contar de sua vida. Ida K. ocupa um tempo aparentemen-
te “vago” para uma atividade não-produtiva ou funcional, mas para uma atividade que lhe dá
prazer. Aqui é possível constatar uma brecha, uma fissura por onde escapa a vida para além
do trabalho e da obrigação.

A família toda ajuda. Os filhos trabalham junto à plantação de milho. Johann dizia que
todos precisam fazer a sua parte.226 As crianças trabalhavam desde cedo.

3.5 Carta 5227


Blumenau, 14 de dezembro de 1863.
Enviado 27.02.64, através do consulado.
(a) No dia 18 do mês recebemos suas queridas palavras, infelizmente o correio já tinha
ido, mas agora escrevo para expressar-lhe mais uma vez minha grande alegria e agrade-
cimento, esta é nossa sina. Seu amor é um clarão de esperança em nosso exílio e eu me
seguro nele, mesmo que às vezes se torne muito difícil, e muitas vezes tudo que nos cer-
ca, me assusta. E com sacrifício volta à realidade. Ah! Se eu pudesse ver você mais uma
vez, creia meu querido irmão, Theodor e eu acharíamos a vida mais suportável. Nós não
podemos ainda adaptar-nos a nova vida. Mas descrever tudo a você detalhadamente leva-
ria muito tempo. Só quero dizer que é muito difícil para alguém que tem um pouco de
cultura, eu às vezes me sinto muito infeliz e somente lágrimas aliviam minha tristeza. As
pessoas cultas aqui olham para nós por cima dos ombros, mas nós não lhes ficamos atrás
em conhecimentos, e mesmo com uma total abstenção de qualquer contato com eles, nos
procuram observar sempre que podem com curiosidade.
A alegria de receber notícias é recorrente. Também o é a vontade de enviá-las. Quando
não se alcança o correio em tempo, a decepção é grande. A palavra escrita quer expressar o
desejo e a vontade real da proximidade com as pessoas que ficaram na Alemanha. Como não
se podem abraçar ou conversar pessoalmente, a alegria e o agradecimento vão expressos nas

226
Mulher alemã imigrante/”Diário de um imigrante”, p. 72.
227
Ida KLEINE, Blumenau, para seu irmão, do dia 14.12.1863.
95

cartas. A distância física e geográfica da família está sendo colocada dentro dos limites do
destino, da sina. Estar na situação de ausente de uma determinada vida familiar é sina, é desti-
no que está se cumprindo. Há o reconhecimento de que o passo dado nem sempre foi a melhor
decisão, mas o consolo vem, pois “esta é nossa sina”.

O amor dos parentes, o amor do irmão de Ida K. lhe é vital não só por ser seu irmão,
sua família, mas porque notícias do lugar de pertencimento, do lugar de nascimento, do lugar
que lhe fora um lar, são esperança no exílio. Exílio lembra distância de um lugar querido,
lembra a obrigação de ter saído deste lugar, lembra que não se pode voltar a ele quando se
quer. Poucas vezes a palavra é relacionada a um ato voluntário e normalmente exílio pode ser
visto como um local desagradável de se viver ou ficar.

Exílio traz saudades, lembranças, lágrimas. Para Ida K., viver aqui na colônia Blume-
nau era viver exilada, distante e desesperançada; era sofrer. Uma carta que expressa amor em
meio a estes sentimentos tristes é como uma tábua de salvação. Ela fornece segurança, tira o
medo e o susto, apesar das muitas dificuldades. Ida K. está assustada com tudo o que precisa
enfrentar aqui, longe da família.

Receber e ler uma carta que vem de longe é como esquecer por instantes os sacrifícios
feitos para ter o que se tem, para se viver com o que se tem. É um desligar-se da realidade por
vezes cruel e ligar-se intensamente aos laços familiares, renovando-os. Fechar a carta e guar-
dá-la, depois de lida, significa reassumir os papéis sociais colocados de lado por aqueles ins-
tantes e enfrentar novamente a realidade. O exílio, nas palavras de Ida K., traz consigo a von-
tade de ver as pessoas, de tocá-las, abraçá-las. Uma impossibilidade que clama por ser atendi-
da, pelo menos mais uma vez. “A vida [seria] mais suportável.” Estas palavras não são só de-
sejo e vontade de Ida K., mas também de seu marido Theodor. Ambos lutam para seguir em
frente neste novo caminho.

O exílio exige uma série de adaptações e estas por vezes custam a acontecer. Ida K.
não se preocupa em tornar-se ou sentir-se teuto-brasileira. Pelo contrário, as pessoas que mi-
gram, procuram antes cultivar os bens que trouxeram na bagagem. Mas o dia-a-dia as impele
a agir de forma diferenciada do que estavam habituadas e acostumadas. Hábitos e costumes
96

do passado e do presente começam a mesclar-se. Tornar-se e sentir-se teuto-brasileiro/a228, vi-


ver este pertencimento étnico-cultural em formação, transitório no ir e vir do encontro entre
pessoas e situações, requer constantes negociações, adaptações, revisões, auto-críticas.

Ida K. sente profundamente a falta de algo para o seu espírito, para a sua formação
cultural, algo prazeroso, que pudesse ser construído em grupo. Quando ela escreve que se sen-
te infeliz e triste, sem poder cultivar uma vida mais social, suspeito que na Alemanha ela te-
nha vivido e presenciado peças teatrais, concertos musicais, quermesses de igreja, festas reli-
giosas. É importante mencionar o convívio social de visitar amigos (aqui eles ainda não tem
amigos), festas com os parentes e/ou lido livros. É em meio às colônias alemãs que desabro-
cham as associações de teatro, de tiro, de ginástica.

As comparações feitas quando se vive em outro espaço cultural são inevitáveis e acon-
tecem de todos os lados. Ida K. se refere aqui às “pessoas cultas”, a “eles, [que] nos procuram
observar sempre [...] com curiosidade.” As pessoas que aqui já vivem são vistas pelos imi-
grantes como arrogantes e orgulhosas, pois transmitem a crença na superioridade de sua cultu-
ra e na posse de um maior conhecimento. Qualquer contato, por menor que fosse, era motivo
para Ida K. sentir-se diferente, não correspondendo às expectativas nem das pessoas que já
vivem na colônia (ou fora dela), nem de suas próprias. Por outro lado, não ter contato ou abs-
ter-se do contato com as pessoas cultas, não se mostra eficaz para combater a sua tristeza pela
ausência de vivência cultural. As cartas aproximavam as mulheres de uma sociedade cujos va-
lores elas conheciam. Aqui era tudo desconhecido, sinônimo de sacrifício.

(b) Tão cedo não conseguiremos vender nossos produtos, mas felizmente não sofremos
com falta de alimentos. Mas de uma coisa estamos certos de que aqui em Blumenau, não
recolheremos aquilo o que nós transportamos a ela em sacrifícios e somente nos conten-
tarmos com o mínimo. Você devia ver e sentir tudo isto, viver em um pequeno rancho de
madeira entre os mais finos odores e, nos meses de frio, enfrentar as manhãs geladas.
Porque somente no natal e janeiro às vezes é um pouco quente demais. Mas as trovoadas
refrescam as noites. O vento, passando pelas árvores, quebram galhos e você se assusta,
imaginando o que teria acontecido.
Apesar de todas as restrições impostas pelas circunstâncias, Ida K. constata que não
lhes falta alimento. Ainda não tem o suficiente para colocar algo à venda, mas a produção pa-
rece estar rendendo frutos para a sobrevivência da família. Ela se mostra certa de que todo es-

228
Veja uma discussão mais detalhada a respeito do “tornar-se e sentir-se teuto-brasileira” no capítulo três, onde
trato da questão logo nos primeiros parágrafos.
97

te sacrifício está valendo a pena e que, mesmo agora vivendo com o mínimo, os resultados
são promissores. Ida K. está empolgada, querendo que o irmão veja e sinta tudo o que ela e a
família estão passando. As palavras no papel não são suficientes para descrever ao irmão tudo
o que construiu, principalmente quando forjado pelas dificuldades. Enfrentar o frio e morar
em um rancho de madeira são extremos desconhecidos até então, mas agora vividos e experi-
mentados. Isto esclarece um pouco das dificuldades de adaptação que muitas famílias tiveram
ao imigrarem para o sul do Brasil e da qual fala a própria missivista.

Comparando as estações brasileiras com as alemãs, Ida K. descreve o calor dos meses
de dezembro e janeiro, o que também precisou ser incorporado. Da mesma forma as trovoa-
das, tão típicas nos trópicos, despertaram motivos para descrição. Junto com as trovoadas cos-
tuma surgir o vento, por vezes forte a ponto de quebrar galhos de árvores. Na Alemanha estas
situações não são muito comuns.

(c) Mas este ano, querido Hermann, acreditamos que o plantio de fumo já nos traga algu-
ma boa visão para o futuro. Começaremos com a fabricação de charutos e as crianças te-
rão que ajudar bastante. Mas dizem que o comércio este ano está mais fraco e o preço por
uma libra de charutos caiu em 1/3. Mas vamos aguardar o que o futuro nos traz.
Lavrar a terra e apostar em novas plantações são experiências destas famílias imigra-
das. Plantar fumo parece ser mais uma tentativa de melhorar a vida. Aqui Ida K. nos revela o
nome de seu irmão, Hermann. Ela traça perspectivas e planos de futuro a partir do que o fumo
poderia trazer como opções de uso e venda. A intenção é fabricar charutos e aqui se testemu-
nha novamente o fato de que as crianças são incluídas no trabalho e no planejamento do
mesmo.

Nas colônias alemãs e na história da imigração alemã em geral, relata-se com bastante
freqüência da necessidade que as famílias viam em ter uma escola para as crianças. Estas fa-
mílias também se esforçaram muito para construir tais escolas, transformando uma necessida-
de em ação concreta. Nos jornais se lê que estas mesmas crianças não ficavam durante muitos
anos freqüentando os bancos escolares, pois meninos e meninas já precisavam trabalhar em
casa.

A necessidade sentida de enviar as crianças a escolas mantidas pelas próprias comu-


nidades de imigrantes rivalizava com a necessidade do aporte de trabalho das mesmas à eco-
nomia familiar. A escola era importante para os primeiros anos de formação da criança. De-
pois disso, essa importância diminuía e a própria colônia não se esforçava para possibilitar o
98

estudo após o período de alfabetização, estudo básico da matemática e conhecimentos gerais.


Ida K. já escreve ao irmão que as crianças terão que ajudar bastante quando começarem a fa-
bricar charutos.

A autora, apostando no fumo e na fabricação de charutos para vencer a falta de dinhei-


ro, está bem informada quanto às possibilidades de realmente venderem os charutos depois de
prontos. Ela sabe o que dizem a respeito do comércio dos mesmos e que os preços não estão
bons no momento. Mesmo assim ela procura ter paciência e aguardar o que o futuro lhes re-
serva.

(d) Deus nos protegeu e nos trouxe para esta mísera situação, mas ele sabe o que faz e nós
temos que curvar-nos. Mas temos as crianças que são toda a nossa alegria.
Não posso escrever, mais, pois teria que relatar tudo, tudo de nossa vida.
O futuro é posto nas mãos de Deus. Deus é visto como o protetor e como aquele que,
em última instância, para além da sina e do destino, trouxe a família “para esta mísera situa-
ção”. A vida de Ida K. não deve ter sido fácil. Apesar de reconhecer a proteção divina, ela co-
loca sobre os ombros de Deus a culpa por viver uma situação tão difícil. Liberta desta culpa, é
possível falar em sina e é possível sentir-se consolada, pois ao curvar-se a este Deus protetor,
ela esvazia suas mãos do medo do futuro, de arriscar, de que, ao final, tudo dê errado.

A responsabilidade, então, passa a ser do próprio Deus. Isto traz consolo, pois uma das
posturas a partir do papel social de esposa-dona-de-casa-mãe é preservar a unidade, tranqüili-
dade e harmonia do lar. Isto é alcançado não somente por uma busca de entrosamento entre
todas as pessoas da família, mas também por uma situação financeira estável. Não existindo
esta última, a estrutura do lar pode criar algumas sérias rachaduras, cuja responsabilidade re-
cai sobre a mulher.

Assim, colocar sobre Deus a responsabilidade da vinda ao Brasil, da situação precária


de vida, da luta constante para ter o mínimo de conforto, traz para a mulher a liberdade e a
força necessária de enfrentar justamente estas agruras. Além disso, dá-lhe respaldo para con-
tinuar sendo o esteio firme da família, apoiando muitas vezes, decisões tomadas pelos mari-
dos.

A religiosidade das mulheres se manifesta fortemente aí, sendo forjada por elas mes-
mas, a partir de conceitos masculinos de Deus, como este do Deus protetor. Acontece uma re-
criação do conceito no momento em que Deus se torna aquele que é coberto de culpa, lugar
99

ocupado há séculos pelas mulheres, como lugar exclusivo de mulher. Deus se feminiza quan-
do as mulheres despejam sobre ele/ela todas as culpas construídas e assumidas ao viverem
seus papéis sociais.

Amarradas a estas imagens do sagrado, as mulheres vão protagonizando sua fé, apren-
dendo e ensinando que Deus protege, mas também controla. A proteção e o controle divinos
são imagens de um Deus que cria dependência e submissão. Uma visão tradicional do Deus
protetor mantém as mulheres no âmbito do privado, vivendo e transmitindo, a cada nova ge-
ração, a privacidade da vida religiosa.

A Teologia Feminista propõe olhar para além de uma imagem linear e patriarcal de
Deus. Ela propõe olhar para um Deus que pode ser apreendido de diversas formas. Para Ida
K., Deus protege. Ao mesmo tempo é todo-poderoso, onisciente. Ela acredita que é preciso se
curvar perante este Deus, que “sabe o que faz” (idéia da proteção). A miséria da vida é justifi-
cada pelo fato de que até mesmo esta situação não escapa de um controle divino.

As crianças, por sua vez, vivem o papel social de serem a alegria dos adultos. Elas e
suas vidas são refúgio para as tristezas, dificuldades e misérias enfrentadas diariamente pelos
mais velhos. Parece que Ida K. quer terminar sua carta, mas os acontecimentos da família são
tantos que ela não o consegue. Já que não podem viver juntos, as cartas seguem sendo o espa-
ço da convivência. Se dependesse de Ida K., ela contaria tudo de suas vidas, mas ela procura
parar de escrever, justamente para que isso não aconteça.

(e) Com nossa saúde estamos satisfeitos, às vezes acontece uma indisposição, mas isto é
passageiro. Nosso menino lê e escreve muito, o pai o surpreendeu estes tempos ele de-
monstra muita vontade para isto, e se dedica sempre mais a isto do que o mais velho. Ma-
rion tem agora 3 anos, também é forte e traz muita alegria. Você não deve se importar de
que às vezes escrevo de como sou infeliz, mas isto acontece naturalmente quando leio as
tuas cartas. Você pergunta se nossa casa é protegida o suficiente para o caso de um tem-
poral? Quando recebemos seu dinheiro, mandamos consertar o telhado, antes com qual-
quer chuva estávamos também molhados, é natural que estes telhados de folhas têm que
ser renovados a cada ano pois ele sofre com a chuva e o sol, e também receamos os mui-
tos ratos.
Saúde, filhos e filha é o próximo assunto. Ida K. tem dois meninos e uma menina.
Desta sabemos o nome, Marion. Os meninos parecem ir à escola, o mais novo mostrando
grande interesse pelos estudos. A missivista se preocupa com o irmão, não querendo que ele
se sinta mal por ela escrever de sua infelicidade. A causa são as cartas e parece ser um estado
d’alma corriqueiro quando as recebe. As cartas são o estopim de uma série de questionamen-
tos que vêm à tona a respeito da vida que levam agora e da vida que levavam antes. As cartas
100

levam à reflexão e ao confronto com a realidade, levando Ida K. a uma auto-avaliação, no


mais das vezes dolorosa.

Também Hermann se mostra preocupado com a irmã ao perguntar-lhe da situação da


moradia. A explicação de Ida K. demonstra o que significa viver em uma casa com telhado de
folhas: molhar-se com qualquer chuva, renová-lo a cada ano, o aparecimento dos ratos. O
consolo que Ida K. transmite ao irmão é de que, com o dinheiro que ele enviara, o telhado fora
consertado.

(f) Mas não temos tempo de lamentar-nos, temos que seguir em frente. Deus o guarde
com saúde meu irmão e receba um carinhoso abraço de sua irmã Ida Kleine.
Ida K. lamenta muitas coisas durante a sua carta. Mesmo assim ela afirma, no final,
que não há tempo para lamentos. Lamentação rouba tempo do trabalho. É uma espécie de for-
ça e coragem que precisa estar disponível, e que as mulheres colocam à disposição, na maior
parte do tempo. A despedida, mesmo por carta, é difícil. A proteção divina é invocada e o a-
braço que não se pode sentir na pele, leva, através das palavras, todo o carinho para o além
mar.

3.6 Carta 6229


1884.
(a) Prezado Doutor!
Em primeiro lugar agradeço por sua bondosa resposta e peço ao mesmo tempo perdoar-
me mais uma vez se chego a expressar um pedido urgente: que o senhor perdoe, doutor,
mas como o senhor prometeu, então só posso dizer-lhe que ele confiou em suas palavras,
de que o governo lhe pagaria este mês de trabalho. Não sendo isto possível só posso con-
tar com sua bondade e compreensão pessoal, lembrando-se de que eu não tenho ninguém
que me possa compensar. O senhor Lallemant230 pode restituí-lo, ele tem um bom cargo,
se meu querido marido ainda estivesse vivo ele teria também perdoado esta falta, mas so-
freria muito! Perdoe-me e, se possível, faça uma coisa por nós em nome dele e a amizade
que ele tinha pelo senhor.
Atenciosamente
Ida Kleine.
Ida K. escreve aqui não a um médico, mas, penso eu, a um advogado ou a alguém com
alguma posição importante. A situação não é muito clara, mas já se passam vinte anos desde a

229
Ida KLEINE, s.l., para Doutor, do ano 1884.
230
Aqui se trata de Robert Christian Berthold Avé-Lallement, médico nascido em Lübeck (Alemanha) em 1812,
falecendo na mesma cidade em 1884. Ele escreveu um livro intitulado “Viagem pelo sul do Brasil no ano de
1858”, publicado pelo Instituto Nacional do Livro no Rio de Janeiro em 1953. Foi defensor da emigração a-
lemã ao sul do Brasil. Disponível no site memoria.simers.org.br/index2.php?option=com_content&task= vi-
ew &id=44&Itemid=29&pop=1&page=0
101

Carta 5. O assunto tratado parece ser referente a uma dívida de Ida K. ou de sua família para
com este homem. Ou havia a promessa de pagamento por parte do governo para com a família
e este não ocorreu, sendo que talvez assim surgiu a dívida. O assunto tem urgência. Ida K. tra-
ta o interlocutor com respeito, pedindo perdão, compreensão e bondade, mas o insta a lembrar
de uma promessa feita e não cumprida.

A dificuldade financeira parece grande e estar endividada não é o melhor sentimento


para o senso de ordem e trabalho que prevalece nas intenções de Ida K. Ela procura se defen-
der e explicar o fato de ainda não ter pago. Faz isso ao dizer que não tem ninguém que pudes-
se ajudá-la neste momento com algum dinheiro. Ela indica uma pessoa que pode restituir o
que ela lhe deve.

Ida K., nesta carta, aparece como viúva e isto esclarece um pouco o pedido de com-
preensão feito por ela ao destinatário. A vida, já tão difícil com o companheiro, complexifica-
se sem ele. Ela lembra ao Doutor que Theodor sofreria muito se soubesse desta dívida. No-
vamente pede perdão e ajuda em nome de seu marido e da amizade que os dois cultivavam.

3.7 Carta 7231


Encano, 3 de abril de 1884.
(a) Prezado senhor Doutor!
Mais uma vez me permita incomodá-lo com um pedido, mas tenho a certeza que o senhor
me atenderá porque sempre procurou auxiliar aos que necessitavam e o senhor o demons-
trou por várias vezes!
Será que Ida K. mudou de casa? A data da carta mostra outro nome de localidade, En-
cano, um distrito de Blumenau, que agora conta com 34 anos. Também em 1884, a autora es-
creve outra carta ao Doutor, pedindo novamente a sua ajuda e ela confia nele para tal.

(b) Como o senhor Doutor está se preparando para viajar para o Rio, venho antes com es-
te pedido a sua presença e que é pedir o ordenado de um mês que meu marido quando fa-
leceu ainda estava para receber, isto é de 14 de janeiro a 14 de fevereiro e peço gentil-
mente ao senhor fazer chegar este dinheiro as minhas mãos.
Aqui a situação toda se esclarece um pouco mais. Doutor é alguém influente, inclusive
na Corte carioca. O pedido de Ida K. é a respeito do pagamento de um mês de salário do ma-
rido dela, que não fora pago antes de seu falecimento. Theodor deve ter falecido no final de
1883 ou início de 1884, pois a data do não pagamento do ordenado é janeiro/fevereiro. Tam-

231
Ida KLEINE, Encano, para senhor Doutor, do dia 03.04.1884.
102

bém me baseio no mês e no ano em que a carta foi escrita para imaginar este ocorrido. Ida K.
pede que este dinheiro chegue em suas mãos. Ela se mostra uma mulher informada e que pro-
cura os seus direitos, escrevendo a quem tem influência e a quem possa, então, ajudá-la.

(c) Eu já pedi o mesmo ao senhor Lallement, porém este senhor me disse que não poderia
fazê-lo sem a sua autorização, mas se eu escrevesse certamente receberia o dinheiro. Ago-
ra eu peço senhor Doutor, não me esqueça, eu preciso deste dinheiro, ele está se tornando
muito pouco, mesmo que eu tenha o máximo de cuidado.

Por outros meios, Ida K. já tentou conseguir o dinheiro, envolvendo o senhor Lalle-
ment. Através dele, ela soube do Doutor, pois precisava deste uma autorização. A situação fi-
nanceira continua não sendo fácil para Ida K., pois este dinheiro lhe faz falta. Ela sente a ne-
cessidade de justificar seu pedido perante o Doutor, ao lhe dizer que é muito econômica. Es-
clarece, então que, mesmo assim, o dinheiro não é suficiente.

(d) Meus filhos têm que trabalhar e eu preciso passar assim desta forma se não fosse desta
forma eu seria incapaz de chegar a sua presença e solicitar este dinheiro. Não é possível
perder aquilo que se adquiriu com tanto sacrifício. Conto com sua ajuda, que espero não
se faz esperar.
Contando com sua bondade assina atenciosamente
Ida Kleine.
Novamente Ida K. se justifica e explica porque quer o dinheiro, como se precisasse
mendigar para conseguir o que já é dela. Os filhos estão trabalhando. Isto ajuda na manuten-
ção da família, mas ela insiste em correr atrás de um direito que ela tem a respeito deste di-
nheiro. Ela conta com a ajuda do Doutor, mas também o desafia a não se fazer esperar. Este
modelo de mulher é muito diferente da que estava na colônia: alfabetizada, que exige (mesmo
com belas palavras) o salário do marido que lhe é de direito. Os direitos eram construídos com
acordos tácitos, com a palavra. Havia escassa legislação que assegurasse direitos nesse perío-
do.

3.8 Carta 8232


29.10.88, receb. 18.09.88 [sic]
(a) Meu querido irmão!
No dia 9 deste mês recebi a sua carta. É demais meu irmão querido, o que você está fa-
zendo por nós, que você se sobrecarregue com tantas preocupações, por causa das menti-
ras eu penso que você as tivesse lido nas entrelinhas. Você se preocupa com as coisas que
ficaram retidas e agora você nos envia uma caixa cheia de coisas que certamente lhe de-
ram muitas despesas e incômodos .

232
Ida KLEINE, s.l., para seu irmão, do dia 29.10.1888.
103

Em setembro ou outubro, Ida K. recebe mais uma carta de seu irmão. Ela está cheia de
agradecimentos a ele pela caixa que enviara à família e por tudo o que ele faz pelos que mo-
ram no Brasil. Ela se preocupa pelas despesas que ele tem e pelo incômodo de enviar pacotes
pelo correio. Ida K. e sua família têm passado por muitas dificuldades financeiras. Receber
caixas do irmão representava um enorme auxílio diante desta situação. Karl Kleine afirma que
sua mãe plantava legumes e assava pão e ele e seu irmão vendiam estes produtos aos imigran-
tes233, bem como bananas, figos e laranjas.234

A que mentiras Ida K. estaria se referindo? É alguma questão que foi escrita por Ida K.
de forma velada e que ela também não explicita nesta carta. Parece que, em outra ocasião,
Hermann já enviara “coisas” à família brasileira, mas que não puderam passar na alfândega.
Desta vez parece que deu certo.

(b) Hugo também já me enviou uma pequena encomenda quando teve oportunidade e isto
nada lhe custou, porque os viajantes o trouxeram com seus próprios objetos. Mas você é
tão querido e se preocupa muito conosco, eu fiquei muito contente, com todos estes belos
presentes. Eu nem sei como um dia posso recompensá-lo por toda esta sua bondade. Des-
de que eu perdi meu bom marido, eu não tenho mais ninguém a quem pudesse perguntar
alguma coisa e meus filhos precisam de sentimentos puros, não é mesmo? Em especial
Karl, que já tem 9 filhos. Como eu me sinto bem pode imaginar, porque seria terrível se
as crianças tivessem que fazer tudo sozinhos.
Mais pessoas se envolvem e enviam objetos ou outros utensílios para familiares e a-
migos. Ida K. relata da encomenda que recebera de Hugo. Este não pagou nada de taxas, pois,
provavelmente novos imigrantes, trouxeram a encomenda entre seus pertences e, nesta situa-
ção, eles não precisam pagar impostos. Novamente ela agradece os esforços despendidos pelo
irmão e sente-se na obrigação de agradecer de alguma forma a ele que não seja somente por
carta.

Ida K. lembra do falecido marido e conta de sua solidão e de sua responsabilidade pe-
rante os filhos. Ela sente necessidade de conversar sobre seus problemas e sua situação, para
que possa aparecer perante os filhos sem preocupações ou aflições. Como viúva, ela procura
encontrar no irmão a pessoa para compartilhar de sua vida. Um de seus filhos se chama Karl,

233
No texto de Karl Kleine é usada a palavra Schuppenleute, a qual designava os imigrantes. Schuppen, em ale-
mão, significa armazém, rancho; Leute, pessoas. Traduzindo ao pé da letra temos a expressão As pessoas do
rancho ou do armazém. Os imigrantes, assim que chegavam nas colônias, eram hospedados em grandes bar-
racões, onde aguardavam a designação do seu lote de terra. Isto talvez levasse os imigrantes já estabelecidos
há mais tempo, a nominar os recém-chegados de Schuppenleute.
234
K. KLEINE, op. cit., p. 102.
104

o filho mais velho, que, por sua vez, já tem nove filhos para criar e educar. Karl Kleine é o au-
tor do livro mencionado várias vezes acima. E Ida K., agora como avó, quer fazer de tudo pa-
ra ajudar o filho nesta tarefa. O que veio no pacote enviado por Hugo com certeza também é
algo útil para as crianças.

(c) O senhor Fernand virá também no decorrer do mês logo que receber a sua grande en-
comenda, ele sabe o quão altas são as despesas. Quando lhe escrever novamente eu lhe
darei mais detalhes e vou seguir fielmente as suas instruções, eu guardarei com muito
cuidado as suas cartas. H. (ilegível) não tem meu dinheiro, mas sim um tio (as. Ignaz)
Leopold Hätzel ele está ao par de todo assunto, faz os fornecimentos e também faz pe-
quenos consertos. Trabalha muito e as propriedades já progrediram muito, tem um bom
negócio comercial, construiu uma bonita casa, tem gado e uma razoável entrada ele não
perde oportunidade de ganhar dinheiro e creio que não manobra a bel prazer.
Ida K., sem dúvida, é uma pessoa bem relacionada. O senhor Fernand é outra pessoa
de referência para suas encomendas. Estes constantes pedidos e encomendas atestam não só
uma necessidade por coisas que talvez não se consiga na colônia, mas, como agora já fazem
alguns anos que Ida K. está no Brasil, os pedidos testemunham a saudade e a necessidade de
contato com objetos, roupas ou outros apetrechos vindos diretamente da Alemanha. Com as
encomendas, Ida K. e tantas outras famílias alemãs constroem uma Alemanha no Brasil, com
mais conforto e com uma estética germânica.

Hermann assume os cuidados pela irmã, principalmente desde o falecimento do cu-


nhado. Ele lhe enviou algumas instruções, as quais Ida K. promete “seguir fielmente”. Deve
ter relação com as cartas que, para questões burocráticas pendentes, talvez poderiam ser de
alguma valia. Eventualmente Ida K. ainda está no negócio do fumo e da fabricação de charu-
tos, pois, ao mencionar Leopold Hätzel como alguém que “faz os fornecimentos”, ela parece
ter com ele uma relação de compra e venda. Creio que Hermann procura ser um apoio para a
irmã, mesmo de longe.

Leopold Hätzel, por sua vez, alcançou uma boa posição social. Conseguiu isto através
de muito trabalho, ingrediente tão primordial a este grupo étnico-cultural. O trabalho fez com
que as suas propriedades progredissem, que a sua venda estivesse com boa demanda, que pu-
desse construir uma bonita casa, ter gado e dinheiro. Sempre está à procura de novos meios de
ganhá-lo. Não somente o trabalho lhe rendeu todos estes bons frutos, mas também saber eco-
nomizar (outro ingrediente primordial a este grupo étnico-cultural) o dinheiro que ele conse-
guiu com sacrifício (“creio que não manobra a bel prazer.”).
105

(d) No que se refere às suposições mesquinhas creio que nada é verdade, os comerciantes
lhe ofereceram dinheiro de volta quando o precisar, o prazo foi de 3 meses. Também ao
meu filho Jürgen emprestei 300 mil reis no início de sua plantação de fumo, ele fornece
charutos e fumo, tem ele muita despesa no juizado de terras daqui e ainda não tem lucro;
naturalmente também pedi 5%.
Hermann deve ter perguntado a Ida K. quanto à idoneidade de Leopold Hätzel, visto
que com ele mantém negócios. Para ela, é um homem de confiança, pois outros comerciantes
até emprestaram dinheiro a ele. Aqui descobrimos o nome do outro filho de Ida K., Jürgen235.
Assim, o marido se chamava Theodor, os filhos Karl e Jürgen e a filha, Marion. Jürgen conti-
nuou ou começou o negócio do fumo e dos charutos. A mãe lhe empresta dinheiro com juros,
pois ele ainda tem muito gasto com a demarcação das terras. Ida K. se mostra uma adminis-
tradora muito atenta aos detalhes e conhecedora da situação.

(e) Faz poucos dias que Doarez comprou uma colônia de 100 Morgen236 por 1200 reis.
Seu negócio está se desenvolvendo mas só tem 2 Morgen de terra e localizada na cidade e
precisa emprestar tudo para as compras 1000 a 6% lhe foram garantidas e por 200 Maria
me pediu. Para seu caso logo encontrou um arrendatário por 120 mil reis.
Ida K. continua bem informada e passa tudo o que sabe para o irmão que, assim, lhe
escreve com instruções. Será que Ida K. as quer mesmo? Como o irmão, de longe, consegue
lhe dizer o que fazer?

(f) Eu pretendo criar bastante gado e o cultivo da terra também está em meu interesse, eu
pretendo comercializar muito leite. Já temos que enfrentar muitas dificuldades se quiser-
mos conservar um bom espírito familiar e até que todos os filhos estejam encaminhados.
A colônia fica cerca de uma hora daqui e eu peço a você que nada modifique, ele fará tu-
do o que puder. Eu fico feliz que você recebeu todas as minhas cartas. Você escreveu tão
claramente e fez tudo tão corretamente que com tua segunda remessa a casa tão pequena
ficou muito aconchegante.
A autora da carta está fazendo vários planos e se mostra muito interessada em expan-
dir os negócios . A idéia é sempre melhorar de vida. Ainda existem dificuldades, mas fazendo
planos de investimento, talvez à médio prazo, Ida K. consiga a tão sonhada e almejada har-
monia no lar, o que ela chamou de “bom espírito familiar”. Além disso, ela ainda pensa em

235
No livro já citado de Karl Kleine, não aparece um Jürgen como filho de Ida K. Karl Kleine menciona seu ir-
mão Theodor, seu irmão Eugen (que provavelmente é o Jürgen da carta) e sua irmã Marie. Na apresentação
do livro, Theo Kleine menciona um bebê, Selma, a terceira criança de Ida K., que fizera a travessia de navio,
mas não resistiu. Selma faleceu antes de chegar ao Brasil. K. KLEINE, op. cit., p. 257 e 5, respectivamente.
236
Morgen é uma antiga medida de terra. Originalmente, um Morgen equivale ao trabalho de arar a terra com a
força de uma junta de bois ou de uma parelha de cavalos durante uma manhã. A palavra Morgen, em alemão,
significa manhã. Gerhard WAHRIG, Deutsches Wörterbuch, p. 903. Em português, usa-se o termo jugada.
106

ajudar os filhos a se instalarem confortavelmente, assegurando-lhes um futuro melhor do que


o presente e o passado que viveram.

Pelo visto não moram mais na colônia, talvez estejam no interior. O que será que o ir-
mão queria mudar? Ida K. pede para deixar tudo como está, mostrando com isso que está mais
bem informada que seu irmão, visto morar no local. Isso não a impede de agradecer toda a a-
juda recebida e fala de maneira especial da casa, que parece melhorar cada vez mais.

(g) Em breve lhe enviarei recortes e exemplares do Kolonie Zeitung que me custa 2 ½ mil
reis por ano. Os jornais locais trazem muita bobagem mas nada da pátria.
Também recebi a sua fotografia que guardo com carinho. NB: Meu filho Theodor esteve
5 meses em casa, mas já regressou junto a família.
A informação da primeira frase deste trecho da carta é muito interessante: Ida K. é as-
sinante de um jornal, o Kolonie Zeitung ou Jornal da Colônia. Quando eu falava no capítulo
um desta tese a respeito dos possíveis leitores dos jornais pesquisados, mencionei os assinan-
tes propriamente ditos. Aqui temos o testemunho de que uma mulher assina um jornal. Ela o
avalia como um jornal fraco, pois não traz notícias da Alemanha.

Parece que Ida K. mora sozinha na casa pequena e aconchegante que ela mencionou
no trecho anterior (parágrafo (f)). Ela fala que seu filho Theodor passou um tempo com ela e
em seguida voltou para sua família. As fotografias são um sinal bem concreto e palpável da
existência da família e da possibilidade de perceber o quanto as pessoas mudam ou não as su-
as fisionomias com o passar do tempo.

______________237

(h) No dia 26 de julho Maria teve mais uma menina, ela só se recuperou aos poucos, está
muito fraca e foi preciso consultar um médico, é o 5° filho de Maria. Você pode imaginar
como eu estava preocupada. Mas felizmente tudo passou bem, a pequena está com muita
saúde: agora parece que nos falta a vida da colônia e em 4-6 semanas voltamos para lá, o
centro de Blumenau não nos agradou muito e com a construção da casa tivemos que mu-
dar para uma outra estou portanto perto de meus netos de 3 ou 4 anos.
Imagino que esta Maria também seja a filha Marion de Ida K. Os filhos de Ida K. lhe
deram muitos netos e netas. Como foi visto no parágrafo (b) desta carta, Karl tem nove fi-
lhos/as e Maria acabou de dar à luz a sua quinta criança, uma menina. Ela ficou fraca, caracte-
rística que acompanha as mulheres da época, pois costumam ter muitas gravidezes, continu-

237
Este traço aparece somente na carta traduzida. No original manuscrito, a frase do nascimento de mais uma fi-
lha de Maria (que na tese é a primeira frase do parágrafo (h)) está sublinhada, mas não há ali nenhum espaço
ou parágrafo.
107

ando seus afazeres, por vezes bastante pesados, logo após o parto. A referência a uma consul-
ta médica é assim explicitada, pois os partos costumam acontecer nas casas das mulheres, a-
companhadas por parteiras. Médicos eram consultados somente em último caso. Pelo visto,
Maria não estava bem de saúde. Estas preocupações acompanharam Ida K.

A continuação da carta deixa perceber que a colônia de Blumenau já crescera e se tor-


nara cidade, com um centro. Para lá se dirigiu Maria em função do parto. Ida K. escreve que
sente falta da vida da colônia; a cidade não lhe agrada. No momento, ela convive com ne-
tos/as que moram ali, não descuidando da própria filha.

(i) Tivemos um inverno suave, não houve geada. Como vocês passaram o inverno, ele foi
muito rigoroso? As dores que você sentia nos pés espero que não tenham voltado? Eu
dentro de poucos dias completarei 71 anos e não me reconhecerias numa fotografia, assim
como eu mal reconheci Selma, nasci a 16.01.17, meus filhos foram educados na confissão
do pai. Maria tem um marido católico e as crianças foram batizadas nesta confissão, pois
Maria mudou de religião. Pelo que sei, atualmente, todos os vereadores na Câmara Muni-
cipal são alemães.
A você muitas lembranças e agradecimentos. Recomendações a todos e viva em saúde.
Sua irmã Ida Kleine.
Após alguns comentários a respeito do tempo e da busca por informações em relação à
saúde do irmão, descobrimos aqui a idade de Ida K., bem como a data de seu nascimento. As-
sim, é possível depreender que, ao escrever a primeira carta (Carta 4), ela tinha quarenta anos.
Pelo visto, Ida K. recebeu uma fotografia da cunhada, Selma (ou da irmã?), enviada por Her-
mann. Ela acha que mudou muito nestes 30 anos de vida em Blumenau, dizendo até que o ir-
mão não a reconheceria, caso lhe enviasse uma foto.

Ida K. também fala dos filhos e da religião (“confissão”) em que foram educados. Há
sinais de um casamento misto entre ela e Theodor. Talvez Ida K. fosse católica e ele, evangé-
lico. Deduzo isto pois, segundo Ida K., seus filhos foram educados na religião do pai e Maria,
ao casar, “mudou de religião”, ou seja, provavelmente tornou-se católica, visto que seu mari-
do o é, e as suas crianças também foram batizadas nesta fé. Aqui foi seguido o que se deter-
minava legalmente no Brasil imperial: “A religião católica apostólica romana continuará a ser
a religião do império. Todas as outras religiões serão permitidas com o seu culto doméstico ou
particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo.”238

238
Martin N. DREHER, Igreja e germanidade, p. 24.
108

A autora da carta termina a mesma observando que os alemães estão envolvidos na po-
lítica. Os vereadores da Câmara Municipal são todos alemães. Ida K., além de criar os filhos e
filha, de lidar com as tarefas da casa e fora dela, informa-se e decide a respeito do dinheiro,
administrando-o, emprestando-o, pedindo o que é de seu direito. Ela também se mostra inte-
ressada e informada a respeito de questões políticas, sendo-lhe importante informar ao irmão
que seu grupo étnico está muito envolvido nas decisões tomadas no que diz respeito à cidade.

3.9 Carta 9239


Blumenau, 20 de fevereiro de 1896.
(a) Meu querido irmão!
As suas palavras amáveis eu recebi, bem como as congratulações pelo aniversário, a sua
carta já recebi no dia 3 de janeiro e eu agradeço muito, pois me trouxe muita alegria e eu
sinceramente já esperava por ela. Que Deus o guarde, conserve sua saúde tanto do corpo
como do espírito. Suas queridas cartas leio e releio e vejo que em muito você continua
sendo o mesmo. Fazem agora 21 horas que estou com Theodor e Agnes, ainda ficarei
mais 8 dias e depois voltarei para Maria.
E Ida K. continua escrevendo cartas. Ela recebera de seu irmão mensagens congratu-
lando pela passagem de seu aniversário. As cartas e notícias continuam trazendo alegria para a
vida da missivista. Ela guarda todas as cartas do irmão, pois as relê e comenta que o irmão
não mudou. Será que ela não mora mais sozinha? Se agora vai ficar uma semana com seu fi-
lho Theodor e nora Agnes (mais um nome que se descobre a partir da correspondência de Ida
K.) e voltar depois para Maria, talvez seja um indício de que não mora mais sozinha ou ape-
nas de que está visitando os filhos e filha pela época de seu aniversário (que ocorreu há apro-
ximadamente um mês).

(b) Theodor está pouco em casa, nos próximos dias ele também escreverá a você, sobre o
seu trabalho. Eu quero agradecer-lhe por toda sua bondade e preocupação que tem conos-
co. Agradeço também a linha finlandesa que você me enviou e logo você também recebe-
rá uma lembrança. Meu querido irmão como lhe posso agradecer todo o bem que fez por
nós e também pela ajuda na construção da casa. Tenho agora em Blumenau uma amiga
muito querida, eu lhe prestei um grande serviço e agora ela trata com muito carinho, nós
nos entendemos muito bem e em muitas coisas temos a mesma opinião.
Ida K. descreve a vida do filho ao irmão e que o mesmo também fará contato com ele
em breve. Os agradecimentos são constantes e ela recebeu uma linha de bordado ou costura
de Hermann, ou seja, estes afazeres Ida K. ainda tem. Planeja enviar algo feito por suas mãos
ao irmão. Novamente ela agradece a ajuda recebida por Hermann para a construção da casa.

239
Ida KLEINE, Blumenau, para seu irmão, do dia 20.02.1896.
109

Será a casa pequena e aconchegante da qual ela fala na Carta 8? Será que ela continua mo-
rando sozinha ou divide esta casa com sua filha Maria e a família desta?

A amizade de Ida K. com uma mulher de Blumenau pode sinalizar a adaptação da au-
tora ao local em que está vivendo. Fazer amizades em locais de exílio, os torna mais próximos
ao círculo do novo pertencimento étnico-cultural. A amizade coloca-a no círculo social. Cria
laços firmes entre as pessoas do local, enraizando a vida de Ida K. ao Brasil, abrandando sua
ansiedade por não sentir-se bem e adaptada à nova pátria. A Heimat começa a se constituir
também longe da Alemanha, sendo mais um passo no processo de tornar-se teuto-brasileira240.

(c) Desculpe que não lhe comuniquei antes, Karl fez seu exame na escola e terminou o
exame com notas excelentes. Agora é professor e como tal recebe 25 mil reis por mês a-
gora ele tem 100 mil reis, mas está com muito trabalho como podes imaginar. Com seu
ordenado somente ele sempre tem dívidas e precisa economizar muito. Faz alguns dias
comprou um par de sapatos, porque com tamancos não pode se apresentar. Mas tem tam-
bém muito trabalho, também através de Hugo e sua família. Nós ansiamos por cartas de
vocês em especial, para o aniversário de Hugo que completa 80 anos. Não se zangue por-
que somente agora escrevo [em resposta] a estas suas cartas, mas muitas vezes o tempo é
muito curto.
A você, querido irmão, muitas lembranças e muita saúde, deseja sua irmã
Ida Kleine.
Na Carta 5, parágrafo (e), Ida K. fala “nosso menino lê e escreve muito [...] ele de-
mostra [sic] muita vontade para isto, e se dedica sempre mais a isto do que o mais velho.”
Não aparecem nomes neste trecho, mas poderia afirmar-se que ela falava de Karl naquela oca-
sião. Talvez seja possível pensar em uma relação direta de quem gosta de estudar com tornar-
se professor.

Karl tem muito trabalho e pouco salário. Ter dívidas e economizar são as divisas que
ele precisa seguir para viver sua vida. Comprar e usar sapatos são novidade, para quem estava
acostumado a usar tamancos241. Os tamancos não são apresentáveis em público e precisam ser
substituídos pelos sapatos. Estes devem custar mais caro do que os tamancos.

Hugo, já mencionado por Ida K. na Carta 8 como alguém que trouxe encomendas da
Alemanha, aparece aqui novamente. Parece que Hugo conseguiu trabalho para Karl. Ele vai

240
Veja os primeiros parágrafos do capitulo três para uma discussão mais detalhada a este respeito.
241
Quero lembrar aqui do capítulo dois da tese, A mulher alemã/A aldeia de Hanna, p. 52, que trata da profissão
dos tamanqueiros, calçado muito comum usado no séc. XIX ainda na Alemanha. O testemunho de Ida K.
demonstra que pessoas com esta profissão vieram ao sul do Brasil. Auguste Wackernagel, a missivista da
Carta 2, ficou com a mãe doente na época logo após a enchente, quando esta “usava tamancas e tinha prova-
velmente pisado em falso.”
110

completar oitenta anos e, pelo visto, também mora em Blumenau. A necessidade de receber
cartas continua a mesma e a vontade de escrevê-las muitas vezes não se conjuga com a possi-
bilidade de fazê-lo.

3. 10 Carta 10242
Blumenau – Indaial, 20 de março de 1897.
(a) Meu querido velho irmão!
Já no dia 8 de janeiro recebi a sua amável carta, agradeço-lhe de todo o coração pelos
presentes que você enviou para meu aniversário. Sou incapaz de expressar a minha felici-
dade em receber uma carta sua, e fico contente porque foram todas notícias boas e, mais
ainda, porque nenhum de meus filhos pôde vir . Eu já escrevi detalhadamente ao querido
Hermann, que Theodor já fez o livro de estudos e de que tivemos um maravilhoso e flori-
do natal. E você meu querido irmão também deve ter sentido o mesmo. Com a graça de
Deus, Maria deu a luz no dia 22 de dezembro a uma menina e estão ambas com saúde, só
Maria se sente ainda um pouco fraca.
No cabeçalho da carta aparece o nome de Indaial. Indaial é hoje uma cidade muito
próxima de Blumenau. Talvez fosse a colônia a que Ida K. se referia quando Maria precisou ir
à cidade para dar à luz, em 1888. A missivista fica contente por receber a carta de aniversário
do irmão. Este inclusive lhe mandou presentes. A carta serviu de consolo a Ida K. por não ter
visto os dois filhos em uma data tão especial.

A frase “Eu já escrevi detalhadamente ao querido Hermann...” é uma incógnita. Ali ela
menciona ao irmão uma carta que ela escreveu a Hermann. Parece que esta carta, datada de 20
de março de 1897 é dirigida a outro irmão de Ida K. Será? Ela fala de Theodor e do natal de
ambos os lados. Em dezembro, Ida K. tornara-se avó outra vez. Pelas contas destas cartas,
Maria é mãe de seis crianças.

Novamente a fraqueza é companheira do pós-parto de Maria. Renaux caracteriza a


mulher alemã imigrante assumindo a função de cuidar da casa, orientar filhos/as e emprega-
dos/as, abrir roças ao lado do marido, ensinar as primeiras letras às crianças.243 Com esta vida
de trabalho ininterrupto e com vários partos feitos, as mulheres esgotam as suas forças. Mes-
mo exauridas, procuram seguir com o trabalho assim que possível.

(b) Muito obrigada por todas as notícias familiares, depois de ler suas cartas eu me sinto
sempre como se eu estivesse entre vocês. Eu tenho o grande desejo de estar mais uma vez
entre vocês nem que fosse só por uma hora. Mas posso agradecer a Deus de todo o cora-
ção que vocês sempre escrevem para mim e se lembram de mim com carinho.

242
Ida KLEINE, Blumenau-Indaial, para seu irmão, do dia 20.03.1897.
243
Veja no capítulo um a discussão a respeito, p. 43.
111

As cartas aproximam as pessoas e suas famílias. Elas foram um importante vínculo en-
tre as pessoas que deixaram a Alemanha e as pessoas que lá ficaram. Elas mantiveram laços
fundamentais, aproximando dois países separados pelo Oceano. Ler estas cartas é fazer uma
pequena visita às pessoas queridas. É desejar de todo o coração poder ver e sentir só mais uma
vez o abraço e o carinho destas pessoas.

É saber-se amparada, mesmo na distância. É a sensação de não ser esquecida e, ao ser


lembrada, saber-se lembrada com carinho. As cartas são o elo entre dois mundos. Elas são um
processo de diálogo (“eu me sinto sempre como se eu estivesse entre vocês”). E efetivamente
ela está. Quando se escreve e se manda notícias, se quer estar entre os assuntos do outro, ser o
assunto do outro.

(c) No dia 3 deste mês foi o casamento de Harold Teschan Aner, nós também estivemos
lá, mas o tempo estava muito feio, choveu muito e ficamos bem molhados. Atualmente
estamos já há algumas semanas empenhados numa grande limpeza, aqui freqüentemente
chove muito nesta época e é preciso conservar tudo bem limpo.
Acontecimentos sociais como os casamentos são ponto de encontro para as famílias de
uma colônia. Ida K., além da economia e da política, gostava de cultivar a sua vida social,
como já foi visto na Carta 5. Assim, sua participação nesta celebração não podia ficar em se-
gundo plano, mesmo tendo completado já seus 80 anos. Ela fala ainda da limpeza que precisa
fazer devido às constantes chuvas desta época do ano.

(d) Aqui muitos moram à beira do rio e muitas frutas colhidas os galhos às vezes pendem
até o chão [sic]. Isto foi muito bom e colhemos o suficiente para nós. Theodor também
plantou muitas árvores frutíferas, também macieiras, mas as frutas são muito raras.
Todos os daqui mandam muitas lembranças a você e aos tios. Deus o proteja e lhe dê
muita saúde, meu querido irmão.
A tua velha Ida.
Neste final de carta, Ida K. fala de como as pessoas vivem e o que comem. A colheita
de frutas de sua família também foi boa. Seu filho Theodor tem plantado árvores, mas nelas as
frutas custam a aparecer. Aqui no Brasil, toda a família aprendeu a comer vários tipos de fru-
tas.

Karl relata que o colono em Blumenau nunca termina o seu trabalho, pois no Brasil
não há o período de descanso como acontece em outros países nos meses de inverno. Ele des-
taca que há duas épocas principais de plantação: fevereiro e março, agosto a outubro. Mesmo
112

assim, os outros meses vêm carregados de trabalhos como roçar o mato, arrumar cercas, cons-
truir currais e ranchos, capinar.244

3.11 Carta 11245


(a) Ida Kleine a seu sobrinho Rudolph Dittrich filho de Hugo Dittrich.
Blumenau – Indaial, 22 de setembro de 1899.
Meu querido Rudolph!
Por sua amável e querida carta muito obrigada, bem como pela fotografia. Sempre é um
prazer receber uma carta de vocês e sua última carta de 09 de fevereiro me trouxe nova-
mente muito de interessante e também o que se relaciona com sua família. Tantas notícias
bonitas e boas, que se fica realmente muito emocionada, sendo já tão velha eu leio e re-
leio as suas cartas! Seu emprego e sua posição para com seus colegas, sua estabilidade e
sua saúde. Que Deus sempre o proteja em seus empreendimentos e lhe proporcione muita
felicidade. Seus filhos estão crescendo para alegria de vocês esta é a maior recompensa
aos pais, por todos os seus sacrifícios.
Hugo é citado na Carta 8 e na 9. Não ficava claro se era parente de Ida K. De qualquer
forma era uma pessoa conhecida. Agora ela escreve uma carta a um sobrinho, filho de Hugo.
Será irmão ou cunhado dela? Saber da família é muito importante, como mostra novamente
esta carta. Cada vez mais Ida K. menciona a sua velhice e, contente, lê e relê as cartas, guar-
dadas sempre com muito carinho. Parece que a vida de Rudolph vai bem. Como Ida K. lhe es-
creve, imagino que ele tenha voltado à Alemanha, enquanto seu pai permanece no Brasil. Para
ela, a bênção de Deus sempre deve acompanhar as pessoas queridas e não perde a oportunida-
de de conceder esta bênção ao sobrinho. Ida K. já é tia-avó, pois menciona os filhos de Ru-
dolph.

(b) Você com sua querida esposa fez este ano uma nova viagem de recreio? Eu sempre
anseio por cartas de vocês, a última que recebi foi de teu querido pai, anexo ele mandou
uma fotografia de Lieschen, com o bonito manto de peles, do papai, Mariechen, e Lies-
chen, no dia 1° de março já respondi a esta carta, e espero agora por notícias deles. O
mesmo acontece com os queridos em Lingeity as últimas notícias recebi em 28 de janeiro.
Eu sempre fico receosa se passa tanto tempo sem receber notícias. Se eu puder peço-lhe
que me escrevas mais freqüentemente.
Parece que Rudolph, quando está de férias na Alemanha, gosta de viajar com sua es-
posa. Ele tem recursos para viajar, bem como para auxiliar a família no Brasil. Estes são ou-
tros modos de organizar a vida. Para Ida K., férias ou “viagem de recreio” não eram usuais.
Logo a seguir, em sua carta, ela menciona que tem trabalho o ano todo. O próprio Karl expli-
cita isso em suas memórias, ao falar dos colonos que aqui no Brasil não tem o período de des-

244
K. KLEINE, op. cit., p. 242.
245
Ida KLEINE, Blumenau-Indaial, para seu sobrinho Rudolph Dittrich, do dia 22.09.1899.
113

canso dos meses de inverno. Receber notícias e saber das pessoas é o básico das cartas. Trocar
fotografias acompanha as palavras escritas e diminui distâncias. Para Ida K. é tão vital receber
as cartas que, volta e meia, ela pede aos seus destinatários que escrevam com mais freqüência.

(c) As famílias estão todas bem e muito movimentadas: 10 crianças! Aí de sossego não se
pode falar, tem sempre trabalho o ano todo, porque as crianças de uma forma ou outra
precisam sempre de cuidados. Aborrecimentos não faltam também, porque é preciso edu-
car bem todas as crianças. Agora também vem para Marion um tempo muito bonito, por-
que a filha mais velha vai casar e todo o trabalho pelo enxoval e casamento recai sobre
ela. Quatro crianças já freqüentam a escola, 3 ainda são muito pequenas e as 3 filhas mais
velhas têm 15, 17 e 19 anos.
Os netos e netas são tema neste trecho da carta ao sobrinho. Ida K. fala do trabalho
que acompanha a educação das crianças, da falta de sossego, dos cuidados que as crianças ne-
cessitam, dos aborrecimentos que acompanham qualquer educação. Aqui creio que ela pensa
em Maria ao escrever Marion. Na Carta 10 Maria estava dando à luz uma menina. Nesta car-
ta, dois anos mais tarde, ela está preparando o enxoval de sua filha mais velha que vai casar.
O preparo do enxoval envolve muito trabalho manual, de bordado, costura, tendo que preparar
roupa de cama, toalhas de mesa, guardanapos, tudo o que precisa ser considerado para uma
moça que, em breve, vai administrar seu próprio lar. É o preparo do baú da noiva246, momento
especial, vital, “tempo muito bonito” e de trocas entre avó, mãe e filha. Pelas contas desta car-
ta, Maria teve dez crianças.

(d) Eu gosto de ocupar-me com o cultivo das flores, cada flor é uma alegria para mim.
Então a minha leitura é um complemento, para completar a conversação oral. Para minha
leitura estou sentada em minha cadeira predileta, eu posso ainda ler tudo sem óculos. A-
gora há perspectiva de que a via férrea seja inaugurada, até agora o transporte era feito
por carroças, charretes ou por mulas. Fábricas já existem várias e nos próximos meses
deverá ser construída uma fábrica de papel, também temos muitas olarias, estão sendo
construídas muitas casas e isto já por vários anos.
Ida K. está com 82 anos e cuida de flores, além de ler, reler e escrever cartas. Acom-
panha todos os passos da família com suas crianças. Aqui fica mais claro que ela mora com
Maria/Marion, sua filha. Fala de sua leitura, que ainda faz sem óculos. Será que ainda assina o
jornal Kolonie Zeitung (Jornal da Colônia), mencionado na Carta 8? De qualquer forma é
uma mulher que gosta de ler e o faz ainda intensamente. Creio que não se restringe somente à
leitura das cartas que recebe. Ida K. continua bem informada, pois escreve ao sobrinho do

246
Veja mais detalhes sobre o baú de noiva no capítulo quatro, Experiências e cotidianos/Textos dos jornais nos
quais as mulheres alemãs falam ou delas é falado/1)”Por medo, angústia e dores, por lutas e temores”, p.
108s.
114

trem que vai passar por ali, das fábricas que existem e das muitas casas sendo construídas. Ela
vive confortavelmente, se compararmos a cadeira que tem para sentar com seu relato das go-
teiras do telhado.

(e) Os meus 3 filhos vejo raramente, visito uma vez ou outra Theodor onde gosto de estar,
viajar para Karl ou Jürgen é muito distante, levaria um dia todo de viagem eles não mo-
ram na cidade e cada um tem seu trabalho, de forma que uma visita freqüente, não é a-
conselhável. Cinco de minhas netas são casadas e eu tenho 3 bisnetos. O filho mais moço
de Mariane tem 9 meses e já dá uns passos sozinha, assim também foi com todos nossos
filhos somente uma filha que só com 1 ano começou a andar, outra já andava com 8 me-
ses e meio. Será que você pode ler minha letra? Os dedos da mão direita já estão um pou-
co duros. Agora, meu querido sobrinho, escreva-me em breve e dê lembranças a sua irmã.
Maria também envia lembranças bem como eu a sua esposa.
Sua velha Ida.
Deste trecho da carta é possível saber de novidades nas vidas de Theodor, Karl e Jür-
gen, os filhos de Ida K. Uma de suas netas se prepara para o casamento, cinco já estão casadas
e ela já tem três bisnetos. Será que Mariane é uma das netas casadas de Ida K.? Ela compara o
desenvolvimento do filho mais moço de Mariane com o de seus próprios filhos. A autora per-
cebe a dificuldade que tem em escrever, pois sua mão está dura. Ao contrário de seus olhos,
são os dedos da mão direita que fazem a letra falhar na hora de colocar as palavras no papel.
O velho pedido por notícias é feito, lembranças são enviadas, também por sua filha Maria à
esposa de Rudolph.

3.12 Carta 12247


(a) Blumenau – Indaial, 11 de novembro de 1899.
Querido Rudolph!
Recebi sua amável carta no dia 2 do corrente mês. Eu comuniquei aos meus filhos cuida-
dosamente as disposições, mas passou algum tempo até que consegui os documentos pe-
didos. Theodor está infelizmente outra vez ausente e sua esposa assinará por ele certa-
mente isto não importará a você? Todos leram o testamento e tua carta e estão de acordo
de que você receberá a casa que pertencia aos avós e nós receberíamos o dinheiro corres-
pondente a nossa parte. Para mim e Marion no mesmo endereço e para meus três filhos
para Theodor, tudo através da casa bancária de Grastert em Hamburgo.
Mais uma carta que Ida K. escreve a seu sobrinho Rudolph, alguns meses depois do
envio da Carta 11. Alguma coisa em termos de documentação estava sendo resolvida e a au-
tora está a organizar e administrar a questão junto a seus filhos. Rudolph enviou junto com a
carta um testamento, que foi lido perante todos os presentes, para que a situação da herança
estivesse de acordo com todas as pessoas envolvidas. A última frase deste trecho indica os

247
Ida KLEINE, Blumenau-Indaial, para seu sobrinho Rudolph Dittrich, do dia 11.11.1899.
115

endereços e/ou locais onde deve ser depositado o dinheiro que cabe à família que imigrou pa-
ra o Brasil. Aqui Ida K. menciona seus três filhos Karl, Theodor e Eugen. Karl Kleine registra
o falecimento de seus irmãos. Theodor faleceu de um ataque cardíaco fulminante e, em segui-
da, seu irmão Eugen. Marie ele somente menciona no nascimento. Karl mesmo faleceu em 11
de março de 1922, com 73 anos de idade, em Blumenau.

(b) Ainda não posso me conformar, é muito doloroso para mim a perda de meu bom e
querido irmão, mas dou graças a Deus que ele o conservou junto a nós por tantos anos. Eu
lhe peço que me escrevas logo como está seu pai, pois depois da perda de Hermann não
estou tranqüila. Ah! Se eu pudesse estar junto de vocês e conversar com vocês sobre ele.
Mas abençoada seja sua memória. Lembro-me muito de nosso tempo de infância. Res-
ponda-me logo, dizendo como todos estão passando e também se o braço de Marion me-
lhorou.
Para meus filhos a herança é uma grande ajuda para melhorar sua situação é também uma
bênção para Marion e tenho certeza que posso escrever-lhes muitas coisas boas.
A todos lembranças e em especial a você de sua fiel tia Ida.
Anexo todos os documentos pedidos e assinados.
A carta de Rudolph é uma carta que não traz boas notícias. Traz a notícia da morte de
Hermann, o irmão com quem Ida K. constantemente se correspondia. Agora ela está muito
preocupada com Hugo, o pai de Rudolph. Já há uma tendência maior em dizer que Hugo é o
irmão de Ida K. e não o cunhado, devido às preocupações da autora e de querer saber como
ele está após o falecimento de Hermann. Pelo visto, Hugo está na Alemanha.

Ida K. gostaria de estar ao lado de Rudolph e Hugo, para poder conversar com eles so-
bre Hermann. Mas ela se consola ao afirmar que importa tê-lo sempre em boa memória. Pare-
ce que Hermann e Ida K. sempre foram irmãos muito próximos um do outro, pois a missivista
recorda de sua infância com ele. Além disso, todo o companheirismo demonstrado através das
cartas atesta esta proximidade. Quem será a Marion, cujo braço não está bem?

Marion, a filha de Ida K., é mencionada ao final da carta juntamente com seus irmãos.
A autora afirma ao sobrinho que “a herança é uma grande ajuda” financeira para os mesmos,
que vivem com orçamentos apertados. Como a carta veio com vários documentos a respeito
da herança, vão eles de volta com as respectivas assinaturas, confirmando o que está escrito
no testamento.

São muitas as histórias que as mulheres têm para contar. A mulher alemã fala de sua
aldeia natal, fala de seu trabalho e escreve muitas cartas. A mulher alemã, ao chegar ao Brasil,
tem muitas perguntas. O passo dado através da emigração vai marcá-la profundamente. Emi-
116

grar cria e recria identidades. A mulher alemã vai tornando-se uma mulher com a identidade
teuto-brasileira. É a mulher alemã imigrante.

III. A MULHER ALEMÃ IMIGRANTE

1. Tornar-se uma mulher alemã imigrante


A vida tornou Hanna uma mulher alemã imigrante. Hanna traz em sua bagagem, além
dos utensílios que julga necessários e com os quais lidava no seu cotidiano alemão, sentimen-
tos, pertencimentos, costumes, jeitos de ser, de viver e de ver o mundo. Em um primeiro mo-
mento, a sua bagagem está pronta para a viagem e para o que ela pensa, a partir de sua vivên-
cia e experiência na Alemanha, encontrar no Brasil.

Com o passar do tempo, tal bagagem vai sendo re-significada, pois a panela não en-
contra um fogão, mas sim uma fogueira, sobre a qual ela é pendurada para o preparo da comi-
da. Assim também a maneira de cozinhar que Hanna traz como um costume ou como uma
tradição em sua bagagem pronta é re-significada a partir do momento em que ela não encontra
exatamente os mesmos ingredientes para uma determinada receita.
117

De repente é o feijão aquele que faz parte do almoço de todos os dias e o pão não é
mais assado com farinha de trigo, mas de milho. Ou seja, o pão de trigo (tradição de Hanna) é
re-significado em sua elaboração como pão de milho (cereal de fácil plantio e cuidados na ro-
ça). Comer pão permaneceu como tradição, mas não mais, ou raramente, o pão de trigo.

A bagagem, portanto, em seu sentido amplo, não é finita, como afirma também Dag-
mar Meyer. Ela não é pronta, mas possui “um caráter dinâmico e específico”.248 Além disso,
não são todas as pessoas que trazem as mesmas coisas na bagagem. As experiências de vida
espelham-se nas opções feitas. Não é possível pensar em uma bagagem homogênea, tipica-
mente ou caracteristicamente alemã.

As pessoas alemãs não trouxeram em suas bagagens apenas trabalho, a vontade de


vencer e a religião, mas também preguiça, descrença, ou usaram a imigração como uma ma-
neira de fugir da igreja. É o que nos relata o jornal DA: “O que os alemães trazem consigo,
quando chegam na América [...] muitas vezes preguiça, freqüentemente descrença, quase
sempre fuga da Igreja.”249

Quando Hanna vem ao Brasil, ela traz uma bagagem compactada, e(n)scolhida. Não
há muito espaço e também não se sabe ao certo o que vem pela frente. Por isso, o que foi es-
colhido para colocar na bagagem é algo que também vai influenciar o meio em que Hanna vi-
verá. Ela tirará da bagagem o que a caracteriza e o que a identifica, mais ainda quando ela en-
trar em contato com pessoas e costumes brasileiros. Observações análogas são feitas no livro
de Graciela Chamorro, quando cita Manuela Carneiro da Cunha.250

O contato entre povos distintos acaba criando uma “identidade traduzida”, conforme a
expressão usada por Meyer. Criando uma outra identidade, uma mescla da conhecida com a
não conhecida. Mas, segundo Chamorro, mesmo que a bagagem não esteja pronta e possa ser
(e é) re-significada, a identidade e a cultura permanecem com aspectos de resistência e de pro-

248
Dagmar MEYER, Identidades traduzidas, p. 37.
249
DA. Ano 21, Langenberg: Pastor Griesemann, abril 1883. p. 25. “Was die Deutschen mitbringen, wenn sie in
Amerika ankommen [...] meist Indifferentismus, oft Unglauben, fast immer Kirchenflucht.”
250
Graciela CHAMORRO, A espiritualidade Guarani..., p. 47-48. Graciela trabalha em seu livro a questão do
povo guarani, traduzindo uma teologia da palavra deste povo latino-americano à teologia cristã. No início do
livro aparece o tema da identidade guarani e no sub-capítulo sobre herança cultural e identidade, são mencio-
nadas as observações citadas. O contato de um povo com outro povo traz re-significações à sua cultura e à
sua identidade. Isto aconteceu com o povo guarani no contato com o povo ibero-americano e, no caso desta
pesquisa, com as mulheres alemãs imigrantes e o povo brasileiro.
118

fecia. É o que os indígenas guarani fizeram, quando os jesuítas os colocaram nas reduções.
Líderes religiosos indígenas tornaram-se profetas para resistir e evitar o desaparecimento sob
outra cultura, além de, como destaca Chamorro em sua pesquisa, fugir à própria extinção sob
outra religião.251

Há resistência também na vida das mulheres alemãs imigrantes. Ao lado disso, há pro-
fecia. Dentro do espaço onde lhe compete viver, a mulher resiste. Tal resistência a leva a orar
pelo marido, pelos/as filhos/as, a conduz à igreja, na qual, sentada nos bancos, ouve e medita
silenciosa sobre o que o homem religioso tem a lhe dizer. De igual modo, a leva a ter seus li-
vros de oração e de canto, a faz bordar palavras de ânimo e fé em panos, os quais são pendu-
rados nas paredes de sua casa.252

Tornar-se uma mulher alemã imigrante implicava trazer na bagagem o trabalho, a reli-
gião, o pertencimento étnico-cultural; implicava, já no navio, tirar da bagagem um papel fun-
damental e de sustentação da ordem social, também depois na América: o tripé esposa-dona-
de-casa-mãe, nesta seqüência.253 Tornar-se uma mulher alemã imigrante implicava trazer um
modelo de casamento, de sua cultura de cozinha alemã, de sua vida dentro de casa. Implicava
trazer a sua condição e situação de gênero.

Tornar-se mulher alemã imigrante significava a procura de uma nova pátria, o rompi-
mento com as raízes, com o lar, com a grande família, com a própria aldeia , implicava estar a
caminho, enfrentar o desconhecido, aceitar o diferente e procurar um lugar ao sol.

“Tornar-se” é um processo; “trazer” é uma escolha (por vezes condicionada) integran-


te do e integrada ao processo do tornar-se. A mulher alemã torna-se imigrante e traz, neste
processo, as experiências e os cotidianos (e, com isso, um modus vivendi) de seus “marcado-
res sociais”254 do lugar de origem.

251
Ibid., p. 56-92.
252
Veja maiores informações a respeito dos panos de parede no capítulo 4: Experiências e cotidianos/Textos dos
jornais nos quais as mulheres alemãs falam ou delas é falado/nº 4. p. 118ss.
253
Margareth Rago já usa o que eu denominei de tripé em seu texto. Ela afirma que a esfera privada é justamente
o “lugar natural da esposa-mãe-dona-de-casa e de seus filhos.” Margareth RAGO, Trabalho feminino e se-
xualidade, p. 591. Eu propositadamente coloco e insisto na seqüência do tripé como esposa-dona-de-casa-
mãe, pois é por aí que se rege a ordem social patriarcal: primeiro o casamento, o tornar-se esposa. A conse-
qüência é tornar-se dona-de-casa e, finalmente (e ricamente abençoada), tornar-se mãe.
254
D. MEYER, op. cit., p. 60. Para a autora, os marcadores sociais são “raça/etnia, nacionalidade, religião, gêne-
ro e, de forma talvez menos evidente, classe [...]”.
119

A mulher alemã imigrante torna-se teuto-brasileira e acrescenta ao seu modus vivendi


as experiências e os cotidianos da pátria adotiva. Tornando-se uma mulher teuto-brasileira, já
agora é distinta da que ficou na Alemanha, da que conheceu a experiência da travessia de na-
vio, se impressionou no porto brasileiro com todas as diferenças vistas, abriu florestas, cons-
truiu choupanas de palmeira e desconhecia o que o futuro lhe reservaria.

A identidade teuto-brasileira está imbricada neste emaranhado. As mulheres se encon-


tram nele e podem estar nas mais diversas fases do processo de imigração. Ele não acontece
em uma linha reta, é cheio de percalços e descontinuidades: ora umas já chegaram ao Brasil,
ora outras já capinam a primeira roça de milho, ora outras se despedem dos parentes na Ale-
manha. Neste vai-e-vem se estabelece, então, uma identidade, a que se dá o nome de teuto-
brasileira, uma identidade de várias faces, assim como é variada a vida e o cotidiano das mu-
lheres alemãs que imigram.

A identidade teuto-brasileira vai se forjando, e sendo forjada, na medida da vivência


das mulheres alemãs imigrantes no sul do Brasil. Assim como há vários momentos da imigra-
ção, várias fases no processo imigratório, há também uma dinamicidade e um movimento na
constituição e na construção de uma identidade e de uma cultura teuto-brasileira.

Meyer escreve o seguinte:

O exame que fiz na literatura brasileira e alemã para entender os processos sociais e polí-
ticos que estiveram envolvidos com a produção das especificidades contidas em noções
como cultura e nação alemãs e sua “transposição” para o Brasil, permite dizer que a cha-
mada “cultura teuto-brasileira” não é uma reprodução linear e estática de um conjunto de
valores, crenças, tradições e práticas “trazidas” pelos/as imigrantes de uma terra natal
comum.255
Venho argumentando, até aqui, que a cultura teuto-brasileiro-evangélica foi (é) uma cons-
trução social que se tornou possível em função da articulação, freqüentemente conflitante,
de interesses e necessidades de várias ordens e que variadas instâncias econômicas, co-
munitárias e políticas, bem como instituições religiosas, educacionais e estatais estiveram
ativas neste processo.256
Este processo, do qual fala Dagmar, está exemplificado em duas falas das cartas de Ida
Kleine. O primeiro momento do tornar-se e, simultaneamente, o do sentir-se ou ser teuto-
brasileira, é quando Ida K. fala de uma amizade que ela fez na cidade de Blumenau. Criar la-
ços afetivos para além da família em um contexto de imigração estabelece um sentimento de

255
D. MEYER, op. cit., p. 37.
256
Ibid., p. 59-60.
120

Heimat, de pátria, de lar, mesmo longe da família, mesmo longe de tradições e costumes co-
nhecidos e amados. Esta experiência intensifica o pertencimento a uma identidade teuto-
brasileira.

Um outro momento que identifico como sendo de constituição da identidade teuto-


brasileira é o nomear e/ou renomear pessoas da família. Várias vezes nas cartas de Ida K. ela
fala de sua filha Marion, que de repente assume o nome de Maria. Este não é necessariamente
um processo consciente de alteração dos nomes, mas pode significar uma adaptação à lingua-
gem fonética do local em que se vive e onde as mulheres criam os seus filhos e filhas.

Para possibilitar que novas identidades surjam sem que se veja nelas algo pronto e que
só precisava ser descoberto, “é preciso”, segundo Joan Scott, “uma mudança de objeto, para
um que aceite a emergência de conceitos e identidades como eventos históricos que precisam
ser explicados.”257 Para a historiadora, isto significa

[...] supor que o surgimento de uma nova identidade não é inevitável ou determinado, não
é algo que sempre esteve lá esperando para ser representado, muito menos algo que sem-
pre irá existir na forma que lhe foi dada em um movimento político específico ou em um
momento histórico particular.258
Tornar-se mulher alemã imigrante é um processo que desemboca no sentir-se e ser
mulher teuto-brasileira. Esta nova identidade é um papel social construído com e a partir das
experiências e dos cotidianos de mulheres alemãs que imigraram ao sul do Brasil no século
XIX. Este papel social existe e se mantém a cada vez que o discurso a respeito do que é ser
imigrante, mulher e alemã encontra linguagens apropriadas, gestos condizentes, atitudes que o
espelhem, narrativas que o conduzam a um interlocutor a fazer uso de suas imagens e simbo-
logia. A narrativa que segue, apresenta uma perspectiva masculina do tornar-se imigrante, na
voz do personagem Johann. A escrita, porém, deste Diário de um imigrante sai da pena de
uma mulher.

2. “Diário de um imigrante”
Já no capítulo 1 eu falava a respeito da dona-de-casa, um dos tripés que sustentam a
imagem da mulher alemã imigrante, como aquela responsável, entre outras, pela alimentação.
Ler o livro de Rita Bromberg Brugger a partir do olhar da alimentação e da culinária é ler a
vida das mulheres, dar destaque a seu cotidiano e tornar perceptível sua experiência. A partir

257
Joan SCOTT, Experiência, p. 41.
258
Ibid., p. 41.
121

daí, inclusive, elabora-se uma cultura de cozinha alemã, cultura esta trazida na bagagem pelas
mulheres alemãs imigrantes, cultura confrontada com a culinária e a alimentação em terras
sul-brasileiras.

Brugger escreve o livro Diário de um imigrante, no qual Johann Ludwig Bauer (nome
fictício, segundo a autora) registra, em um diário, tudo o que aconteceu com ele e sua família
desde sua despedida da Alemanha em abril de 1824 até sua chegada ao Brasil e os primeiros
tempos por aqui (a última data registrada no “diário” é de 25 de julho de 1825). A seguir, a-
presento sucintamente o relato do livro, que é enriquecido por ilustrações, na forma de dese-
nhos, da própria autora, o que metodologicamente qualifica em muito sua abordagem. A nar-
rativa apresenta uma visão romanceada do início da colonização em São Leopoldo.

Chegou a hora do embarque. Centenas de imigrantes se comprimiam no cais de Hambur-


go, à espera do veleiro que nos levaria para longe e que me parecia um tanto pequeno pa-
ra tanta gente. [...] Um último “Adeus” e que Deus, nosso Senhor, esteja conosco, nos
guie e guarde e nos dê forças para enfrentar o desconhecido!259
O que as mulheres conheceram nos navios em que embarcavam para chegar ao Brasil
era a comida diferente. Em primeiro lugar, não havia muita comida, sendo muito restrita a es-
colha. Havia biscoitos, feijão e farinha de mandioca. De resto, havia fome. Ao chegarem no
porto de Porto Alegre, havia o comércio de frutas, hortaliças, charque e lenha. Segundo o de-
poimento de Johann, todos foram bem tratados com comida e agasalhos.260

Johann registra em seu diário:

A nossa estadia aqui [no Rio de Janeiro, antes de continuar viagem para Porto Alegre] foi
muito interessante para mim, para muitos significou um martírio, principalmente para a-
queles inconformados, que acham defeito em tudo, sempre fazendo comparações com a
Pátria que deixaram.261
Johann parece um moço aberto ao que lhe acontece. Dá uma sensação de imigrante-
herói. A respeito das mulheres, ele observa, já em Porto Alegre:

259
Rita Bromberg BRUGGER, Diário de um imigrante, 05.04.1824. A experiência de Johann, retratada pela
autora, pode ser lida também nos versos escritos por Adolf Stöber em 1838 e publicados no DA, em março
de 1882. nos Anexos, item nº 1, o texto e a tradução na íntegra deste poema, intitulado A travessia do emi-
grante. A data colocada logo após o título do livro de Rita B.B., no lugar da página, bem como nas outras ci-
tações deste livro, deve-se ao fato de que o mesmo não possui paginação. A referência para a localização do
texto citado passa a ser, neste caso, a data e não a página. Tratam-se das datas registradas por Johann em seu
diário.
260
A visão otimista de Johann durante todo o seu diário, mostra certo romantismo laudatório, idealista e heróico
por parte da autora, no que se refere ao processo de imigração. Martin DREHER, O fenômeno imigratório
alemão..., p. 69-70, a respeito de queixas e abusos cometidos contra famílias alemãs imigrantes.
261
R. B. BRUGGER, op. cit., fins de junho de 1824.
122

Apesar do frio, as mulheres passam o dia nas janelas, observando o movimento nas ruas.
Chamam esta atividade de ‘janelar’. Devem possuir muitos criados para os trabalhos do-
mésticos, para poderem dar-se ao luxo de controlar a vida alheia durante horas a fio.”262
Fica implícito aqui qual o papel das mulheres, mesmo as que podem janelar: o traba-
lho doméstico e o fuxico. Além disso, mulher não pode ficar sentada simplesmente sem fazer
nada. Nas mãos deveria ter, no mínimo, um bordado. Mas ‘janelar’ já era fazer alguma coisa...
Pelo menos para as mulheres brasileiras.

Também no interior do Ceará do século XIX se janelava:

Elas [as crianças da aldeia] passam revista na bagagem, e correm à casa a levar as novas
às mães ou amas que ficaram à janela, de pescoço estirado, procurando também ver al-
guma coisa.263
Antes de continuar com o diário de Johann, quero, ainda, destacar um texto de Cora
Coralina, justamente sobre a questão de janelar. Aqui o janelar esconde as mulheres. Elas não
podiam ir às ruas, as ruas iam para elas, às escondidas:

Antigamente, as boas casas de Goiás tinham janelas de rótulas, como tiveram todas as ci-
dades coloniais deste imenso Brasil. [...] as rótulas se abriam para fora, em Goiás e em
toda parte. [...] Foi muito variada no Brasil a esquadria das rótulas. Nem sabemos bem se
elas vieram de Portugal ou da Espanha; se eram autenticamente lusas ou mouriscas. Fo-
ram elas o documentário mais expressivo da segregação da mulher dentro da casa senho-
rial.
As de Goiás eram as chamadas rótulas de tabuletas, de tabuinhas, de colocação horizon-
tal, grampeadas num pino vertical, móvel, com trincos e tramelinhas laterais, para abrir e
fechar à vontade.
As paredes onde se encaixavam essas janelas eram de notável espessura como ainda se vê
em tantas casas. Comportavam, internamente, dos lados, assentos lisos ou com almofa-
das, onde as mulheres mais comodamente pudessem estar à rótula.
Movendo trincos, pinos e tramelinhas era que a gente da casa via o pequeno mundo da ci-
dade e tomava conhecimento de seus moradores. [...]
Pela tabuleta riçada e graduada, a pessoa, sem se mostrar, via a rua, os passantes, as casas
fronteiriças e, dentro de um certo ângulo, observava os acontecimentos, as passadas de
uns tantos vizinhos e, sobretudo, fiscalizava a vida alheia, que sempre nos pareceu mais
interessante do que nossa própria vida.264
Além de Cora Coralina, também Helena Morley conta algo sobre sua experiência com
rótulas:

262
Ibid., 20.07.1824.
263
Emília FREITAS, A Rainha do Ignoto, p. 51.
264
Cora CORALINA, Estórias da casa velha da ponte, p. 19-20.
123

Quando se passa na porta dela [mulher de seu Facadinha, moradora de Diamantina/MG


do século XIX], se a gente já não sabe, toma um grande susto, porque ela grita de dentro
da rótula uma linguagem incompreensível.265
Dizem que ele [Dr. Teodomiro, professor da Escola Normal em Diamantina/MG] é esqui-
sito em tudo, que vive sempre com a casa fechada, e para entrar lá é preciso bater com o
dedo ou com a bengala na rótula e dizer o nome.266
E Emília Freitas segue falando delas no interior do Ceará: “Mas, enquanto os homens
murmuravam, as velhas beatas se benziam, as moças ocultas por baixo das rótulas estremeci-
am de enleio [...]”267. A nota de rodapé colocada para a palavra rótula, menciona: “As portas
com rótulas e dobradiças ao alto, que possibilitavam olhar a rua sem ser visto, eram comuns
na arquitetura de casas do interior do Ceará.”268

As rótulas também servem de referência: “- Junto à igreja, sabe? Uma casa de frente
amarela com rótulas verdes.”269 Ou, como neste caso: “- Que edifício é aquele de frente cin-
zenta com rótulas e frisos brancos?”270 E são motivo de olhares furtivos e curiosos: “Ao passa-
rem pela frente da casa de D. Matilde, as mais curiosas ergueram a vista para as rótulas fecha-
das por onde se escapava um cheiro de incenso [...]”271.

E continua Johann: “As senhoras [de Porto Alegre] usam vestidos de algodão ou velu-
do com muitos babados. Gostam de enfeitar-se com jóias e usam flores artificiais nos pentea-
dos.”272 Também surge novamente a questão da alimentação: o pinhão, único alimento na é-
poca fria, no mais, carne salgada e farinha.

Segundo Johann:

Os escravos ensinam-nos como plantar mandioca da qual fazem a farinha que acompanha
carne e feijão preto. Os índios já cultivavam a mandioca, e os portugueses a chamam de
‘Pão da Terra’. Às vezes recebemos bananas oriundas do litoral.273
As famílias imigrantes alemãs aprendem com as pessoas negras e indígenas o cultivo
de plantas típicas brasileiras. E aprendem não somente seu cultivo, mas também como usá-los
depois na alimentação. No dia 04 de agosto de 1824, ele anota:

265
Helena MORLEY, Minha vida de menina, p. 189.
266
Ibid., p. 245.
267
E. FREITAS, op. cit., p. 53.
268
E. FREITAS, op. cit., p. 419-420.
269
Ibid., p. 60.
270
Ibid., p. 201.
271
Ibid., p. 118.
272
R. B. BRUGGER, op. cit., 21.07.1824.
273
Ibid., 03.08.1824.
124

Para esquentar, tomamos o “chimarrão”, que é um chá de folhas de mate bem socadas,
dentro da “cuia”, um porongo cortado. É sorvido com a “bomba”, um canudo com uma
espécie de coador, na extremidade, feito de palha. Os gaúchos mais abastados usam bom-
ba de prata. Para esquentar e para esquecer as mágoas, alguns começaram a beber cacha-
ça, uma aguardente feita de cana-de-açúcar.274
O SB traz uma notícia a respeito da situação dos alemães, neste caso não no Brasil, em
relação ao alcoolismo: “De nosso protetorado alemão, Camarões, escreve-se: ‘Toda a vida
aqui, de certo modo, está impregnada de aguardente’.”275 E assim, muitas vezes começa o al-
coolismo, conforme relata o DP:

A fim de que o pequeno filho aprenda em tempo a andar nas pegadas do honesto pai, ele
deve tomar um grande gole do copo que lhe é alcançado, sem torcer a boca. Deliciosa-
mente se divertem os velhos, quando o pequeno homem se movimenta vacilante e então
dorme bastante em algum canto por causa de sua bebedeira.276
Seria a próxima notícia do DA uma conseqüência da anterior? “De um artigo do Phi-
ladelphia-Times, nós partilhamos o seguinte: ‘Meninos como beberrões.’”277 Outra notícia do
DP a respeito do alcoolismo: “Terrível. A: ‘Imaginem vocês, meus srs., hoje de manhã a polí-
cia ajuntou no beco novamente um homem, que tinha 17 cortes no corpo!’ B: ‘Coitado! Ele
provavelmente estava mortinho!?’ A: ‘Não, mas totalmente bêbado!’”278

Também o DA relata: “Agora, infelizmente, muitos alemães estão no topo da lista dos
heróis da bebida.”279 Os religiosos estão igualmente envolvidos e ganharam o apelido de Sch-
napspfarrer [pastor-cachaça]:

Sabe-se de algumas tristes figuras que se atrevem, por vezes, a desempenhar o seu papel
de pastores nas comunidades alemãs da América do Sul e quanta amarga vergonha elas
têm trazido com isso sobre o nome evangélico-alemão.280

274
Ibid., 04.08.1824.
275
SB. Ano 3, São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 19.10.1890. p. 1. “Von unserm deutschen Schutzgebiete
Kamerun schreibt man: ‘Das ganze Leben hier ist gewissermaßen vom Branntwein durchtränkt.”
276
DP. Ano 4, São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 23.01.1884. p. 1. “Damit nun der kleine Sprößling es lerne,
bei Zeiten in die Fußstapfen dês ehrenwerten Vaters zu treten, muß er einen kräftigen Zug aus dem ihm
dargereichten Glase, ohne den Mund zu verziehen, thun, und köstlich amüsieren sich die Alten, wenn der
kleine Mann in eine taumelnde Bewegung kommt und dann in irgend einer Ecke den Rausch ausschläft.”
277
DA. Ano 20, Langenberg: Pastor Griesemann, julho 1882. p. 51. “Aus einem Artikel der Philadelphia-Times
teilen wir folgendes mit: ‘Knaben als Trinker.’”
278
DP. Ano 4, São Leopoldo: Wilhelm Rotermund,02.02.1884. p. 3. “Schrecklich. A: ‘Denken Sie sich meine
Herren, daß heut Morgen die Polizei wieder einen Mann aus der Gasse aufgehoben hat, welcher 17 Schnitte
im Leibe hatte!’ B: ‘O der Aermste! Er war wohl mausetot?’ A: ‘Nein, aber total betrunken!’”
279
DA. Ano 20, Langenberg: Pastor Griesemann, julho 1882. p. 51. “Jetzt sind es leider viele Deutsche, die auf
der Liste der Helden im Trinken obenan stehen.”
125

Nos Estados Unidos a luta contra o alcoolismo não passa despercebida do jornal: “Os
cristãos de todas as denominações, com exceção dos católicos e da maioria dos luteranos, es-
tão, atualmente na América do Norte, em uma dura luta contra o alcoolismo.”281 No mesmo
mês, o DA conta a história de mulheres que se revoltaram contra o açougueiro:

De vários lados está sendo conduzida a luta contra o alcoolismo: [...] Em uma pequena
cidade industrial, as mulheres dos operários uniram-se e explicaram ao açougueiro, o qual
tinha um voto de peso na Câmara Municipal, que não comprariam mais carne dele, caso
ele não conseguisse que os locais de venda de bebidas fossem fechados.282
E novamente as mulheres vão a público, para acabar com o alcoolismo:

Na recente eleição em Ohio, muitas mulheres estiveram presentes no local, apesar delas,
neste estado, não terem direito a voto, a fim de fazer valer sua influência a favor do parti-
do da temperança e contra os “escravos do rei do álcool”, cujos “taberneiros carregam na
ponta do nariz a imagem deste seu rei.”283
Até as crianças estavam envolvidas:

Uma menina de seis ou sete anos foi, recentemente, a um bar e pediu, de coração, ao gar-
çom: “Ai, por favor, não venda mais nenhuma aguardente a meu pai. Nós não temos nada
para comer e estamos com tanta fome!”284
Wachholz destaca que, com freqüência, alcoolismo e imoralidade foram apresentados
de forma relacionada. Ele menciona a fala de pastores a respeito do crescimento da imoralida-
de como conseqüência de uma vida não-cristã, bem como do contato com luso-brasileiros. Os
pastores acreditavam na pregação como um meio de combater esta e outras atitudes imorais e
de pecado.285

280
Ibid., p. 56. “’Schnapspfarrer’. Es ist bekannt, was für traurige Gestalten in den deutschen Gemeinden
Südamerikas die Rolle von Pfarrern zu spielen sich so manches Mal erfrecht, und wie viele bittere Schmach
sie über den deutsch-evangelischen Namen gebracht haben.”
281
Ibid., Ano 21, Langenberg: Pastor Griesemann, julho 1883. p. 49. “Die Christen aller Denominationen, mit
Ausnahme der Katholischen und der Mehrzahl der Lutheraner, stehen in N.-Am. gegenwärtig in heißem,
hartem Kampf gegen die Trunksucht.”
282
Ibid., p. 51. “Von mannigfacher Seite wird der Kampf gegen die Trunksucht geführt: [...] In einer kleinen
Fabrikstadt verbanden sich die Arbeiterfrauen und erklärten dem Fleischermeister, der im Stadtrat eine
gewichtige Stimme hatte, sie würden kein Fleisch mehr von ihm kaufen, wenn er es nicht dahin brächte, daß
die Schanklokale geschlossen würden.”
283
DA. Ano 21, Langenberg: Pastor Griesemann, dezembro 1883. p. 95. “Bei der neulichen Wahl in Ohio
haben die Frauen, obwohl sie in diesem Staat nicht das Stimmrecht haben, doch in großer Zahl an vielen
Orten sich beim Wahllokal eingefunden, um ihren Einfluß zu gunsten der Temperenzpartei und zu ungunsten
der ‘Sklaven des Königs Alkohol’, der ‘das Bild dieses ihres Königs oft auf der Nase tragenden Kneipisten’
geltend zu machen.”
284
Ibid., Ano 22, Langenberg: Pastor Griesemann, fevereiro 1884. p. 12. “Ein sechs- oder siebenjähriges
Mädchen ging kürzlich in einen Saloon und bat den Wirt aufs herzlichste: ‘Ach, bitte, verkaufen Sie doch
Vatern keinen Branntwein mehr, wir haben nichts zu essen und haben solchen Hunger!’”
285
Wilhelm WACHHOLZ, Atravessem e ajudem-nos..., p. 511 e 513.
126

No SB da virada do século, encontra-se um texto que fala com bastante horror do sig-
nificado do Kerb286 para as famílias. Entre pais e mães paira o medo por seus filhos e filhas,
pois o final destas festas traz, com freqüência, muita tristeza. As danças, as cabeças quentes,
os olhos vidrados, os gritos são os contornos deste tipo de prazer. Um prazer diabolizado por
pastores e jornais.287

Com o clima frio e úmido, continuando no relato de Johann, sem muitos afazeres, os
imigrantes começam a se lamentar e lembrar das coisas que deixaram para trás. “O pessoal i-
nicia as lamentações, lembrando as casas, os fogões e o leite quente... Realmente, a comida,
além de escassa, é sempre a mesma.”288 Neste contexto de privações, o álcool parece ser a saí-
da mais amena. A tristeza profunda faz do aguardente uma grande companhia.

Chega, porém, o dia em que começam a preparar as roças de milho, feijão e cânhamo.
Johann observa homens e mulheres, como já o fizera ao chegar aos portos do Rio de Janeiro,
de Porto Alegre e de Rio Grande. Aqui ele fala dos gaúchos: “Os chefes dos bandos são os
‘caudilhos’ que usam roupas mais sofisticadas, e suas esposas gostam de enfeitar-se.” A ques-
tão do enfeite parece mesmo chamar a atenção, pois em relação às outras mulheres, ele tam-
bém já fizera a mesma observação. E continua: “O gaúcho come muita carne e não usa sal
nem açúcar em sua alimentação.”289

Em novembro, as primeiras famílias que chegaram a São Leopoldo, junto com outras
que chegaram depois, recebem suas próprias terras e precisam trabalhar derrubando árvores e
mata. “As mulheres e crianças juntam tudo [arbustos, folhagens, trepadeiras, galhos] para
queimar.”290 Surgem as primeiras roças e, com elas, as primeiras fronteiras “numa forma de
ocupação que chamamos de fazenda, chácara, sítio, terrenos.”291 É a construção do Hof, do pá-

286
O texto de Rotermund diz o seguinte sobre o Kerb: “Praticamente em todas as colônias há o costume de co-
memorar-se todos os anos, festivamente, o dia em que a igreja, recém-construída, foi solenemente inaugura-
da. Em muitas regiões, em razão de seu significado, o dia do Kerb é quase que a maior festa.” Wilhelm RO-
TERMUND, Os dois vizinhos..., p. 22.
287
SB. Ano 13. São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 07.01.1900. p. 110-111, sob o título: “Kirchweih” (Kerb).
288
R. B. BRUGGER, op. cit., 04.08.1824.
289
Veja as duas citações Ibid., 02.09.1824.
290
Ibid., 11.11.1824.
291
Doris Rejane Fernandes MAGALHÃES, No tempo das batingueiras..., p. 129.
127

tio em torno da casa. Estas delimitações constituem uma apropriação de espaços geográficos
através de

[...] várias frentes de ocupação [...] A frente pioneira caracteriza-se pela consolidação das
etapas e pela construção imagética, idealizada e romântica do imigrante como o herói,
aquele que venceu e dominou o espaço natural, trazendo o trabalho, o progresso e a mo-
dernização.292
Esta citação é importante para uma reflexão menos idealizada do processo de qualquer
imigração, também para o da imigração alemã do século XIX. Ou seja, ocupar uma área, além
de assegurar e/ou delimitar fronteiras e além de concretizar a idéia de progresso, carrega con-
sigo a tensão e o conflito inerente ao processo em si. O encontro com outras etnias ou com
demarcações de terras já definidas ou em definição ou com a própria legislação imperial no
tocante a terras devolutas ou heranças, por exemplo, foram situações nem sempre fáceis de
contornar, devido a diferentes interesses que existiam por detrás das mesmas.

A temática da fronteira é tratada por Pierre Bourdieu. Segundo ele, a existência de


fronteiras se dá através da fala de uma pessoa imbuída de autoridade para tal.293 Este ato da fa-
la circunscreve uma região, delimita um espaço.294 Uma fronteira não é natural, ela é “produto
de uma divisão” a partir de uma determinada realidade, sempre factível de discussão acerca de
seus limites pré-estabelecidos.295 A fronteira não é somente uma delimitação geográfica, física
ou jurídica, mas também “produz a diferença cultural do mesmo modo que é produto desta
[...]”.296

A fronteira, então, pode ser vista em dois aspectos: o físico, uma linha divisória, e o
cultural, uma linha divisória projetada pelas realidades dos pertencimentos étnico-culturais.
Muitas vezes, estes dois tipos de fronteira não delimitam o mesmo espaço. Dentro de uma de-
terminada fronteira, podem, por exemplo, constituir-se muitas outras, principalmente a partir
das diferenças culturais. Para a discussão desta tese, é importante assegurar a compreensão da
simbologia que está presente na demarcação de fronteiras. Cada horta, roça, Hof, picada, li-
nha, estrada, colônia tem um importante significado para a constituição da cultura teuto-

292
D. R. F. MAGALHÃES, op. cit., p. 131.
293
Pierre BOURDIEU, O poder simbólico, p. 113s.
294
Ibid., p. 114.
295
Ibid., p. 114s.
296
Ibid., p. 115.
128

brasileira, pois cada um destes espaços é delimitado por fronteiras que vão muito além de uma
mera cerca.

Com a questão da terra, da roça e do Hof mais ou menos organizada, os alemães imi-
grantes volta e meia abasteciam-se com alguma comida, adquirida na Feitoria do Linho Câ-
nhamo, local de sua primeira chegada em São Leopoldo. “Os escravos sempre têm um pouco
de feijão e mandioca que compramos deles com o dinheiro recebido do governo.”297 Depois
da derrubada da mata, a família planta milho e feijão. “A nossa cozinha é a céu aberto, com
fogo de chão e três estacas para suspender a panela com o cozido, como nos ensinaram na fei-
toria.”298 Aqui novamente se percebe o ensinamento das pessoas negras às famílias imigran-
tes.

Para alcançar certo nível de vida, uma situação social melhor, a família toda precisava
realizar as tarefas do dia-a-dia:

Adultos, jovens e crianças, de ambos os sexos, eram obrigados a executar as tarefas diá-
rias: limpar o terreno, preparar a terra para o plantio, cuidar dos animais, realizar os traba-
lhos domésticos, buscar água nos poços, plantar as sementes, cortar a lenha, transportar os
produtos agrícolas para a venda, fabricar móveis e outros utensílios [...].299
E Johann fala do primeiro Natal longe de sua pátria, com o sentimento de que falta al-
guma coisa: “O primeiro Natal longe da Pátria, numa choupana primitiva no meio do mato,
sem pinheirinho, sem maçãs, sem nozes e sem presentes.”300

Novamente Johann escreve sobre as mulheres:

Sinto muita pena de nossas mulheres. Elas moravam em casas simples, mas confortáveis,
enquanto tudo aqui é tosco, rude e difícil. Elas, além de trabalharem como nós, homens,
ainda têm a lida da casa e as crianças sob sua responsabilidade.301
Esta observação sobre as mulheres alemãs (as “nossas” mulheres) pode ser estendida a
tantas outras: a tripla jornada de trabalho (roça, casa, crianças). E os homens somente sentem

297
R. B. BRUGGER, op. cit., 22.12.1824. Silvia Maria Fávero Arend afirma que “Segundo decreto imperial de
1867, a mão-de-obra escrava não poderia ser utilizada nas colônias; contudo, o braço escravo, de forma espo-
rádica, esteve presente entre os imigrantes alemães.” Silvia Maria Fávero AREND, Relações interétnicas...,
p. 34. Será que, então, os escravos poderiam aceitar o dinheiro dado por Johann? Ou, na condição de escra-
vos, não poderiam aceitá-lo, tendo que ser o mesmo repassado ao seu dono?
298
R. B. BRUGGER, op. cit., 01.01.1825.
299
S. M. F. AREND, op. cit., p. 34.
300
R. B. BRUGGER, op. cit., 24.12.1824. Este trecho mostra um pouco do romantismo creditado à história das
famílias alemãs imigrantes: muitas delas eram pobres ao deixarem a Alemanha (e por isso a deixaram), não
tendo condições, nem em sua pátria, de adquirir maçãs, nozes, pinheirinho ou qualquer tipo de presente.
301
Ibid., 19.01.1825.
129

pena! Por um lado são vistas por eles como seres frágeis diante do tosco, rude e difícil, por
outro, são seres fortes, pois trabalham como os homens. Apesar de sentirem pena, os homens
não fazem nada para mudar a situação: somente sobre elas está a responsabilidade pela casa e
pelas crianças. Os homens não se aventuravam nas atividades domésticas.

Com o tempo, a família de Johann sente a necessidade de construir uma latrina. “As
mulheres não querem mais correr até o mato que é longe, e existem aranhas e outros bichos
no caminho.”302 E em fevereiro começa a brotar o milho e o feijão, semeados em janeiro. Jo-
hann ainda vai à Feitoria para comprar algumas coisas. “Amanhã quero comprar dos escravos
algumas verduras.”303

É somente aos poucos que as famílias alemãs imigrantes chegam a uma produção a-
grícola auto-sustentável. Esta fala mostra que a independência e a autonomia das colônias nos
inícios da colonização é algo a ser conquistado. A adaptação à nova terra não ocorre sem a in-
terlocução com outros sujeitos.

Ao voltar para casa depois de alguns dias na Feitoria, Johann traz consigo farinha de
mandioca.304 A certa altura de seu diário, ele fala das roupas e menciona a dificuldade de con-
seguir novas ou até de remendar as antigas. Quero destacar o uso da roupa escura como roupa
de festa, roupa com que as famílias alemãs imigrantes iam à igreja, a casamentos e a enter-
ros.305

O relato do feitio de um pão com farinha de mandioca ilustra um pouco o que é a a-


daptação e a inclusão de novos/outros costumes culinários e alimentos a um cardápio já co-
nhecido. São as trocas culturais, formando uma nova maneira de viver, acrescentando mais
um conhecimento, re-significando um conhecimento já adquirido.

Estamos tentando fazer um tipo de pão com farinha de mandioca. Como ainda não possu-
ímos um forno, fazemos uma espécie de panqueca que é cozida em cima das pedras aque-
cidas, como o fazem na África. [...] É lógico que estes bolos não substituem o nosso pão
de centeio [...] Quando Pedro chora [o filho de cinco meses de Johann], Ana [esposa de

302
R. B. BRUGGER, op. cit., 02.02.1825.
303
Ibid., 09.02.1825. É interessante comentar que os escravos eram aquelas pessoas que, durante algum tempo,
sustentavam os colonos nas matas, picadas e florestas com verduras, feijão, mandioca. Como esta pesquisa
não trata dos escravos em si, fico apenas neste comentário.
304
Ibid., 12.02.1825.
305
Ibid., 22.02.1825.
130

Johann] dá-lhe uma chupeta feita de um pouco de pirão com mel, amarrado dentro de um
paninho.306
Uma questão muito premente na vida das famílias alemãs imigrantes na nova terra é a
questão religiosa. Disto muito falam o DA e o SB. Estes jornais falam em religião quando
destacam a falta de oportunidade de poder vivê-la, experimentá-la na terra brasileira.

Uma parte dos imigrantes logo encontra uma comunidade cristã, à qual se ligam e na
qual, bem ou mal, podem sentir-se em casa; a maior parte, porém, fica, muitas vezes, anos
sem a palavra de Deus e o sacramento; as crianças ficam sem o batismo e sem a confir-
mação, os doentes e moribundos, sem visita e consolo.307
Casamentos mistos no Brasil. O pastor evangélico que abençoar um casamento misto po-
de ser punido; e, na verdade, ele pode ir preso por até um ano.308
Pastor Pechmann escreve que, em algumas colônias do sul do Brasil, St. Anna, S. Gabriel
e outras, quase todos os evangélicos tornaram-se católicos, pois a Igreja evangélica não
teria se preocupado com eles.309
No sul do Brasil existe uma comunidade alemã, na qual o pastorado já estava vago há al-
guns anos e na qual aconteceu uma grande confusão e selvageria; uma meia dúzia de
mestres-escola, muitas vezes sem instrução e sem fé, fizeram das suas na igreja e na esco-
la.310
Aqueles entre os alemães que trabalham para o Reino de Deus, encontram-se muitas ve-
zes no pior abandono eclesiástico.311
Entre os mais de sete milhões de alemães na América, cem mil carecem da prédica do
Evangelho; e do seu meio chega, uma vez ou outra, o urgente pedido: “Ajudem-nos, atra-
vés do envio de pregadores fiéis, a fim de que permaneçamos cristãos!”312

306
Ibid., 23.02.1825.
307
DA. Ano 20, Langenberg: Pastor Griesemann, agosto 1882. p. 58-59. “Ein Teil der Einwanderer findet bald
eine christliche Gemeinde, der sie sich anschließen, und bei der sie sich mehr oder weniger zu Hause fühlen
können; die weit größere Zahl aber bleibt oft Jahre lang ohne alles Wort Gottes und Sakrament; die Kindlein
bleiben ungetauft und unkonfirmiert, die Kranken und Sterbenden unbesucht und ungetröstet.”
308
Ibid., outubro 1882. p. 80. “Mischehen in Brasilien. In Brasilien ist der evangelische Geistliche, welcher eine
Mischehe einsegnet, strafbar; und zwar trifft ihn Gefängnisstrafe bis zu einem Jahre.” Nas cartas apresenta-
das no capítulo 2 ( Carta 8, parágrafo (i), p. 88), Ida Kleine, uma das missivistas, aparentemente vivia um
casamento misto. Ela escreve: “[…] meus filhos foram educados na confissão do pai. Maria [uma das filhas
de Ida K.] tem um marido católico e as crianças foram batizadas nesta confissão, pois Maria mudou de religi-
ão.” Se Theodor, marido de Ida K., foi evangélico e ela católica, ou ela se tornou evangélica ou ela aprendeu
o que é ser evangélica, pois, como mãe, acompanhou os filhos nos ensinamentos religiosos.
309
Ibid., Ano 21, Langenberg: Pastor Griesemann, julho 1883. p. 55. “Pastor Pechmann schreibt, daβ in einigen
Kolonien Südbrasiliens, St. Anna, S. Gabriel u.a. beinah alle Evangelischen katholisch geworden seien, weil
sich die evangel. Kirche nicht um sie gekümmert habe.”
310
Ibid., Ano 22, Langenberg: Pastor Griesemann, maio 1884. p. 36. “In Südbrasilien ist eine deutsche
Gemeinde, in welcher das Pfarramt seit einigen Jahren unbesetzt war, und in welcher eine arge Verwir-rung
und Verwilderung eingetreten ist; ein halb Dutzend meist ungeschulter ungläubiger Schulmeister haben in
Kirche und Schule ihr Wesen getrieben.”
311
Ibid., Ano 21, Langenberg: Pastor Griesemann, junho 1883. p. 42. “Die unter den Deutschen für Gottes
Reich arbeiten, stoßen einerseits oft auf die ärgste kirchliche Verwahrlosung.”
312
Ibid., Ano 22, Langenberg: Pastor Griesemann, março 1884. p. 17. “Unter den mehr als sieben Millionen
Deutschen in Amerika entbehren Hunderttausende der Predigt des Evangeliums; und es wird aus ihrer Mitte
131

Você quer que respondamos ao ardente desejo destas pobres pessoas por cultos regulares
com as palavras: “Aqui na pátria já há pedidos demais para nós!”?313
De onde os 300.000 emigrantes, em sua maioria evangélicos e que este ano provavelmen-
te sairão da Alemanha, receberão os pregadores necessários?314
Nos últimos meses, nós tomamos conhecimento de novos fatos, os quais nos advertem
com fervorosa seriedade: “Vocês, que na Alemanha têm a palavra de Deus em abundân-
cia, intervenham em favor de seus irmãos e irmãs indigentes em alguns lugares da Améri-
ca.”315
Por outro lado, chegaram muitos imigrantes alemães de fé evangélica, mas infelizmente
sem um religioso.316
Ainda que no início dos anos setenta os primeiros moradores se estabeleceram nesta pica-
da e no ano de 1877 praticamente todas as colônias já estavam ocupadas, mesmo assim
eles tiveram algumas dificuldades a serem superadas, antes que chegassem hoje a ter um
religioso ordenado que os servisse e a ter a sua própria igreja.317
Johann sentiu fortemente a falta de um acompanhamento espiritual quando faleceu sua
esposa Ana. Não há o sentimento de congregação, de congregar-se, condição muitas propor-
cionada pela igreja.

Sem pastor, somente com alguns poucos amigos, tivemos que enterrá-la no dia seguinte.
[...] Sinto saudade de nossa igreja, do seu teto de madeira pintado, do órgão, dos anjos da
pia batismal e do Moisés que suporta o púlpito. Como fazem falta algumas palavras de
consolo, uma oração, um coral...318
A dificuldade da igreja em acompanhar as famílias alemãs imigrantes em seu caminho
ao sul do Brasil era imensa e se expressava de todas as maneiras, desde a falta de um religioso
para os cultos e a administração dos sacramentos até a possibilidade de cantar, de estudar, de
se divertir, de ter o básico para a sobrevivência.

einmal über das andere die dringende Bitte laut: Helft uns durch Zusendung gläubiger Prediger, daß wir
Christen bleiben!”
313
Ibid., Ano 21, Langenberg: Pastor Griesemann, abril 1883. p. 28. “Willst du auf das heiße Verlangen dieser
armen Leute nach regelmäßigem Gottesdienst die Antwort geben: ‘Es werden schon in der Heimat zuviel
Anforderungen an uns gestellt!’?”
314
Ibid., Ano 20, Langenberg: Pastor Griesemann, julho 1882. p. 49. “Woher bekommen die 300.000, meist
evangelischen Auswanderer, die in diesem Jahre voraussichtlich Deutschland verlassen, die nötigen
Prediger?”
315
Ibid., Ano 21, Langenberg: Pastor Griesemann, junho 1883. p. 41. “In den letzten Monaten sind von neuem
Thatsachen zu unserer Kenntnis gebracht, die uns mit heißem Ernst die Mahnung zurufen: Ihr, die ihr in
Deutschland Gottes Wort in Fülle habt, nehmt euch eurer darbenden Brüder und Schwestern in so manchem
Orte Amerikas an.”
316
SB. Ano 3, São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 19.10.1890. p. 4. “Es sind wiederum viele deutsche
Einwanderer evangelischen Glaubens angekommen, aber leider ohne Geistlichen.”
317
Ibid., 14.12.1890. p. 1. “Obgleich schon im Anfang der 70er Jahre die ersten Bewohner in dieser Pikade sich
niedergelassen hatten und im Jahre 1877 schon fast alle Kolonieen besetzt waren, so hatten sie doch manche
Schwierigkeiten zu bestehen, ehe sie nun heute dahin gekommen sind, sich durch einen ordinierten
Geistlichen bedienen lassen zu können und eine eigene Kirche zu besitzen.”
318
R. B. BRUGGER, op. cit., 18.03.1825.
132

As suas demandas e necessidades físicas, psicológicas e espirituais precisavam ser a-


tendidas com urgência, mas a velocidade dos acontecimentos era tal que não permitia seguir
seu trajeto no mesmo passo. Assim, as famílias imigrantes procuravam exercitar a solidez da
sua fé, a fé na qual era possível agarrar-se, tal qual na Alemanha.

E a vida continua, como diz o próprio Johann, ainda enlutado. Agora ele observa as
mulheres dos estancieiros: “Também as mulheres cavalgam muito, elas usam um lenço tapan-
do o nariz e boca, para não sentirem o vento gelado e o pó.”319 Durante este tempo, o milho da
lavoura está quase maduro para a colheita.

Devido às suas diversas utilidades, o milho é considerado o “Rei da Cultura Colonial”.


Para comer o milho podemos cozinhá-lo com água e sal ou assá-lo na brasa. [...] Dos
grãos moídos faz-se farinha ou fubá. Há um provérbio na região: “Enquanto houver mi-
lho, nós e nosso gado estamos salvos”. O feijão preto é outro produto importante, presen-
te em todas as refeições. Muitos europeus tinham alguma dificuldade em experimentá-lo
por causa da cor, mas agora eu não conheço um único alemão que não goste da feijoa-
da.320
Aqui aparece um pouco do conflito entre a alimentação que se conhece e a alimenta-
ção que ainda não é um hábito. A isto eu denominei acima de troca de culturas, re-
significações. O pão de farinha de mandioca e o feijão preto mostram a incorporação, literal-
mente falando, de hábitos alimentares desconhecidos. Agora, ambos tornam-se tradição na
mesa de teuto-brasileiros (ninguém é mais “somente” alemão depois de comer uma feijoada).

Depois da primeira colheita, Johann também vai a São Leopoldo para levar algum mi-
lho e feijão, como escreve.321 Colhe amendoim. “É muito apreciada322, principalmente torrada
e com sal [...].”323 A seguir, o DP fornece uma lista de preços de mercadorias em Porto Ale-
gre, da qual eu destaquei somente alguns exemplos, entre eles, o amendoim. São preços do i-
nício do ano de 1884: “[...] amendoim, saco, 3$400; feijão (novo), saco, 4$500; manteiga,

319
R. B. BRUGGER, op. cit., 05.04.1825.
320
Ibid., 18.04.1825.
321
Ibid., 02.05.1825.
322
Rita Bromberg Brugger, antes desta citação, apresenta o amendoim como uma planta com flores, as quais
produzem um galho comprido. Dali surgem as vagens secas, contendo até quatro grãos parecidos com uma
noz. Por isso ela fala “É muito apreciada...”, pois se refere à noz.
323
R. B. BRUGGER, op. cit., 07.05.1825.
133

quilo, $800; ervilhas (frescas), saco, 4$000; farinha, saco, 2$900; cevada, saco, 3$500; gali-
nhas, unidade, $560; farinha em grão, saco, 2$200.”324

Finalmente, Johann recebe um cavalo, com o qual a tarefa de preparar a terra para o
plantio ficou mais fácil. “Preparamos as roças para o plantio de outras hortaliças, como cana-
de-açúcar, aipim, cravo, abóbora [...] No pomar plantamos as frutas cítricas que dão bem nes-
te clima.”325

A Bíblia serve de base para a leitura e para a escrita. Assim, muitas crianças aprende-
ram a ler e a escrever usando a Bíblia como referência.

As crianças devem aproveitar o inverno para estudar. “Vó” Berta e eu responsabilizamo-


nos pelas aulas de religião, aritmética, canto, caligrafia e leitura. Naturalmente tudo em
alemão, pois ainda nem falamos o português direito, e escola, ou professor brasileiro não
existem.326
No início de julho, abre uma venda na colônia de São Leopoldo. Lá há troca ou com-
pra/venda de mercadorias diversas, entre elas café e sal, vindos de Porto Alegre. A venda é
um dos pontos de encontro, onde se vive o social na colônia. No livro Os dois vizinhos e ou-
tros textos, de Wilhelm Rotermund, a venda aparece como uma “casa de negócios”327, princi-
palmente às portas do Kerb, uma festa comunitária, que reúne e congrega pessoas e famílias
da colônia e dos centros urbanos mais próximos.

Nestes momentos, a venda oferece serviços de hospedagem e prepara-se com bastante


antecedência, a fim de receber bem aos que vêm de fora. Sempre há muito trabalho nesta épo-
ca. A venda é o local de buscar informações, de discutir assuntos os mais diversos, entre eles
política, e questões concernentes à própria colônia. Também acaba sendo local de desenten-
dimentos, que procuram ser sanados e/ou acabam se agudizando, culminando por vezes em
brigas.

No dia do Kerb, a venda é o lugar da música. É um ponto de referência para os de fora


e para os da colônia. Pode ser um lugar de muito barulho, vozes, melodias, gritos, bater de
portas, passos pesados, agitação. Muitas pessoas apeiam do cavalo ou mula nas áreas livres

324
DP. Ano 4, São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 09.01.1884. p. 3. “[...] amendoim, Sack 3$400; Bohnen
(neue), Sack 4$500; Butter, Kilo $800; Erbsen (grüne), Sack 4$000; Farinha, Sack 2$900; Gerste, Sack
3$500; Hühner, Stück $560; Kornmehl, Sack 2$200.”
325
R. B. BRUGGER, op. cit., 09.05.1825.
326
Ibid., 13.06.1825.
327
W. ROTERMUND, op. cit., p. 11ss.
134

em torno da venda. Às vezes pode juntar um grande público em sua frente, para ver a chegada
de pessoas ilustres à colônia. Para o vendeiro, é mais um momento de fazer negócios, pois é o
local de beber alguma coisa para quem está de passagem. Segundo Imgart Grützmann, a ven-
da é “[...] local de convergência por excelência na colônia e posto de encontro [...]”.328

A venda, ou casa de negócios, também é descrita por Paulo Pinheiro Machado, ao es-
crever sobre o povoamento do planalto serrano catarinense no século XIX:

Estas casas de negócio [o autor se refere às vendas da vila de Curitibanos/SC, na década


de 1890] eram locais de múltipla operação, ali se vendiam mercadorias provenientes do
litoral (ferramentas, tecidos e aguardente), se emprestava a prazo e se compravam artigos
de pequena lavoura (feijão, milho e porcos). Com freqüência eram locais de jogo de car-
tas e de confraternização entre moradores locais e tropeiros.329
A venda é um lugar público, principalmente visitado por homens e algumas vezes por
mulheres, ambos com objetivos distintos. As mulheres vão para fazer suas compras e para
conversar somente um pouco, pois os afazeres domésticos as aguardam e suas consciências
acusam-nas por buscar a conversa prazerosa em detrimento deles. Os homens vão para beber
cachaça e conversar, passando o dia nesta diversão. A culpa não lhes é companheira.

Johann escreve o seguinte sobre a venda:

A venda agora é ponto de encontro de alemães e brasileiros para conversar, discutir, fazer
novos amigos (e inimigos!), atualizar as novidades e... tomar “cachaça”, aguardente de
cana.330
Também Johann vê a venda como local de reunião de homens. As últimas palavras de
Johann em seu diário são:

Há um ano chegamos na colônia. Foi um ano cheio de novidades, um ano de trabalho e


prosperidade. Não existe lugar mais feliz e mais tranqüilo do que a nossa casinha na nos-
sa terra, na nossa nova pátria.331
No epílogo, a autora escreve, entre outros, acerca de Johann da seguinte maneira: “A-
qui termina o diário de João Luis Bauer.” O nome de Johann agora é João, um teuto-
brasileiro. Onde aconteceu tal passagem, a de alemão para teuto-brasileiro? No abrasileira-
mento do nome? Na mudança de hábitos? Na mudança de terra, de casa, de comida, de jeito

328
Imgart GRÜTZMANN, Leituras sob o céu do Cruzeiro do Sul..., p. 210.
329
Paulo Pinheiro MACHADO, Bugres, tropeiros e birivas, p. 24.
330
R. B. BRUGGER, op. cit., Diário de um imigrante, 03.07.1825.
331
Ibid., 25.07.1825.
135

de plantar e cuidar da lavoura? Na mudança de país? Não há um momento fixo e permanente


que possa localizar o início desta nova identidade étnico-cultural.

Na síntese do livro de Brugger, procurei destacar a questão da alimentação e da culi-


nária, trazendo, desta forma, um pouco do que a autora quis transmitir. Usar desenhos, como
ela fez, é uma metodologia historiográfica muito rica e plural. Esta metodologia desperta ou-
tros sentidos no/na leitor/a, não só o da palavra escrita, mas também o da palavra desenhada.
Desenhos, fotografias332 e gravuras querem e podem contar histórias de um tempo passado,
despertando em relação ao mesmo sentidos diferenciados a respeito das mulheres de modo ge-
ral e das mulheres alemãs imigrantes, de modo específico.

Matos discorre sobre a produção historiográfica brasileira acerca da mulher nos anos
1980, afirmando existirem várias abordagens a respeito da questão. Entre outros, procurou-se
recuperar

[…] estratégias e resistências criadas e recriadas pelas mulheres no cotidiano, bem como
sua capacidade de explorar as inconsistências ou incoerências dos sistemas sociais e polí-
ticos para encontrar brechas, através das quais pudessem se expressar ou, ao menos, so-
breviver.333
É o que eu já refletia em torno de uma visão somente de trabalho que se tem em torno
da mulher alemã imigrante. É preciso suspeitar de algo que possa ir além desta imagem, tor-
nando-a mais real para os dias de hoje como uma mulher, que, com resistências e lutas, ou se-
ja, com dificuldades, procura e anseia também por algo para si mesma. Os discursos contra o
olhar para si são extremamente fortes, vindo também da pena convicta de escritoras brasilei-
ras do século XIX, como, por exemplo, de Maria Luísa de Sousa Alves, baiana, poetisa, tradu-
tora, professora, educadora e divulgadora do catolicismo, em seu texto Às minhas patrícias:

Se a mulher vai para a Igreja às seis da manhã e volta às oito ou nove horas do dia, confi-
ando o marido e os filhos aos desvelos de mãos mercenárias, abandonando as filhas à
própria iniciativa, se as meninas mais velhas fazem outro tanto, que sucederá a esse pobre
lar doméstico?334
Em outro texto de sua autoria, intitulado Sou feminista, lê-se:

332
Quero lembrar aqui das fotografias mencionadas pelas missivistas em suas cartas. Tão importante quanto as
próprias linhas escritas, as fotografias cumpriam o papel de manter a pessoa querida e distante, informada.
Além disso, trazia para bem perto do coração, a imagem desta pessoa. Muitas histórias familiares, então, po-
diam ser contadas e recontadas.
333
Maria Izilda S. de MATOS, Por uma história da mulher, p. 13.
334
Ivia ALVES, Maria Luísa de Sousa Alves, p. 135.
136

Nas empresas arrojadas, na luta dos elementos, na arte da guerra, nas investigações cientí-
ficas, atingem [o sexo forte] ao cume da heroicidade; mas, no cumprimento dos deveres
cordiais, no martírio silencioso, no sacrifício perene visando a salvação de um ente ama-
do, ficam em plano muito inferior ao da mulher!...335
Ambos os textos são do início do século XX. A autora, nascida em 1862, veio a fale-
cer em 1945, com 83 anos de idade. Percebe-se, com isso, que os discursos de uma mulher
independente, empoderada, com auto-estima e produção para além de uma “mera” re-
produção, tiveram pouco espaço de interlocução, perpetuando, para a vida das mulheres de
hoje, deveres, martírios e sacrifícios em prol de outras pessoas.

Um terceiro trecho que gostaria de apresentar é do mesmo monólogo Sou feminista e


diz assim no penúltimo parágrafo: “Se a miséria bate à porta de um lar, depressa o homem de-
sanima, ao passo que a mulher enfrenta corajosa a adversária, e não entrega as armas senão ao
derradeiro extremo.”336 Esta é uma situação tipicamente descrita para as mulheres alemãs imi-
grantes! É uma imagem extremamente forte e cultuada pela história da imigração hoje em dia:
a mulher que não desanima nunca, mesmo nas maiores adversidades.

O homem decide emigrar da Alemanha e tentar uma nova vida aqui no Brasil. Ao che-
gar ao porto do Rio de Janeiro, muitas vezes as famílias não encontram meios para seguir sua
viagem mais ao sul do país. Uma vez chegados ao sul do país, muitas vezes não encontram
sua terra, não recebem sementes, animais, dinheiro nem ferramentas. Simplesmente um peda-
ço de floresta por desmatar! Muitos homens fraquejaram após a decisão que haviam tomado
ainda na terra natal. Quem procura, então, manter firme e viva a família, é a mulher.

O problema é que este é um discurso extremamente naturalista e essencialista, como se


a mulher não estivesse sofrendo igualmente com as contraditoriedades e precariedades da no-
va vida além-mar. Como se a sua natureza fosse feita de uma fonte inesgotável de bens herói-
cos! Alves contrapõe à força física do homem, a força emocional da mulher, avaliando que e-
la, ao final, é mais forte do que este, porque age com amor, ternura, cordialidade, afeto.

No romance histórico de Josué Guimarães, A ferro e fogo, Catarina é a mulher que


bem expressa esta visão naturalista do ser mulher e do ser homem. Não que o homem não
possa ter dúvidas ou desanimar e que a mulher não possa assumir o “comando” da família.
Mas qual é a intenção de perpetuar uma imagem de mulher que, sendo sexo frágil devido ao

335
I. ALVES, op. cit., p. 141-142.
336
Ibid., p. 142.
137

seu envolvimento emocional nas situações vividas, torna-se aquela que vence, ao carregar tu-
do – marido, filhos, animosidades, despesas, trabalho doméstico, roça, horta, tristezas e ale-
grias – sozinha, nas costas?

As mulheres alemãs imigrantes no século XIX demonstraram estratégia e resistência.


Mesmo assim, isto nem sempre era tão óbvio de ser percebido por elas mesmas. Para muitas,
o choque do momento do encontro com a terra brasileira era muito grande e desencadeava um
processo de estarrecimento diante do que viam e do que esperavam ter visto.

Renaux traz o depoimento de uma mulher imigrante, Edith Ebert Kuhles, no momento
da chegada e da “recepção” na casa dos imigrantes em Blumenau/SC, na década de 1850:

[...] esta permanência no rancho dos imigrantes era a mais dolorosa. A comida era estra-
nha, feijão, arroz e carne seca diariamente e, uma vez ou outra um pedaço de pão de mi-
lho. O desespero era grande. Muitas lágrimas amargas foram derramadas; surgiam as do-
enças, crianças morriam, o ambiente era triste e desolador.337
Este depoimento mostra as dificuldades enfrentadas pelas antepassadas, tanto físicas,
quanto emocionais. Acrescente-se a este “encontro” a triste e pesada emoção das mulheres ao
deixarem a sua terra natal, sua Heimat338, seus parentes e o seu pertencimento a um espaço es-
pecífico. Teremos, frente aos nossos olhos, a história de muitas mulheres que, anonimamente,
lutaram por sua sobrevivência.

O deslocamento destas mulheres não é somente geográfico e físico, mas é cultural,


emocional, é deixar o que se conhece, o que é familiar, para encontrar-se, depois de uma dura
travessia de navio, com o desconhecido, com o diferente, com o outro. À medida que a terra
natal vai ficando para trás, os espaços de pertencimento se confundem, assim como as emo-
ções. Mas a marca da despedida grava-se profundamente na experiência das mulheres alemãs
imigrantes, constituindo parte de sua identidade no novo lar, que ainda não existe. A despedi-
da fica encravada nas emoções do encontro e da visão do Brasil. Ela será uma força propulso-
ra no sentido de encontrar estratégias e resistências em um país que ainda não é delas.

Isto era uma vida nova e novos ares de mar, que o rodeavam, quando ele estava parado
com sua esposa na comprida ponte de comando. Ele olhava para o mar colossal, que para

337
Maria Luiza RENAUX, O outro lado da história, p. 70.
338
Heimat não tem, para o português, uma tradução pertinente e que venha contemplar o seu significado em a-
lemão com abrangência. Por isso, a palavra permanece no seu original em toda a tese. Aqui, uma possibilida-
de de tradução, feita por Susanne Bial, em sua auto-biografia: “Heimat é a palavra alemã para pátria, mas no
sentido de lar, de aconchego. Heimat pode muito bem ser o regaço da mãe.” Susanne BIAL, Muito além de
imigrante, p. 150.
138

ele era como um grande colo cheio de esperança; e voltava o olhar para a pátria que, se-
gundo ele, o tratava como uma madrasta e que recompensava todas as suas falas e corre-
rias com ingratidão.339
Os passageiros normalmente estão no convés e enviam para a pátria um último adeus
melancólico; quase todos eles parecem olhar tristemente, pelo menos as mulheres, que
deixam o olhar vaguear naquela direção, para, logo em seguida, esconder o rosto no lenço
branco.340
Na chegada à nova terra e à futura pátria, há o estranhamento de costumes, do calor,
do frio, dos insetos, dos jeitos de ser das pessoas negras e indígenas. Isto afirma Brugger, a-
través da fala de Johann ,

[…] Enquanto suamos e impressionamo-nos com tudo o que vemos, as damas brasileiras,
em suas casas de veraneio [...] ficam sentadas na varanda, com escravos abanando-as, es-
pantando calor e moscas.341
Cabe agora, da melhor forma, inteirar-se e incorporar o novo jeito de viver.

3. O pertencimento étnico-cultural
Como está imbricada na relação cultural teuto-brasileira, na identidade alemã, nas mu-
lheres que imigraram, a questão de gênero? Gênero é, para esta pesquisa, um marco teórico de
grande importância. Foi referencial para a coleta dos dados e das cartas, dos olhares analíticos
lançados sobre os mesmos e, conseqüentemente, historiografa imagens da mulher alemã imi-
grante que vem ao Brasil na segunda metade do século XIX.

Gênero está presente no modelo de organização das pessoas imigrantes, neste caso,
dentro de seu grupo e com outros grupos sociais. Qual é o papel da mulher e qual é o papel do
homem no grupo de pertencimento? O que se espera de cada um deles e o que é imposto a ele
e a ela? Como dividem suas tarefas? Quem executa qual delas? Por que uma mulher e não um
homem realiza esta e não aquela tarefa? Cruzando gênero com etnia, é possível perguntar: por
que uma mulher alemã/teuto-brasileira age desta e não daquela forma?

339
SB. Ano 3, São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 31.08.1890. p. 3. “Das war ein frisches Leben und frische
Seelüfte, die ihn umwehten, als er dort mit seinem Weib auf der langen Schiffsbrücke stand, und
hinüberblickte zu dem Meereskoloß, der für ihn seinen ganzen großen Schoß voll von Hoffnungen hatte; und
dann zurückblickte zu der Heimat, die ihn nach seiner Ansicht recht stiefmütterlich behandelte und all’ sein
Reden und Rennen mit Undank belohnt habe.” Este trecho foi retirado do folhetim.
340
SB. Ano 3, São Leopoldo: Wilhelm Rotermund, 31.08.1890. p. 3. “Die Passagiere sind meistens auf Deck
und senden der Heimat einen letzten wehmütigen Abschiedsgruß hinüber; sie sehen fast alle trübe aus den
Augen, wenigstens die Weiber, die das Auge hinüberschweifen lassen, um es im nächsten Augenblicke im
weißen Tuche zu verbergen.” Este trecho foi retirado do mesmo folhetim da citação anterior.
341
R. B. BRUGGER, op. cit., 06.06.1824.
139

O quadro é bastante complexo, pois assim como não existe a mulher alemã imigrante,
também não existe a mulher brasileira ou ibérica. Nesta última categoria, estão abrigadas as
mulheres portuguesas e espanholas; sob mulher brasileira, podem estar abrigadas tanto as mu-
lheres indígenas quanto as mulheres negras bem como as damas da elite. E, por que não, a
mulher teuto-brasileira?

O estudo da cultura de um povo não tem somente o seu “objeto” centrado nas manifes-
tações formais desta cultura. Ao estudar a cultura, estuda-se a etnia de determinado grupo so-
cial. A ciência histórica estabeleceu novas epistemologias, constituindo o que se poderia cha-
mar de “a nova história”342. Esta nova história lança um olhar de baixo, portanto, um olhar da
e para a cultura popular, por exemplo, usando a mesma como um dos pontos de partida para a
historiografia.

Diz muito bem Carlo Ginzburg em seu livro O queijo e os vermes:

[...] da cultura do próprio tempo e da própria classe não se sai a não ser para entrar no de-
lírio e na ausência de comunicação. Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo
um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se
exercita a liberdade condicionada de cada um.343
Nesta fala aparece a questão do condicionamento das pessoas dentro da cultura, dentro
de um determinado discurso. Sendo a jaula vulnerável, ela não pode ser rompida? Transfor-
mada? Será que realmente só resta o delírio e a não-comunicação para alguém que quer sair
de uma domesticação, de uma imposição, de uma submissão, do silêncio? Será que o delírio é
algo realmente tão ruim assim? Ou é a palavra que está (sobre)carregada de sentidos que indi-
cam o delírio como algo perigoso, proibido, tabuizado? Fato é que as mulheres se encontram
nesta jaula flexível e invisível.

Ginzburg discute o significado da cultura popular para a pesquisa quantitativa da his-


tória e, de uma maneira geral, para a história das idéias.344 Esta discussão é importante devido
ao diferencial que a cultura popular levanta referente ao objeto de estudos, colocando um con-
traponto a algo não-mensurável e que pode ser explorado pela pesquisa qualitativa. Assim
como a cultura popular, também o cotidiano e a experiência das pessoas não pode ser mensu-

342
Peter BURKE, Abertura..., p. 9ss.
343
Carlo GINZBURG, O queijo e os vermes, p. 27.
344
Ibid., p. 15-34.
140

rável. Como medir o trabalho de uma dona-de-casa? Como medir a responsabilidade da mãe
pela educação do/da filho/a?

Diz Ginzburg que uma pesquisa foi realizada para descobrir a produção livreira fran-
cesa do século XVIII, usando-se a pesquisa quantitativa. 45 mil títulos foram recolhidos e
computados. O autor levanta, então, a seguinte crítica:

Elas [as pesquisas quantitativas] partem do pressuposto de que não só os textos, como até
mesmo os títulos, fornecem dados inequívocos. Ora, isso se torna cada vez menos verda-
de quanto mais o nível dos leitores diminui. Os almanaques, canções, livros de piedade,
vida de santos, tudo o que constituía o vasto material da produção livreira, a nós surgem
como estáticos, inertes, sempre iguais a si mesmos. Mas como eram lidos pelo público de
então? Em que medida a cultura predominantemente oral daqueles leitores interferia na
fruição do texto, modificando-o, remodelando-o, chegando mesmo a alterar sua nature-
za?345
Isto me leva a perguntar pelos jornais pesquisados para esta tese. Como os textos des-
tes jornais realmente chegavam ao cotidiano das pessoas? Como chegavam ao cotidiano das
mulheres? As imagens de mulheres que dali pudemos perceber e destacar, condizem com a
realidade vivida por elas? Também os conteúdos sobre mulheres se repetem no que diz respei-
to aos papéis sociais que devem assumir: serem esposas, donas-de-casa e mães. É a repetição
uma maneira de enquadramento, de engavetamento, de domesticação?

Repito a pergunta de Ginzburg, porém voltada para o conteúdo desta pesquisa: em que
medida o cotidiano e a experiência das mulheres alemãs imigrantes interferia (ou não) na frui-
ção do texto dos jornais, modificando-o, expandindo-o, remodelando-o, alterando conteúdos,
em princípio dirigidos a elas, mas muitas vezes vividos distintamente dos mesmos? Ou seja,
em que medida alterava-se a “natureza” do texto? Há uma distância entre o que as mulheres
lêem e o que os homens publicam. Assim como existe uma distância entre o cotidiano das
mulheres e o dos homens; que é a mesma distância entre o público e o privado, entre a casa e
a rua.

Quero voltar à discussão que Ginzburg levanta em torno da leitura diferenciada que
pessoas fazem de um mesmo texto, seja ele impresso em jornais, almanaques, seja ele um tex-
to religioso ou político, seja ele o texto das cartas. Ele afirma, para o século XVIII, a predo-
minância de uma cultura oral e popular, contraposta a uma cultura da escrita e da elite, e que a
cultura oral usa o texto de forma distinta, não mensurável, portanto não cabível nas cadências

345
C. GINZBURG, op. cit., p. 29.
141

de uma história quantitativa. No entanto, tal perspectiva não é considerada pelos estudos
quantitativos, pois eles não comportariam esta dimensão. Portanto, as informações do moleiro
não são somente destiladas e apreendidas pelas leituras que fez, mas pelas vivências que te-
ve.346

Assim, por que os jornais não escrevem o que as mulheres querem ler? O que as mu-
lheres querem ler? Por que os almanaques da pesquisa francesa não transmitem o que de po-
pular tem a cultura? Por que a história oficial não se mescla com a história das mulheres? Pois
fica-se na preferência da distância. Isso é mais seguro do que arriscar-se e procurar pela opi-
nião das mulheres. A existência da sociedade patriarcal e androcêntrica e do status quo estão
garantidos ao não ocorrerem mudanças ou questionamentos.

Brugger, através do personagem Johann, afirma que “A maioria das mulheres não sa-
be ler nem escrever.”347 Será? Mas em se considerando que as mulheres não saberiam ler nem
escrever, elas apreenderiam as notícias de outra forma. Qual? Eis a questão a ser discutida. Se
elas apreendem informações de forma distinta da leitura do jornal ou do almanaque, como a-
final se vêem, visto que os mesmos trazem alguns conteúdos a seu respeito? Como constroem
seu pertencimento étnico-cultural para além do uso das informações contidas nos jornais?

Diz Ginzburg que

[…] As sobrevivências, os arcaísmos, a afetividade, a irracionalidade delimitam o campo


específico da história das mentalidades, distinguindo-a com muita clareza de disciplinas
paralelas e hoje consolidadas, como a história das idéias ou a história da cultura (que, no
entanto, para alguns estudiosos engloba as duas precedentes).348
Parece haver tentativas de inclusão e diversidade no campo da história, dentro e a par-
tir de suas delimitações e pontos de vista. Os olhares analíticos são bem específicos e isto traz,
ao mesmo tempo, o novo, na medida em que aumenta a visão do conhecido, do sabido e do
pesquisado. Os limites já não são mais tão claros, conquistando espaços de diálogo e de troca,
tecendo redes. Ao incluir valores como sobrevivências, arcaísmos, afetividade e irracionalida-
de, inclui-se na pesquisa o não-mensurável. O pertencimento étnico-cultural também está na
categoria dos não-mensuráveis, quando se fala em pesquisa qualitativa. Se não, como medir o

346
C. GINZBURG, op. cit., p. 28-29.
347
R. B. BRUGGER, op. cit., 11.07.1824.
348
C. GINZBURG, op. cit., p. 31.
142

quanto alguém é germânico, alemão, brasileiro ou teuto-brasileiro? Como medir o pertenci-


mento étnico-cultural de alguém?

Neste tema do pertencimento étnico-cultural, quero enfatizar a relação entre gênero e


etnia, olhando um pouco para o trabalho de feministas negras, as quais já possuem uma cami-
nhada no estudo e na vivência desta relação. Neste contexto, pretendo relacionar a imigração
alemã, onde o ser alemã (e, em um processo, o tornar-se teuto-brasileira) é a questão étnica
levantada por esta pesquisa, com a mulher alemã que imigra.

As feministas negras, apesar de um aporte de gênero e etnia, ainda estão situadas nas
periferias acadêmicas, questionando o feminismo genérico e homogeneizador.

As mulheres negras sempre estiveram presentes nesses espaços [nos encontros feministas
brasileiros e latino-americanos], mas em geral reunidas entre si. As relações estabelecidas
com o conjunto das mulheres sempre estiveram tensionadas, pois as negras denunciavam
a identidade genérica e o caráter homogeneizador e excludente do feminismo, que, sob o
manto da opressão de gênero, igualava todas as mulheres.349
As mulheres negras, a partir da experiência da discriminação racial, são reivindicado-
ras de um outro olhar que o feminismo, assim como está, oculta. Tal reivindicação precisa ser
incorporada à discussão e à teoria feministas, caso contrário o próprio feminismo acaba sendo
a proposta libertadora somente para algumas mulheres, limitando espaço, atuação e saberes de
tantas outras.

A tentativa desta tese de trabalhar o cruzamento entre gênero e etnia, mesmo quando
não se refere às mulheres negras, quer deslocar um olhar intensamente voltado a um tipo de
opressão e sobre um tipo específico de grupo social, para focá-lo em espaços onde mulheres
de origens étnico-culturais distintas também podem estar sofrendo as mesmas discriminações
e sentindo as mesmas necessidades de comunicação e de pertença a um grupo de reflexão co-
mo as mulheres negras. A diversidade de olhares que surge com gênero e etnia nesta perspec-
tiva é muito mais ampla do que se supõe, ao permanecer com a discussão no eixo racismo-
mulheres negras-feminismo.

Mesmo assim e

Apesar dos avanços conquistados pelo movimento de mulheres negras, a questão racial
permanece, em maior ou menor grau, um tema periférico das discussões do feminismo,

349
Nilza IRACI, Negros tempos..., p. 3.
143

sendo tratado sob a ótica da mulher negra, como se racismo fosse um problema afeito a-
penas a esse segmento da população.350
Algumas perguntas surgem a partir do olhar de gênero e etnia: como as mulheres ale-
mãs, junto com suas famílias, vão criando a identidade étnica a partir de um contexto de imi-
gração? Qual é a influência dos jornais pesquisados neste processo? O que as cartas revelam?
O que é ser mulher teuto-brasileira? O que é visibilizado a partir da análise de gênero junto ao
marcador social da etnia? O que permanece oculto? O que a germanidade tem a dizer, en-
quanto um grande despertar de unificação de um povo em diáspora?

O pertencimento étnico-cultural faz parte da experiência do ser humano. Experiências


com fatos vividos no dia-a-dia. Experiências que passam pelo corpo das pessoas, que aconte-
cem no corpo das pessoas, no corpo das mulheres. Estes corpos são identificados, entre ou-
tros, por seu pertencimento étnico-cultural. As identificações acontecem, via de regra, através
de um olhar ocidental e masculino, mesmo se as experiências e o cotidiano digam e revelem
outra(s) realidade(s).

Dar nome, nomear, mostra poder de quem o faz. Dizer-se, olhar para si mesma e per-
ceber-se sujeito também mostra poder. Nomear alguém de teuto-brasileira é mostrar um poder
questionável, pois não parte do poder de dizer-se, de nomear-se. Dizer-se teuto-brasileira pela
influência de discursos (de jornais, de representantes de governo) é um poder manipulável,
pois não parte da experiência de quem vive um cotidiano de imigrante em terras brasileiras,
em meio a florestas e choupanas de folhas de palmeiras.

Uma análise de gênero pergunta pelas relações de poder não somente entre homens e
mulheres, mas

[...] pelas relações sociais de poder e, portanto, é capaz de articular não só a confluência
das relações de sexo, mas também étnicas, de classe... que atravessam as diferentes estru-
turas da experiência humana.351
É importante perceber que a análise de gênero não se restringe à avaliação das cons-
truções sociais em torno da diferença dos sexos, mas de toda uma estrutura de opressão, que
se cruza e se encontra no corpo da mulher. Aqui é importante o olhar analítico de Crenshaw: a
interseccionalidade.352 Para a autora, as intersecções (os cruzamentos, os encontros) aconte-

350
N. IRACI, op. cit., p. 4.
351
Tânia Mara Vieira SAMPAIO, Horizontes em discussão..., p. 194.
352
Kimberlé CRENSHAW, Documento para o encontro de especialistas..., p. 177.
144

cem entre os eixos de poder, quais sejam, raça, etnia, gênero e classe. A interseccionalidade
seria o cruzamento de um ou mais destes eixos sobre os corpos das mulheres, discriminando-
as de forma múltipla. Nesta pesquisa sobre as mulheres alemãs imigrantes, os eixos de poder
foram denominados de marcadores sociais, sendo a eles acrescido a religião como um marca-
dor diretivo e normativo na vida das mulheres.

A religião é um eixo de poder, que se intersecciona sobre os corpos das mulheres. A


teologia pode curvar estes corpos, prescrevendo modos e jeitos de ser mulher. A interseccio-
nalidade cruza e entrecruza, em constantes movimentos dinâmicos e simultâneos, religi-
ão/etnia/condição social/gênero. Isto demonstra que a religião não é uma via de mão única,
nem um bloco homogêneo de vidas de fé.

Os olhares cruzados sobre a religião afloram a necessidade de visibilizar a mulher a


partir e na relação com um cristianismo patriarcal e androcêntrico. Este vem marcado por es-
truturas de poder que fazem da mulher um ser inferior e incapaz de autonomia religiosa. Criar
identidades de fé junto a uma teologia misógina é freqüente entre as mulheres. No entanto,
distorce sutilmente e até impede a afirmação delas mesmas, minimizando e reduzindo um di-
zer-se religioso, que poderia trazer libertação.

Para a historiografia feminista, a teologia traz uma contribuição significativa. Usando


o cotidiano e a experiência como bases para a escrita da história das mulheres, percebendo a
teologia também como acontecimentos diários religiosos na vida delas, ocorre uma interação
entre teologia e história. O aspecto histórico simultaneamente presencia o aspecto teológico e
vice-versa. Os critérios desta interação passam a se amalgamar com as possibilidades histori-
ográficas feministas descritas no capítulo um.

Metodologicamente é possível perceber e propor um olhar teológico sobre a história, a


experiência e o cotidiano das mulheres, trazendo à tona a questão religiosa. Também é possí-
vel historicizar, ver a partir de um determinado tempo e época, a teologia e a religião. As mu-
lheres alemãs imigrantes têm toda a sua história pautada por crenças religiosas. Estas mesmas
mulheres viveram a sua vida de fé em contextos históricos específicos, os quais precisam ser
percebidos desta forma, a fim de que possam ser re-significados. As estruturas de opressão e a
normatividade dão poder e perpetuam discursos religiosos. Não suspeitar destes discursos no
fazer histórico, é esquecer do e omitir-se no desvelamento de parte significativa da feição i-
dentitária das mulheres alemãs imigrantes.
145

Tânia Sampaio reflete pela: a análise de gênero

[...] apresenta-se como um novo paradigma, capaz de não simplesmente visibilizar mulhe-
res e/ou grupos oprimidos, mas de iluminar as descobertas sobre a estruturação das opres-
sões e das tramas de poder que organizam discursos normativos e estabelecem controles
sociais culpabilizando os corpos.353
Ou seja, não basta perceber as relações desiguais entre homens e mulheres quanto à
construção social de seus corpos. Há toda uma trama de estruturas opressivas e de “avenidas”
(para usar a metáfora de Crenshaw) sobre as quais se encontram e se chocam eixos de poder.
O corpo da mulher, com o seu pertencimento étnico-cultural, é um destes espaços de conflu-
ência de poderes. Na construção de uma história que, ao incluir as mulheres, transforme seus
paradigmas e pressupostos epistemológicos,

[...] torna-se fundamental a articulação do gênero com a classe e a raça. O interesse por
essas categorias assinala não apenas o compromisso dos historiadores com uma história
que inclua a fala dos oprimidos, mas também que esses pesquisadores consideram que as
desigualdades de poder se organizam, no mínimo, conforme esses três eixos.354
A mulher alemã imigrante age e reage à vida ao seu redor através de seu corpo. Sobre
ele confluem, entre outros marcadores sociais, o da etnia. Esta mulher imigrante vem marcada
etnicamente pela cultura alemã. Este é o seu pertencimento. O mesmo se dá durante e após
uma re-significação deste pertencimento, ao tornar-se uma mulher teuto-brasileira. Este passa
a ser, então, o seu pertencimento. As re-significações se dão a partir das fissuras e brechas da-
quilo que é considerado normativo. Novos contextos e condições de trabalho são um exemplo
destas fissuras: fazer pão com farinha de milho ao invés da tradicional farinha de trigo, re-
significa um hábito alimentar e um modo de cozinhar.

Como já afirmado antes, quem trabalhou e tem trabalhado bastante a temática da aná-
lise de gênero junto ao marcador social da etnia são mulheres e homens da comunidade negra.
As mulheres negras são discriminadas há séculos devido ao seu pertencimento étnico-cultural.
Nelas se percebe claramente a interseccionalidade pesando sobre os ombros. Elas são dupla-
ou triplamente discriminadas: por serem mulheres (eixo de poder do sexo), por serem negras
(eixo de poder da etnia) e por serem pobres (eixo de poder da classe social). Estes eixos se in-
terseccionam, encontrando-se no corpo da mulher negra. A sua resistência, luta e profecia

353
T. M. V. SAMPAIO, op. cit., p. 194-195.
354
Rachel SOIHET, Enfoques feministas e a história..., p. 64.
146

trouxe à tona o etnocentrismo e uma conseqüente proposta de libertação, baseada na “constru-


ção de uma sociedade multiétnica e multicultural.”355

A percepção de todos estes poderes, destes micro-poderes, remete a Foucault. E cria


“novas sensibilidades” e “novos sujeitos”.356

[...] a concepção de poder de Foucault tem sido apreciada e apropriada em muitas refle-
xões teóricas feministas por sua perspectiva de considerar que o poder apresenta-se como
constelações dispersas, em parcelas que são apropriadas diferentemente pelos grupos so-
ciais e em contraposição a uma visão de poder como bloco homogêneo e único por parte
das esferas dominantes.357
Os novos sujeitos e as novas sensibilidades que surgem, entre outros, desta visão dife-
renciada de poder proposta por Foucault, são sinais de libertação e de uma sociedade potenci-
almente plural e multiétnica, mas que sempre de novo foi abafada e escondida sob o manto da
normatividade branca e masculina.

Antônio Silva observa, como resultado da reflexão que ocorreu sobre a realidade afro-
americana, conjugada, digo eu, à proposta feminista e a uma análise de gênero, o surgimento
de “[...] um novo sujeito teológico: as mulheres negras.”358 Também as mulheres alemãs imi-
grantes podem ser vistas como novos sujeitos, não só do fazer teológico, mas enfaticamente
enquanto sujeito histórico, trazendo novas sensibilidades para dentro e a partir da historiogra-
fia da imigração.

As mulheres alemãs imigrantes que vêm ao sul do Brasil na segunda metade do século
XIX iniciam, além de um deslocamento geográfico e emocional da terra natal, um desloca-
mento identitário. Trazem muita “bagagem cultural” alemã e a colocam em prática no Brasil.
Porém, também recebem outro tanto de uma bagagem cultural distinta da sua, mesmo moran-
do em colônias. Elas foram obrigadas, por exemplo, a alterar atividades devido à diferença de
solo, de clima, devido à existência de um outro tipo de floresta da que conheciam na Alema-
nha e devido à falta de uma casa para morar.

Assumir o seu rosto359 e, com isso, o seu pertencimento étnico-cultural, contribui para
que as mulheres, sejam elas negras ou alemãs, tornem-se sujeitos de seu processo identitário e

355
Agustín HERRERA, Elementos e pressupostos..., p. 44.
356
Ibid., p. 57.
357
T. M. V. SAMPAIO, op. cit., p. 196. A autora cita, neste trecho, Heleith L.B. Saffioti e Nilda Teves.
358
Antônio Aparecido da SILVA, Elementos e pressupostos da reflexão..., p. 65.
359
A. A. da SILVA, op. cit., p. 61.
147

histórico. As intersecções dos eixos de poder sobre o corpo da mulher oprimem e discrimi-
nam. Mas estes mesmos eixos de poder ou marcadores sociais, voltados para a formação de
uma identidade e para a afirmação de um jeito de ser e de viver, empoderam mulheres para
um cotidiano de novas resistências e lutas, novas profecias e reflexões.

Este empoderamento e, no caso do texto de Antônio Silva, “[...] a teologia feita pelas
mulheres negras traz de volta às mulheres a palavra sobre si mesmas, a posse do seu próprio
corpo.”360 Analogamente, o empoderamento, o olhar sobre si, o pertencimento étnico-cultural
vivido e experimentado como protagonismo pelas próprias mulheres alemãs imigrantes, traz
de volta a elas a posse da distribuição de seus afazeres, a posse de sua palavra religiosa, de
sua espiritualidade, de seu corpo, de seu prazer, de seu ócio: um novo olhar, um novo sujeito,
uma nova sensibilidade. Experiências e cotidianos de mulheres sob um novo olhar, um olhar
re-significado.

IV. EXPERIÊNCIAS E COTIDIANOS

Resgatar a memória e recontar a história é ressignificar o olhar.

360
Ibid., p. 66.
148

Sonia Kramer

A história de mulheres lida com a memória, tanto individual, quanto coletiva. Em sua
história, as mulheres falam de suas vidas, dizem coisas essenciais a seu próprio respeito. A
memória é parte intrínseca da história de mulheres. No momento em que a memória é fala-
da/dita/vista, ela se torna uma memória partilhada, coletiva, seja em um espaço social amplo
ou mais restrito.

Entretanto, as lembranças dessas mulheres ainda não são história; têm que se tornar his-
tória ao se constituírem em memória compartilhada e para a qual haja a possibilidade e a
vontade de escuta.361
As mulheres sempre participaram ativamente de suas histórias, mas, ao final, ficaram
de fora delas, como memórias caladas. O que eu entendo por memória? Juntamente com Eli-
zabeth Ferreira, considero memória o que as pessoas lembram de imediato, como lembram,
porque lembram; memória como um poder de lembrar e de esquecer, movimento este muitas
vezes pautado por interesses dominantes.

Memória também é o empoderamento de grupos sociais esquecidos pelo poder domi-


nante. Eu defino e uso memória em meu texto como um momento mais amplo, é como ir a-
lém da lembrança, a fim de perscrutar sinais de elos perdidos entre o que foi registrado pela
história “oficial” e o que foi dela excluído. Memória é aquilo que promove uma historiografia
plural e de diversidade, que traz à tona experiências e cotidianos, não entrando no detalhe do
como, porquê, quando, mas expressando tais cotidianos e experiências como constituintes i-
dentitários, no meu caso, como constituintes identitários das mulheres alemãs imigrantes.

Parte da memória destas mulheres está nos jornais, mesmo que tenha sido apreendida
por homens no discurso indireto; nas cartas que elas mesmas escreveram; no arranjo da casa,
nos demais objetos pessoais como diários, livros de orações, hinários, a Bíblia.

A época histórica pesquisada remete a uma memória que precisa ir além das lembran-
ças, chegando a uma memória fragmentada de vários tipos e conteúdos. “[...] deve-se buscar
um sentido para a pluralidade de verdades que brotam dos relatos.”362 Como eu não trabalho

361
Elizabeth F. X. FERREIRA, Mulheres, p. 73.
362
E. F. X. FERREIRA, op. cit., p. 105.
149

com relatos, a busca de sentido se dá na pluralidade de verdades que brotam de textos dos jor-
nais, nem sempre escritos por mulheres, e das cartas.

Quando tais objetos são tirados dos arquivos públicos, das bibliotecas e dos museus
para serem historiografados e compartilhados, eles servem de história para as mulheres que
hoje herdam tais memórias. Assim, constituem-se em memória coletiva e pertencimento iden-
titário destas mulheres. “[...] a existência dessa memória garante a permanência da identidade
dos grupos em questão.”363 Memória não é mera lembrança, mas sim, a “[...] transformação de
lembranças subjetivas em memória partilhada [...]”.364

Como rever a vida passada das mulheres alemãs imigrantes, visto que elas mesmas já
não mais estão aí para contar suas experiências e cotidianos? As cartas já entraram neste nicho
como material de alto valor narrativo. Os próprios textos dos jornais transmitem histórias de
mulheres, que refletem, no mínimo, o que se esperava que fizessem em seu cotidiano.

Do que é composta a narrativa ou uma narração? Do conteúdo de alguém que fala de


sua vida, sendo a fala a própria narrativa; do conteúdo de alguém que (d)escreve sua vida,
sendo este texto escrito a narrativa; do conteúdo de alguém que (d)escreve a vida de outra
pessoa ou grupo social, sendo este texto escrito também uma narrativa.

Finalmente, para o caso específico desta tese, a narrativa é composta do conteúdo que
eu imprimi aos textos que tinha a minha frente (os jornais, as cartas, a descrição de uma aldeia
européia do século XIX, o diário de um imigrante), criando novas narrativas. Suely Kofes a-
firma que toda narrativa é retomada “no ato da escuta, na oralidade ou na leitura da escrita.”365

Apresento a seguir as narrativas criadas e as histórias e memórias que surgem da leitu-


ra dos textos de jornais. Os textos escolhidos dos jornais estão sendo apresentados na íntegra.
Somente os dividi em parágrafos conforme os assuntos dos mesmos.366

1. Textos dos jornais nos quais as mulheres alemãs falam ou delas é falado
“Não é orgulho o que me leva a lhe contar o que meu marido faz. É somente uma forma de eu falar de
mim mesma.” Alice Walker, ao contar a história de uma jovem escritora negra.

363
Ibid., p. 98.
364
Ibid., p. 80.
365
E. F. X. FERREIRA, op. cit., p. 124.
366
Os textos originais dos jornais encontram-se nos Anexos, a partir do item 2.
150

Nos jornais pesquisados foram encontrados alguns textos, nos quais as próprias mulhe-
res relatam sua experiência de (i)migrantes. Constato serem textos muito importantes e, por
isso, os destaco neste quarto capítulo. Muitas das experiências relatadas não se referem dire-
tamente ao sul do Brasil, mas a outros países onde também ocorreu imigração alemã no sécu-
lo XIX.

Isto, porém, não me impediu de traduzir e incluir os textos no corpo deste trabalho,
pois são experiências de mulheres que partiram de um mesmo país de origem, carregando
consigo, portanto, um pertencimento étnico-cultural comum. Tais experiências, narradas nos
jornais, foram divulgadas para as mulheres alemãs imigrantes que tiveram como destino o sul
do Brasil.

Por outro lado, há que se referir ao fato de que havia interesse na propagação de de-
terminados conteúdos junto com os jornais. Então, mesmo que os jornais fossem lidos no sul
do Brasil, o contexto das experiências estadunidenses em relação às mulheres, por exemplo,
também (a)firmava a germanidade e o jeito alemão de ser de uma maneira geral. A intenção
de quem editou o jornal era criar uma unidade na dispersão, mantendo a língua e os costumes,
interligando todos os imigrantes alemães pelo fio da experiência comum da saída da Alema-
nha, do desbravamento das florestas e do conseqüente assentamento em colônias, normalmen-
te integrando a igreja e a escola a este complexo.

Eis, então, algumas falas de mulheres. E sobre mulheres.

1.1) “Por medo, angústia e dores, por lutas e temores.”367


- Uma mulher conta a sua história –

(a)368 Nós fazíamos a nossa lua-de-mel. Do animado leste americano, passou-se para o
desolado oeste, a terra dos peles-vermelhas. Mil vezes eu preferiria ter ficado com a mi-
nha amada mãe. Poderíamos morar no lindo e ensolarado quarto do segundo andar e nos
bonitos e pequenos quartos ao lado deste, onde eu, como menina, cuidava de minhas
plantas e nisso era muito feliz. O dia todo eu estaria com a minha mãezinha e de noite,
após o trabalho feito, Karl entraria amável e feliz a encontrar sua jovem mulher. Que vida

367
DA. Ano 21. Langenberg : Pastor Griesemann, março 1883. p. 20-22. O título deste texto é parte de um hino
do século XVII, de Paul Gerhard. É um hino de ano novo e consta do “Hinário do Povo de Deus” sob o nú-
mero 35. A tradução do título do hino é uma cópia da tradução oferecida pelo hinário.
368
Esta letra entre parênteses indica a seqüência dos parágrafos deste e dos outros textos retirados dos jornais ou
das cartas. Cada texto terá a sua seqüência de letras. Ao final deste capítulo, confira o original alemão na ín-
tegra, com as letras/textos correspondentes.
151

tranqüila e doce nós poderíamos ter levado, se não tivesse o tio de Karl escrito uma carta,
dizendo que no leste, entre os índios, poderíamos fazer a nossa felicidade; que ele fosse
até lá, a fim de ficar rico também.
(b) Ficar rico! Este foi o veneno que se infiltrou em nossas comidas, o mau feitiço, que
cegou Karl e seus parentes. Eu mesma não me importava em enriquecer; mas me falavam
tanto da mulher que se entrega e descreviam o sacrifício com cores tão brilhantes, que no
fim consenti e mudei, com o homem que amava de coração, para a longínqua e assustado-
ra região, a milhares de milhas daqui. Metade do meu coração, claro, ficou para trás. Eu
somente era um ser pela metade, quando me sentei com Karl sozinha na carroça e não vi
mais minha mãe, a cara e fiel mãe!
A família descrita não havia chegado recentemente aos Estados Unidos. A migração
para o oeste do país deu-se primordialmente por descendentes. No sul do Brasil, ocorreram
muitas migrações internas por causa das terras, que, com o passar do tempo, começam a ficar
pequenas e escassas. Muitos descendentes de alemães saem do Rio Grande do Sul e migram
para o oeste de Santa Catarina, Paraná ou até Argentina369. É o fenômeno da “remigração”370
ou “enxamagem”371.

A autora deste relato, Käthe, conta também que era difícil a participação da mulher nas
decisões a respeito de sua vida. O tio de Karl e o próprio Karl, seu marido, é que negociam
uma ida ao leste estadunidense, sem maiores consultas a ela ou à mãe dela. O papel social de
esposa está profundamente incorporado na vida destas mulheres que, com ou sem amor pelo
marido, acatam os caminhos que os homens escolhem. Käthchen claramente tinha definido
para si o tipo de vida que gostaria de levar. Mas isto é desconsiderado. Vale o que os homens
acham ser o certo. No meio das dúvidas de Käthchen, as outras mulheres da família a encora-
jam a seguir o marido. Fazem isto através do discurso do sacrifício, que só pode levar ao bem,
e do discurso da entrega ou abnegação de seus desejos, sonhos e vontades em favor do mari-
do. Käthchen se deixa convencer e segue o marido, alquebrada.

(c) Assim que me deparei com a pradaria, ela se me tornara repugnante. Nunca na minha
vida eu vi algo assim tão monótono. A sua interminável extensão me apertava o coração.
Se pelo menos houvesse uma vez, para variar, uma árvore, uma rocha, uma choupana, um

369
“Entre las comunidades migrantes, los alemanes brasileños constituyen un grupo diferente [...] porque desa-
rrollaron migraciones transgeneracionales: estuvieron alrededor de cien años en el Sur de Brasil, y ya llevan
más de ochenta años en la Argentina.” María Cecilia Gallero de URFER, Alemanes-brasileños en Misio-
nes, p. 276.
370
Samuel KLAUCK, Reminiscências de teuticidade..., p. 230.
371
Ibid., p. 232. O autor se baseia em Jean Roche para definir enxamagem. Segundo Roche, então, enxamagem é
o processo de remigração de novas gerações, “[...] filhos e netos das populações estabelecidas em núcleos co-
loniais desde 1824 e que progressivamente, ao exaurir os solos e atingir uma densidade demográfica limite,
dispersavam as novas gerações a buscar novos núcleos coloniais.”
152

poste telegráfico ou outra coisa para ver! Assim eu olhava até meus olhos doerem; e
quanto mais eu olhava, tanto menos eu via.
(d) De noite, quando nos armávamos para a defesa contra os indígenas, Karl dizia para
mim: “Tu sabes, Käthchen, minha valente, pequena esposa, melhor morto do que ser le-
vado pelos peles-vermelhas!! – ” “Sim, sim, eu sei”, dizia eu, tremendo e olhando para a
boca das pistolas. Karl então logo adormecia; eu, porém, ficava longas e longas horas a-
cordada, ouvindo se vinham os índios e olhando para as nuvens sombrias ou para as estre-
las cintilantes. O meu desespero era visto como coragem; eu consegui a reputação de uma
mulher com caráter. Mas como eu estava cansada e machucada!
Aqui se constituem imagens de uma mulher corajosa e de caráter. A própria Käthe, po-
rém, se via cansada e machucada. Muitas vezes a historiografia da imigração via e registrava
apenas o lado heróico das famílias imigrantes ou lhe dava mais peso. Esta mulher, no entanto,
mostra o quanto de sofrimento havia em sua vida, que se expressava em insônias e longas noi-
tes de solidão. A preocupação e o desespero não a deixavam dormir rapidamente, tal qual a-
contece com Karl, que parece estar no controle de tudo.

Arthur Blásio Rambo escreve sobre “Personalidades fortes” em seu artigo “Na sombra
do carvalho”. Neste trecho, ele menciona as mulheres germânicas e as coloca como precurso-
ras identitárias das mulheres alemãs imigrantes372. Em seu entender, a mulher alemã que emi-
gra ao Brasil, aos Estados Unidos, ao Chile e a tantos outros países, carrega em sua bagagem
características da mulher germânica da Idade Antiga e Média como, por exemplo, a força, a
coragem e a intrepidez. Assim ele exemplifica:

Na frente caminham os homens com machado na mão em atitude de desafio à floresta


desconhecida e, um pouco atrás, a mulher com o filho pequeno nos braços e os um pouco
maiores ao lado dela, de cabeça erguida, parece dizer aos homens: “Abram a primeira tri-
lha, limpem a primeira clareira, construam os primeiro [sic] abrigo, que eu tenho consci-
ência da parte que me cabe e darei conta dela no que der e vier”.373
Segundo Rambo, as mulheres germânicas não podem ser vistas como pertencentes ao
sexo frágil. Elas não precisam de proteção constante, nem são somente procriadoras ou aque-
las que satisfazem os homens. Menos ainda são bestas de carga, tendo a responsabilidade dos
filhos e da administração do lar a pesar sobre suas costas. As mulheres germânicas comparti-

372
Arthur Blásio RAMBO, Na sombra do carvalho, p. 41ss.
373
A. B. RAMBO, op. cit., p. 45.
153

lhavam os mesmos riscos e privações aos quais os homens estavam/eram submetidos, encora-
javam e se orgulhavam deles.374

Estas observações feitas por Rambo a respeito da mulher germânica explicitam alguns
traços que desenham o perfil da mulher alemã imigrante. Mas, mesmo não sendo do sexo frá-
gil, ela também não é a eterna rocha firme. Ela não é só vítima, mas também não é a heroína.
Seu perfil é um traçado colorido, entrelaçado de nuanças e de mobilidade constante. Ao perfil
já traçado, sempre de novo é possível, e necessário, desenhar outros tantos.

A própria Käthe chega a afirmar que passava por corajosa e destemida no caminho pa-
ra a terra dos peles-vermelhas. Mas sabemos pela história, que eram somente aparências. O
quanto era real, então, esta força e coragem da mulher germânica? Com certeza a possuía,
mas era somente assim que deveria ser vista?

Não nego a pertença da mulher alemã imigrante a suas antepassadas germânicas. No


entanto, permanecer com a noção de linearidade histórica desfaz várias nuanças possíveis, es-
condendo possibilidades de traçar o perfil desta mesma mulher. A dicotomia não é descons-
truída ao se afirmar que a mulher não é do sexo frágil, mas é forte e corajosa. Fazer estes con-
trapontos e afirmá-los como a nova e única verdade, é pular de um pólo para o outro, sem a-
branger aspectos que podem estar encobertos pela hierarquia entre eles.

(e) Também não conseguia me acostumar à comida – sempre carne de porco e uma espé-
cie de bolacha seca, carne de gado igualmente seca e café preto! Karl poderia, na minha
opinião, ter se ocupado com melhores provisões. Se ele tem o estômago de um avestruz,
isso não significa que todos o tenham. Toda vez que a toalha era estendida sobre a prada-
ria e equipada com as nossas riquezas, tremia à frente de meus olhos doloridos a doce i-
magem da pátria, a sala de estar familiar, a mesa posta com toalha branca e com todas as
coisas que a mãezinha cuidadosamente preparava... Mas eu, pobre Käthe, aqui fora na
úmida e fria solidão, onde cobras arrastam-se ao meu redor! Não admira que eu não me
assuste com as pistolas!
A questão da alimentação sempre aparece nos relatos das famílias imigrantes. Isto
chama a atenção destas pessoas, pois a comida sempre destoa daquilo que é hábito nos locais
de origem. E parece que a alimentação continua sendo uma preocupação das mulheres. Mes-
mo aqui, onde parece evidente que Karl organizou as provisões, Käthe acha que ele deveria
ter feito melhores escolhas. Isto mostra que, para Karl, o importante é ter quantidade suficien-
te de comida, não olhando tanto para a sua qualidade. Ou seja, a decisão da viagem para o o-

374
Ibid., p. 41, 42.
154

este estadunidense foi tão unilateralmente tomada apenas pelos homens, a ponto de chegarem
a invadir um espaço feminino e organizar as provisões e alimentos que deveriam ser levados.

Käthe não se acostumou à comida, assim como as mulheres nos navios de transporte
de imigrantes também não se acostumaram. Às vezes, nem comida havia. No trecho do relato
de Käthe em que aflora a “cozinha” (neste caso as provisões levadas na viagem), também vem
à tona a minha suspeita de que isto é algo que lhe faz falta, devido ao contexto em que foi e-
ducada. Ela teria organizado diferente a questão dos alimentos, por exemplo. Acostumada a
lidar, como mulher, com estes afazeres375 , Käthe se vê desprivilegiada em sua situação e tem
claramente outra opinião que a do marido em relação ao tipo de alimento agradável ao con-
sumo.

Tudo isso faz com que ela lembre de outra mulher, sua mãe, quando esta organizava a
comida e a mesa com muito cuidado e carinho, nos tempos em que era criança. É no contexto
da alimentação que Käthe lembra o ritual de colocar a toalha de mesa branca e as comidas,
especialmente preparadas por sua mãe. Estes são valores para Käthe, dos quais ela já não que-
ria se desfazer ao iniciar a viagem. Deles sente falta durante o trajeto. Sem estes valores, ela
se sente como um ser pela metade. São valores arraigados entre as mulheres, feitos para as
mulheres, dando-lhes o sentido de vida. No momento em que não mais existem, são desvalo-
rizados ou esvaziados de seu sentido, forma-se um outro vazio (o ser pela metade), que procu-
ra ser preenchido, por exemplo, com outro valor: o da maternidade. Mais adiante, Käthe relata
a sua experiência de ser mãe.

(f) Finalmente tomamos lugar em nossa casa na cidade. Eu não quero mencioná-la e não
quero ofender seus habitantes por causa da minha tristeza. Se a sua situação desde aquele
tempo efetivamente não melhorou, eles são miseráveis. Nos dirigimos então para o lugar
que eles denominam cidade. Eram algumas barracas de tábuas soltas, totalmente calcula-
das para serem rapidamente desfeitas, carregadas na carroça e levadas mais adiante, oeste
adentro. As infelizes criaturas, que carregavam consigo a maldição, denominada por eles
de espírito empreendedor, não encontravam paz, mas viviam na insegurança e como fugi-
tivos. Sempre havia uma terra do ouro à distância, que os atraía para si com poder demo-
níaco. Era a inquietação do eterno judeu. Nós nos tornamos membros desta lamentável
sociedade. Fardos de papel e um gênio da pintura seriam necessários para descrever os
pequenos e grandes tormentos do cotidiano, que esta cobiça por riqueza trazia consigo.
(g) De noite, muitas vezes, cavalgavam os grandes e furiosos índios pela cidade, em or-
dem selvagem e guerreira, um enfileirado atrás do outro, assim que o pouco sangue, ainda

375
Relembro aqui o que escrevi no capítulo um (A mulher/O tripé esposa-dona-de-casa-mãe/A cozinha e a ali-
mentação: a dona-de-casa, p. 61) sobre a importância da cozinha, do alimento sobre a mesa, da despensa
cheia e a horta como tarefas desincumbidas/assumidas/introjetadas pelas mulheres.
155

não congelado pelo frio, de susto coagulava nas veias e todo e qualquer sono desvanecia
por completo.
A decepção de Käthe ao chegar à cidade é evidente. Ela vê o que não esperava ver:
uma precariedade enorme. Esta surpresa fica estampada no rosto da maioria dos alemães imi-
grantes no sul do Brasil, ao se depararem com o lote de terra que, finalmente, depois de algum
tempo morando em um abrigo provisório para recém-chegados, lhes era concedido: só mata
cerrada, nada de cabana ou casa, nenhuma terra livre para plantio ou para a criação dos ani-
mais! Tudo precisava ser conquistado a duras penas: o espaço da moradia, algum canto que
pudessem chamar de lar. O contato com indígenas, denominados de bugres, também existiu,
contato este nem sempre amistoso. Käthe e Karl, ao chegarem à “cidade”, encontraram muitas
dificuldades de instalação, alimentação e infra-estrutura.

Há que se ressaltar neste trecho a questão inter-étnica. Existe um antisemitismo latente


na fala de Käthe ao comparar a constante migração a que muitas famílias estavam expostas e
submetidas, ao imaginário de que o povo judeu sempre de novo está a correr atrás do ouro e,
não só isso, também a localizá-lo. A idéia que Käthe tem da migração constante é uma idéia
demonizada, que obriga pessoas a irem onde não querem (foi o caso dela mesma), impele-as a
correr atrás da riqueza a qualquer custo. A ganância pelo ouro é, para Käthe, quase um peca-
do, no mínimo um erro que precisa de imediata reparação.

(h) Passados três anos ali, pude olhar novamente em um espelho. Eu era uma mãe espe-
rançosa e meu pobre Karl fez todo o possível para ter tudo organizado e limpo ao meu re-
dor; até um espelho ele arranjou por aí. Para o mesmo, então, eu olhava. Horrorizada, re-
cuei assustada. Carne de porco e torradas velhas, café preto e carne de gado seca, as tem-
pestades cortantes da pradaria, o sol queimando, saudades de casa, medo dos selvagens,
febre, dores de cabeça e coisas do tipo tiveram o seu efeito. Käthchen Malcolm estava ir-
reconhecível; ela era como uma múmia, com a pele amarela e seca e com grandes, pene-
trantes e fundos olhos. Eu reprimi o meu soluçar e virei o espelho para a parede.
Käthe está grávida, seguindo a função pré-estabelecida de ser mãe. Karl se mostra um
pai atencioso, organizando e arrumando a casa para receber o novo morador. Novamente, a
narrativa leva a acompanhar Käthe em uma incursão dentro de si mesma. Ela se descobre a-
cabada devido à dura vida que levava. Isto é mais uma evidência e testemunho de que, apesar
das mulheres seguirem seus maridos e tornarem-se mães, tais atitudes negam a sua própria e-
xistência, escancaram em seus rostos que a vida poderia ter sido outra se seguissem um pouco
os seus projetos. Mas isto não lhes é permitido e, por isso, Käthe reprime o seu choro. Ao vi-
rar o espelho, ela se esconde de si mesma e da vida que desejaria estar levando ao lado da
mãe.
156

(i) Duas semanas depois nasceu o meu filhinho e dois meses depois eu era de novo
Käthchen Malcolm, só que uma mulher vinte vezes melhor do que antes. Meu menininho
era o mágico, que trouxe luz às fendas das velhas vigas. Ele abrandava os olhos de sua
mãe e limpava as rugas sobre o nariz do pai, o doce e pequeno Malcolm! Eu agradecia ao
bom e misericordioso Deus por ele. E como ele precisava de cuidados, eu também encon-
trava forças para criá-lo. À luz de uma vela de sebo eu costurava até ficar quase cega, a
fim de fazer lindas roupinhas para ele e antes que eu pudesse perceber, eu já podia cantar
de novo e não temia mais nada. Ele era o meu remédio e o meu alimento.
Com o filho nos braços, Käthe sente seu vigor voltar. Ser mãe é revigorante, pois con-
tribui para a realização de seu papel social. A precariedade da situação já não importava mais.
Importante era estar aí para a criança, doar-se a ela, esquecer-se de si, mais uma vez. Neste
embotamento de ser mãe, Käthe menciona Deus como bom e misericordioso. Até então, o as-
pecto religioso não é mencionado e neste momento ímpar de sua vida, vale agradecer a Deus
pela graça concedida e pelo sentido da vida que lhe retornava, tornando-se uma pessoa inteira
novamente. É importante o agradecimento a Deus neste momento, pois, já que ser mãe era
uma missão divinamente vocacionada, a ele deveria ser dirigida a gratidão por toda a felicida-
de sentida na ocasião.

(j) Um dia eu estava sozinha com ele e esquentava os seus pequenos pés rosados perto do
fogo; pois o ar lá fora estava gelado e tempestuoso. De repente eu ouvi passos. A porta
abriu-se silenciosa e entrou o mais lastimoso e miserável trapo de gente que se possa i-
maginar. Primeiro eu pensei que fosse um cobertor de lã sujo que tivesse ficado vivo; mas
logo eu vi cabelos pretos, grossos, compridos e um pé chato, de cor púrpura do frio. O
cobertor sujo abriu-se e à minha frente estava de pé uma pobre mulher índia com uma pe-
quena criança índia, doente e estranha. “Criança pequena! Febre! Treme!” – balbuciou ela
e, ao mesmo tempo, estremecia o pequeno e sujo corpo em convulsões. Deitei Malcolm
em sua caminha, peguei água do fogo, derramei-a em uma cuba, peguei o pequeno índio e
o ensaboei, cabeça, orelhas e tudo. A água ficou rapidamente preta; pois nunca uma pe-
quena e pobre criatura esteve coberta com tanta sujeira. Ele respirava com dificuldade e
abriu selvagemente os olhos. Coloquei-lhe um pouco de sal na boca e ele logo melhorou.
Ele arrastou-se novamente até o cobertor de sua mãe; mas seus olhos estreitos e pretos
seguiam meus movimentos, com um olhar inflexível, que parecia dizer: “Quando um dia
eu me tornar um guerreiro, que se tatua e se enfeita com penas, vou querer ornamentar o
meu cinto com o escalpo dessa ridícula mulher branca. Eu quero ensiná-la o que significa
me ensaboar, roubar a minha sujeira e tomar essas liberdades com o filho de meu pai!”
Quando eu finalmente lhe trouxe uma dose de quinina, aí mesmo é que lhe deu uma pon-
tada no coração.
(k) Todas as noites vinha a afável mulher na minha porta e me mostrava a sua criança
com o mesmo pedido queixoso: “Criança pequena! Febre! Treme!” – então ela me olhava
respeitosamente, quando eu dava ao seu valente a dose amarga, obrigando-o a isso. Eu
não me lembro de que ela tenha mostrado alegria ou agradecimento, quando da melhora
de seu filho. O seu rosto mantinha sempre a mesma expressão estóica e de sofrimento. Eu
me afeiçoei àquela pobre e triste mulher, era uma alegria escutar à noite o seu suave e le-
ve passo: mas eu confesso que nunca consegui me acostumar à criança; eu quase tinha
medo dela. Ficou o olhar irreconciliável, selvagem, de seus olhos cintilantes. Eu fiquei fe-
157

liz quando ele não precisou mais de minha ajuda; a mãe, no entanto não vinha mais, me
fez muita falta.
As mulheres, imigrantes ou indígenas, têm a responsabilidade pelas crianças, pelo
bem-estar e pela saúde delas. Elas levam as crianças para serem curadas, elas mesmas curam
as crianças. A amizade e a solidariedade entre as mulheres é algo interessante. Käthe e a mu-
lher indígena se ajudam e se aproximam em decorrência disso. Há apoio e união, sem grandes
palavras. Esta aproximação ocorreu em uma noite em que Käthe estava sozinha (não se sabe
durante quanto tempo já esteve ou ainda vai continuar sozinha). Karl deve ter ido trabalhar em
algum lugar distante, que não possibilitava a sua volta à cidade em que moravam. Provavel-
mente não é a primeira vez que Käthe fica sozinha, nem será a última.

Isso também aconteceu com as mulheres alemãs imigrantes: o ficar ou o estar sozi-
nhas. É nestas horas que acontecem as alianças entre mulheres e que se foge um pouco da ro-
tina e da faina diária. Este é o espaço que me possibilita questionar o constante trabalho destas
mulheres. Imagino que usufruam dele também como um espaço de lazer, de leitura, de ócio. É
o espaço da amizade e de poderem ser elas mesmas. Não que não sigam as suas responsabili-
dades ou se tornem desleixadas, mas é de se suspeitar que a ausência do marido traz consigo a
presença de sonhos e vontades não realizados e/ou não permitidos em outros momentos do di-
a, da semana ou do mês. É o espaço da resistência e do silêncio, que não foi historiografado,
mas vivido e apreciado. As mulheres não deixam de realizar suas tarefas, mesmo na ausência
dos maridos, pois só se dão ao prazer da folga justamente nestes momentos. São dias mescla-
dos de trabalho e lazer, dias subversivos.

As partes sublinhadas no parágrafo (j) trazem à tona como as dimensões gênero e etnia
estão mescladas. “Sujo”, “sujeira” caracterizam a mulher indígena e seu filho. Käthe, com o
seu remédio e sua limpeza, ajuda este filho adoecido, o que faz com que a mulher indígena
volte novamente. Quem parece não gostar das atitudes desta “ridícula mulher branca” é o me-
nino indígena. Será que ele se sente discriminado no seu jeito de viver ou será que é Käthe,
que parece ler algo nos olhos do menino, os quais delatam a sua discriminação inconsciente?

A mulher indígena não tem nome. Ora ela é designada de “trapo de gente”, parecida
com um “cobertor de lã sujo que tivesse ficado vivo”; ora de “pobre mulher índia”, o que faz
recair sobre a mulher indígena não somente a discriminação em relação ao seu pertencimento
étnico-cultural, mas também a sua condição social. Este é um exemplo bem sutil de intersec-
158

cionalidade, ou seja, sobre o corpo da mulher indígena cruzam-se os eixos étnico-cultural e


condição social.

Assim, para uma análise teórica feminista de textos como estes, por exemplo, não bas-
ta mais olhar somente para a questão de gênero. Pois em muito a palavra gênero começou a
expressar um simples sinônimo da palavra mulher. Se apenas isto fosse feito, não se percebe-
ria que entre as próprias mulheres ocorrem discriminações e desempoderamentos. A noção de
gênero é importante para visibilizar as mulheres na história, mas o próximo passo precisa ser
dado. Este envolve a percepção da existência de outros eixos (condição social, pertencimento
étnico-cultural, idade) no cotidiano das mulheres, mas para além do eixo de gênero, não em
lugar deste. O conceito de interseccionalidade ajuda nesta busca por compreensão.

(l) Neste meio tempo o nosso pequeno Malcolm tornou-se uma linda criança. E ele era
tão bondoso, tão divertido, raramente era impetuoso ou choramingava; depois do choro
sempre adormecia com aquele soluço querido, que daria vontade a cada mãe de acordar
novamente a criança só para fazê-lo dormir. Uma outra vez ele estava deitado sobre a
cama, balançava os seus pezinhos e brincava com os raios de sol. Mas quem não conhece
as encantadoras artes desses pequenos e queridos marotos! Nós o amávamos demais, cla-
ro. Karl e eu, nós estávamos muito perto de adorar o nosso amado tesouro. E mesmo as-
sim, havíamos ficado melhores através dele; os cantos e arestas de nosso ser começaram a
diminuir.
(m) Quando chegou a primavera, estávamos, eu e Karl, ocupados, de manhã até de noite,
em um pedaço de terra, que nós honráramos com o nome de horta. Foi uma grande ale-
gria quando nós comemos os meus primeiros rabanetes e as ervilhas temporãs! E as ervi-
lhas tardias e o restante dos legumes?... Tudo murchava e apodrecia! Na minha horta au-
mentou a erva daninha; a minha casa tornou-se como um canil desleixado e eu – ó, como
eu pobre consegui sobreviver àquele dia! Eu ainda tremo, quando penso naquela bonita e
clara manhã, se bem que já se passaram quinze anos desde então. A natureza estava em
uma atmosfera amena, no céu azul pontilhavam pequenas nuvenzinhas; as hastes da relva
tremelicavam de alegria. Até a interminável vista para a pradaria ensolarada me parecia
bonita, quando saí para o monte de lenha, a fim de pegar algumas achas para a cozinha.
Fiquei parada um instante, fazendo sombra para os olhos com a mão, e olhava para a am-
pla distância. De repente apareceu uma grande e escura sombra na porta de minha peque-
na casa. Deixei as achas cair e corri para lá; na soleira, porém, estancou a minha respira-
ção; pois lá dentro, em frente ao fogo estava acocorado um gigantesco índio e segurava
em suas mãos o meu querido e pequeno Malcolm!
Aqui Käthe conta como, na primavera, ela e seu marido Karl trabalharam a terra e fi-
zeram uma horta. Neste local, eles plantaram alguns legumes para consumo próprio. A alegria
na colheita foi grande, bem como no preparo das refeições com os produtos daquela horta.

Destaco este aspecto da história para expressar 1) uma importante tradição / organiza-
ção social das famílias alemãs imigrantes; 2) uma das tarefas domésticas que cabia, enquanto
159

responsabilidade, à mulher, ou seja, o plantio da horta no pátio (“Hof”376) da casa. A localiza-


ção geográfica não está em evidência no relato de Käthe, mas comumente o pátio é o local
utilizado para tal.

Sobre o primeiro aspecto destacado, a questão da organização social/tradição, Rambo


novamente remete aos povos germânicos. O fato, por exemplo, de as famílias alemãs imigran-
tes trabalharem com o que hoje denomina-se agricultura familiar e de terem se organizado so-
cialmente em torno da policultura, em primeiro lugar para consumo próprio e, em seguida, pa-
ra abastecimento da venda e/ou de outros lugares para escoamento de seus produtos, e não da
monocultura do café, do algodão ou da criação de gado, é originário justamente dos povos
germânicos, por serem sociedades agricultoras.377

Ilg afirma que a melhor forma de colonizar a floresta era justamente com e através da
agricultura familiar. Cada família alemã, em seu pátio, em sua colônia, contribuía em seu lu-
gar, para o crescimento, abastecimento e divulgação do elemento germânico, da germanidade,
herança dos povos germânicos. Ele remete a Tácito (assim como Rambo também378), o qual
fala da forma de colonização alemã com a estrutura de pátio e não de uma casa ao lado da ou-
tra. Ilg também usa a palavra Hof.379

(n) Eu já tinha visto muitos índios, muitos sujos, bêbados, também peles-vermelhas sem
coração; eu me acostumei a eles e aprendi mais a desprezá-los, do que propriamente ter
medo deles. Mas este – com a sua enorme figura, seu grande nariz de águia, seus olhos
ardentes e a expressão maliciosa, selvagem, ávida com a qual ele olhava a minha inocente
criança, - somente o desespero me dava a coragem de me aproximar dele. Calmamente
andei em sua direção, tentava sorrir com lábios trêmulos, amigavelmente eu lhe acenava
com a cabeça e me esforçava em pegar a minha criança de seus braços.

376
O termo em alemão para pátio, Hof, lembrado aqui, remete ao texto de Rambo. Ele lhe confere um valor exis-
tencial para a inserção das pessoas na comunidade, na vida comunal ou, por exemplo, na aldeia, termo que u-
tilizei para traduzir do alemão kleine Stadt, ao descrever a aldeia de Hanna, no início deste segundo capítulo.
Rambo escreve: “Os componentes físicos que perfaziam o “Hof” compreendiam a casa de moradia (das
Haus), os depósitos, os estábulos, as pocilgas, os galinheiros e demais benfeitorias. Não podia faltar um jar-
dim com flores em frente à casa. Entre as construções, cresciam árvores de sombra, árvores frutíferas e plan-
tas ornamentais. Soltos, andavam galinhas, patos, gansos e obviamente cães e gatos. [...] Todo esse conjunto
formava o pequeno mundo imediato, privativo e íntimo do colono e de sua família.” A. R. RAMBO, op. cit.,
p. 88, 89-90.
377
Ibid., p. 47.
378
A. B. RAMBO, op. cit., p. 51, p. ex.
379
Karl ILG, Pioniere in Brasilien, p. 121. “Damit wurden die Kolonistenlose und der ‚Einzelhof’ als
Siedlungsform im Urwald der Schlüssel zu dessen Erschließung. [...] Das Mittelalter hatte die
Einzelhofsiedlung zum deutschen Kolonisationstyp erhoben, währenddem schon Tacitus ausgeführt hatte:
“[...] Die Dörfer legen sie [die germanischen Völker] nicht nach unserer Art an mit verbundenen und
zusammenhängenden Gebäuden. Jeder umgibt sein Haus mit einem Hof [...]”.
160

(o) Foi inútil. Os grandes dedos ossudos do terrível seguravam-no fortemente. Eu o soltei.
“Grande chefe eu!” resmungava o selvagem. “Claro!”, gaguejava eu fracamente. “Grande
chefe eu!”, repetia ele furioso. Eu recuei assustada, lutava com as mãos de espanto, minha
cabeça tonteava de pavor; meio inconsciente eu vacilava e colocava todos os alimentos
que eu achava, tudo do que eu acreditava pudesse estimular o apetite ou a fantasia de um
selvagem, sobre a mesa. Ele me olhava como a um diabo, que descansa momentaneamen-
te. Então, eu indiquei a mesa e tentei pegar mais uma vez minha criança. Em vão! Com
indescritível desdém ele olhava para a comida, colocava seu grande dedo no peito mar-
rom e repetia: “Grande chefe eu!” Com isso ele foi embora. Malcolm gritava e estendia as
suas mãozinhas para mim; caí de joelhos em frente ao monstro, pedia e implorava com
olhos transbordantes, mostrava-lhe que não era digno de um grande chefe de uma tribo
poderosa, atormentar uma pobre e indefesa mulher e prometia a ele todos os tesouros i-
magináveis, cobertores de lã coloridos, pérolas brilhantes e o que mais a gente possuísse.
(p) Por um instante ele parou hesitante e colocou a mão na arma branca presa a seu cinto.
Então, me empurrou para o lado, colocou seu cobertor sujo sobre a minha pobre criança e
correu para fora, enquanto eu assistia estarrecida como seus ruidosos passos aumentavam
o espaço entre nós, até que ele, à distância, pulou sobre o seu cavalo e sumiu em uma nu-
vem de poeira. Então eu perdi os sentidos; caí na soleira da porta e fiquei ali deitada até
que Karl viesse... Três dias permaneci inconsciente para, então, novamente “acordada”,
ser lançada em um desânimo todavia mais profundo e imponente . Pois eu não queria dei-
xar que me consolassem.
A abnegação e a doação são as linhas mestras na vida de Käthe, reforçadas a partir do
momento em que se torna mãe. Com todo o seu ser, ela realiza as tarefas pertinentes e
(re)encontrara nisso, como visto acima, o sentido de sua vida. Os sacrifícios (costurar noite
adentro, por exemplo) decorrentes daí, não são um problema. Com isso, ela se transforma, en-
contra forças para enfrentar as agruras pelas quais passa, se revitaliza. A sua auto-estima, re-
conquistada, a embeleza por dentro e por fora. Ela se sente íntegra ao assumir seu papel de
mãe.

Entregar seu tempo, seu esforço, sua criatividade para alimentar, vestir e educar um fi-
lho (ou filha), já transformou muita mulher. Käthe não é a única a ver realizado nisso um de-
sejo, consciente ou não, e também a acalmar um anseio e a rever uma esperança de melhorar a
própria vida. Quando o indígena tira Malcolm de Käthe, a sua vida perde o sentido. E ela des-
falece. Käthe cai em uma profunda depressão, estando à beira da loucura. Toda a sua devoção
e serviço, todo o seu amor e doação, toda a sua alegria foi levada junto com aquele indígena a
cavalo.

Nos parágrafos (n) e (p) estão sublinhadas as expressões que denotam os distintos per-
tencimentos étnico-culturais. Novamente os índios são sujos, usando cobertores sujos, tal qual
mencionado acima. O desprezo que Käthe sentia pelos “peles-vermelhas” pode estar profun-
161

damente ancorado na idéia da superioridade da pele branca, marca distintiva de uma superio-
ridade étnica.

(q) Como eu deveria viver com esta dor em minha mente? Eu preferiria muito mais ter
visto a minha criança morta e enterrada. Eu a teria colocado de coração partido nos bra-
ços do misericordioso e bom Salvador; mas que era um roubo deste monstro – este pen-
samento era insuportável!
Nesta situação-limite de sua vida, Käthe lembra do seu Salvador, bom e misericordio-
so. Acredita que em suas mãos, seu amado filho Malcolm, mesmo morto, estaria melhor
guardado e sua vida, apesar de não voltar a ter o mesmo sentido, talvez fosse mais suportável.

Käthe expressa algo de sua religiosidade, ao preferir ver o filho nas mãos de Deus do
que nas mãos do indígena. A fé pode sair fortalecida em situações-limite; ou debater-se em
sentimentos e atitudes de desespero. Ou emudecer, desanimar. É um momento de crise em
que Käthe decide o que é bom para si. É um momento em que ela decide autonomamente e
com exclusividade o que prefere fazer de sua própria vida.

(r) Eles o perseguiram por toda a parte, procuraram-no perto e longe, - inútil! Um mês
passou e minhas forças diminuíam a olhos vistos. Minha mãe estava a caminho daqui;
mas eu sentia que ela não mais me encontraria viva. Dia a dia eu estava deitada em apáti-
co atordoamento, do qual temiam despertar-me, com medo de que se transformasse em
loucura.
(s) Então, em uma noite amena, quando um vento benfazejo movimentou as largas folhas
da videira agreste em frente à minha janela, tomou conta de mim um sentimento impo-
nente de que eu estava pecando contra o meu Deus. Era como se o Espírito de Deus to-
casse o meu coração com uma porção de seu amor e sua misericórdia. “Karl”, disse eu e
procurava alcançar com a mão a sua cabeça curvada de aflição, “Karl, eu tenho sido uma
criatura ateísta [gottloses Geschöpf] e rebelde, eu resmunguei contra Deus e contra ti, eu
duvidei de sua sabedoria e bondade. Karl, o bom Deus tomou para si o nosso pequeno;
em algum lugar a sua pequena ossada está embranquecendo, mas a sua alma está no céu
com o Salvador!” “E você ficará viva?” – perguntava Karl suplicante. “Ah, meu querido,
isto provavelmente é impossível.” Ele curvou novamente a sua cabeça e um forte estre-
mecimento passou por seu corpo.
Esta experiência religiosa de Käthe é descrita com palavras envolventes, que atestam o
quão profunda é sua relação com Deus. Ela sente o toque do Espírito de Deus através de seu
amor e de sua misericórdia. Käthe, então, desperta para o seu Deus, confessando-se pecadora
diante dele por seus sentimentos de impotência, revolta e perda. Ela se sente arrependida por
não ter acreditado em Deus, por ter resmungado contra ele. Käthe de repente se dá conta de
que não pode carregar esta culpa, a culpa de ser contra Deus. Como poderia ser contra Deus?
Como poderia ser contra o marido? Deus-marido; Deus, imagem masculina, marido, um ho-
mem, contra estes ela não pode se revoltar. Ela precisa manter sua submissão, sua obediência.
162

Com isso, ganha, aparentemente, novas forças . Resigna-se a ocupar seu lugar social.
O valor da religião, um valor também muito forte e presente na vida das mulheres, é seu es-
teio. Segundo Käthe, Malcolm foi tirado de suas mãos por Deus, “Deus tomou para si o nosso
pequeno”, através do indígena, que não é mais mencionado. Ela se consola no fato da criança
ter morrido e encontrado no colo de Deus o descanso eterno. Mas este é seu único consolo,
pois viver sem o filho, ela não quer mais.

(t) De repente eu pensei ter ouvido um leve passo, que fez despertar muitas lembranças
em meu coração. A porta se abriu lentamente; sim, realmente era ela, a minha bem co-
nhecida e triste mulher índia. O seu cobertor, mais sujo do que nunca, dependurava-se
solto sobre seus ombros. No saco sobre suas costas, sentava-se a pequena criança. Ela co-
locou-se, em sua forma silenciosa, no lugar costumeiro ao lado do fogo e me olhava com
uma saudade peculiar e veemente. “Criança pequena! Febre! Treme!” – dizia a voz quei-
xosa e melodiosa. Minhas lágrimas correram, a primeira vez desde a minha grande dor.
“Ah, pobre mãe” – dizia eu – “no momento estou totalmente incapacitada a ajudar a tua
criança, mas passe-a para cá; todas as crianças agora me são queridas e caras!” Ela repetia
triste: “Criança pequena! Febre! Treme!” – e tirou uma criança de seu cobertor, terrivel-
mente magra, quase morta de fome, que tinha somente alguns trapos no corpo; mas cujos
olhos eram grandes e claros e cujo cabelo brilhava como ouro no sol poente. Quando a vi,
entrou em meu coração tal torrente de alegria, que eu respirava com dificuldade e acredi-
tava que este seria o meu fim. Eu o agarrei convulsivamente em meus braços e o apertava
em meu coração, minha própria criança, meu Malcolm! Graças ao bom e misericordioso
Deus no céu, o menino era meu novamente. Ele estava doente e ela o trouxe, a fim de que
eu o curasse, a pobre e boa selvagem; nós nos curamos mutuamente, meu menino e eu, a-
través do forte remédio do amor. – Karl lavou a criança da cabeça aos pés. Eu pedi a ele
que fosse ao meu baú de noiva e que de lá tirasse as roupinhas, das quais eu pensei que
jamais fossem usadas de novo. Então, forte de alegria, eu mesma voei da cama, me colo-
quei de joelhos e envolvi os pés da índia. Karl pegou o seu relógio do bolso, acenou para
ela, a fim de que escutasse o seu tique-taque e o colocou em sua mão enquanto continua-
mente suas lágrimas fluíam sobre seus cabelos pretos. Eu dei a ela minha grinalda e um
bonito colar de pérolas. Ela persistiu em sua antiga e afável dignidade e movimentou-se
quieta para a porta. “Você voltará amanhã” – dizia eu, estendendo-lhe a mão cordialmen-
te. Os seus lábios estremeceram. Ela nos olhou a todos, a criança, Karl e eu, então ela saiu
rapidamente e sumiu na noite escura. – “Ela virá amanhã de novo” – dizia eu, virada para
a minha criança. “Eu quero lhe arranjar o mais lindo cobertor, que seus grandes olhos ja-
mais viram” – dizia meu marido. Mas, ainda que muitos tesouros a aguardassem, mais
que um cavalo índio pudesse carregar, ela nunca mais voltou.
(u) Somente Deus conhece a chave de todos esses segredos.
(v) Nós aguardávamos somente a chegada de minha mãe e que a criança e eu estivésse-
mos fortes o suficiente para a viagem. Então nós mudamos novamente para a velha pátria,
onde muitas crianças ainda me alegraram: mas nenhuma tanto quanto o meu Malcolm.
Extraído do Friedensbote (Mensageiro da Paz)

Malcolm está novamente nos braços da mãe! A mãe está novamente salva pela pre-
sença do filho. A Deus são dadas graças; ao bom e misericordioso Deus no céu. Deus é o re-
médio no céu e o amor é o remédio na terra. Segundo Käthe, o amor entre ela e seu filho cu-
163

rou a ambos. É o amor que provém de uma maternidade ardentemente desejada, quase neces-
sária. O amor de mãe, que também vai ser a temática do próximo texto, é algo tão essencial,
que parece nascer junto com toda mulher. Este amor é tão forte e presente que, se acontece al-
guma interferência nesta relação de troca, a vida não resiste muito tempo. Quero lembrar aqui
toda a reflexão elaborada no capítulo um380 a respeito da maternidade e do tripé maternidade-
amor-doação. Deus mantém a imagem de todo-poderoso, quando Käthe lhe coloca nas mãos
“a chave de todos esses segredos”. Mesmo com todo o sofrimento de Käthe, Deus merece a
confiança total e inquestionável para tudo o que lhe acontece na sua vida.

Sublinhei, no parágrafo (t), a repetida menção à sujeira caracterizadora da mulher in-


dígena e a necessidade de estar com tudo limpo e em ordem, caracterizadora de Käthe, agora
de Karl. O texto inteiro estabelece esta visão de mundo, no encontro das duas culturas. Lem-
bro aqui de Sandra Jatahy Pesavento que em sua obra aborda discursos correntes do século
XIX. Tais discursos procuravam enquadrar as pessoas pobres e sujas no imaginário burguês
da ordem e da limpeza.381

No caso de Käthe e da mulher indígena não há uma relação de burguesia com proleta-
riado, mas há uma hierarquia inegável de posições sociais, colocando Käthe como superior à
mulher indígena. Aliás, Käthe mesma se coloca um degrau acima da mulher indígena, como
se assumisse uma postura etnocêntrica, demonstrando superioridade étnica.

Apesar do texto inteiro relacionar a sujeira com a mulher indígena, Käthe, em sua vi-
são de mundo, crê ser a sua a maneira correta de viver, ou seja, mantendo sempre a ordem e a
limpeza. Se os outros não o fazem, é preciso ajudá-los. Neste sentido é necessário perceber o
quão sutil se coloca a questão dos discursos incorporados, amalgamados ao viver cotidiano e
expressos na experiência das próprias mulheres, sejam estes discursos discriminadores ou não.
Céli Regina Jardim Pinto fala, nestes casos, das práticas não-discursivas, que são os gestos e
as atitudes, o jeito de ser a partir de um discurso ou de uma prática discursiva.382

Também no parágrafo (t), Käthe menciona o seu baú de noiva. O baú de noiva é mobí-
lia importante e sempre presente na casa da mulher alemã imigrante. É o baú que contém o

380
Veja o capítulo um da tese: Mulher/O tripé esposa-dona-de-casa-mãe/A mulher dentro de casa: maternida-
de, p. 61.
381
Veja o capítulo dois da tese: A mulher alemã/O trabalho, p. 76.
382
Veja as outras reflexões a partir de Céli Regina no capítulo um: A Mulher/Olhares analíticos, p.37.
164

enxoval, preparado com todo o afinco e cuidado não só pela mulher que vai se tornar esposa,
mas também por sua mãe, por sua avó. Elas, por sua vez, têm o seu próprio baú de noiva.

O baú com o enxoval tem uma importância simbólica muito grande para a mulher na
colônia. É algo que a vincula com as ancestrais. É algo que ela leva para o casamento como
uma contribuição sua para o conjunto de bens da família. O baú é seu espaço, onde guarda o
que lhe é precioso. Deste baú Käthe tira a grinalda e o colar de pérolas para dá-las, em sinal
de profundo agradecimento, à mulher indígena. Percebe-se que este valor é dado somente por
Käthe, pois a mulher indígena dirige-se quieta para a porta. E não leva nada, a não ser o seu
cobertor “mais sujo do que nunca”.

É de suspeitar-se que neste baú de noiva, tido como um espaço exclusivo da mulher
alemã imigrante, haja resquícios de momentos que também são só dela, momentos em que
não precisa e não pensa nos outros, mas em si. Onde ela guarda o poder ser ela mesma, sem
precisar doar-se ou doar seu tempo no cuidado dos outros, podendo cuidar de si. Eu diria que
aqui pode ser levantada a suspeita do baú de noiva ser um espaço de auto-subjetivação, de e-
xercício da liberdade e de resistência a estratégias disciplinarizantes, como já afirmava Mar-
gareth Rago ao narrar a vida de Luce Fabbri.383

Cleci Eulalia Favaro fala do enxoval como memória doméstica das mulheres. Ele é
preparado ao longo de vários anos, mostrando uma cumplicidade entre mãe e filha. É na hora
da confecção do enxoval, que são trocados muitos saberes.384 Mais tarde, os mesmos serão u-
sados na vida de esposa-dona-de-casa-mãe, assumida pela jovem mulher.

1.2) Amor de mãe.385


(a) Eu vi, uma manhã em Nova Iorque, nas esquinas, a imagem de um mulher simples, a-
flita e triste, com a legenda: “Volte! Eu ainda te amo!” Fiquei maravilhosamente cativa-
do/a386 por esta imagem; qual será o seu significado? Eu procurei informações junto a um
amigo meu, redator de um grande jornal, e cheguei a saber: uma mãe quer, desta maneira,
atrair de volta a sua filha fugida. Endereço e nome também me foram passados. Um pou-
co depois, o meu caminho me levou junto a este endereço. Não consegui me conter para
entrar. Eu encontrei aquela mulher em um quarto modesto e limpo, cujas feições doridas
na imagem tinham me cativado, e uma moça de beleza saliente. Como eu me apresentei,
como eu fiz para que elas me contassem sua história, não me lembro mais. A história era
simples o suficiente. A sra. Black era a viúva de um hábil artífice com uma pequena for-

383
Veja o capítulo um: A mulher/A desconstrução, p. 26.
384
Cleci Eulalia FAVARO, Imagens femininas..., p. 18.
385
DA. Ano 21. Langenberg : Pastor Griesemann, abril 1883. p. 31.
386
Neste texto não fica claro quem o escreve, se um homem ou uma mulher.
165

tuna. Os seus esforços em educar a filha no temor a Deus não legaram ao jovem coração
[o poder de] dominar o vício por diversão e leviandade.
A sra. Black, de quem trata a história, é uma mulher temente a Deus. Ela toma sobre si
a tarefa de educar a filha neste temor a Deus. E não é somente a sra. Black que age assim. Es-
ta tarefa é executada com maestria pelas mulheres, também as alemãs imigrantes. Mais uma
vez os jornais usam a sua influência e seu longo alcance para (a)firmar tal obrigação387, su-
blime e enaltecedora. Crê-se e divulga-se que, ensinar os filhos e as filhas no temor de Deus,
faz com que não caiam em nenhum tipo de vício ou que se tornem pessoas indignas ou deso-
nestas. Caso tal venha a ocorrer mesmo assim, a culpa é da mãe, que não soube cumprir bem
o seu papel. A “feição dorida” que a pessoa vê nas imagens legendadas de Nova Iorque, tes-
temunha o enorme sofrimento da sra. Black, não somente por não saber o paradeiro de sua fi-
lha, mas, talvez inconscientemente, por não ter conseguido educar sua filha como deveria .

No parágrafo (a), sublinhei a palavra limpo, pois ela indica novamente uma identidade,
um pertencimento étnico-cultural. Ao contrário do texto anterior, no qual se fala e se usa pri-
mordialmente as palavras sujo e sujeira, também aqui transparece e se enaltece a limpeza em
detrimento da sujeira. Por mais empobrecida e simples que se tornara a vida da sra. Black, ela
continua limpa. É o imaginário da superioridade étnica se revelando e se perpetuando em situ-
ações sociais as mais diversas.

(b) Para a viúva vieram tempos difíceis. Provavelmente ela se consolava com a mãe de
Agostinho: “Com tantas lágrimas e orações uma criança não pode se perder”, mas teve
que vivenciar, apesar das orações diárias e fervorosas, a fuga secreta da filha, sem que se
descobrisse uma pista dela. Então a pobre mulher decidiu falar ao coração da filha perdi-
da através de um anúncio público. Ela não temeu o grande custo, ela se dizia: se a tua fi-
lha enxergar a tua imagem, assim novamente despertará do sono o amor que tem por ti;
ela voltará! E o Senhor escutou as orações. A filha viu, como tantas outras mil pessoas, a
imagem da mãe. A mesma a abalou profundamente; ela voltou. Ao mesmo tempo come-
çou uma transformação interior; ela aprendeu a servir o mesmo Deus, que foi para sua
mãe ajuda e consolo.
Extraído do Friedensbote (Mensageiro da Paz).

A fé remove montanhas. A sra. Black acreditou piamente em Deus, até Mônica, a mãe
de Santo Agostinho, lhe fora conselheira. A sra. Black orava todos os dias com muito fervor
pela sua filha, a fim de que ela não se perdesse pelo mundo. Mas a filha fugiu. E as orações da
sra. Black se tornaram mais veementes. Então o Senhor trouxe sua filha de volta e, além dis-

387
Veja a reflexão a este respeito no capítulo um desta tese: A mulher/Mulheres optam a partir de convicções de
fé, p. 30ss.
166

so, a moça tornou-se também temente a Deus. Nele ela encontrava agora, assim como a mãe
sempre o sentia, ajuda e consolo. A moça tornara-se bela aos olhos da pessoa que foi ouvir
sua história.

Ou seja, se as pessoas confiarem suas vidas em oração diária a Deus, ele vai ajudá-las
muito além do que possam imaginar. Mesmo sem muito dinheiro, pois as duas moravam em
um “quarto modesto”, elas eram felizes, pois ambas serviam a Deus. Ser pobre, mas confiar
em Deus, enriquece. O que está à volta não importa. O louvor a Deus engrandece, tira as pes-
soas do mau caminho, as embeleza.

As mulheres alemãs imigrantes que fossem ler ou ouvir esta história, saberiam que,
mesmo na necessidade, mesmo que os filhos e as filhas talvez não tivessem um futuro garan-
tido ou tivessem se desviado do caminho, Deus estaria com elas e as ajudaria. Bastava, para
isso, que elas mantivessem a sua vida religiosa voltada para a oração e o ensinamento da pa-
lavra de Deus às crianças. Bastava que se entregassem obedientemente nas mãos de Deus, que
este conduziria a sua e a vida de toda a família dentro dos moldes sociais pré-estabelecidos.

Caso os/as filhos/as filhas se desviassem do caminho, não poderia haver uma revolta
ou murmúrios por parte destas mulheres em relação a Deus. Elas deveriam, isto sim, orar mui-
to mais do que vinham fazendo até então. Afinal, foi por causa de sua pouca fé e de sua pouca
oração que a família não estava mais unida e em harmonia. É a vivência de uma fé submissa,
que não permite questionamentos. A história da sra. Black reafirma este Deus todo-poderoso e
que mantêm as mulheres religiosamente em seu lugar.

O protagonismo religioso das mulheres é um fato velado. Segundo Fiorenza, “todos os


textos são produtos de cultura e história patriarcal androcêntrica.”388 Portanto, a Bíblia é pro-
duto desta cultura. Ligada a isto está a inferência do religioso na vida das mulheres, questão
levantada por Ivone Gebara389. Mesmo uma fé poderosa e atuante se mostra marcada pela cul-
tura, pela história e pela teologia de um mundo misógino. Controlar a vida das mulheres não é
somente domesticar seus corpos, mas também normatizar seu protagonismo religioso.

388
E. S. FIORENZA, op.cit., p.12.
389
Cf. capítulo um desta tese.
167

1.3) De um casamento americano. Não acerca de uma mulher.390


(a) Durante três anos, a sra. N.N. havia sido um vulto miserável, pálido e neurastênico.
Foi quando, ao morrer um tio, tornou-se proprietária de uma riqueza, que lhe assegurava
uma não insignificante receita anual. Imediatamente a sua saúde começou a fortalecer-se,
o seu rosto mostrou uma expressão nova e alegre e a sua figura melhorou a olhos vistos.
Desde o seu casamento ela era uma mendiga; e mendigas não têm saúde de ferro, nem
uma figura atraente. Seu marido era rico e tinha um caráter honesto, mas era muito corre-
to no que se referia aos seus gastos. Ele não gastava um dólar, caso o pudesse evitar. A
sua casa estava bem mobiliada e em comida e bebida não se poupava; mas enquanto Do-
ra, a criada, que se vestia tão bem quanto a dona-de-casa, não precisava mendigar por di-
nheiro, a sra. N.N. não conseguia um dólar para os seus gastos pessoais sem que discutis-
se a questão e demonstrasse de forma convincente e sólida a necessidade, resumindo –
mendigasse.
A relação entre marido e mulher neste caso, mas não só, se pauta hierarquicamente. O
marido é o senhor sobre a mulher, quase como um deus. O que ele diz e faz está correto e é
inquestionável. A sra. N.N. havia recebido uma boa herança de um tio e estava bem de vida.
Ao casar, os cuidados financeiros ficaram a cargo do marido. Apesar de seu caráter honesto
(até parece que a história quer poupar o homem de sua maldade...) , a mulher não recebia o
que já era seu. Ela precisava se humilhar e explicar nos mínimos detalhes a situação toda a
vez que quisesse dinheiro para comprar inclusive coisas básicas para o seu dia-a-dia! A sra.
N.N. nem cogitava em gastar em extravagâncias, mas apenas queria algo que parecia óbvio
aos seus olhos.

Para o marido de N.N., o que importava era mostrar que era rico e fazia-o ostentando
com a mobília, com comida e bebida. N.N. se comparava com a criada, alguém socialmente
inferior a ela, mas que, mesmo nesta situação de inferioridade, não precisava se humilhar para
conseguir o seu dinheiro. Ou seja, a sra. N.N. se sentia extremamente desassistida e ignorada
no que se refere a sua vida pessoal. Se pensarmos que a mulher é vista como alguém que não
tem direito a uma vida pessoal, mas sim a uma vida de doação aos outros, nesta história a ne-
gação da vida pessoal chega a um extremo nem tão impossível de acontecer. Quero dizer com
isso que, mesmo sendo um extremo, esta história não é única e não é a última. O patriarcado
esconde em seu arcabouço muitas mais e com uma variação sutil e enorme.

Não sabemos como o marido de N.N. enriqueceu. A história somente fala que ele era
um homem rico. Será que enriqueceu com a herança da mulher? Será que enriqueceu com o
seu “caráter honesto” e com os seus gastos sempre calculados na ponta do lápis? De qualquer

390
DA. Ano 21. Langenberg : Pastor Griesemann, setembro 1883. p. 70.
168

forma, para os homens é importante e glorioso, divino até, mostrarem a sua riqueza e dizerem
publicamente que venceram na vida. Isto o marido de N.N. fez.391

(b) Quando, uma vez, ela visitou a sua mãe, que morava em outro estado, contou-lhe,
com lágrimas ardentes, o seguinte: “No outono eu precisava de um vestido quente; toda-
via me foi indescritivelmente difícil pedir a John pelo dinheiro, que eu empurrei a questão
até a metade do inverno. Uma noite nós tínhamos visita, eu cantei algumas canções e
John se alegrava com o meu canto e a escolha das canções também encontrara cordial a-
provação. Quando estávamos novamente sozinhos e ele se manifestava caloroso e feliz
sobre isso, que nossos amigos se sentiam tão bem em nossa casa e que eu entendia tão
bem tornar a convivência agradável, eu pensei, agora é o momento oportuno e mencionei
de forma suave, que tinha necessidade urgente de um vestido quente. John calou-se al-
guns minutos; então ele disse: ‘Pois bem, minha querida, eu penso que você está no mí-
nimo tão bem vestida quanto os outros. Seria o mais puro absurdo comprar um vestido a-
trás do outro se o guarda-roupa está tão cheio, que não cabe mais nada dentro. Eu queria
te pedir que primeiramente gastes um de teus vestidos.’
A humilhação pela qual a sra. N.N. passava a fez sentir-se oprimida, a ponto de não
conseguir mais falar ao marido com liberdade. O assunto lhe doía e da dor se afastou até a
metade do inverno. Julgou então oportuno falar ao marido sobre um vestido que precisava,
após tê-lo agradado em uma recepção de amigos. Do alto de seu poder, depois de ter calado
uns instantes, o marido diz que a mulher não tinha necessidade de nada, que ela tinha do que
precisava, não devia se queixar, não devia esbanjar, devia usar o lindo vestido que possuía até
que este estivesse gasto.

Nesta história transparece também a necessidade da sra. N.N. em não magoar seu ma-
rido, apesar dele não se preocupar com seu bem-estar em aspectos que ela julgava essenciais.
Aqui entra o par amor-doação, que, aliás, já estava em jogo desde o início: N.N. não quer co-
locar a sua necessidade, a de ter outro vestido e roupas, acima das decisões do marido, ou se-
ja, acima do que o marido colocou/impôs como gastos na casa. Gastar em comida, bebida, boa
convivência com amigos, boa casa fazem parte do que o marido imagina como gasto correto,
uso correto do dinheiro. Comprar roupa para a esposa é insignificante, é até mesmo vaidade.

Há a ressaltar ainda o aspecto da mulher que alegra os convivas numa festa oferecida
em sua casa. Chamo a atenção para a desenvoltura da sra. N.N. em sua tarefa de tornar o am-

391
Para apreciar literariamente o que acabo de afirmar, gostaria de mencionar o trecho de um romance do século
XIX: “À cabeceira da mesa, Francisco Teodoro gostava de, espalhando a vista por toda a longa superfície
branca da toalha, vê-la bem coberta de coisas caras e vistosas. Assim comia com apetite, gostosamente. Era o
seu triunfo na vida, que todo esse luxo representava [...] Ter a maior fortuna, tendo partido do nada, era toda
a sua ambição. Repetia a qualquer [sic] a humildade da sua origem, espreitando o efeito dessa confissão. Ser
o mais poderoso, o mais rico, o mais forte, tendo partido do nada, não seria ter alcançado a suprema glória na
terra?” Júlia Lopes de ALMEIDA, A falência, p. 54 e 58.
169

biente, a sua casa, um lugar harmonioso, um lar, agradando não só aos convivas, mas também,
e principalmente, ao marido. Proporcionava, assim (ao marido, a si e aos convivas), a imagem
de um casamento feliz ou ideal, como diz Peter Gay, pois: “Boa parte da felicidade no amor
romântico, achavam os românticos, vinha da conversa inteligente e variada, de demonstrações
espirituosas, de atividades conjuntas que uma mulher ignorante e deseducada, por maiores
que fossem seus dotes naturais, seria incapaz de manter.”392 Creio poder entender aqui “dotes
naturais” como cozinhar, bordar, coser, limpar, arrumar, enfim, atividades domésticas outras
que não as do entretenimento mencionadas acima.

(c) Então calamos os dois; eu não fui capaz de dizer a ele que o vestido usado naquela
noite era o único bom que eu possuía e que o meu vestido velho e quente estava totalmen-
te gasto. Seguiu para mim uma noite de insônia, na qual eu me propunha a nunca pedir de
novo, custe o que custasse. Este propósito eu mantive. Durante dois anos não comprei na-
da de novo para mim; que sorte você ter me dado um vestido de lã de presente. Entre mim
e meu marido não era dita uma palavra sobre estas coisas.
Mesmo tendo a sra. N.N. tratado do assunto de seu vestido, mesmo tendo ela esperado
pela melhor hora para falar com o marido, mesmo tendo ouvido o argumento de que ela não
precisava do vestido, toda a conversa fora entabulada novamente com a sensação de mendi-
cância. Isto nunca a abandonaria. Ouvindo talvez pela milésima vez o argumento que tão bem
conhecia, mesmo assim, embora sabendo o que o marido iria dizer, ela se retrai e desiste de
explicar porque precisava de um vestido. A insônia é sua companheira naquela noite, como se
ela tivesse ouvido a tal resposta pela primeira vez. E ela faz uma promessa de nunca mais a-
brir a boca. O silêncio deveria acompanhar sua vida a partir de então, pelo menos no que se
referia a pedidos. A já sofrida mulher se envolveu em mais um manto de auto-negação.

A sra. N.N. conta esta história a sua mãe. O pesado silêncio sobre este tema encontra
um espaço de acolhida. Com ela chora muito à medida em que desfia o seu corolário. A rea-
ção da mãe foi lhe dar um vestido de lã. Não sabemos o que a mãe disse, sabemos somente
que a mãe lhe foi ouvinte.

(d) Ó, como eu pensava na minha alegre independência, que me fazia feliz, quando eu a-
inda era professora de música! Esforço e trabalho de manhã até de noite não me dão me-
do, isto tu sabes, mãe; mas mendigar por dinheiro – na sua relutância em dar – isto eu te-
mo sobremaneira. Desde que eu tenho a minha própria riqueza, transformei-me totalmen-
te; tu vês quão saudável, jovial e alegre estou agora. John insiste que eu lhe dê os papéis,
mas eu creio que não devo fazê-lo. Eu teria que, novamente, lhe pedir dinheiro e quem
sabe, a velha e triste história não começaria de novo. Isto não é injustiça se eu, por causa

392
GAY, Peter. A experiência burguesa..., p. 55.
170

desta sua particularidade, não lhe der os papéis em mãos? Eu realmente estava em perigo
de sentir antipatia por meu marido. Eu agradeço de coração a Deus que isto mudou de
forma tão feliz.
Na parte final da história de N.N. tem-se a experiência de uma mulher independente.
N.N. fora professora de música antes de casar. Tinha que trabalhar muito, mas isto era mais
fácil de suportar do que viver mendigando dinheiro. Isto agrava a situação da sra. N.N., pois
para quem já administrava seu dinheiro antes e no casamento isto brutalmente é deixado de
lado, a mendicância é como uma prisão e a dependência, um peso enorme.

Apesar de tudo isso, ela se preocupa com o marido, com seu casamento! A sra. N.N.
não quer cometer injustiças com o marido e não quer sentir antipatia por ele. Ele quer os pa-
péis que estão com ela para administrá-los e manter completo controle sobre a esposa. De
uma maneira cuidadosa, N.N. dá a entender à mãe que ela não deveria fazer isso, pois teria
que pedir novamente por dinheiro e ela não quer começar com esta velha e triste história de
novo. (Como uma história destas nada mais pode ser senão velha e triste??). E a Deus a sra.
N.N. agradece por ter impedido que seu casamento acabasse mal.

O que tudo isso tem a ver com a mulher alemã imigrante? Este tipo de história, circu-
lando entre as famílias imigrantes, chega aos ouvidos e olhos das mulheres e elas tomam dali
o exemplo para suas próprias vidas, criando identidade e modelando o seu jeito de ser, de pre-
ferência para ser igual ao das mulheres recatadas, puras, bonitas, jovens e ricas do imaginário
de um amor romântico. Por outro lado, é de se suspeitar que, ao ler tal história, muitas mulhe-
res não se identificassem com esse tipo de vida submissa e interpretassem dali justamente o
contrário, vivendo a partir de outros modelos.

É o que Carlo Ginzburg diz, ao lançar a pergunta: “Mas como eram lidos [os almana-
ques, as canções, os livros de piedade, a vida de santos] pelo público de então [século XVII-
I]?”393 A partir de sua reflexão, lanço a suspeita acima, no sentido de me perguntar: como re-
almente eram assimiladas pelas mulheres as histórias publicadas nos jornais?

(e) Existem maridos e pais, para os quais seria desejável irem a uma escola de criadores
de gado, de cavalos e de porcos. Os animais não são privados daquilo que precisam para
prosperar; as mulheres e as crianças não raro são tratadas com menos consideração e en-
tendimento.

393
Veja detalhes da reflexão de Ginzburg e de meus questionamentos ao material de pesquisa coletado dos jor-
nais no capítulo três: A mulher alemã imigrante/O pertencimento étnico-cultural, p. 25-26.
171

Estas duas frases já não fazem parte direta da história de N.N. Elas são um comentário,
provavelmente feito pelo editor/redator do jornal, que recolheu esta história. Como nas duas
anteriores, esta também tem uma intenção e o comentário deixa isto bem claro. É a moral da
história, segundo o comentarista. Ele mostra e ensina aos leitores/às leitoras, que os animais
muitas vezes são melhor tratados do que as pessoas, mais especificamente, as mulheres e as
crianças. Os homens são os brutos e deveriam aprender que também mulheres e crianças
prosperam se elas não são privadas do que necessitam.

1. 4) Uma criança no ninho – isto é o melhor.394


(a) “Mas, querida sra. Schulz, por que a sra. não sai mais? Nenhuma reunião social, ne-
nhuma reunião de senhoras, nem mesmo de um piquenique a sra. quer participar! A sra. é
muito nova, para viver como uma eremita.”
(b) “Não [...]”, replicou a sra. Schulz amigavelmente, “mas quando o meu marido chega
cansado do trabalho de seu escritório, então ele está contente em me encontrar em casa, e
sair novamente ele poucas vezes tem vontade; e então, se eu saísse, teria que deixar a mi-
nha criança, o meu filho, em mãos estranhas.”
Esta história precisa ser localizada em um ambiente mais urbano. Nesta família, o ma-
rido trabalha em um escritório e não na roça. A mãe, como todas as outras, concentra-se em
cuidar do lar, do marido e do filho, não saindo para passear, mesmo sendo questionada por is-
so pela vizinha. O que vale é o contentamento do marido, do acolhimento que ela, enquanto
esposa, pode lhe dar, depois de um dia cansativo de trabalho dele. Ela também não quer dei-
xar que o filho seja cuidado por outra pessoa que não ela.

(c) “Sim, isto é verdade”, disse a vizinha, compassiva, “mas é pesado ter que sacrificar
todo entretenimento em favor de marido e filhos.”
Aqui até é possível pensar que a vizinha tem uma visão um pouco diferente do que a
maioria das mulheres. Ela questiona o sacrifício que a sra. Schulz faz pelo marido e pelo filho,
não indo divertir-se um pouco. A vizinha inclusive pleiteia que a sra. Schulz vá sozinha a reu-
niões e piqueniques. Isto fica subentendido na fala da própria sra. Schulz, quando ela explica
que o marido fica contente ao encontrá-la em casa depois do serviço e, se ela saísse, ainda te-
ria que, além de tudo, deixar seu filho com outras pessoas. Mas sair de casa sozinha não passa
pela cabeça da sra. Schulz.

(d) Era pesado? Uma reunião e mexericos ou outro convívio social, ofereciam realmente
tanto entretenimento assim, que a sra. Schulz por isso deixaria de cumprir suas obriga-
ções, deixaria a sua criança?

394
SB. Ano 3. São Leopoldo : Wilhelm Rotermund, 28.09.1890. p. 3.
172

Esperar o marido em casa depois do trabalho, não divertir-se exceto com a família são
as obrigações da sra. Schulz. “Deixar a sua criança” tem a conotação aqui de abandonar, de-
samparar, enjeitar (verlassen). Inclusive o verbo utilizado em alemão justamente transmite o
quão sério é quando uma mulher não assume o papel conferido a ela com a maternidade. Por
outro lado, o verbo pode significar um simples deixar, um simples ir embora. Creio, porém,
que a primeira versão é a mais acertada para dentro do discurso vivido pela sra. Schulz.

(e) Com prazer ela sairia alguma vez, ela era de natureza sociável, e seu marido a incenti-
vava, para que não ficasse sempre tão sozinha em casa. Também já era tempo de vestir
novamente seus lindos vestidos; principalmente ela não queria ofender nenhuma vizinha
fiel, ela era jovem, sim, ela queria sair, estar contente...
Apesar de todas as convenções sociais estipuladas para as mulheres, aqui sentimos a
sra. Schulz revelar um desejo próprio. Ela até teria prazer em sair de casa, o marido a incenti-
vava (!), precisava colocar seus vestidos e ela era jovem. Mas tão forte é a noção de responsa-
bilidade perante a família, que as reticências colocadas ao final da frase mostram o quão frágil
é este devaneio, algo que dificilmente se tornará realidade.

Aqui a história parece alcançar certo ar de libertação, pois permite outra maneira de
pensar para as mulheres, tal qual a frase dita acima pela vizinha. No entanto, tudo isso serve
para realçar com mais evidência a virtude de uma mulher que, apesar de sacrificar o seu entre-
tenimento, apesar de ter desejos e prazeres, apesar do marido incentivar (não sabemos o quan-
to realmente o fazia) as reuniões e passeios, resolve ficar em casa e conscientemente assumir
o seu papel de esposa e mãe. É ali o seu lugar e nem os próprios desejos, o marido ou a vizi-
nha a tirarão dali. E isto é um exemplo a ser seguido, um modelo primoroso de mulher!

(f) Ouça! Um latido e um estalo – a sra. Schulz se apressa até a caminha, ali está deitado
seu Heinrich, de bochechas vermelhas por ter dormido, olhando para ela sorridente com
seus grandes olhos azuis. Ela pega a criança no colo – agora o pequeno está contente – ah,
ela não consegue parar de olhar para a criança, ela brinca com ele e sorri. Imagina se vai
deixá-lo longe de seus braços?
(g) Se o pai o pudesse ver agora! Ele deve estar vindo logo, ‘nós queremos ir ao seu en-
contro, não é verdade meu menino’. Príncipe Heinrich está totalmente de acordo, em dei-
xar-se carregar pela mãe por todos os lados. Agora os dois saem da porta e ali esperam
pelo pai. Esquecida está a vizinha, a conversa sobre sair de casa e participar de reuniões
sociais – não há lugar mais bonito do que a própria casa, segurando o filhinho nos braços.
Num repente a sra. Schulz esquece de uma outra possibilidade de vida. Seu filho Hein-
rich passa a ocupar-lhe o pensamento, bem como o marido que está para chegar. A casa passa
a ser o ideal, nada de sair para piqueniques e reuniões. A partir deste momento existe somente
de novo a sra. Schulz-mãe, a sra. Schulz-esposa e a sra. Schulz-dona-de-casa.
173

(h) Lá vem o pai. Seus olhos brilham, quando ele vê a esposa e o filho. Ele os abraça e
diz:
‘Isto eu chamo de deleite aos olhos,
o coração se deleita igualmente.
Aquele que tudo abençoa, abençoe a vocês dois
e a mim com vocês. Como eu sou rico.’
A atitude da sra. Schulz merece um elogio e um abraço do marido. Apesar de incenti-
vá-la a sair, o brilho de seus olhos revela o quão feliz ele está por encontrar sua esposa em ca-
sa, com o filho no colo, e não a passear com as amigas. Esta atitude é abençoada e faz parte da
riqueza do marido da sra. Schulz. Afinal, “uma criança no ninho – isto é melhor”!

Um pano de parede (Wandschoner) registra algo deste ideal de família e lar. Ele diz o
seguinte: “As mais belas horas fui encontrar, neste vasto mundo, somente em meu lar.”395
Cleci Eulalia Favaro fala a respeito dos panos de parede, utilizados também por mulheres ita-
lianas imigrantes. A autora os denomina de linguagem muda das vozes das mulheres, dando-
lhes também o nome de “panos de cozinha”. Eram feitos de algodão cru, bordando-se sobre
eles flores e paisagens, pendurados atrás do fogão, contendo provérbios ou expressões popula-
res de alto valor normativo e pedagógico.396 Ela recolheu as seguintes frases em panos de pa-
rede:

Deus ajuda a quem cedo madruga.


Trabalha e serás feliz.
Em casa que tem boa comida o marido sempre volta.
A economia é a fonte da riqueza.397
O amor tudo vence.
A paz é a felicidade do lar.
A boa refeição alegra o coração.
Filhos asseados, comida na mesa, marido feliz.
Deus nos dê sempre muita fartura.
Casa asseada, marido contente.
Aprende a fazer para saberes mandar.
Um bom manjar prende o marido no lar.

395
“Hab auf der Welt die schönsten Stunden doch nur in meinem Heim gefunden.” Esta tradução me foi gentil-
mente cedida pelo Dr. Ricardo W. Rieth. Os panos de parede são, muitas vezes, obras de arte no bordado, fei-
tos com muito esmero pelas mulheres e que enfeitam as paredes ou da cozinha ou da sala de estar. Este pano
e vários outros encontram-se no museu Cláudio Oscar Becker, em Ivoti/RS.
396
Cleci Eulalia FAVARO, Imagens femininas..., p. 125.
397
Esta é a máxima da sra. Wilhelmine Buchholz, autora do próximo texto a ser analisado.
174

Eu acrescento ainda estas398:


Eternamente teus são meu amor e meu coração.399
O pão nosso de cada dia dá-nos hoje.400
Amar e ser amado é a maior felicidade no mundo. Família Santa. Na bênção de Deus des-
cansam os seus.401
O Senhor é o meu pastor: nada me faltará.402
Amizade e amor fazem a felicidade.
Onde amor e fidelidade estão a postos, governa-se a casa com bons gostos.403
Louça e estantes sempre brilhantes. 404
Mantém e ama a ordem. Ela te poupa muito esforço. 405
Cleci Eulalia Favaro afirma ainda que os panos de parede são tapeçarias simples e que,
com seus dizeres, propagam discursos que preservam a imagem da família “perfeita, hierar-
quizada, laboriosa, obediente” bem como da sociedade em que ela está inserida.406 Relata ter
ganho um pano de parede de uma das mulheres que entrevistara para a sua pesquisa. Afirma
ali que foram várias as horas gastas para fazê-lo e que este pano fazia parte de um enxoval.407
Mais adiante, Cleci Eulalia Favaro fala dos panos de parede como o local onde estão afixados
o sentido e o objetivo de vida das mulheres.408

O enxoval já foi mencionado anteriormente, quando teci comentários a respeito do baú


de noiva de Käthe, na primeira história de jornal apresentada. O enxoval e o baú de noiva pas-
sam a ser expressões inter-étnicas. Tanto para as mulheres alemãs imigrantes quanto para as
mulheres italianas imigrantes ele é uma referência às suas experiências, aos seus saberes, à
sua autonomia.

398
Também estes panos de parede encontram-se no museu Cláudio Oscar Becker, em Ivoti/RS.
399
“Ewig Dein ist mein Herz und meine Liebe.”
400
“Unser täglich Brot gieb uns heute.” Mateus 6.11.
401
Segundo Gabriela Dilly, que trabalha no Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de Ivoti/RS na é-
poca de minha pesquisa em julho de 2004, e que organiza atividades junto ao museu Cláudio Oscar Becker, a
mulher a quem pertenceu este pano de parede conta hoje com 84 ou 86 anos e ela o bordara aos treze. Suspei-
to que esta senhora já estava, ao fazê-lo, pensando em seu enxoval. “An Gottes Segen ist alles gelegen.”
402
“Der Herr ist mein Hirte, mir wird nichts mangeln.” Salmo 23.1.
403
“Wo Lieb’ und Treu’ die Wache hält, da ist’s im Hause Wohlbestellt.”
404
“Geschirr und Schrank immer blank.”
405
“Halte Ordnung, liebe sie. Ordnung spart dir viele Müh’”.
406
Cleci Eulalia FAVARO, Imagens femininas..., p. 126.
407
Ibid., p. 167.
408
Ibid., p. 211.
175

Antonio Sidekum somente cita os panos de parede quando descreve o interior de uma
sala de jantar de famílias alemãs imigrantes em Nova Harmonia/Nova Petrópolis/RS409.

1.5) “Advertência e palavra de consolo para mulheres jovens e para tais que o querem
ser.”410
(a) A sra. Wilhelmine Buchholz publica no Chr. Botsch. [Mensageiro Cristão] a seguinte
‘advertência e palavra de consolo para mulheres jovens e para tais que o querem ser.’ [...]
A sra. Buchholz escreve: as nossas jovens sras. aprendem hoje tanto que antigamente um
professor poderia se virar muito bem com tal conteúdo; só que molhar as mãos elas a-
prendem nos casos mais raros. [...] Se elas devem cozinhar, dizem que a cozinha lhes tira
o tempo para adquirir formação; e, se elas estão casadas com toda a sua formação, logo o
marido sente onde há dificuldades; e o seu bolso percebe que a esposa não sabe como
administrar a casa com pouco e ainda assim servir uma boa mesa. Por isso alguns homens
temem em adquirir um fogão próprio – o fogão se torna muito caro para eles.
No início das advertências da sra. Wilhelmine Buchholz, percebe-se o embate entre
uma tarefa doméstica (cozinhar), que deixa as mãos sujas e molhadas, e uma tarefa menos
(pois mesmo para estudar a mulher não saía de casa) voltada ao lar (estudar), que, aparente-
mente, deixa as mãos suaves e macias.

Para a autora é evidente que a educação formal para nada ajuda dentro de casa, se não
for direcionada ao aprendizado do bem servir. Ela escreve em tom jocoso, comparando a for-
mação das jovens mulheres de sua época com os professores de tempos mais antigos. Estes
fariam muita coisa com todo o conteúdo que elas adquiriram. E isso é um deboche sério, pois
deixa os professores realmente em uma situação inferior. E as mulheres em uma situação su-
perior, o que também não era o ideal. Um professor normalmente era visto com muito respeito
por todo o conhecimento que possuía; isto significa que a quantidade de conhecimento destas
jovens mulheres realmente é bastante ofensiva.

Ainda, segundo a autora, de nada vale adquirir toda esta formação, se ela não serve pa-
ra ajudar o marido a poupar dinheiro. A jovem mulher precisa aprender a lidar com poucos
recursos financeiros e, mesmo assim, apresentar, não só em festas, mas também no dia-a-dia
da família, uma boa mesa.

(b) Claro – uma jovem sra. aprende a cozinhar. Ao tornar-se noiva, o piano é fechado, a
história da literatura juntamente com o bordado são jogados em um canto e faz-se um
curso de culinária com tal zelo como se tivesse que realizar um exame nas artes culiná-
rias. Mas se uma delas quisesse afirmar que nas instituições de culinária se aprende a ad-

409
Antonio SIDEKUM, Modelo de uma Igreja imigrante..., p. 220.
410
DA. Ano 21. Langenberg : Pastor Griesemann, outubro 1883. p. 77.
176

ministrar, como o exige o serviço doméstico, a esta mostraria com quantos paus se faz
uma canoa. Eu quero saber, por exemplo, se as senhoritas experimentam lá o que se faz
com os restos de comida.
Wilhelmine Buchholz é bastante dura em suas advertências. O tempo todo o tom irô-
nico não abandona o seu texto. Para ela está claro que saber administrar bem uma casa e o
serviço doméstico daí decorrente, fixando principalmente seu olhar sobre a cozinha, são es-
senciais para uma mulher que vai casar. Só que para a autora não basta fazer um curso de cu-
linária em alguma instituição equivalente. É imprescindível aprender, para o bem da econo-
mia do lar, saber o que fazer com os restos de comida, por exemplo, que sobram de uma refei-
ção para outra. Isto ajuda a economizar o dinheiro do marido e para isto a mulher precisa estar
bem atenta. As instituições de artes culinárias não vão ser capazes, através de seus cursos, de
ensinar tal conhecimento.

(c) Algumas se consolam com livros de receitas. Livros de receitas são bons, quando se
sabe cozinhar; isto porém só se aprende através da instrução prática e da experiência.
Também os livros de receitas não ensinam a arranjar-se quando não se pode pegar tudo de
potes cheios; com ovos e manteiga pratica-se um desperdício, que até dá calafrios; de a-
çúcar nem quero falar.
Nem os livros de receitas vão ajudar as jovens mulheres a saber lidar com restos de
comida ou com uma alimentação suficiente para todos, mesmo quando os potes de mantimen-
tos estejam pela metade. O motivo pelo qual a sra. Wilhelmine Buchholz não confia em esco-
las de arte culinária é porque cozinhar se aprende através da prática e da experiência. Isto
também motiva o texto da autora, que se arrepia ao saber que nas ditas escolas, aprende-se,
sim, o desperdício. Ovos, manteiga e açúcar são ingredientes que precisam ser medidos com
muita parcimônia.

(d) Não há arte em organizar uma festa, quando se convida grandes músicos que tambori-
lam piano ou quando se instiga rapazes especialmente talentosos, a demonstrar habilida-
des para o deleite dos convidados ou quando se anima as sras. e os srs. a ler um drama,
distribuindo-se os papéis – e tratar a cozinha tão secundariamente quanto possível; mas
por fim tais prazeres fartam, enquanto que a boa mesa mantém o seu valor. De comer e
beber todos gostam, ao passo que música, drama e habilidades por vezes esbarram em a-
versão. Se as pessoas estão agradavelmente satisfeitas, então elas também toleram algo
diferente. Isto é preciso repensar.
Aqui a autora do texto fala novamente da importância da cozinha e do servir bem, co-
mo essencial para a dona-de-casa emergente. Em uma festa não basta ter entretenimento para
os convidados. O essencial realmente está na boa mesa. Comer e beber bem vai além de qual-
quer outro prazer, inclusive o de ouvir/fazer música ou teatro. O prazer de comer e beber tem
longa duração, enquanto os outros podem, rapidamente, tornar-se enfadonhos.
177

(e) Quando sou convidada como hóspede em algum lugar, logo noto pelos molhos a
quantas anda a culinária; pois um bom molho já é meio caminho andado no preparo da re-
feição. Com susto me lembro dos molhos de restaurante, que têm todos o mesmo sabor e
dos grudes que muitas esposas servem aos seus maridos como molhos.
A culinária alemã preza muito a comida com molhos, simples ou sofisticados. Por ve-
zes as receitas dos mesmos não são fáceis de fazer, ou, se o são, necessitam do conhecimento
de certos “truques” para dar a consistência desejada e um sabor agradável. Por isso, o molho
revela o talento da cozinheira (“logo noto pelos molhos a quantas anda a culinária”), não tanto
pela sua sofisticação, mas pelo saber fazer um molho com ingredientes básicos (que normal-
mente são mais baratos). O talento está na praticidade da escolha destes ingredientes, que re-
sultem em um molho espesso, saboroso e bonito aos olhos.

Um livro de receitas alemãs para crianças, da década de 1960, sabe dizer que o molho
alegra o coração da criançada. Molho com purê de batatas, arroz com molho de tomates, pu-
dim com molho de framboesa são os mais pedidos. Quem é inteligente e prático, economiza
na carne, mas não no molho. Afinal é desta forma que os legumes são comidos com maior
prazer. E seguem onze receitas dos mais diversos molhos.411

(f) Já aconteceu mais de uma vez na vida que a panela esquentou novamente o amor con-
jugal, cujo termômetro caía lento, mas seguro. Vocês jovens moças, que têm a firme in-
tenção de alegrar um homem, e também em condições modestas tornar sua vida agradá-
vel, fiquem sabendo que o marido não fica satisfeito, se vocês palestrarem a ele sobre a
opinião que vocês têm de quem é o maior, Schiller ou Goethe, e que sua refeição não fica
mais saborosa, caso martelarem algo de Liszt ou Chopin [ao piano], mas pensem que o
próprio fogão está aí para cozinhar!
A frase final deste trecho remete a outros dois panos de parede. São eles: Eigner Herd
ist Goldes wert – O próprio fogão vale ouro; Der beste Schatz für einen Mann ist eine Frau
die kochen kann – O melhor tesouro que um homem pode achar, é uma mulher que saiba co-
zinhar.412 Ou seja, forno, fogão, cozinha, dona-de-casa são os ingredientes perfeitos para um
casamento feliz e duradouro, segundo Wilhelmine Buchholz. Inclusive aqui é relembrado pela
autora que a boa cozinha e o amor andam de mãos dadas, não permitindo que as relações en-
tre marido e mulher se desintegrem413.

411
Lilo AUREDEN, Was Kindern so gut schmeckt, p. 96.
412
Veja também estes dois panos de parede no museu Cláudio Oscar Becker, em Ivoti/RS. Novamente quero
chamar a atenção para o esmero com a rima nestas duas curtas frases.
413
Veja reflexão a este respeito no capítulo Mulher/O tripé esposa-dona-de-casa-mãe/A cozinha e a alimenta-
ção: a dona-de-casa, p. 43 desta tese.
178

(g) Caso vocês crêem que a mão ficará áspera ou dura quando vocês mesmas meterem-se
a trabalhar, então escutem o que a Buchholz tem a dizer: Não é a mão que acaricia e afa-
ga, mas o amor, o qual guia a mão; sem amor a mão mais suave é dura como uma tábua
de lavar. Pois bem, vão ao fogão e aprendam a cozinhar. As outras coisas se darão mais
tarde.
Aqui o texto de Wilhelmine Buchholz fecha com chave de ouro! A principal advertên-
cia e, enfim, lição que a autora quer transmitir às jovens mulheres está resumida neste pará-
grafo. Amar e aprender a cozinhar é o primeiro passo para a felicidade; tudo o mais se dará
depois.

1.6) Saúde e beleza da mulher414


(a) Às mulheres e moças é feito sentir, em um jornal eclesiástico americano, o Indepen-
dent, que a melhor parte da beleza física é a saúde e que beleza e saúde estão mais inti-
mamente ligadas do que normalmente se pensa. Às americanas, favorecidas por natureza,
falta a plena saúde. Elas a arruínam mais ainda, quando recorrem a todo tipo de meios ar-
tificiais, ao invés de tratar da saúde naturalmente. Tanto o esforço intelectual excessivo,
quanto a maneira de divertir-se, são, freqüentemente, venenos mortais para a saúde e a
beleza.

O conselho dado às mulheres e moças através do jornal Independent e recolhido pelo


editor/redator do DA, repete algo bastante pleiteado pela autora do texto anterior, Wilhelmine
Buchholz: a formação. Aqui não aparece esta palavra, mas fala-se em “esforço intelectual”,
acrescido do adjetivo “excessivo”. Tanto para Wilhelmine como para os editores/redatores
dos dois jornais (o estadunidense e o alemão), a formação das mulheres e o uso do intelecto
por elas mostra-se como algo desastroso. Seja no casamento e na relação com o marido, como
visto acima, seja na manutenção da saúde e da beleza, a mulher corre um sério risco se não
agir segundo os parâmetros de seu papel social.

(b) Os divertimentos deveriam ser “descanso”: quantas vezes é necessário descansar após
estes descansos! Se o rosto, as feições, os lábios, toda a figura da mulher expressam uma
saúde jovial – torna-se impossível dizer quão atrativo e quão agradável sensação esta apa-
rição evoca. Com os “produtos de beleza” são cometidos, na América, graves disparates.
Lá são dadas e seguidas as seguintes regras: lábios grossos são reduzidos, comprimindo-
os; os finos são modificados, aspirando-os; as mãos devem ser untadas todas as noites
com glicerina e tapadas com luvas; para lavar, empregar sabonete de farinha de aveia; os
cílios e as sobrancelhas são escovados com uma escova de pêlos de camelo, que antes foi
mergulhada em leite morno e assim por diante. Assim se procura entrar magicamente em
uma beleza emprestada. A magia, claro, não funciona!

414
Este título foi criado por mim. DA. Ano 21. Langenberg : Pastor Griesemann, abril 1883. p. 31.
179

Segundo este artigo, as mulheres estadunidenses “são favorecidas por natureza”, elas
não precisam fazer nenhum esforço extra no que se refere a sua saúde ou a sua beleza. Mesmo
assim, elas usam produtos e receitas para manter ou mudar a beleza já natural dos lábios, das
mãos, dos cílios, das sobrancelhas. Mas isto tudo são vaidades para as quais a mulher, que é
esposa-dona-de-casa-mãe, não deveria olhar ou perder seu tempo e o dinheiro do marido. No
final, a frase irônica exclama com alívio que tudo isso é magia e, acima de tudo, magia que
não funciona. A mulher faz bem em viver com as feições que Deus lhe deu e não em tomar
outras emprestadas. Estudar, divertir-se, cuidar de si são atitudes incoerentes de mulheres que
não podem ser levadas a sério em seu modo de viver.

1.7) Os exemplos que vêm do céu.415


(a) Lança um olhar para o céu! Olha lá para a mulher no trono radiante com a magnífica
coroa! ‘Anuncia, tu, sublime princesa do Senhor, quais maravilhosas obras realizaste so-
bre a terra, para que nos céus te caiba tão brilhante distinção?’ ‘Durante trinta anos fui
pobre e estive doente e me exercitei na paciência e na satisfação; também por vezes, da
minha cama de dor, escrevi uma carta de consolo a outras pessoas que igualmente tinham
muito sofrimento; e, uma vez, quando tive um pouco mais de força, costurei uma saia pa-
ra a pobre família da casa dos fundos.’
O primeiro exemplo, aqui apresentado, mostra com solenidade como a mulher pode
alcançar, no céu, um lugar de destaque. É, sem dúvida, um exemplo a ser seguido. Ela chega a
ser exaltada devido à sua vida de sofrimentos na terra. Não creio que chegasse a esta condição
somente por ser mulher. Este privilégio normalmente é concedido aos homens. Ser pobre, do-
ente, além disso, ter paciência e estar satisfeita, não são situações paradisíacas. E do meio des-
te seu sofrimento, esta mulher ainda é capaz de doar-se: escreve uma carta a quem acha que
sente mais dor do que ela, costura uma saia a quem é mais pobre do que ela.

Estas são as virtudes que se esperam da mulher, não somente para que ela seja exalta-
da no céu, mas para que na terra ela já saiba que a vida é feita de doações. É no céu que ela
será uma princesa. Este texto deixa bem explicitado o quanto certos tipos de teologia podem
justificar e, assim, colaborar na perpetuação de determinado papel social da mulher.

(b) Adiante para um outro trono! ‘Quem és tu, tu maravilhosa e radiante rainha?’ ‘Eu era
uma pequena mulher de operário, que criou um grande número de crianças no temor do
Senhor e com muita oração; meus filhos tornaram-se, pela graça de Deus, piedosos operá-
rios e trabalhadores, e minhas filhas, piedosas esposas.’

415
Este título foi criado por mim. DA. Ano 22. Langenberg : Pastor Griesemann, fevereiro 1884. p. 14.
180

Neste pequeno trecho, a mulher não é somente a rainha do lar, mas uma radiante e ma-
ravilhosa rainha no céu! Quem não quer alcançar esta graça? Principalmente depois de passar
por muitas necessidades durante sua vida terrena. Também este texto elogia o sacrifício da
mulher, desta vez diretamente no âmbito da família. Mãe de muitos filhos e filhas, esta mu-
lher de operário é reconhecida em sua tarefa materna, não somente por ter criado muitas cri-
anças, mas por ter criado os homens piedosos e trabalhadores e as mulheres, piedosas e espo-
sas. Ela alcançou esta graça, pois fora uma mulher temente a Deus, educando suas crianças
neste temor “e com muita oração”. O aspecto da interseccionalidade novamente se expressa
quando percebermos o cruzamento entre ser mulher e a classe social na qual ela está inseri-
da.416

(c) Adiante para um terceiro trono! ‘Quem és tu, tu altíssimo, nobre ancião, que alumias
como o sol?’ ‘Eu não fiz nada mais ao meu Senhor do que ter um grupo na escola domi-
nical. A esta obra pertencia o meu coração, o meu amor, a minha oração! E eu estava a-
gradecido ao Senhor, que eu pude lhe servir desta forma.’
O terceiro e último exemplo trata da vida de um homem, que também é exaltado no
céu. Como? Trabalhando com um grupo de escola dominical com todo o seu coração, amor e
oração! Nisto ele vê o seu serviço a Deus. Diante dos dois exemplos anteriores, para este pro-
fessor de catequese parece simples ter uma vida santificada e, conseqüentemente, exaltada.
Aparentemente nada de sacrifícios, dores, muito trabalho, simplesmente a entrega total a este
serviço. Com isso, ele se torna um nobre ancião.

O trono, os títulos e as hierarquias concedidas na exaltação das duas mulheres e deste


homem têm a função de criar um modelo de vida cristã a ser seguido. A exaltação, então, está
submetida a este modelo, o qual nasce em meio às doações do cotidiano. Seguindo o modelo
de vida cristã para mulheres (representado pelos dois primeiros exemplos) e seguindo o mode-
lo de vida cristã para homens (representado pelo exemplo acima), mulheres e homens cristãos
aprendem uma teologia sexista e androcêntrica. Esta teologia mantém e perpetua os papéis
sociais determinados para os dois grupos. A vida cristã das mulheres deve expressar muito
mais entrega, auto-negação e submissão do que a vida cristã prevista para os homens.

Após a incursão por alguns textos de jornais, gostaria de lembrar que também aqui, de
forma distinta do que nas cartas, experiências e cotidianos de mulheres são relatados, exem-

416
Veja os últimos comentários do parágrafo (k) do primeiro texto, p. 102.
181

plificados, corroborados, modelados. Não somente por se tratar de jornais eles deixam de rela-
tar o que as mulheres deveriam ser, como deveriam agir, o que deveriam fazer. Não são textos
comparáveis aos textos das cartas. Estas retratam imagens e perfis das mulheres muito mais
impregnados de como elas foram, de como elas agiram. A conclusão quer colocar algumas
percepções da caminhada das mulheres alemãs imigrantes.

CONCLUSÃO

Quero retomar uma questão muito importante e que moveu a pesquisa como um todo:
como rever a vida de mulheres na história através de uma historiografia feminista? Para res-
ponder a esta pergunta, tenho uma proposta teórico-metodológica de historiografia feminista a
partir de jornais e cartas.

Usei, para esta tese, o recorte temporal da segunda metade do século XIX no sul do
Brasil. Usei também o contexto da história da imigração alemã. As mulheres alemãs imigran-
tes foram minhas companheiras constantes nesta pesquisa. Delas e com elas chego a lançar a
proposta mencionada acima.

Não tenho a intenção de colocar aqui, em dez ou mais ou menos passos, como funcio-
na a proposta teórico-metodológica de historiografia feminista. Não chego à conclusão da tese
com uma receita organizada e limpa da mesma. A teoria feminista, bem como a historiografia
nela pautada, não é um conjunto fechado de postulados, com uma quantidade de itens esco-
lhidos a dedo e prontos para serem colocados em prática.

O feminismo, sua teoria e a historiografia nela amparada representam, no meu enten-


der, uma possibilidade concreta de reeducar e dinamizar o olhar do/da historiador/a, abrindo
espaços e brechas, fissuras e rachaduras nos fundamentos nos quais estão apoiadas, por sécu-
los e séculos, visões patriarcais e androcêntricas.
182

Escrever história, para mim, não é ter regras a seguir, mas é, antes, ter ouvidos para
ouvir. Escrever história não é ter documentos oficiais para ler, é ter inúmeros papéis e inter-
pretar o som das entrelinhas. Escrever história não é engessar um momento, mas é (l)focalizá-
lo de inúmeros lados e perspectivas.

Com isso já começo a responder a pergunta do primeiro parágrafo: a historiografia


feminista tem a ver com processos, com dinâmica, com ler e reler, com ouvir e sentir, deixar
fluir as várias perspectivas. Nesta proposta, a memória precisa ser considerada como o recep-
táculo de experiências e cotidianos vividos pelas mulheres alemãs imigrantes. Ao contar e es-
crever a sua história, o faço através da memória guardada em jornais e cartas.

Ter memória é ter poder. O poder da memória é sinônimo de poder da história. Quem
tem memória, tem história e quem tem história sabe quem é e tem o tempo e o espaço nas
mãos.417 Escrever a história de mulheres que viveram no século XIX é um desafio ao conceito
da memória. Creio que é uma das suas nuances. As próprias mulheres, por exemplo, não po-
dem mais falar, dizer-se, nomear-se. Sua memória está registrada nas linhas e entrelinhas dos
jornais e das cartas.

Ler estes textos, refletir sobre eles e constituir uma narrativa destas memórias é empo-
derar mulheres hoje através do conhecimento das vidas vividas das mulheres de ontem. E isto
é um processo dinâmico de leitura e releitura, de escrita e reescrita do passado.

O corpo é uma memória. Esta é cartografada e registrada nele. Incorporar cotidianos e


experiências é historiografar a memória. Ao pesquisar a memória, ao mostrá-la, ao expressá-
la, mulheres e homens se autonomeiam, conscientizando-se do lugar que ocupam no mundo.
Perceber o corpo na expressão cotidiana, reelabora e re-significa os micro e macropoderes das
memórias, empoderando protagonistas excluídos/as de vida.418

Na proposta historiográfica feminista, constituir narrativas a partir dos mais variados


documentos, espalha o olhar sobre o passado de forma a não homogeneizar um determinado
perfil ou imagem dos sujeitos ou épocas pesquisados. As narrativas se expressam de forma
não-linear, abrindo possibilidades metodológicas de escrever história sem a rigidez cientificis-
ta.

417
Renate GIERUS, CorpOralidade..., p.50.
418
Ibid., p.51.
183

Experiências e cotidianos tem a ver com discursos e linguagens. Por isso são passíveis
de serem historiografados, assim como os discursos e as linguagens o são. Historicizar uma
experiência leva a percebê-la não como uma instância em si mesma, com status de palavra fi-
nal expressa em uma narrativa do passado, inclusive com um peso de verdade última.

Historicizar experiências, dentro e a partir de uma proposta historiográfica feminista,


cria narrativas não só do/da historiador/a, mas destaca narrativas de sujeitos invisibilizados na
e pela história. Pois, ao mesmo tempo em que o/a historiador/a escreve, o escrito torna-se rea-
lidade, torna-se palpável, fazendo emergir um passado até então ausente e prescrito para a
maioria das mulheres.

As experiências – incluo aqui também os cotidianos, pois creio que ambos estão in-
trinsecamente ligados, correlacionados, constituídos um do outro, imbricados, moldando per-
manentemente os processos identitários das mulheres alemãs imigrantes – também precisam
ser vistas fora do seu espectro de bloco hermeticamente fechado ou de um conjunto homogê-
neo de conhecimento.

Isto está relacionado às continuidades e descontinuidades junto às quais as experiên-


cias estão complexamente emaranhadas. Saber e/ou conhecer as experiências das mulheres a-
lemãs imigrantes não as torna visíveis automaticamente. A visibilidade das mulheres na histó-
ria não é um simples passe de mágica. Não basta lembrar delas para tornarem-se sujeitos his-
toriográficos. O passe de mágica não está aí localizado.

A mágica da vida destas mulheres é conviver simultaneamente com experiências con-


tínuas e descontínuas de rupturas e re-significações, rompimentos e resistências. Mas também
de continuar vivendo onde vive o marido e os/as filhos/as, de trabalhar ininterruptamente, de
manter o casamento, de ir à roça e cuidar da casa e cozinhar e plantar flores no jardim.

As experiências das mulheres alemãs imigrantes compõem apenas uma parte de como
rever a vida de mulheres na história através de uma historiografia feminista. As continuidades
e descontinuidades exercem uma constante maleabilidade, mobilidade, dinamicidade na cons-
tituição e vivência das relações humanas.
184

As possibilidades historiográficas feministas foram explicitadas a partir de vários con-


ceitos no capítulo um419. Todos estes conceitos, além do da experiência, também compõem os
olhares analíticos lançados à vida passada das mulheres alemãs imigrantes. Estes olhares
constantes e diversificados, com conceitos que proporcionam a suspeita sobre uma verdade
única a respeito deste mesmo passado, vão desenhando e constituindo imagens e perfis das
mulheres na história da imigração.

Ao escrever cartas, as mulheres estão escrevendo a sua história, pois nas cartas estão
registradas as suas memórias. Os conceitos que produzem suspeitas, as suspeitas que produ-
zem imagens e perfis, as cartas que (re)produzem as imagens que as mulheres têm de si, os
jornais que as manipulam e multiplicam, são sustentados pela base das possibilidades histori-
ográficas feministas, quais sejam, as experiências e os cotidianos.

Nas cartas percebe-se uma história um tanto quanto diferente daquela história da imi-
gração conhecida. Os homens pouco se interessam em escrever sobre e para a família. São as
mulheres, em geral, que assumem esta tarefa, mesmo julgando-se, muitas vezes, ineficientes e
despreparadas para tal. Ao se dizer incapaz para a tarefa de escrever, a mulher é corajosa; e se
revela, então, uma pessoa bem informada. As mulheres atuam na economia e na política da
colônia de Blumenau/SC, registrando suas opiniões e decisões nas cartas familiares. Os temas
da venda de bens imóveis são discutidos e avaliados, demonstrando o poder que estas mulhe-
res têm e que tomaram para si.

Este poder é um poder que vai além da capacidade de trabalhar o dia inteiro e de noite
ainda costurar a roupa da família. Este poder vai além de organizar a horta e cuidar dos ani-
mais, cozinhar e educar filhos e filhas. Este poder vai além de apoiar o marido e ir à igreja. O
poder das mulheres se constitui na cozinha, ao ensinar a filha que vai casar como deve com-
portar-se quando o marido afirma que ela gasta demais. Da cozinha, este poder se estende por
todo o ambiente da casa, pois ele foi transformado em lar. Os panos de parede, as fotografias
guardadas ou penduradas nas paredes da sala, os segredos guardados no baú de noiva atestam
a presença da mulher e de seu poder de existir e de resistir a partir do que ela avalia como
promissor.

419
1 – A mulher/Possibilidades historiográficas feministas, p.27ss.
185

Quero considerar aqui um comentário conclusivo e bastante elucidativo no que se refe-


re à presença da mulher, a sua existência e a sua resistência, o saber decidir por si mesma a
sua vida. Trata-se da re-significação, que, durante a escrita dos capítulos, foi se constituindo
como um aspecto decisivo, surgido a partir da suspeita e percebido através das constantes
perguntas que aparecem nos próprios capítulos.

Procurei, desde o início da pesquisa, não descrever simplesmente quem seria a mulher
alemã imigrante, vinda ao sul do Brasil na segunda metade do século XIX. Eu me propunha,
através desta pesquisa, a dar um passo, ou mais, além desta descrição. Durante minhas leituras
e anotações, eu procurava uma forma de identificar e nomear os momentos de resistência e de
vida autônoma das mulheres, mas que não eram registradas pela história da imigração.

Creio que o termo re-significação, surgido da percepção de fissuras e brechas nos fun-
damentos da história patriarcal e androcêntrica, nos fundamentos do que é considerado nor-
mativo para as mulheres, contempla uma espécie de resultado da pesquisa. Consigo nomear,
com este termo, os espaços criativos das mulheres, os espaços de sua liberdade e libertação.

O processo de re-significar elabora espaços de construção identitária para além dos de-
sejos e modelos de uma sociedade patriarcal, possibilitando a irrupção de complexos meca-
nismos de poder e de vida, de vontades e de sonhos. Cabe historiografá-los. Cabe falar das
doações de dinheiro feitas pelas mulheres às sociedades missionárias daquela época. Cabe re-
gistrar o processo de fazer o pão de milho como um processo histórico, tendo as mulheres
como protagonistas destes novos saberes, documentado não por um artigo de jornal ou até por
uma carta das mulheres, mas pela existência do próprio pão de milho até os dias de hoje!

Quero destacar neste ponto a vivência religiosa das mulheres. Nos jornais pesquisados,
não há expressão própria da religiosidade das mulheres alemãs imigrantes. Elas vivem a sua
religiosidade em relação e para outros: para os filhos, para o marido, para o pastor. Se, no en-
tanto, a) mudarmos a visão tradicional para uma visão de suspeita, para uma hermenêutica da
suspeita; b) se pensarmos a religião também como espiritualidade de luta, de resistência, a-
brem-se condições para um olhar mais inclusivo e abrangente de possibilidades da experiên-
cia de fé e da vida de fé destas mulheres.

As cartas mostram a vivência da religiosidade através das bênçãos enviadas aos fami-
liares. Abençoar é chamar pela presença de Deus, evocando um poder sobre as mulheres. Pa-
lavras de bênção ditas/escritas a outras pessoas expressam que estas mulheres são imagem e
186

semelhança de Deus e, como tais, possuem a dignidade e o poder de abençoar e de ser uma
bênção.420

Bênção de todos os dias


Que a bênção se espraie
Sobre as cotidianas tarefas domésticas
Cozinharlavarpassarlimpar

Que a bênção se espraie


Sobre idéias brilhantes
Urgentes, querendo alcançar concreta-forma

Que a bênção se espraie


Sobre a fidelidade aos deveres
De décadas

Que a bênção se espraie


Sobre o interromper e o reiniciar
Com a coragem do desespero

Que a bênção se espraie


Sobre a certeza das pessoas fortes

Que a bênção se espraie


Sobre a sensibilidade de loucas e loucos.
Que assim seja!421

As mulheres alemãs imigrantes estão tão distantes de nós, mulheres de hoje. Muitas
foram esquecidas, muitas foram “desaparecidas”, muitas morreram em nossas memórias. Tan-
tas lutaram para viver, tantas abriram caminhos para hoje, tantas choraram dores e saudades.
Algumas foram corajosas, outras medrosas, essa criou filhos e netas, aquela administrou a
propriedade. Cada mulher, uma história, cada história, uma vida incutida na história da imi-
gração.

Estes são os vários perfis das mulheres, estas são as várias imagens em torno dela. Per-
fis e imagens que não são únicos e exclusivos, mas re-significados a cada vez que uma rotina

420
Hanna STRACK, Segen..., p. 70.
421
Hanna STRACK, Segen..., p.50. “All – Tag – Segen/Segen ruhe auf/der alltäglichen Hausarbeit/KochenWa-
schenBügelnPutzen/Segen ruhe auf/den nach Gestalt drängenden/sprühenden Ideen/Segen ruhe auf/der Treue
zu den Pflichten/jahrzehntelang/Segen ruhe auf/dem Abbrechen und Neubeginnen/mit dem Mut der Ver-
zweiflung/Segen ruhe auf/der Sicherheit der Starken/Segen ruhe auf/der Sensibilität der Närrinen und Nar-
ren./So sei es!”
187

sai de sua rima, encenando e acenando para um outro momento de olhar através dos olhos de
mulheres.

EPÍLOGO

Para cantar sua canção


Através dos olhos de mulheres.
É uma outra maneira de ver.
É uma outra maneira de conhecer.

Existem diferenças.
Nós temos que reconhecer que não podemos falar
um pelo outro.
Nós viemos de experiências diferentes,
de diferentes situações econômicas e étnicas.

E assim, virá o tempo


em que mulheres de todo o mundo
em que os povos da terra
poderão trazer seus presentes junto à fogueira
e olhar-se face a face
sem medo.

To sing your song


Through the eyes of women.
It is another way of seeing.
It is another way of knowing.

There are differences.


We must acknowledge that we cannot speak for
each other.
We each come from different experiences, different
188

economic and ethnic locations.

And so, the time may come


when women all over the world
when peoples of the earth
can bring their gifts to the fire
and look into each other’s faces
unafraid.422

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196

ANEXOS

1) A travessia do emigrante Der Auswanderer Ueberfahrt


Adolf Stöber, 1838 Adolf Stöber, 1838

Olá! O canhão chama para a partida, Halloh! zur Abfahrt ruft die Kanon’,
Adeus, litoral europeu! Leb’ wohl, Europas Küste!
O vapor despedido já corre Es rennt das entlass’ne Dampfbot schon
como uma avestruz para o mar deserto. Wie ein Strauß in die Meereswüste.

Da chaminé fumega uma nuvem preta, Vom Schlot die schwarze Wolke dampft,
as rodas de pás já giram velozmente; Die Schaufelräder sausen;
o mar encapelado, arfa ao longe, Die Wogen, weit zurückgestampft,
como tigres furiosos rugem. Wie grimmige Tiger brausen.

Os passageiros olham para baixo, Wohl schauen die Passagiere hinab


para fora do camarote com horror, Mit Grausen aus der Kajüte,
separados do túmulo sem fundo Getrennt vom bodenlosen Grab
somente pela choupana de madeira. Nur durch die bretterne Hütte.

Mas em breve anima-se a coragem crescente, Doch bald ermannt sich der wachsende Mut,
mesmo que as paredes balancem, Ob auch die Wände schwanken,
ansiosa e pensativa descansa Erwartungsvoll und sinnend ruht
a cabeça nas firmes tábuas. Das Haupt an den festen Planken.

Eles pensam no novo mundo, Sie denken an die neue Welt,


os nômades que vagueiam, Die ziehenden Nomaden,
sonhando já montam a sua barraca, Sie bauen sich träumend schon ihr Zelt,
tecida de fios dourados. Gewebt aus goldenem Faden.

Um prepara suas ferramentas, Der eine rüstet sein Werkzeug aus,


a fim de construir sua futura felicidade; Am künftigem Glück zu zimmern;
o outro já vê pelo pátio e em torno da casa Der andre sicht schon um Hof und Haus
brilharem ricamente os campos férteis. Reich fruchtende Felder schimmern.
197

Assim eles só pensam na nova terra – So denken sie nur ans neue Land -
como se o navio já estivesse salvo; Als wäre das Schiff schon geborgen:
as mãos experientes do velho timoneiro Des alten Steuermannes kluge Hand
eles deixam cuidar disso. Die lassen sie dafür sorgen.

Você deixou, na velha pátria Du hast im alten Heimatland


a cabaninha derribada, Das Hüttchen umgehauen,
a fim de novamente construí-la Um’s dir am freien Meeresstrand
na livre praia do mar -: Von Neuem aufzubauen -:
Alma inconstante, pensas também, Unstete Seele, gedenkst du auch,
que para uma nova vida, Daß du einem neuen Leben
a cada hora passada, Mit jedem entwehten Stundenhauch
precisas pairar cada vez mais perto? Mußt näher entgegenschweben?

Tens para com o novo mundo Hast du nach jener neuen Welt
também tal desejo profundo? Auch solch ein innig Gelüsten?
E tens tudo bem preparado Und hast du alles wohl bestellt,
Para lá equipar a tua felicidade? Dein Glück dort auszurüsten?

Em tua travessia, você confia Du traust auf deiner Überfahrt


no timoneiro do navio, Dem Steuermann im Schiffe,
que ele te guie com muito cuidado Daß er dich führe wohlbewahrt
através de turbilhões e recifes, - Durch Strudel und Felsenriffe, -

Também em tua vida sempre tens Hast du im Leben auch immerdar


dado tal confiança, Solch ein Vertrauen geschenket,
ao timoneiro, que invisível, Dem Steuermann, der unsichtbar
maravilhosamente te guia? Dich wunderbarlich lenket?

Viaje bem, ó navio, Deus acompanhe Fahr’ wohl, o Schiff, geleite Gott
você feliz à nova praia! Dich glücklich zum neuen Strande!
Viaje bem, alma, Deus te prepare Fahr’ wohl, Dich Seele, bereite Gott
para sua terra prometida.423 Zu seinem ewigen Lande.

2) “Durch so viel Angst und Plagen, durch Zittern und durch Zagen.”
(Von einer Frau)
(a) Wir machten unsere Hochzeitsreise. Aus dem belebten Osten Amerikas gings zum
öden Westen, ins Land der Rothäute. Ich wäre tausendmal lieber bei meiner Mutter
geblieben. Wir hätten das schöne, sonnige Zimmer im zweiten Stock bewohnen können
und die hübschen kleinen Stuben daneben, wo ich als Mädchen meine Blumen pflegte
und dabei so fröhlich war. Den ganzen Tag wäre ich mit Mütterchen zusammen gewesen,
und abends nach gethaner Arbeit wäre Karl freundlich und glückselig zu seiner jungen
Frau hingekommen. Was für ein stilles, süßes Leben hätten wir führen können, wenn

423
Cf. DA. Ano 20, Barmen : Dr. Schreiber, março 1882. p.17-18.
198

nicht Karls alter Oheim ihm geschrieben hätte, im Westen unter den Indianern könnte
man sein Glück machen; er solle mit mir zu ihm kommen und auch reich werden.
(b) Reich werden! Das war das Gift, welches in alle unsere Speisen eindrang, das böse
Zaubermittel, welches Karls und seiner Verwandten Sinne verblendete. Ich selbst
kümmerte mich ums Reichwerden nicht; man redete mir aber so viel von weiblicher
Hingabe vor und stellte mir das Opfer unter so glänzenden Farben dar, daß ich zuletzt
einwilligte und mit dem Mann, den ich herzlich liebte, tausende von Meilen in die ferne,
schreckliche Gegend zog. Mein halbes Herz freilich blieb zurück. Ich war nur ein halbes
Geschöpf, als ich mit Karl allein im Wagen saß und die Mutter nicht mehr sah, die teure,
treue Mutter!
(c) Sobald ich die Prärie zu Gesicht bekam, war sie mir zuwider. Ich habe nie in meinem
Leben etwas so Eintöniges gesehen. Ihre unendliche Ausdehnung schnürte mir das Herz
zu. Wenn nur ein Baum, ein Fels, ein Schuppen, eine Telegraphenstange oder irgend
etwas einmal zur Abwechslung zu sehen gewesen wäre! So aber schaute ich hinaus, bis
mir die Augen weh thaten; und je mehr ich hinausschaute, um so weniger sah ich.
(d) Abends, wenn man sich zur Verteidigung gegen die Indianer rüstete, sagte Karl zu
mir: “Du weißt doch, Käthchen, meine tapfere, kleine Frau, lieber tot, als weggeschleppt
von den Rothäuten!! - ” “Ja, ja, ich weiß es”, sagte ich zitternd und besah die Mündung
der Pistolen. Karl schlief dann gleich ein; ich aber lag manche lange, lange Stunde wach,
horchte, ob die Indianer kämen, und blickte nach den düstern Wolken oder den
glitzernden Sternen. Meine Verzweiflung hielt man für Mut; ich erlangte den Ruf einer
charakterstarken Frau. Aber ach, wie müde war ich und wie wund!
(e) Auch an die Kost konnte ich mich schlecht gewöhnen – immer Schweinefleisch und
eine Art Schiffszwieback, gedörrtes Rindfleisch und schwarzen Kaffee! Karl hätte, meine
ich, für etwas bessere Vorräte sorgen können. Hat er auch einen Magen, wie der Vogel
Strauß, so haben ihn darum doch nicht alle Leute. So oft der alte Teppich auf die Prärie
hingebreitet und mit unsern Schätzen ausstaffiert wurde, zitterte vor meinen
schmerzenden Augen das süße Bild der Heimat, das trauliche Wohnzimmer, der weiß
gedeckte Tisch mit allem, was Mütterchen so sorgsam zurichtete, -- ich aber, ich arme
Käthe, draußen in der feuchten, kalten Öde, wo Schlangen um mich her krochen! Kein
Wunder, daß ich mich vor Pistolen nicht sehr fürchtete!
(f) Endlich nahmen wir unsere Wohnung in der Stadt. Ich will sie nicht nennen und ihre
Einwohner durch meine Trauer nicht beleidigen. Wenn sich ihre Lage seit jener Zeit nicht
wesentlich gebessert hat, sind sie ohnehin elend genug. Wir begaben uns also in das, was
sie eine Stadt nannten. Es waren einige lose Bretterbuden, ganz darauf berechnet, im Nu
auseinandergenommen, auf Wagen geladen und weiter nach Westen gefahren zu werden.
Die unglücklichen Geschöpfe, welche den Fluch dessen, was sie Unternehmungsgeist
nennen, in sich trugen, fanden keine Ruhe, sondern waren unstät und flüchtig. Es war
immer ein Goldland in der Ferne, welches mit dämonischer Macht sie zu sich lockte. Es
war die Unruhe des ewigen Juden. Wir wurden Glieder dieser bedauernswerten
Gesellschaft. Ballen Papier und ein Malergenie wären nötig, um die täglichen kleinen und
großen Qualen zu schildern, die diese Gier nach Reichtum mit sich brachte.
(g) Des Nachts ritten oft die großen, grimmigen Indianer durch die Stadt, in wilder
kriegerischer Ordnung, einer genau hinter dem andern, so daß das bißchen Blut, das nicht
vor Frost bereits erstarrt war, vor Schrecken in den Adern gerann, und einem vollends
aller Schlaf verging.
(h) Als ich drei Jahre dagewesen war, sah ich zum ersten Mal wieder in einen Spiegel. Ich
war hoffende Mutter, und mein armer Karl hatte sein Möglichstes gethan, alles um mich
her freundlich und sauber zu machen; selbst einen Spiegel hatte er irgendwo aufgetrieben.
199

Dahinein sah ich also. Entsetzt fuhr ich zurück. Schweinefleisch und alter Zwieback,
schwarzer Kaffee und getrocknetes Rindfleisch, die schneidenden Stürme der Prärie, die
brennende Sonne, Heimweh, Angst vor den Wilden, Fieber, Kopfschmerzen u. dergl.
mehr hatten ihre Wirkung gethan. Käthchen Malcolm war nicht wieder zu erkennen; sie
war eine Mumie mit gelber, trockner Haut und großen, stechenden, hohlen Augen. Ich
unterdrückte mein Schluchzen und kehrte das Spiegelglas gegen die Wand.
(i) Zwei Wochen darnach war mein Söhnchen da, und zwei Monate später war ich wieder
Käthchen Malcolm, nur eine zwanzigmal bessere Frau als vorher. Mein Knäblein war der
Zauberer, welcher Licht in die Spähne der alten Balken brachte. Er machte die Augen
seiner Mutter milder und verwischte auch die häßlichen Runzeln über seines Vaters Nase,
der süße, kleine Malcolm! Ich dankte dem guten, gnädigen Gott für ihn. Und da ich für
ihn etwas thun mußte, konnte ich es auch. Beim Schein einer Talgkerze nähte ich mich
fast blind, um ihm hübsche Kleidchen zu machen, und ehe ichs merkte, konnte ich auch
wieder singen und fürchtete mich vor nichts mehr. Er war meine Arznei und meine
Nahrung.
(j) Eines Tages war ich allein mit ihm und wärmte seine rosigen kleinen Füße am Feuer:
denn die Luft draußen war eisig kalt und stürmisch. Auf einmal hörte ich Tritte. Die Thür
ging leise auf, und herein schlich das jämmerlichste Häuflein Elend, das man sich denken
kann. Zuerst dachte ich, es wäre eine lebendig gewordene schmutzige Wolldecke; bald
aber sah ich lange, grobe schwarze Haare und einen flachen, von der Kälte purpurroten
Fuß. Die schmutzige Decke that sich auseinander, und vor mir stand ein armes
Indianerweib mit einem sonderbaren, kranken kleinen Indianerkind. “Klein Kind! Fieber!
schüttelt!” stammelte sie, und zugleich bebte der schmutzige kleine Körper in Krämpfen
zusammen. Ich legte Malcolm in sein Bettchen, nahm das Wasser vom Feuer, goß es in
einen Kübel, nahm den kleinen Indianer und seifte ihn ein, Kopf, Ohren und alles. Das
Wasser wurde augenblicklich schwarz; denn nie war ein armes kleines Geschöpf so mit
Schmutz bedeckt. Er schnappte nach Luft und öffnete wild die Augen. Ich that ihm ein
wenig Salz in den Mund, und er wurde bald besser. Er kroch wieder in seiner Mutter
Decke; aber seine schwarzen, schmalen Augen folgten meinen Bewegungen mit einem
unbeugsamen Blick, der zu sagen schien: “Wenn ich einmal ein Krieger werde, der sich
tätowiert und mit Federn schmückt, will ich meinen Gürtel mit der Kopfhaut dieser
albernen weißen Frau zieren. Ich will sie lehren, was es heißt, mich einzuseifen und mir
meinen Schmutz zu rauben und sich solche Freiheiten mit dem Sohne meines Vaters
herauszunehmen!” Als ich ihm schließlich eine Dosis Chinin beibrachte, gab es ihm erst
recht einen Stich ins Herz.
(k) Jeden Abend kam die sanfte Frau an meine Thür und zeigte ihr Kind mit derselben
kläglichen Bitte: “Klein Kind, Fieber, schüttelt!” dann sah sie mir ehrfurchtsvoll zu, wie
ich ihrem Tapfern mit Gewalt die bittere Dosis eingab. Ich erinnere mich nicht, daß sie
Freude und Dankbarkeit bei der offenbaren Besserung ihres Sprößlings gezeigt hätte. Ihr
Gesicht behielt immer denselben stoischen, leidenden Ausdruck. Ich gewann das arme
traurige Weib lieb, es war mir eine Freude, abends ihren leichten, sanften Tritt zu hören;
aber ich gestehe, daß ich mich nie an das Kind gewöhnen konnte; ich fürchtete mich fast
vor ihm. Es blieb der unversöhnliche, wilde Blick seiner funkelnden Augen. Ich war froh,
als es meiner Hilfe nicht mehr bedurfte; die Mutter aber, welche nun ausblieb, vermißte
ich sehr.
(l) Mittlerweile wurde unser kleiner Malcolm ein wunderschönes Kind. Und dabei war er
so gutmütig, so lustig, war selten heftig oder weinerlich, und nach dem Weinen schlief er
immer mit jenem lieben Schluchzen ein, welches jeder Mutter Lust machen möchte, das
Kind wieder aufzuwecken und noch einmal einzuschläfern. Ein andermal lag er auf dem
Bett, strampelte mit den Beinchen und spielte mit den Sonnenstrahlen. Doch wer kennt
nicht alle die reizenden Künste der kleinen lieben Schelme! Wir liebten ihn zu sehr,
200

natürlich. Karl und ich, wir waren beide nahe daran, unsern Schatz anzubeten. Und doch
wurden wir besser durch ihn; die Ecken und Kanten unsers Wesens fingen an zu
schwinden.
(m) Als es Frühling wurde, war ich mit Karl früh und spät auf einem Stück Land
beschäftigt, das wir mit dem Namen Garten beehrten. Was war das für eine Freude, als
wir meine ersten Radieschen und frühen Erbsen aßen! Und die späten Erbsen und das
übrige Gemüse? – Ach! Alles verwelkte und vermoderte! Mein Garten überwuchs mit
giftigem Unkraut; mein Haus wurde wie ein vernachlässigter Hundestall, und ich – o wie
habe ich arme den Tag überleben können! Ich bebe noch, wenn ich an den schönen,
klaren Morgen denke, wiewohl 15 Jahre seitdem verflossen sind. Die Natur war in der
mildesten Stimmung, der blaue Himmel mit kleinen Wölkchen bezogen; die Grashalme
zitterten vor Freude. Sogar die endlose Aussicht in die sonnige Prärie kam mir schön vor,
als ich hinaus zum Holzhaufen lief, um einige Spähne für die Küche zu holen. Ich blieb
einen Augenblick stehen, die Augen mit der Hand beschattend, und sah in die weite
Ferne. Plötzlich erschien ein großer, schwarzer Schatten in der Thür meiner kleinen
Wohnung. Ich ließ die Spähne fallen und rannte dahin; auf der Schwelle aber stockte mir
der Atem; denn vor dem Feuer drinnen hockte ein riesiger Indianer und hielt in seinen
Fäusten meinen lieben kleinen Malcolm!
(n) Ich hatte bereits viele Indianer gesehen, viele schmutzige, betrunkene, auch herzlose
Rothäute, ich hatte mich an sie gewöhnt und sie mehr verachtet, als fürchten gelernt. Aber
dieser – mit seiner riesigen Gestalt, großen Adlernase, den glühenden Augen und dem
boshaften, wilden, gierigen Ausdruck, womit er mein unschuldiges Kind ansah, - nur die
Verzweiflung gab mir den Mut, mich ihm zu nähern. Ruhig schritt ich auf ihn zu,
versuchte mit zitternden Lippen zu lächeln und ihm freundlich zuzunicken und bemühte
mich, mein Kind aus seinen Armen zu nehmen.
(o) Es war vergeblich. Die großen knöchernen Finger des Furchtbaren hielten ihn zu fest.
Ich ließ ihn los. “Ögh”, brummte der Wilde, “großer Häuptling ich!” “Gewiß!” stotterte
ich schwach. “Großer Häuptling ich!” wiederholte er grimmig. Ich fuhr zurück, rang die
Hände vor Entsetzen, mein Kopf schwindelte vor Furcht; halb bewußtlos wankte ich
umher und stellte alle Eßwaren, die ich fand, alles, wovon ich glaubte, es könnte den
Appetit oder die Phantasie eines Wilden reizen, auf den Tisch. Er sah mir zu wie ein
Teufel, der eben ausruht. Dann deute ich auf den Tisch und suchte noch einmal mein
Kind zu nehmen. Umsonst! Mit unaussprechlicher Verachtung sah er auf das Essen, legte
seinen großen Finger auf die braune Brust und wiederholte: “Großer Häuptling ich!”
Damit ging er fort. Malcolm schrie und streckte die Händchen nach mir aus; ich fiel vor
dem Ungeheuer auf die Knie, bat und flehte mit überströmenden Augen, stellte ihm vor,
wie es eines großen Häuptlings, eines edlen Anführers eines mächtigen Stamms nicht
würdig sei, ein armes hülfloses Weib zu quälen, und versprach ihm alle erdenklichen
Schätze von bunten wollenen Decken, glänzenden Perlen, und was wir sonst besäßen.
(p) Einen Augenblick blieb er zweifelnd stehen und legte die Hand an die blanke Waffe
in seinem Gürtel. Dann stieß er mich bei Seite, zog seine schmutzige Decke über mein
armes Kind und eilte hinaus, während ich erstarrt zusah, wie seine mächtigen Schritte den
Raum zwischen uns vergrößerten, bis er in der Ferne auf sein Pferd sprang und in einer
Staubwolke verschwand. Dann vergingen mir die Sinne; ich fiel auf der Thürschwelle
nieder und blieb da liegen, bis Karl kam. – Drei Tage blieb ich bewußtlos, um dann, als
ich wieder zu mir kam, in noch tieferen, überwältigenden Kummer gestürzt zu werden.
Denn ich wollte mich nicht trösten lassen.
(q) Was sollte ich leben mit diesem Schmerz in meinem Gehirn? Ich hätte mein Kind viel
lieber tot und im Grabe gesehen. Ich hätte es mit brechendem Herzen in die Arme des
201

gnädigen, gütigen Heilands gelegt; aber daß es ein Raub dieses Ungeheuers war – der
Gedanke war unerträglich!
(r) Sie setzten ihm überall nach, suchten ihn nah und fern, - vergeblich! Ein Monat
verging, und meine Kräfte nahmen zusehends ab. Meine Mutter war auf dem Wege zu
mir; aber ich fühlte, sie würde mich nicht mehr am Leben treffen. Ich lag Tag für Tag in
dumpfer Betäubung, und man fürchtete, mich daraus zu wecken, aus Angst, die
Betäubung möchte in Wahnsinn übergehen.
(s) Da, an einem milden Abend, als ein wohlthuender Wind die breiten Blätter des wilden
Weines vor meinem Fenster bewegte, ergriff mich ein überwältigendes Gefühl davon, wie
ich mich gegen meinen Gott versündigte. Es war, als ob der Geist Gottes mein Herz
berührte mit einer Ahnung seiner Liebe und Barmherzigkeit. “Karl,” sagte ich und suchte
sein kummergebeugtes Haupt mit der Hand zu erreichen, “Karl, ich bin ein gottloses,
aufrührerisches Geschöpf gewesen, ich habe gegen Gott und gegen dich gemurrt, ich
habe an seiner Weisheit und Güte gezweifelt. Karl, der gute Gott hat unseren Kleinen zu
sich genommen; irgendwo bleichen seine kleinen Gebeine, aber seine Seele ist im
Himmel beim Heiland!” “Und wirst du am Leben bleiben?” fragte Karl flehend. “Ach,
mein Lieber, das ist wohl unmöglich.” Er beugte wieder sein Haupt, und ein starkes
Zittern durchbebte ihn.
(t) Plötzlich glaubte ich einen leichten Schritt zu hören, welcher eine Menge
Erinnerungen in meinem Herzen wachrief. Die Thür ging sacht auf; ja, sie war es in der
That, mein wohlbekanntes trauriges Indianerweib. Ihre Decke, schmutziger als je, hing
lose auf ihren Schultern. In dem Sack auf dem Rücken hockte das kleine Kind. Sie
schlüpfte in ihrer geräuschlosen Weise bis zu ihrem gewohnten Platz am Feuer und sah
mich mit eigentümlich heftiger Sehnsucht an. “Klein Kind, Fieber, schüttelt!” sagte die
klagende melodische Stimme. Ich brach in Thränen aus, zum ersten Mal seit meinem
großen Leid. “Ach, arme Mutter,” sagte ich, “ich bin jetzt ganz unfähig, deinem Kinde zu
helfen, aber gieb es nur her; alle Kinder sind mir jetzt lieb und teuer!” Sie wiederholte
traurig: “Klein Kind, Fieber, schüttelt!” und nahm ein Kind aus ihrer Decke, ein
schrecklich dünnes, halb verhungertes Kind, das nur ein paar Fetzen am Leibe hatte; aber
seine Augen waren groß und klar, und sein Haar schimmerte wie Gold in der
untergehenden Sonne. Als ich es sah, drang ein solcher Freudenstrom an mein Herz, daß
ich nach Atem rang und glaubte, es würde mein Tod sein. Ich faßte ihn krampfhaft in
meine Arme und drückte ihn an mein Herz, mein eignes Kind, meinen Malcolm! Dank
dem guten, gnädigen Gott im Himmel, der Knabe war wieder mein. Er war krank, und sie
hatte ihn gebracht, daß ich ihn heilen sollte, die arme gute Wilde; wir heilten uns
einander, mein Junge und ich, durch die kräftige Arznei der Liebe. – Karl wusch das Kind
von Kopf bis zu Fuß. Ich bat ihn, zu meiner Brautkiste zu gehen und die Kleidchen
herauszunehmen, von denen ich gedacht hatte, sie würden nie mehr gebraucht werden.
Dann stark vor Freude, flog ich selbst aus dem Bett auf meine Knie und umfaßte die Füße
der Indianerin. Karl nahm seine Uhr aus der Tasche, winkte ihr, sie sollte sie ticken
hören, und legte sie in ihre Hand, während immerfort seine Thränen auf ihr schwarzes
Haar niederflossen. Ich gab ihr meinen Brautkranz und eine hübsche Perlenkette. Sie
verharrte in ihrer alten sanften Würde und bewegte sich still zur Thüre. “Du wirst morgen
wiederkommen,” sagte ich, ihr herzlich die Hand entgegenstreckend. Ihre Lippen
zuckten. Sie sah uns alle an, das Kind, Karl und mich, dann ging sie schnell hinaus und
verschwand in der dunklen Nacht. – “Sie wird morgen wiederkommen,” sagte ich, zu
meinem Kind gewandt. “Ich will ihr die schönste Decke verschaffen, die ihre groβen
Augen jemals gesehen haben,” sagte mein Mann. Aber obgleich mehr Schätze auf sie
warteten, als ein Indianerpferd tragen kann, sie kam niemals wieder.
(u) Gott allein kennt den Schlüssel aller dieser Geheimnisse.
202

(v) Wir warteten nur, bis meine Mutter kam, und bis das Kind und ich stark genug zur
Reise waren. Dann zogen wir wieder in die alte Heimat, wo mich noch viele Kinder
erfreuten; aber keines so, wie mein Malcolm.
(A. d. Friedensboten)424
3) Mutterliebe

(a) “Ich sah eines Morgens in New-York an den Straßenecken das Bild einer einfachen
Frau, abgehärmt und traurig, mit der Unterschrift: “Komm zurück! Ich liebe dich immer
noch!” Mich fesselte das Bild wunderbar; was mochte es zu bedeuten haben? Ich
erkundigte mich bei einem mir befreundeten Redakteur einer großen Zeitung und erfuhr:
eine Mutter will auf diese Weise ihre weggelaufene Tochter zurücklocken. Wohnung und
Name wurden mir ebenfalls mitgeteilt. Bald darauf führte mich mein Weg bei dieser
Wohnung vorbei. Ich konnte mich nicht enthalten einzutreten. Ich fand in einer
bescheidenen, saubern Stube jene Frau, deren schmerzliche Züge auf dem Bilde mich
gefesselt hatten, und ein junges Mädchen von auffallender Schönheit. Wie ich mich
einführte, wie ich es anstellte, daß sie mir ihre Geschichte erzählten, weiß ich nicht mehr.
Die Geschichte war einfach genug. Frau Black war die Witwe eines tüchtigen
Handwerkers mit einem kleinen Vermögen. Ihre Bemühungen, die Tochter in der
Gottesfurcht zu erziehen, vermochten nicht die Vergnügungssucht und den Leichtsinn in
dem jungen Herzen zu überwinden.
(b) Für die Witwe kam eine schwere Zeit. Wohl tröstete sie sich mit der Mutter des
Augustinus: “Ein Kind so vieler Thränen und Gebete kann nicht verloren gehen”, mußte
es aber trotz ihrer heißen täglichen Gebete erleben, daß die Tochter heimlich davon lief,
ohne daβ eine Spur von ihr zu entdecken war. Da faßte das arme Weib den Entschluß,
durch eine öffentliche Anzeige zum Herzen der veirrten Tochter zu sprechen. Sie scheute
die großen Kosten nicht, sie sagte sich: Wenn dein Kind dein Bild sieht, so wird die
schlummernde Liebe zu dir aufs neue erwachen; sie wird zurückkehren! Und der Herr
erhörte die Gebete. Die Tochter sah, wie so viele Tausende das Bild der Mutter. Es
erschütterte sie tief; sie kehrte zurück. Zugleich aber begann eine innere Umwandlung;
sie lernte es, demselben Gott dienen, der ihrer Mutter Hilfe und Trost war. (A. d.
Friedensb.)425
4) Aus einer amerikanischen Ehe.

Nicht etwa von einer Frau.

(a) Drei Jahre lang war Frau N.N. eine elende, blasse, nervenschwache Gestalt gewesen,
als sie bei dem Tode eines Oheims in Besitz eines Vermögens kam, welches ihr ein nicht
unerhebliches Jahreseinkommen sicherte. Sofort begann ihre Gesundheit kräftiger zu
werden, ihr Antlitz zeigte einen frischen, frohen Ausdruck, und ihre Gestalt gewann
zusehends. Seit ihrer Verheiratung war sie eine Bettlerin gewesen; und Bettlerinnen
haben keine starke Gesundheit, keine blühende Gestalt. Ihr Mann war reich und hatte
einen ehrenwerten Charakter, war aber genau in seinen Ausgaben. Er gab keinen Dollar
aus, wenn er es irgend vermeiden konnte. Ihr Haus war gut eingerichtet, und an Speise
und Trank wurde nichts gespart; aber während Dora, die Magd, die sich ebensogut wie
die Hausfrau kleidete, nicht um Geld zu betteln brauchte, konnte Frau N.N. nicht einen

424
Cf. DA. Ano 21. Langenberg : Pastor Griesemann, março 1883. p.20-22.
425
Cf. DA. Ano 21. Langenberg : Pastor Griesemann, abril 1883. p.31.
203

Dollar zu persönlichen Ausgaben erlangen, ohne daß sie die Sache auseinandersetzte und
das Bedürfnis in überzeugender Gründlichkeit darlegte, kurz – bettelte.
(b) Als sie einmal ihre in einem andern Staat wohnende Mutter besuchte, erzählte sie ihr
unter heißen Thränen Folgendes: “Ich hatte im Herbst ein warmes Kleid nötig; es wurde
mir jedoch so unsäglich schwer, John um das Geld zu bitten, daß ich die Sache bis in die
Mitte des Winters aufschob. Eines Abends hatten wir Besuch, ich sang einige Lieder, und
John freute sich, daß mein Gesang und die Wahl der Lieder herzlichen Beifall fand. Als
wir allein waren, und er sich warm und glücklich darüber aussprach, daß unsere Freunde
sich in unserm Hause so wohl fühlten, und daß ich es so gut verstände, allen das
Zusammensein angenehm zu machen, dachte ich, jetzt sei der günstige Augenblick, und
erwähnte in der zartesten Weise, daß ich ein warmes Kleid dringend nötig hätte. John
schwieg einige Minuten; dann sagte er: “Nun, meine liebe -, ich denke, du bist
mindestens ebenso gut gekleidet, wie all die andern. Es ist doch der reine Unsinn, ein
Kleid über das andere zu kaufen, wenn der Kleiderschrank so voll ist, daß gar nichts mehr
hineingeht. Ich möchte dich doch bitten, erst einmal eins von deinen Kleidern
aufzutragen.”
(c) Dann schwiegen wir beide; ich brachte es nicht übers Herz, ihm zu sagen, daß das
Kleid, das ich an dem Abend getragen hatte, das einzige gute war, das ich besaß, und daß
mein altes warmes Kleid völlig abgenutzt war. Es folgte für mich eine schlaflose Nacht,
in welcher ich mir vornahm, nie wieder zu bitten, koste es, was es wolle. Den Vorsatz
habe ich gehalten. Zwei Jahre lang habe ich mir nichts neues angeschafft; ein Glück, daß
du mir ein wollenes Kleid geschenkt hast. Zwischen meinem Mann und mir fiel kein
Wort über diese Dinge.
(d) O wie oft dachte ich an die glückliche Unabhängigkeit, deren ich mich erfreute, als
ich noch Musiklehrerin war! Mühe und Arbeit von früh bis spät scheue ich nicht, das
weißt du, Mutter; aber das Betteln um Geld – bei seinem Widerwillen zu geben -, das
scheue ich über die Maßen. Seitdem ich ein eignes Vermögen habe, bin ich völlig
verwandelt; du siehst, wie gesund und frisch und fröhlich ich jetzt bin. John dringt in
mich, ich solle ihm die Papiere geben; aber ich glaube, ich darf das nicht. Ich müßte ihn
dann wieder um Geld bitten, und wer weiß, ob die alte traurige Geschichte nicht von vorn
anfinge. Das ist doch kein Unrecht, wenn ich bei seiner Eigentümlichkeit die Papiere
nicht aus den Händen gebe? Ich war wirklich in Gefahr, gegen meinen Mann einen
Widerwillen zu empfinden. Ich danke von Herzen dem lieben Gott, daß es sich jetzt so
glücklich gewandt hat.”
(e) Es giebt Gatten und Väter, denen man wünschen muß, sie möchten bei den Rinder-,
Pferde- und Schweinezüchtern in die Schule gehen. Dem Vieh entzieht man nicht, was
ihm zum Gedeihen dient; die Frauen und Kinder werden nicht selten mit weniger
Rücksicht und Verstand behandelt.426
5) Ein Kind im Nest – das ist das Best’.

(a) “Aber liebe Frau Schulz, warum gehen Sie gar nicht mehr aus? Keine
Kaffeegesellschaft, kein Kränzchen, nicht einmal eine Landpartie wollen Sie mitmachen!
Sie sind viel zu jung, wie eine Einsiedlerin zu leben.”
(b) “Nein, das will ich nicht [ilegível]”, entgegnet Frau Schulz freundlich, “aber wenn
mein Mann müde von der Arbeit aus seinem Bureau kommt, dann ist er froh, mich zu

426
Cf. DA. Ano 21. Langenberg : Pastor Griesemann, setembro 1883. p.70.
204

Hause zu finden, und selbst wieder auszugehen hat er gar selten Lust; und dann, wenn ich
ausginge, müßte ich auch mein Kind, meinen Jungen, in fremden Händen lassen.”
(c) “Ja, das ist wahr”, sagte die Nachbarin mitleidig, “aber es ist doch recht schwer, so
jedes Vergnügen für Mann und Kind opfern zu müssen.”
(d) War es denn schwer? Bot denn ein Kaffeeklatsch oder sonst eine Geselligkeit wirklich
so viel Vergnügen, daß Frau Schulz deshalb ihre Pflichten versäumen, ihr Kind verlassen
sollte?

(e) Wohl ging sie gern einmal aus, sie war eine gesellige Natur, und ihr Mann redete ihr
zu, nicht immer so allein daheim zu sitzen. Es war auch an der Zeit, ihre hübschen
Kleider einmal wieder anzuziehen; besonders wollte sie keine getreue Nachbarin
verletzen, sie war ja noch jung, ja sie wollte ausgehen, vergnügt sein - -
(f) Da horch! Ein Bellen und Krachen – Frau Schulz eilt an das kleine Bettchen, da liegt
ihr Heinrich, der sich rosenrote Bäckchen geschlafen und sieht sie aus groβen blauen
Augen lachend an. Sie nimmt das Kind auf den Arm – nun ist der kleine Bursche erst froh
– ach, sie kann sich nicht satt sehen an dem Kinde, sie spielt und lacht mit ihm, sie wird
sich hüten, es aus ihren Armen zu lassen.
(g) Wenn es der Vater doch jetzt sähe! Er muß nun bald kommen, “wir wollen ihm
entgegen gehen, nicht wahr mein Junge.” Prinz Heinrich ist ganz einverstanden, sich von
der Mutter überall hintragen zu lassen. Nun gehen die beiden aus der Thür; da warten sie
auf den Vater, und vergessen ist die Nachbarin und das Ausgehen und die
Kaffeegesellschaft, - es ist ja nirgend so schön wie zu Hause, das Kindlein im Arm.
(h) Da kommt der Vater. Seine Augen leuchten, als er Weib und Kind sieht. Er umfaßt sie
und sagt:
Das heiß’ ich rechte Augenweide,
Das Herze weidet sich zugleich.
Der alles segnet, segn’ Euch beide
Und mich mit Euch. Wie bin ich reich.427
6) Noch ein Blick in nordamerikanischen Ehen (Vergl. Nr. 9).

(a) Frau Wilhelmine Buchholz veröffentlicht im “Chr. Botsch.” Folgendes “Mahn- und
Trostwort für junge Frauen und solche, die es werden wollen.” [...] Frau Buchholz
schreibt: Unsere jungen Damen lernen heute ja so viel, daß früher ein Professor ganz gut
damit hätte auskommen können; nur die Hände naß machen, das lernen sie in den
seltensten Fällen. [...] Sollen sie kochen, so sagen sie, die Küche nimmt ihnen die Zeit zur
Erlangung der Bildung fort; und sind sie mit all ihrer Bildung verheiratet, dann spürt der
Mann gar bald, wo es hapert; und sein Geldbeutel merkt, daß die Gattin es nicht versteht,
mit wenigem hauszuhalten und dennoch für einen guten Tisch zu sorgen. Darum scheut
sich auch noch so mancher Mann, einen eigenen Herd zu gründen – der Herd wird ihm zu
teuer.
(b) Freilich – kochen lernt ja so eine junge Dame. Ist sie Braut geworden, dann wird das
Piano zugeklappt, die Litteraturgeschichte mitsamt dem Stickrahmen in die Ecke
geworfen und ein Kochkursus durchgenommen, mit einem Eifer, als sollte ein Examen in
der Kochkunst geleistet werden. Wenn aber eine behaupten wollte, in den Kochanstalten

427
Cf. SB. Ano 3. São Leopoldo : Wilhelm Rotermund, 28.09.1890. p.3.
205

lerne man wirtschaften, wie es der Haushalt verlangt, der würde ich schön heimleuchten.
Ich möchte z.B. wissen, ob die Fräuleins dort erfahren, wo man mit den Resten bleibt.
(c) Manche trösten sich mit den Kochbüchern. Kochbücher sind gut, wenn man kochen
kann; das aber lernt man nur durch praktische Anleitung und Erfahrung. Auch lehren die
Kochbücher nicht, wie man sich zu behelfen hat, wenn nicht alles aus dem Vollen
genommen werden kann; mit Eiern und Butter wird da eine Verschwendung getrieben,
daß es einen kalt überläuft; von Zucker will ich gar nicht reden.

(d) Es ist keine Kunst, eine Gesellschaft zu geben, wenn man musikalische Größen
einladet, die Klavier trommeln, oder besonders begabte Jünglinge anstiftet, zum Ergötzen
der Gäste Kunststücke zu machen, oder die Damen und Herren animiert, mit verteilten
Rollen ein Drama zu lesen, - und die Küche so nebensächlich wie möglich behandelt;
aber schließlich bekommt man solche Genüsse satt, während ein guter Tisch seinen Wert
behält. Essen und trinken mag ein jeder gern, wogegen Musik, Drama und Kunststücke
mitunter auf Abneigung stoßen. Sind die Leute angenehm gesättigt, dann lassen sie sich
nachher auch schon etwas anderes gefallen. Dies ist sehr wohl zu bedenken.
(e) Wenn ich irgendwo zu Gast geladen bin, merke ich an den Saucen gleich, wie es mit
der Kocherei bestellt ist; denn eine gute Sauce ist das halbe Essen. Mit Schrecken denke
ich an die Gasthaussaucen, die alle egal schmecken, und an den Mehlkleister, den manche
Frau ihrem Mann als Sauce vorsetzt.
(f) Es ist schon mehr als einmal im Leben dagewesen, daß der Kochtopf die eheliche
Liebe neu erwärmt hat, deren Thermomether langsam, aber sicher, zu fallen begann. Ihr
jungen Mädchen, die ihr die redliche Absicht habt, einen Mann zu beglücken und ihm
auch in bescheidenen Verhältnissen das Leben angenehm zu machen, merkt euch, daß der
Mann nicht satt wird, wenn ihr ihm eure Ansicht darüber vortragt, wer der größere sei,
Schiller oder Goethe, und daß ihm das Mahl nicht schmackhafter wird, wenn ihr ihm
etwas von Liszt oder Chopin vorhämmert, sondern denkt daran, daß der eigne Herd zum
Kochen da ist!
(g) Glaubt ihr jedoch, die Hand werde euch rauh oder hart, wenn ihr selbst anfaßt, so hört,
was die Buchholzen euch sagt: Nicht die Hand ist es, welche koset und streichelt, sondern
die Liebe, welche die Hand leitet; ohne Liebe ist die zarteste Hand hart wie ein
Waschholz. Und nun geht an den Herd und lernt kochen. Das andere findet sich später.428
7) Gesundheit und Schönheit der Frau.

(a) Den Frauen und Mädchen wird in einer amerik. Kirchenzeitung, dem Independent, zu
Gemüte geführt, daß das beste Teil der körperlichen Schönheit die Gesundheit ist, und
daß Schönheit und Gesundheit inniger zusammen hängen, als man sich gewöhnlich klar
macht. Der Ausdruck blühender Gesundheit fehlt so oft den von Natur begünstigten
Amerikanerinnen, und sie verderben es nur noch mehr, wenn sie zu allerlei künstlichen
Mitteln ihre Zuflucht nehmen, statt naturgemäß die Gesundheit zu pflegen. Sowohl die
geistige Überanstrengung, wie die Art der Vergnügungen ist häufig tötliches Gift für
Gesundheit und Schönheit.
(b) Die Vergnügungen sollen “Erholungen” sein: wie oft muß man sich hinterher von
diesen Erholungen wieder erholen! Wo unverwelkte Gesundheit im Angesicht, im
Ausdruck der Züge, auf den Lippen, in der ganzen Gestalt wohnt, - es ist nicht zu sagen,

428
Cf. DA. Ano 21. Langenberg : Pastor Griesemann, outubro 1883. p.77.
206

wie anziehend, wie wohlthuend solche Erscheinung wirkt. Mit den “Schönheitsmitteln”
wird in Amer. schwerer Unfug getrieben. Da werden Regeln gegeben und befolgt, wie
folgende: Dicke Lippen sind durch Zusammendrücken zu reduzieren, dünne durch
Saugen zu modifizieren; die Hände sind jede Nacht mit Glycerin zu bestreichen und mit
Handschuhen zu bedecken; zum Waschen ist Hafermehlseife anzuwenden; die
Augenwimpern und –Brauen sind mit einer in warme Milch zu tauchenden Bürste von
Kameelhaaren zu reiben u.s.f. So sucht man sich in eine geborgte Schönheit
hineinzuzaubern. Der Zauber freilich bleibt aus!429

429
Cf. DA. Ano 21. Langenberg : Pastor Griesemann, abril 1883. p.31. O título deste artigo foi criado por mim.
207

8) Beispiele aus dem Himmel.

(a) Thu einen Blick in den Himmel! Siehe die Frau dort auf dem strahlenden Thron mit
der prachtvollen Krone! “Sag an, du erhabene Fürstin des Herrn, welche herrlichen Tha-
ten hast du auf Erden vollbracht, daß dir im Himmel solche glänzende Auszeichnung zu
teil wird?” “Ich bin dreißig Jahre lang arm und krank gewesen und habe mich in der Ge-
duld und Zufriedenheit geübt; auch habe ich manchmal von meinem Schmerzensbett aus
einen Trostbrief an andere geschrieben, die ebenfalls schwer zu leiden hatten; und einmal,
als ich etwas mehr Kraft hatte, habe ich für die arme Familie im Hinterhause eine Rock
genäht.”
(b) Weiter zu einem andern Thron! “Wer bist du, du herrlich strahlende Königin?” “Ich
war eine geringe Arbeiterfrau, die eine große Kinderschar in der Furcht des Herrn mit
vielem Gebet auferzogen hat; meine Söhne sind durch Gottes Gnade fromme Handwerker
und Arbeiter, und meine Töchter fromme Ehefrauen geworden.”
(c) Weiter zu einem dritten Thron! “Wer bist du, du hoher, edler Greis, der du leuchtest
wie die Sonne?” “Ich habe weiter nichts für den Herrn gethan, als daß ich eine Gruppe in
der Sonntagsschule hatte. Diesem Werk gehörte mein Herz, meine Liebe, mein Gebet!
Und ich war dem Herrn dankbar, daß ich diesen Dienst ihm leisten durfte.”430

430
Cf. DA. Ano 22. Langenberg : Pastor Griesemann, fevereiro 1884. p.14. O título foi criado por mim.

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