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A integração latino-americana:

da identidade à estrutura econômica


Alexandre Ganan de Brites Figueiredo
Amaury Patrick Gremaud
Márcio Bobik Braga

Detalhes do mural Presença da América Latina, de Jorge González Camarena,


foto de Farisoni/domínio público/Wikimedia Commons
resumo abstract

Este ar tigo discute o projeto This article discusses the integrationist


integracionista a partir de sua relação com project based on its relationship with
o conceito de “América Latina”. Assim, the concept of “Latin America”. Thus,
será abordada a evolução desse conceito the evolution of this concept will be
desde seu surgimento, em meados do addressed since its emergence in the mid-
século XIX, ainda como a expressão de nineteenth century, still as the expression
uma unidade pretensamente cultural, até of an allegedly cultural unit, until its
sua afirmação, pela Comissão Econômica affirmation, by the Economic Commission
para a América Latina (Cepal), em 1948, for Latin America (Cepal), in 1948, as an
como objeto de análise designador de object of analysis designator of the same
uma mesma estrutura econômica e economic and historical structure, shared
histórica, compartilhada por todos os by all countries in the region, despite their
países da região, em que pesem suas particularities. It is intended to demonstrate
particularidades. Pretende-se demonstrar that it was the process of consolidation
que foi o processo de consolidação of a continental identity that paved the
de uma identidade continental que way for the realization of more lasting
abriu o caminho para a concretização integration bodies. Finally, the successive
de organismos mais duradouros de waves of integration – and their ebbs –
integração. Por fim, as sucessivas ondas will be discussed in light of the current
de integração – e seus refluxos – serão challenges posed to two old projects: that
discutidas à luz dos atuais desafios of the existence of a “Latin American” unit
colocados a dois antigos projetos: o and that of its integration.
da existência de uma unidade “latino-
americana” e o de sua integração. Keywords: integration of Latin America;
Latin Americanism; Cepal; Latin American
Palavras-chave: integração da América economic thought.
Latina; latino-americanismo; Cepal;
pensamento econômico latino-americano.

Detalhes do mural Presença da América Latina, de Jorge González Camarena,


foto de Farisoni/domínio público/Wikimedia Commons
A
história da integração e transformações dos Estados nacionais,
latino-americana perfaz dezenas de tratados de união ou de integra-
um trajeto pendular, ora ção foram celebrados em diversos arranjos
caminhando na direção regionais, desde os sempre influentes, mas
de um movimento favo- nunca referendados, Protocolos do Istmo, de
rável mais intenso, ora 1826, até a constituição da União de Nações
dispersando-se. Já em Sul-Americanas – Unasul, em 2008, ora em
1913, Francisco Garcia descenso, aguardando um novo movimento
Calderón expressava esse do pêndulo. Se existe algo que caracteriza
paradoxo de uma região e dá personalidade a uma ideia de Amé-
capaz de conceber-se a si rica Latina, escrevia Leopoldo Zea, é o
mesma como uma identi- projeto integracionista (Zea, 1976, p. 36),
dade sem uma construção tão constante na história da região quanto
política que lhe desse vida institucional e, a resistência a ele.
ao mesmo tempo, capaz também de ver
esse projeto coexistir com tendências no
extremo oposto dessa ideia: “Brillantes
pensadores han comprendido que existe
un americanismo latino ante el cual son ALEXANDRE GANAN DE BRITES FIGUEIREDO
é professor do Programa de Pós-Graduação em
meras limitaciones provinciales las diferen- Integração da América Latina (Prolam/USP).
cias que separan a las repúblicas orgullo-
AMAURY PATRICK GREMAUD é professor
sas de su autonomía. Otros escritores no do Departamento de Economia da FEA-RP/USP,
menos vigorosos han defendido la idea de do Prolam-USP e do mestrado em Gestão
de Organizações de Saúde da Faculdade
nacionalidad contra una unidad que juz- de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP).
gan demasiado vaga o utópica” (Calderón,
MÁRCIO BOBIK BRAGA é professor
1987). Desde as independências até o pre- do Departamento de Economia
sente, pari passu o processo de consolidação da FEA-RP/USP e do Prolam/USP.

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Este artigo pretende compreender o pro- conceito complexo, para o qual convergem
jeto integracionista a partir de sua relação várias expressões do pensamento.
com o conceito de uma “América Latina”. No primeiro tópico, “‘América Latina’:
Assim, será abordada a evolução desse con- do conceito político e cultural à dimensão
ceito desde seu surgimento, em meados econômica”, apresentaremos o debate em
do século XIX, ainda como a expressão torno do surgimento do nome “América
de uma unidade pretensamente cultural, Latina” para, em seguida, discutirmos as
até sua afirmação, pela Comissão Econô- atribuições propriamente conceituais que
mica para a América Latina (Cepal), em essa expressão recebeu desde sua origem.
1948, como objeto de análise designador A intenção é demonstrar que esse conceito,
de uma mesma estrutura econômica e his- criticado por Alan Rouquié exatamente por
tórica, compartilhada por todos os países uma abertura de significados que lhe per-
da região, em que pesem suas particula- mite não ser “nem plenamente cultural,
ridades. O projeto unionista que remonta nem apenas geográfico” (Rouquié, 1992, p.
às independências é, portanto, anterior à 24), tem sua força justamente nessa capa-
ideia de uma unidade cultural, histórica cidade de comportar mais de uma defini-
e socioeconômica da região que integrava ção, ou melhor, de possuir uma definição
os antigos impérios ibéricos no continente aberta. Como será debatido, em um pri-
americano. Porém, foi o processo de con- meiro momento, ele tomará a forma de
solidação de uma identidade continental uma identidade em oposição aos Estados
que abriu o caminho para a concretização Unidos, unificando toda uma vasta região
de organismos mais duradouros de integra- multicultural em torno do objetivo comum
ção. Se na segunda metade do século XIX de fazer frente a agressões externas. Essa
surgiu o conceito de “América Latina”, foi definição pela oposição incorpora a lenta
em meados do século XX, com a fundação construção de uma identidade própria vinda
da Associação Latino-Americana de Livre- desde antes das independências.
-Comércio – Alalc, em 1960, que surgiu Já no segundo tópico, “‘América Latina’:
o primeiro grande acordo de integração um conceito para a integração e o desen-
regional dando consequência econômica volvimento”, pretendeu-se apresentar a
e política àquele conceito. forma pela qual o conceito de “América
Assim, este trabalho procura apresentar Latina” ganhou contornos econômicos e
a evolução de uma ideia que surgiu como estruturais mais precisos. As alterações tra-
proposta de identidade cultural continental zidas pelas guerras mundiais abriram novas
e chegou, menos de 100 anos depois, a possibilidades que, por sua vez, permitiram
embasar um ambicioso projeto político e que “América Latina” expressasse também
econômico. Destaca-se que a pesquisa parte uma estrutura econômica com caracterís-
do pressuposto de que “América Latina” ticas próprias, problemas e soluções ori-
não se refere apenas a uma região geo- ginais. O projeto “unionista” dos tratados
gráfica. Sua construção histórica recebeu do século XIX será sucedido pelo projeto
vertentes políticas, artísticas, filosóficas integracionista do século XX, constituído
e econômicas. Trata-se, portanto, de um graças também à consolidação do latino-

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-americanismo enquanto identidade regio- caminham – juntas. O delineamento do
nal. Ao fim, procuraremos demonstrar que sentido conceitual de “América Latina”
a ideia de integração da América Latina é vem acompanhado pelo debate em torno
imbricada no próprio conceito de “Amé- da expressão política consequência desse
rica Latina” enquanto identidade regional. conceito, que é a integração. Na histó-
ria latino-americana, quando o conceito
“AMÉRICA LATINA”: de América Latina foi mais difundido e
complexo, maior foi o esforço integracio-
DO CONCEITO POLÍTICO E
nista. Por outro lado, quando as respostas
CULTURAL À DIMENSÃO ECONÔMICA derivadas desse conceito foram replicadas
pelo insucesso conjuntural, a integração
Embora o tema da identidade dos perdeu força1.
povos dessa região que hoje chamamos de O Romantismo e o Positivismo foram,
América Latina estivesse presente mesmo no século XIX, respostas a essas ques-
antes das independências, foi o processo tões articuladas em grandes movimen-
de dissolução dos impérios coloniais ibé- tos de ideias (Zea, 1976). Já no plano
ricos que ampliou a discussão, fazendo político e econômico, a expressão do
com que justamente na dissolução fosse dilema identitário se desenvolveu com
encontrado um caminho de união. Mas, as tentativas constantes de se organizar
afinal, quem somos? O que somos? Qual um grande bloco regional que unificasse
a melhor forma política para os novos de alguma forma os Estados que surgi-
Estados? Quais decisões serão adequadas? ram da desintegração dos impérios ibéri-
Essas questões estiveram presentes desde cos na América e que, de alguma forma,
os intensos debates que acompanharam as estabelecesse um sistema de solidarie-
guerras de independência e as posteriores dade entre as nações recém-estabelecidas.
buscas pela consolidação de uma vida ins- Aliás, essa perspectiva de relacionamento
titucional estável e diferente dos marcos pacífico e de boa vizinhança entre os
coloniais. República ou monarquia, França Estados latino-americanos já estava pre-
ou Estados Unidos, economia aberta ou sente mesmo antes das independências,
fechada? Todos esses problemas foram como se vê, por exemplo, no Tratado de
formulados tendo como pano de fundo Madri, de 1750. Neste período, não se
outro que os antecede e para o qual, de falava em “América Latina”, optando-
uma forma ou de outra, cada escolha terá -se pela expressão América Meridional
uma resposta: somos um mesmo povo, para designar as regiões compreendidas
dividido em vários Estados? Ou, na versão do México à Patagônia, mas no tratado
poética formulada por Zea (1980) em sua se postulava que mesmo que os Estados
interpretação do pensamento de Bolívar:
se estivemos unidos na escravidão (colo-
nial), podemos estar unidos na liberdade?
1 No caso do Brasil, há um debate sobre a aceitação ou
Dessa forma, a identidade e a integra- não do pertencimento a uma “América Latina”: Bethell
ção foram questões que caminharam – e (2009).

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ibéricos entrassem em conflito, ou que mação de uma “Confederação Interame-


as regiões coloniais tivessem problemas ricana de Estados”, afinal o Brasil era
com suas metrópoles, as populações da uma monarquia e seu imperador ainda
América Meridional deveriam manter a tinha relações com as casas dinásticas
paz entre si e estabelecer relações de boa europeias, potenciais inimigos da indepen-
vizinhança (Aleixo, 1984). dência americana. Em relação aos EUA,
No contexto das lutas pelas indepen- também havia temores ante a doutrina
dências, várias lideranças propuseram Monroe recém-lançada (1823), a qual se,
algum arranjo nesse sentido, tais como por um lado, busca posicionar os EUA
Francisco de Miranda (1985, p. 13-19), como garantidor das independências na
Cecílio del Valle (2008), Bernardo de América contra o colonialismo europeu,
Monteagudo (1979) e, na América lusó- por outro, já suscitava ponderadas dúvidas
fona, José Bonifácio (Aleixo, 2000) e sobre o potencial novo colonialismo nor-
Silvestre Pinheiro Ferreira (Reza, 2009, te-americano. Participaram do Congresso
p. 102) que propõem, em 1822, um “Tra- o México, a República Centro-Americana,
tado de Confederação e Mútua Garantia a Grande Colômbia (então composta com
de Independência”. Contudo, foi Simón os atuais Colômbia, Venezuela, Equador e
Bolívar, principal entusiasta de um projeto Panamá) e o Peru. A Bolívia, recém-inde-
de unificação, que logrou promover o pri- pendente (1825), concordou em participar,
meiro congresso continental, realizado no mas não conseguiu enviar delegados a
Panamá, em 1826. Embora os aliados do tempo. O Brasil, os EUA, a Inglaterra e
poder imperial houvessem sido derrotados a Holanda foram convidados na condição
definitivamente em dezembro de 1824, a de observadores.
soberania daqueles Estados ainda estava Os resultados ficaram aquém das ambi-
ameaçada. Tanto havia o risco de uma ções: os quatro tratados assinados versa-
nova agressão externa, conduzida pelas vam sobre a formação de uma organização
potências da Santa Aliança, como havia o internacional, congregando a representação
perigo de conflitos internos em virtude de dos Estados-membros, além de disposições
temas como a delimitação de fronteiras, militares para defesa contra agressores,
dentre outros. Foi nessa conjuntura que acordos de preferências para o comércio
a identidade “americana” (ainda sem o regional, dentre outros. Apesar de não
“latina”), em oposição ao europeu/espa- corresponderem ao que Bolívar desejava e
nhol, ganhou sua expressão política nos de nunca terem sido ratificados, demons-
tratados assinados no Panamá, em 1826, trando que a existência de rivalidades e os
sob patrocínio de Bolívar, os chamados problemas para se chegar a uma solução
Protocolos do Istmo. consensual entre projetos locais, a rigor
Como é próprio da história da inte- muito diversos, dificultavam o processo
gração na região, nem todos aderiram de integração, esses tratados são a pedra
ao projeto proposto por Bolívar. Além basilar da integração e de uma expres-
disso, havia dúvidas sobre quem incluir são consequente da identidade regional
no Congresso e quem envolver na for- (Figueiredo, 2017). Durante o século XIX,

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sempre que houve algum risco à sobera- mesmo que não tenham sido ratificados
nia, os Estados afirmariam novamente a nem levado a uma organização política
necessidade de um acordo de integração. efetiva, contribuíram para um sentimento
Congressos continentais com essa pre- de solidariedade na América dita meri-
tensão foram realizados, com maior ou dional e de distanciamento com relação
menor adesão, em 1847-48 (Lima), em aos EUA. Existe uma tendência a sepa-
1856 (Santiago do Chile) e em 1864-65 rar uma concepção de integração inspi-
(Lima). Neste último encontro chegou-se rada em Simón Bolívar, envolvendo os
a assinar um tratado de União e Aliança Estados originados da desintegração dos
Defensiva, mas não foi ratificado. antigos impérios ibéricos na América, e o
Um arranjo mais estreito de unidade “monroismo”, com traços mais ou menos
encontrava obstáculos menos na ausên- imperialistas, e que acabará por levar ao
cia de um sentimento de unidade que na pan-americanismo. O distanciamento em
economia. A rigor, a reorganização das relação aos Estados Unidos está presente
economias da região na vida independente também no desenvolvimento do próprio
forjou o que Donghi chamou de “ordem conceito de América Latina que surgirá
neocolonial”, na qual os Estados latino-a- na segunda metade do século XIX.
mericanos foram integrados ao capitalismo Sua origem é envolta em um debate his-
internacional na condição de exportadores toriográfico: seria um termo cunhado pelo
primários (Donghi, 1985). A consequên- imperialismo francês de Napoleão III para
cia para um projeto de integração foi a justificar suas pretensões junto às antigas
que Celso Furtado expressou: forjaram- colônias espanholas, se contrapondo inclu-
-se economias concorrentes, disputando sive à doutrina Monroe e ao pan-america-
os mesmos mercados centrais para seus nismo, ou seria um conceito elaborado por
produtos primários (Furtado, 2007). Nes- intelectuais da própria “América Latina”,
sas condições, não haveria base ou fun- no intuito de afirmar uma identidade par-
cionalidade para a consolidação de um ticular diante do mundo? Uma interpreta-
acordo regional, já que a unidade não se ção muito difundida (e contestada) é a do
expressaria na materialidade da estrutura historiador norte-americano John Leddy
econômica, que também é um processo Phelan (1993). Segundo ele, a expressão
social. Assim, um apelo pela unidade, “América Latina” teria sido cunhada para
mais político e cultural e desprovido de legitimar as pretensões expansionistas
base econômica, encontrava obstáculos do II Império Francês (1852-1870), sob
para avançar. o regime de Napoleão III. Phelan identi-
Destaque-se que muitas dessas tenta- fica Michel Chevalier, intelectual e político
tivas de acordo respondiam a contextos francês ligado às correntes “pan-latinas”
de agressão, como a independência do que encontraram ressonância na corte de
Texas e a guerra dos Estados Unidos Luís Bonaparte, como o autor do conceito.
contra o México, o desembarque de fli- Durante a década de 1830, Chevalier havia
busteiros norte-americanos na América realizado uma viagem aos Estados Unidos,
Central, dentre outras. Esses tratados, México e Cuba e publicara um livro com

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suas impressões. É nesta obra (Lettres sur Revue des Races Latines (Phelan, 1993, p.
l’Amerique du Nord), de 1836, que ele teria 473). Nas décadas seguintes, o termo teria
feito pela primeira vez a distinção entre sido adotado tanto pela intelectualidade
uma América protestante e anglo-saxônica francesa como pela americana.
e uma América católica e latina. Assim, em sua origem, a expressão
Chevalier propôs, na década de 1850, “América Latina” seria própria de uma
uma política externa “pan-latina” para a visão eurocêntrica e colonialista. Não sem
França, partindo do pressuposto de teo- razão, muitas críticas a essa nomenclatura
rias raciais em voga na época. A Europa, surgirão posteriormente, dada a exclu-
dizia, estava dividida entre três “raças”: os são imensa que ela comporta da vasti-
anglo-saxões ou germânicos, os eslavos e dão da cultura da região, como os povos
os latinos, sendo que Inglaterra, Rússia e originários, os que vieram escravizados
França eram os Estados que lideravam cada da África, dentre outros que não podem
um desses blocos. A “latinidade” ampara- ser reduzidos àquela ideia de “latini-
va-se no compartilhamento de um mesmo dade”. Sintomático, aliás, que um autor
tronco linguístico, de uma origem política da segunda metade do século XIX, cer-
comum na Roma Antiga e de uma mesma tamente conhecedor do termo “América
religião, a católica. Caberia à França lide- Latina”, tenha preferido não utilizá-lo.
rar o bloco “latino”, composto ainda de José Martí, em sua crítica aos “pensa-
Portugal, Espanha, Bélgica, Itália e até dores raquíticos, os pensadores de lam-
mesmo a Áustria. Além disso, caberia tam- piões” que “tecem e requentam as raças
bém a ela estar presente junto aos Estados de livraria”, preferirá, em texto de 1891,
“latinos” da América, para defendê-los do a expressão “Nossa América” em oposi-
expansionismo dos “anglo-saxões” (Phelan, ção a uma outra América, que não seria
1993, p. 473). É com essa política que a “nossa”, ao norte (Martí, 1985).
França embarcou na frustrada invasão do A tese segundo a qual a ideia de uma
México que depôs o governo republicano “América Latina” teria a origem apontada
para instaurar um novo império sob a por Phelan foi contestada pelo filósofo e
coroa de um príncipe Habsburgo, Maxi- historiador uruguaio Arturo Ardao (1980),
miliano I. Como legado desse intento, um dos intelectuais que, juntamente com
teria restado o nome “América Latina”, Leopoldo Zea, levaram adiante o que foi
uma construção ideológica do pensamento chamado de movimento latino-americano
francês e seu projeto neocolonial. Cheva- de História das Ideias, ele próprio um
lier não chegou a utilizar o termo como marco para a consolidação, na filosofia
um substantivo próprio, mas sim como e na história, do conceito de América
um adjetivo: haveria uma Europa “latina” Latina (Carvalho, 2009). Na obra Géne-
como haveria uma América “latina”. Foi sis de la Idea y el Nombre de America
um intelectual de seu círculo, L. M. Tis- Latina (1980), Ardao defende que o termo
serand, que o teria empregado pela pri- é de autoria de intelectuais hispano-ame-
meira vez como nome próprio, “l’Améri- ricanos, preocupados com a questão da
que Latine”, em 1861, em artigo na revista identidade da região e já antevendo uma

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necessária unidade contra o expansionismo dos surgidos da desintegração do Império
dos Estados Unidos. Assim, a conceituação espanhol (Mix, 2004). Bilbao teria empre-
ganha uma origem radicalmente diversa da gado o termo “latina” para essa região da
proposta por Phelan e se filia ao início América meses antes de Torres Caicedo
de uma tradição integracionista. e com o mesmo intuito de fazer frente à
O primeiro a usar o termo “América expansão dos Estados Unidos. Temeroso
Latina” teria sido o colombiano José quanto às incursões militares patrocinadas
Maria Torres Caicedo, em um poema por norte-americanos, especialmente as do
de 1856 intitulado Las dos Americas 2 , flibusteiro William Walker na América
uma advertência contra a ameaça repre- Central, ele também defendeu a forma-
sentada pelos Estados Unidos. Assim, ção de uma integração dos Estados da
embora houvesse, como é inegável, um região com união aduaneira, política e
movimento “pan-latino” na França, a iden- mesmo uma força armada conjunta. “Uno
tificação do termo “América Latina” com es nuestro orígen y vivimos separados.
a região se deu para unificar e impedir Uno nuestro bello idioma y no nos habla-
novas agressões, e não para justificar mos”, discursou (Bilbao, s/d, p. 109).
uma nova potência colonial. Na década Mais do que a autoria de um nome,
de 1860, Caicedo ainda publicará traba- o que importa é seu significado. Ardao
lhos em defesa da organização de uma menciona desde o título de sua obra a
instituição que unificasse econômica e formação da “ideia” e do “nome” da Amé-
politicamente a América Latina, anteci- rica Latina, ou seja, considera que ambas
pando, para a região, temas que seriam as categorias teriam histórias diversas.
retomados décadas mais tarde, como a Circulava já na Europa, especialmente
constituição de uma união aduaneira, uma no ambiente erudito de Paris, a ideia
cidadania comum e mesmo um tribunal segundo a qual o continente americano
supranacional (Caicedo, 1865). estaria dividido em duas partes muito
Nessa vertente que identifica entre diferentes, ao norte e ao sul. Conforme
hispano-americanos a autoria do nome, o expansionismo militar dos Estados Uni-
há ainda outros pensadores apontados dos avançou, consolidou-se essa percep-
como os primeiros a utilizarem a expres- ção e a busca de um conceito integrador
são América Latina. Miguel Rojas Mix se definiu também pela oposição àquele
defende que o verdadeiro autor teria sido expansionismo. Assim, embora o termo
o chileno Francisco Bilbao, ativista repu- “latino” possa, em uma leitura literal, ser
blicano e defensor da unidade dos Esta- excludente para a maioria da população
do continente que se pretende nomear, a
ideia que a história do pensamento fez se
encontrar com esse significante tem um
2 Diz o poema, em sua 24ª estrofe: “Mas aislados se en- caráter integrador e defensor da posição
cuentran, desunidos, / Esos pueblos nacidos para aliarse:
/ La unión es su deber, su ley amarse: / Igual origen dos povos do Sul.
tienen y misión; La raza de la América Latina / Al frente
tiene la sajona raza / Enemiga mortal que já amenaza /
À parte o debate em torno da autoria
Su libertad destruir y su pendón”. do conceito, sua difusão não foi grande

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no século XIX. Em verdade, ele viu cres- com os EUA (Bueno, Ramanzini Jr. &
cer a proposta rival: o pan-americanismo Vigevani, 2014).
(Ardao, 1986). Em 1889-90, por iniciativa Não obstante, o sentimento de oposi-
do governo dos Estados Unidos, aconteceu ção aos Estados Unidos ganhou fôlego. A
a Conferência Internacional de Washin- expansão militar já havia deixado prejuízos
gton. Era a primeira reunião da maio- políticos que as reuniões pan-americanas
ria dos Estados americanos. A pretensão buscavam superar. A guerra contra a Espa-
dos EUA, ecoando a Doutrina Monroe, nha em 1898, concluída com a anexação
era construir seu predomínio na região, de Cuba e Porto Rico pelos EUA na con-
antagonizando com a hegemonia inglesa dição de protetorados, havia gerado uma
que ainda se mantinha. Não foram assi- forte reação que reforçou o caminho para
nados tratados de comércio que dariam o latino-americanismo. Cuba e Porto Rico
tratamento favorecido à indústria norte-a- moviam suas tardias guerras de independên-
mericana em expansão após a Guerra de cia. Ao intervirem no processo, os Estados
Secessão, até porque a ideia de rebaixar Unidos mostravam uma face agressiva e
as tarifas de importação dos países lati- ameaçadora. Entre a intelectualidade, foram
no-americanos punha em xeque a própria muitas as manifestações contrárias a essa
fiscalidade destes países, dada a importân- medida, enfatizando o que seria a cultura
cia das tarifas aduaneiras nos orçamentos comum de origem ibérica e latina, agre-
(Saraiva, 2004). Porém, foi criada uma dida pelo expansionismo “anglo-saxônico”
Oficina Comercial das Repúblicas Ameri- (Royano, 2000). Foi nesse contexto que
canas, embrião da futura Organização dos surgiu Ariel, obra do uruguaio José Enri-
Estados Americanos (OEA). Além disso, que Rodó, publicada em 1900. Se nome
se consolidaria um espaço institucional e conteúdo são entes separados, no início
que falava em “Américas”, enfatizando a do século XX a ideia de uma “América
pluralidade, e não um grande bloco com Latina” se chamava “arielismo”. Ariel con-
identidade e interesses comuns. Os con- solidou a visão de uma identidade cultural
gressos de Estados “latino-americanos” regional, em oposição aos perigos trazidos
não mais se reuniram, mas sim ocorre- pelos Estados Unidos, e lhe deu grande
ram as reuniões pan-americanas. No pri- difusão. Mais que isso, a obra acentuava
meiro quarto do século XX aconteceram o que seria uma superioridade moral dos
algumas tentativas regionais de articula- latino-americanos diante do utilitarismo e
ção que não chegaram a abranger toda a materialismo do Norte. Conforme Krause,
América Latina e nem a plenamente se se Rodó não foi o autor do conceito de
concretizar. Pode-se destacar, neste sen- América Latina, foi certamente o primeiro
tido, o Pacto ABC entre Brasil, Argentina ideólogo do nacionalismo latino-americano
e Chile, que, além de prever a paz e a boa (2011, p. 37). Assim, em Ariel Rodó teria
vizinhança entre os três países, buscou concebido o argumento mais eficiente e
não se contrapor ao pan-americanismo, duradouro de uma união da região: sua dis-
no fundo alinhando-se às tentativas de tinção cultural e sua oposição, também em
acordos pacifistas que então se buscava termos culturais, aos Estados Unidos. As

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décadas finais do século XIX diminuíram acompanhada por uma sociedade mate-
a fé, então bastante difundida nos círculos rialista e utilitária. Por outro lado, na
cultos e liberais, no exemplo do “irmão América Latina predominariam o espí-
do Norte”. Uma ideia de certa unidade, rito e a elevação. Interessante notar que
que já fora utilizada durante as guerras a obra apresenta argumentos que, como
de independência para opor os “ameri- indica Ricupero (2016), já surgiam em
canos” (e ainda não “latino-americanos”) autores anteriores, como em Ruben Darío
aos espanhóis, volta à tona em uma nova e Paul Groussac, que também partiam das
consciência da agressão externa comum. imagens sugestivas de A tempestade. No
Trata-se ainda de uma reação intelectual mesmo sentido, pode-se citar também o
da “cidade letrada”, com ênfase na identi- brasileiro Eduardo Prado (2003), autor
dade cultural, mas já é um sentimento de de A ilusão americana, obra de 1893,
nacionalismo continental mais poderoso do crítica aos Estados Unidos e proibida de
que qualquer variante tentada durante o circular quando publicada. Uma década
século XIX. E a oposição aos EUA estava depois, outro brasileiro, Manoel Bom-
agora em seu cerne. fim, escreve A América Latina: males
Ariel tem a forma de um discurso de origem (2008), obra que denuncia o
cívico. A tese da obra afirma que havia colonialismo europeu como raiz dos pro-
se difundido no continente uma “nordo- blemas dos países latino-americanos, mas
manía”, em prejuízo do que os latino-a- que também adverte para os cuidados que
mericanos possuíam de mais elevado. Essa estes países devem ter em relação aos
“mania de norte” apresentava os Estados Estados Unidos. Contudo, foi somente a
Unidos como um modelo a ser copiado. partir de Rodó que o argumento ganhou
Haveria, nas elites dirigentes, uma vontade grande difusão. Com todas as críticas que
explícita de “deslatinizar” a América, eli- cabem e já foram feitas a Ariel, a obra
minar sua herança cultural ibérica e latina mantém o mérito de ter apresentado, no
para, com isso, ser conquistada pelo Norte início do século XX, o argumento de uma
sem que houvesse a necessidade de dis- identidade própria e elevada, além de um
parar um único tiro. A América Latina necessário distanciamento dos perigos que
seria herdeira do mundo clássico, os EUA os Estados Unidos representariam.
não. Essa seria a raiz de sua diferença e o A obra Ariel teve rápida difusão e edi-
motivo de não interessar aos “latinos” uma ções pelo continente, ganhando adesões e
assimilação cultural pelo Norte. Há em impulsionando movimentos. Um deles, de
Rodó uma valorização do legado ibérico suma importância para a modernização do
(típica do movimento posterior a 1898). ensino, teve início em Córdoba, com uma
Nesse sentido, há também uma inversão revolta dos estudantes contra a estrutura
da tradição vinda de Sarmiento (2010), no hierárquica e o currículo defasado da tra-
Cone Sul, segundo a qual o passado ibérico dicional universidade da cidade. A vitória
era um fardo a ser carregado e superado. dos estudantes cordobeses se difundiu e
Conforme Ariel, a riqueza dos Esta- deu forma ao movimento continental da
dos Unidos, que encantavam ao Sul, era Reforma Universitária, que encontrará no

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dossiê integração latino-americana

Peru dois pensadores que incorporaram o “AMÉRICA LATINA”: UM CONCEITO


conceito de América Latina: Victor Raúl
PARA A INTEGRAÇÃO
Haya de la Torre e José Carlos Mariáte-
ghi. Ambos utilizaram a ideia de América E O DESENVOLVIMENTO
Latina como categoria de análise, critican-
do-a, mas absorvendo o seu legado integra- Qualquer que seja o elemento dis-
cionista. Haya fundará o primeiro partido cursivo em torno do conceito de Amé-
continental, tendo como base o sentimento rica Latina, houve sempre a preocupação
de pertença à América Latina, a Alianza com algum tipo de vínculo “político”
Popular Revolucionária Americana (Apra). entre os Estados nacionais que formam
Por sua vez, Mariáteghi será o intelectual a região. Afinal, mesmo como expres-
que apresentará, pela primeira vez, uma são cultural (além de social e política),
construção teórica marxista a partir das o conceito demanda algum tipo de inte-
bases e fundamentos locais. resse comum que aproxime os objetivos
Contudo, neste momento o conceito regionais dos “projetos nacionais”. Antes
ainda padecia de um conteúdo mais amplo da Primeira Guerra Mundial, o modelo de
que a pretensa unidade cultural e soli- divisão internacional do trabalho pouco
dariedade histórica. Como falar em uma contribuiu para esta inserção. Não havia
América Latina de forma politicamente sentido pensar em vínculos produtivos entre
consequente apenas a partir desses fun- países produtores primários. Ser produtor
damentos? Em que pese a obra visionária primário significava, sob o ponto de vista
de estudiosos da economia, como o argen- político, ampliar os vínculos econômicos
tino Alejandro Bunge (1929) e o próprio nacionais com a Europa. Sob o ponto de
Haya de la Torre – que dizia em 1925 vista das ideias econômicas, significava
que “nuestro conflicto con los Estados seguir as recomendações da Escola Clás-
Unidos no es un conflicto de razas ni sica. Assim, defendia-se que garantido o
una cuestión de espíritu [...] es, pues, livre funcionamento das forças de mer-
fundamentalmente económico” (Haya de la cado, os países teriam garantido também
Torre, 1985, p. 75) –, predominava ainda o pleno emprego dos fatores de produção.
uma visão majoritariamente cultural do Por sua vez, garantido o livre-comércio
termo. Foi a partir do entreguerras, ainda internacional baseado no princípio dos
de modo incipiente, que o caminho para a custos comparativos de David Ricardo, a
América Latina passou a ser compreendido especialização decorrente representaria o
como econômico, pois o próprio conceito “equilíbrio ótimo”, sob o ponto de vista do
começa a ser definido a partir da iden- “bem-estar” econômico. Teoria e realidade
tificação com uma realidade histórica e pareciam caminhar juntas, pelo menos até
econômica comuns. As alterações do con- o final da década de 1920.
texto global, com as duas guerras mun- A Grande Depressão de 30 provocou
diais, abriram desafios, exigiram novas significativos abalos nas crenças e nas
respostas e trouxeram aquele conceito para práticas liberais. A crise mostrava que as
o centro do debate econômico. livres forças de mercado não eram sufi-

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cientes para garantir o pleno emprego durante seus primeiros anos, várias con-
dos fatores de produção, como previam ferências interamericanas foram promo-
os modelos liberais clássicos. No campo vidas e vários acordos foram estabeleci-
das ideias, surgia de forma impactante a dos, alguns com auxílio norte-americano
Teoria Geral de Keynes, que questionava ao desenvolvimento de infraestruturas e
a capacidade da economia neoclássica em atividades produtivas nos países latino-
explicar o desemprego. Sob o ponto de -americanos, mas sempre com a intenção
vista metodológico, Keynes deslocou o de atraí-los para uma aliança mais estreita
foco analítico do que hoje chamamos de com os EUA e fornecer matérias-primas
microeconomia, baseada nos comportamen- a este país durante os combates.
tos individuais, para a macroeconomia, A crise da década de 1930 também pro-
que passa a considerar a produção como vocou rupturas nas estruturas produtivas
um processo social. nacionais com importantes implicações
Várias foram as implicações teóricas sociais e políticas para os países latino-
decorrentes das ideias de Keynes. Uma -americanos. A queda na renda mundial
das mais importantes foi certamente o e o surgimento de medidas protecionistas
rompimento com a soberania da teoria do durante a crise resultaram em forte dimi-
laissez-faire ao considerar o Estado como nuição nos fluxos de comércio internacio-
agente coordenador das decisões econô- nal. Para os países produtores primários,
micas. Conforme destacou Celso Furtado, a crise levou a mudanças nas estruturas
“ao colocar em primeiro plano uma visão produtivas em direção à industrialização
global das decisões econômicas, cuja insu- substitutiva de importações, cuja intensi-
ficiência de coordenação seria a causa pri- dade dependeu do tamanho do mercado
mária do desemprego dos fatores, Keynes interno e da disponibilidade de recursos
restabeleceu a primazia do político sobre o e fatores, dentre outros. Este período foi,
econômico” (1980, p. 29). Abria-se assim para a América Latina, de “rupturas e
espaço para novas abordagens em torno das experimentações”, na expressão de Rose-
causas do desemprego e possibilidades das mary Thorp (1998, p. 103), e não passou
ações coordenadoras do Estado. Não seria despercebido pelos governantes e alguns de
exagero, aliás, afirmar que Keynes abriu o seus economistas que, mais tarde, seriam
caminho para a construção de uma Teoria definidos como desenvolvimentistas.
do Desenvolvimento Econômico que, como Ainda que o período de “ruptura e expe-
será discutido, tem profundo impacto no rimentação” tenha criado condições para
conceito de América Latina. uma maior diversificação produtiva nos
O próprio pan-americanismo e a política países produtores primários, a reconstrução
externa norte-americana durante a recu- da ordem capitalista mundial no pós-guerra
peração econômica e nos períodos que estava inclinada ao retorno do sistema de
antecederam a Segunda Guerra Mundial divisão do trabalho que prevaleceu antes do
basearam-se mais em negociações diplo- início da Grande Depressão. Esta hipótese
máticas e na colaboração econômica. À é sugerida pelas novas instituições criadas
medida que se aproximava a guerra e para a “reconstrução” de um capitalismo

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dossiê integração latino-americana

corrompido pelas guerras e depressão, Também a batalha para a criação de uma


como as regras do Acordo Geral de Tarifas comissão especial voltada para a Amé-
e Comércio (Gatt, na sigla em inglês), o rica Latina no seio das Nações Unidas,
Fundo Monetário Internacional (FMI) e assim como a comissão que existia para a
pela afirmação dos Estados Unidos como reconstrução europeia, foi justificada no
centro do capitalismo. Nesse novo mundo, sentido de verificar as necessidades desta
o modelo primário-exportador voltaria a região não em termos de reconstrução,
ocupar a posição de liderança. Porém, as mas para a promoção do seu desenvol-
consequências da diversificação produtiva vimento socioeconômico. Surgiu assim a
ocorrida em algumas das economias latino- Comissão Econômica da América Latina
-americanas no período entreguerras, aliada e Caribe (Cepal), cujos trabalhos terão
à necessidade de geração de empregos, influência decisiva na construção de uma
poderiam sugerir outro caminho: superar nova concepção de América Latina.
o modelo primário-exportador a partir da Criada em 1948, a Cepal tinha como
industrialização orientada pela intervenção objetivo assessorar os governos dos países
estatal. A industrialização surgia assim latino-americanos em questões econômicas.
como uma opção estratégica e que passava Sua influência, entretanto, iria além das
a contar com respaldo na economia, agora atividades de consultoria ao reformular,
também keynesiana. Por outro lado, era em seus primeiros documentos oficiais, o
claro que o desenvolvimento tecnológico conceito de desenvolvimento econômico e
ocorrido durante a guerra seria incorpo- suas implicações políticas e sociais. Além
rado às novas estruturas produtivas no pro- disso, no que toca diretamente ao tema
cesso de reconstrução e desenvolvimento dessa pesquisa, a Cepal teve importância
do pós-guerra. Se já havia uma defasagem fundamental. Até 1948, o conceito de Amé-
tecnológica enorme entre os países latino- rica Latina ainda não havia adquirido uma
-americanos ditos “em desenvolvimento” legitimidade e um reconhecimento amplos.
e os países chamados de “desenvolvidos” Com a Cepal, no marco institucional das
antes desta incorporação, com ela a dis- Nações Unidas, era a primeira vez que a
tância provavelmente se agigantaria. região passava a ser oficialmente desig-
Neste contexto, existe uma espécie nada como “América Latina”. Até então
de homogeneização das principais diplo- esse termo tinha dimensões culturais e
macias da América do Sul que buscam regionais evidentes. Já era questionado pela
incluir, entre outras, a temática do desen- limitação de confundir os povos coloniza-
volvimento econômico como elemento- dores e, principalmente, não destacar as
-chave no processo de reorganização e contribuições das populações autóctones
reconstrução internacional. Foi também e escravizadas que compõem estes países,
graças à atuação da diplomacia latino-a- além de excluir regiões como as antigas
mericana que o próprio Banco Mundial se colônias inglesas e holandesas. Contudo,
tornou não apenas um banco de recons- com o advento da Cepal o termo “Amé-
trução para o pós-guerra, mas sim um rica Latina” ganhou um reforço nos seus
banco de reconstrução e desenvolvimento. aspectos econômicos: além de definir

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países historicamente colonizados, onde blemas principais”, redigido por Raul Pre-
o trabalho compulsório imperava, “Amé- bisch e conhecido oportunamente como
rica Latina” passava a fazer referência aos o Manifesto latino-americano (Prebisch,
países do continente americano que busca- 2000, pp. 69-136). A oração inicial do
vam aprimorar ou acelerar seu desenvol- documento já apresentava sua disposição
vimento, superar sua dependência e seus justamente para confrontar a tese hege-
desequilíbrios sociais. Nesse aspecto, a mônica: “Na América Latina, a realidade
integração seria o complemento necessá- vem destruindo o antigo sistema da divi-
rio ao conceito, uma vez que esse projeto são internacional do trabalho, que, depois
de desenvolvimento econômico e social de adquirir grande vigor no século XIX,
se realizaria plenamente apenas com os continuou prevalecendo, em termos doutri-
benefícios da integração (por ex., Prebisch, nários, até data muito recente” (Prebisch,
2000, pp. 347-371). 2000, p. 71). Outro elemento importante
A questão do contraponto aos Esta- no início do Manifesto é a presença de
dos Unidos que o conceito trazia em si uma “América Latina” já considerada como
desde o nascimento era tão importante um bloco, com estrutura econômica e pro-
que Washington atuou fortemente para, blemas comuns. A percepção de Prebisch
primeiro, impedir a criação da Comissão acabou por nortear vários documentos da
e, derrotada, impedir que ela fosse bem- Comissão, que, apesar de se apresentarem
-sucedida (Dosman, 2011, pp. 267-339). Os como trabalhos de consultoria técnica, aca-
EUA alegavam que qualquer discussão do baram sendo considerados como os textos
gênero deveria se dar nos marcos da Orga- iniciais de uma teoria do desenvolvimento
nização dos Estados Americanos (OEA), econômico aplicada à América Latina. Ao
organização herdeira do conceito de pan-a- conceito identitário e pretensamente cultu-
mericanismo e também institucionalizada ral do século XIX, era então incorporada
naquele mesmo ano de 1948. Apesar dessa uma teoria econômica do desenvolvimento
oposição, a Cepal teve sucesso. Conduzida que oferecia uma resposta, em nome de
pelo economista argentino Raul Prebisch, toda a região, à posição predominante dos
produziu documentos que abriram novas países ricos no comércio internacional.
perspectivas analíticas acerca da condição A partir dessa nova definição, foi se
estrutural de atraso verificada nos países delineando uma visão latino-americana
latino-americanos, considerados já em seu sobre o mundo, responsável por inserir o
conjunto. Além disso, esses documentos tema do desenvolvimento e da desigualdade
seriam cruciais para a criação de uma ideo- entre os Estados no centro do debate inter-
logia que, contrapondo-se ao liberalismo nacional. O conceito de América Latina
até então predominante, seria favorável a tornou-se inseparável da teoria do desen-
uma integração regional. volvimento que o adotou e ampliou. Sob
O caráter “rebelde” da Cepal já se fazia o ponto de vista econômico, para Celso
sentir em seu primeiro documento, de 1949, Furtado (2007), egresso dos quadros da
intitulado “O desenvolvimento econômico Cepal, os países da região compartilhavam
da América Latina e alguns de seus pro- estruturas subdesenvolvidas e cristalizadas

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dossiê integração latino-americana

pelo sistema de divisão internacional do pelas estruturas subdesenvolvidas conso-


trabalho que vigorou até o início do século lidadas historicamente. A industrialização
XX. Essas estruturas eram caracterizadas substitutiva de importações, inicialmente
pela existência de um setor dinâmico, cujo motivada pela interrupção dos fluxos de
desempenho dependia do comportamento comércio internacional, criava demandas
da demanda dos países industrializados, e setoriais que não necessariamente seriam
de um conjunto pré-capitalista, em grande atendidas pela economia. Os problemas de
parte de subsistência e baixa renda. O pro- infraestrutura, por exemplo, poderiam limi-
blema dessa estrutura “dual” estaria na tar a expansão de determinadas atividades.
relação entre os dois conjuntos setoriais. Havia também o problema da dependência
Para Furtado, nos países do centro, o fluxo econômica externa pelo qual a industria-
de renda gerado pela produção industrial lização, ao demandar novas importações
se traduzia na diversificação da produção de máquinas, equipamentos e insumos não
voltada para o mercado interno, fazendo produzidos internamente, poderia agravar
com que aquele fluxo fosse totalmente fun- o desequilíbrio externo crônico (criado
cional ao desenvolvimento econômico. Já pela deterioração dos termos de troca).
na América Latina, a “periferia” do sis- Havia ainda como problema estrutural as
tema, a dinâmica se colocaria de forma reduzidas dimensões dos mercados nacio-
totalmente diversa. Nela, a renda gerada nais. Mercados reduzidos implicariam pior
pelo setor dinâmico não fluía com a mesma aproveitamento das economias de escala,
intensidade para os demais setores da eco- o que traria como resultado plantas pro-
nomia. O resultado seria o estabelecimento dutivas menos eficientes. Como resultado,
de uma estrutura dual pouco funcional ao novas indústrias teriam custos relativos
desenvolvimento econômico, marcada por maiores em relação àquelas já estabeleci-
essa convivência entre um setor dinâmico das nos países do centro. Sob o ponto de
e outro atrasado. Além disso, as estruturas vista regional, a industrialização poderia
primárias não favoreciam o surgimento aprofundar as desigualdades econômicas
de organizações sociais que permitissem na periferia... Nesse contexto, o conceito
uma luta política por melhor distribuição de América Latina ganha então um novo
da renda, como os sindicatos nos países significado econômico. A solução seria
industrializados centrais. A superação do conduzir a industrialização a partir de
subdesenvolvimento viria apenas como uma um sistema econômico regional integrado,
ruptura com o modelo primário-exporta- latino-americano. Ou seja, a integração
dor, possível apenas com a industrialização ideada no século XIX voltava a ser a con-
substitutiva de importações. sequência concreta da concepção de uma
Contudo, para Furtado, assim como para América Latina, porém agora como um
Prebisch, a industrialização por si só não projeto econômico.
era suficiente para romper a condição de “Integração econômica” e “América
atraso. A transformação de uma econo- Latina” já eram conceitos orientadores do
mia primário-exportadora em outra mais Manifesto apresentado por Prebisch em
diversificada poderia ser comprometida 1949. Com o aprimoramento da percep-

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ção acerca dos benefícios dessa integração, fundamentais da teoria do desenvolvimento
a Cepal lançou, em 1959, o documento econômico. Se o modelo primário-expor-
“O mercado comum latino-americano” tador conspirava contra a criação de um
(Prebisch, 2000), texto em que Prebisch projeto comum (ou um espaço unificado
concebe a criação de um “sistema econô- funcional), a industrialização demandava
mico latino-americano” como instrumento formas de cooperação regional e coordena-
para tornar mais eficientes os processos de ção dos projetos nacionais. Até mesmo por
industrialização. Em síntese, o documento isso, o projeto industrializante se encontrou
considera dois benefícios imediatos da inte- com o conceito de América Latina. Não à
gração econômica regional: a ampliação toa, um dos mais destacados economistas
dos mercados, tornando as indústrias lati- cepalinos considera a integração como uma
no-americanas mais eficientes, e o melhor “forma superior de planejamento econô-
aproveitamento das vantagens comparativas mico para o desenvolvimento” (Furtado,
“regionais”, possíveis apenas pela coorde- 1983). Em suma, foi pelas possibilidades
nação das ações dos Estados. O documento em torno da integração econômica que o
também considera as possibilidades em conceito de América Latina ganhou novos
torno das negociações no âmbito do Gatt, contornos e se adensou.
particularmente em torno dos crescentes Dotado desse viés, o pensamento da
subsídios agrícolas na Europa, e da acei- Cepal esteve presente em vários planos
tação de determinados aspectos dos planos nacionais de desenvolvimento econômico,
de desenvolvimento regionais (maior coo- levando consigo o consenso latino-ame-
peração internacional no âmbito das polí- ricanista. Sob o ponto de vista da con-
ticas desenvolvimentistas). Mas o grande vergência regional, entretanto, nenhum
objetivo da integração estaria na própria outro resultado foi mais significativo do
concepção do desenvolvimento cepalino. que os esforços em direção à criação de
As ações da Cepal sempre foram rela- um mercado comum. Esta hipótese pode
cionadas aos projetos de industrialização ser comprovada no Tratado de Montevidéu,
implementados na América Latina. Entre- que criava, em 1960, a Associação Latino-
tanto, o documento de 1959 coloca este -Americana de Livre-Comércio (Alalc),
objetivo em uma perspectiva diferente pela primeira organização de integração eco-
qual a industrialização não deveria ser um nômica regional. Ao considerar a libera-
fim em si mesma, mas um passo anterior lização comercial regional como parte de
para a criação de uma estrutura produtiva estratégias mais amplas de superação do
diversificada e voltada para o comércio subdesenvolvimento, a Alalc representava
internacional. A integração econômica o esquema de cooperação econômica mais
regional seria então uma forma de pro- audacioso de sua época. Era a consubs-
mover uma industrialização para fora (algo tanciação do projeto cepalino e também a
semelhante ao que farão posteriormente os primeira consequência político-econômica
Tigres Asiáticos e a China). Nesse sentido, da incorporação do conceito de “América
a cooperação econômica entre os países Latina” pelos Estados da região. A confor-
latino-americanos seria uma das questões mação de uma economia integrada passava

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dossiê integração latino-americana

necessariamente pela identidade comum tado previa esquemas de complementação


identificada no século XIX, reforçada por industrial, tratamento diferenciado para as
Rodó e outros no início do XX e adensada nações menos desenvolvidas, coordenação
pela teoria econômica cepalina. de políticas econômicas e um sistema de
Na Alalc, não se tratava apenas de compensação de pagamentos entre os ban-
um modelo previsto pelas novas regras cos centrais. Seus primeiros anos de exis-
de comércio internacional (especialmente tência foram de otimismo, particularmente
o capítulo XXIV do Gatt), mas sim de um em relação às concessões comerciais e aos
sistema econômico regional como parte acordos de complementação industrial (uma
de um processo de transformação estrutu- versão regional das atuais cadeias pro-
ral: do modelo primário-exportador para a dutivas globais). O discurso em torno de
industrialização, dentro de um arranjo de uma unidade latino-americana como uma
integração que pressupunha o conceito de possibilidade (teórica) contava agora com o
“América Latina” como a “Pátria Grande”. respaldo de um processo real. Em 1962, a
Seus aspectos comerciais, muito mais do união entre o identitarismo do século XIX
que expressar as livres forças do mercado e o pensamento econômico do século XX
regional, estavam condicionados às políti- estava presente em discurso pronunciado
cas de industrialização conduzidas pelos pelo então presidente do Banco Interame-
Estados nacionais. Como vimos, sob o ricano de Desenvolvimento, o economista
ponto de vista econômico, o objetivo do chileno Felipe Herrera. Ele, que já fora
modelo de integração latino-americana ministro da Fazenda e presidente do Banco
(seguindo os preceitos da Cepal) seria Central de seu país, ecoava os pensadores
tornar a industrialização mais eficiente a do século XIX ao afirmar que “no es una
partir da criação de um mercado unificado entidad ficticia la nación latinoamericana.
mais amplo e favorável à exploração das Subyace en la raíz de nuestros Estados
economias de escala nas novas indústrias. modernos, persiste como fuerza vital y rea-
Em uma perspectiva mais ampla, a integra- lidad profunda”. A América Latina seria,
ção teria como objetivo maior a superação na definição de Herrera, “una gran nación
do subdesenvolvimento latino-americano a deshecha” (Pinedo C., 2009, p. 167).
partir da criação de mecanismos de coor- Infelizmente – e seguindo também aqui o
denação regional. caminho dos arranjos dos congressos conti-
O Tratado de Montevidéu foi assinado nentais do século XIX – os acordos previs-
pelos governos da Argentina, Brasil, Chile, tos no Tratado de Montevidéu nunca foram
México, Paraguai, Peru e Uruguai. Pos- cumpridos. Dentre as múltiplas explicações,
teriormente, aderiram a Colômbia, em podem ser consideradas as incertezas em
1961, o Equador, em 1962, a Venezuela, relação aos ganhos (compartilhadas princi-
em 1966, e a Bolívia, em 1967. Era mais palmente pelas economias menos desenvol-
amplo que qualquer um dos congressos vidas) e a conjuntura política marcada pela
realizados no século XIX. Além da libera- instauração de governos ditatoriais por toda
lização do comércio regional, que deveria a região. No plano político, o alinhamento
ocorrer em um prazo de 12 anos, o tra- dessas ditaduras a Washington contribuiu

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para arrefecer o projeto latino-americanista ção do Sistema Econômico Latino-Ame-
de integração, que nunca interessou aos ricano e Caribenho (Sela), em 1975, além
Estados Unidos e que continuava a enfa- das tentativas de integração na América
tizar a estratégia pan-americanista. Central (MCCA) e no Caribe (Caricom).
Durante a década de 1980, o esgota- Também dois pactos foram instituídos neste
mento do processo de industrialização por período, o Pacto Andino e o Pacto Amazô-
substituição de importações em vários paí- nia, ambos envolvendo regiões específicas
ses, junto com as crises macroeconômi- da América Latina, o que demostra que,
cas (inflação, dívida externa etc.), parecia apesar de traços de unidade, seus países
tornar sem sentido a integração como ins- também apresentam diferenciações impor-
trumento de transformação das estrutu- tantes que levam à criação de regionalismos
ras. Ainda assim, não é possível deixar e a processos de integração sub-regionais,
de perceber que, mesmo sem alcançar dadas as especificidades e a existência de
seus objetivos, alguns resultados práticos assimetrias importantes.
do Tratado de Montevidéu continuam se À parte a questão dos resultados e a movi-
fazendo presentes nas relações entre os paí- mentação no sentido de acordos em regiões
ses latino-americanos, como os acordos de específicas e não pertinentes a toda a América
complementação industrial e entre bancos Latina, talvez a grande influência da Cepal e
centrais. A partir do reconhecimento das de seu projeto de integração no contexto de
dificuldades dos países em cumprir metas uma teoria do desenvolvimento econômico
para a liberalização comercial, a Alalc tenha sido reforçar a importância da existência
foi substituída, em 1982, pela Associação de uma unidade latino-americana. Este resul-
Latino-Americana de Integração – Aladi, tado ficou visível no contexto do retorno da
com objetivos mais modestos em termos ideologia liberal, ou neoliberalismo, a partir
de metas, porém como órgão coordenador da propagação do programa de reformas do
(facilitador) da integração (pelo estabele- chamado Consenso de Washington. Vindo da
cimento de regras). década de 1990, ele permanece, com idas e
Com o fim do período ditatorial e a vindas, até os dias atuais. O notável é que,
redemocratização, a possibilidade de inte- nesse momento, em contraste com o período
gração “ressurge” com o Mercosul, estrutu- da soberania da ideologia liberal clássica e
rado a partir da reaproximação entre Brasil neoclássica que vigorou até a década de
e Argentina já nos anos 80. O Mercosul faz 1930, a ideia e funcionalidade do conceito
parte daquilo que alguns analistas (Dabène, de América Latina com sua consequente
2012; Briceño-Ruiz, 2018) chamam de “nova defesa de uma unidade latino-americana, pelo
onda de regionalização” que afetou a Amé- menos em parte, fazem frente a esse novo
rica Latina. A primeira onda teria envolvido predomínio liberal. Se a América Latina e sua
justamente a integração influenciada pela integração não encontravam espaço no mundo
Cepal e um ideário de reestruturação do do modelo primário-exportador e defensor do
desenvolvimento econômico, que tem como livre-comércio, hoje essa ideia baliza assim
marco principal a criação da Alalc, mas como é balizada pelo neoliberalismo, ainda
que possui outras ações como a institui- que adaptada. Se no pós-Segunda Guerra

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dossiê integração latino-americana

Mundial esta unidade tinha como objetivo dificultam a coordenação de políticas na


aprofundar as transformações estruturais região e podem explicar um processo de
em direção a uma reorganização e diver- integração fragmentária.
sificação produtiva, agora ela também é A concepção de ondas de integração
apresentada como aliada às reformas de pode parecer enganadora na medida em
mercado. No âmbito da economia, surge a que permite uma ideia de idas e vindas
concepção do Regionalismo Aberto (aliás, ou de avanços e recuos num processo
conceito também considerado pela própria único que tem retrocessos, seguido por
Cepal), que busca compatibilizar estra- retomadas e ampliações geográficas e de
tégias de integração com os movimen- escopo, o que parece não ser o caso do
tos de abertura comercial e financeira. processo de integração latino-americano.
O regionalismo aberto marca esta nova Estas ondas se dão num mar revolto, com
onda de integração (Dabène, 2012), no vários acordos distintos se sobrepondo, uns
qual o Mercosul, no Cone Sul, e o Nafta, sendo criados, outros encerrados, alguns
na América do Norte, são os principais permanecendo “em suspenso” para serem
exemplos, mas também podem ser incluí- retomados posteriormente e, em seguida,
das as revisões nos acordos centro-ame- voltarem a ser reestruturados ao mesmo
ricanos, caribenhos e andino3. tempo em que um acordo parelho é rea-
Um aspecto importante a destacar é que, lizado. Até onde essa fragmentação pode
especialmente depois da crise da dívida significar uma erosão do próprio conceito
externa e da ascensão das políticas libe- de América Latina do ponto vista econô-
rais, segundo alguns autores, a reação dos mico depende de até onde questões como
países passou por diferenciações importan- o subdesenvolvimento, a vulnerabilidade
tes. Em alguns, existe uma incorporação externa, os desequilíbrios estruturais inter-
mais profunda dos princípios, instituições nos, as persistentes desigualdades – agora
e políticas liberais, enquanto em outros, ampliadas de sentidos –, além de questões
apesar do avanço dessas instituições, nota- culturais e ambientais, permitam imaginar
-se uma resistência maior à sua incorpora- que existem elementos sociais unificadores
ção. Bizberg (2015), por exemplo, aponta capazes de manter a ideia de se buscar um
a existência de uma variedade de capita- desenvolvimento socioeconômico latino-
lismos na América Latina nas primeiras -americano. A rigor, juntamente com os
décadas do século XXI. Estas diferenças aspectos políticos e culturais, são essas
questões que continuam a dar sentido à
ideia de América Latina.
Por fim, no início do novo século os
3 Dabène (2012) vê uma segunda onda de integração analistas destacam uma nova onda de inte-
revisionista com a reformulação da Alalc em Aladi
e marcada pela proliferação de acordos bilaterais gração. Por um lado, houve uma tentativa
ou regionais que envolvem basicamente a crise das de retomada da ideia pan-americana com
tentativas de reestruturação econômica desenvolvi-
mentistas e depois uma terceira onda, marcada por a Área de Livre-Comércio das Américas
esta relação entre a integração e os movimentos
neoliberais; neste contexto, o Mercosul e o Nafta são
(Alca), ainda dentro do contexto de regio-
os grandes exemplos. nalismo aberto. A reação de parte dos paí-

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ses latino-americanos se contrapondo a essa o movimento do pêndulo voltará a mudar
iniciativa (e a derrotando) suscitou que de direção, mantendo vivo o conceito de
outros países procurassem ainda manter América Latina indissociável, como sempre
essa perspectiva em arranjos diferentes, esteve, do projeto de integração.
o que pode ser uma interpretação para a
Aliança do Pacífico. Por outro lado, porém,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
se mostraram crescentes algumas tentativas
de integração pós-liberal que retomam um
princípio de unidade contra-hegemônica, A “América Latina” é, portanto, mais
como a Alba, a Celac e, especialmente, um projeto que uma indicação geográfica.
a Unasul, constituindo uma nova onda de Quer tenha surgido para dar legitimidade
integração que passou a ser considerada ao expansionismo do Império francês, quer
justamente como pós-liberal ou pós-hege- tenha para atribuir uma identidade unitá-
mônica (Briceño-Ruiz, 2021). ria a uma plêiade de povos que comparti-
Em grande complexidade, essa nova lham um mesmo passado colonial e lidam
onda de integração convive com meca- com uma mesma ameaça, esse conceito foi
nismos sobreviventes das ondas anterio- desde o início um projeto a ser construído.
res, além de retomar e ressignificar, em No século XIX, ele incorporou o ideal
concepção mais ampla, o próprio conceito unionista, que vem desde as independên-
de América Latina (mesmo que por vezes cias, e também as reuniões de congressos
se recue para envolver apenas a América continentais, cujas propostas não foram
do Sul, em atenção pragmática à influên- adiante por esbarrarem contra uma estru-
cia norte-americana através do Nafta, na tura econômica primário-exportadora que
América do Norte, Central e Caribe). Essa tornava concorrentes os países que fala-
nova onda de integração apresentou um vam em unidade. Além disso, rivalidades
caráter mais abrangente, em que as ques- locais, que conduziram a guerras entre os
tões socioculturais e políticas passaram a Estados da região, também ampliavam as
integrar de maneira mais importante as dificuldades na consolidação de uma con-
agendas. Por outro lado, também se assume sequência política e econômica ao latino-
um caráter mais pragmático com a colo- -americanismo. De todo modo, o conceito
cação em ação, por exemplo, de projetos conseguiu se consolidar como um projeto
de infraestrutura (muitas vezes usando um identitário e cultural. Com todas as limita-
acordo anterior, como o IIRSA), de modo ções que esse termo, “latina”, possa com-
a viabilizar e estreitar as oportunidades portar, é certamente um bem-sucedido caso
de contato e intercâmbio. Estes projetos, de nacionalismo continental que abarca,
contudo, dependiam fortemente de alguma em sua conceituação, muito mais do que
convergência no ideário político dos países. a limitação do termo indica.
Quando, na última década, grande parte No século XX, quando a crise de 1929
deles sofreu fortes perturbações no sentido e as guerras mundiais alteraram as relações
oposto, o ideário se desfez, a onda recuou. econômicas entre os países, foi aberto um
Resta saber quando e com qual intensidade espaço novo para o conceito se afirmar,

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junto com o projeto industrializante que multiplicidade de tratados que sucedem à


também foi um projeto de independência Alalc – como a Aladi, o Mercosul, a Comu-
diante do centro. Se na economia primá- nidade Andina, dentre outros na “sopa de
rio-exportadora a integração era fraca ou letras da integração regional” (Malamud,
inexistente e o conceito de América Latina 2009, p. 99) – tem na sua quantidade uma
tinha conotação mais política e cultural, demonstração das dificuldades para imple-
no pós-guerra, uma economia de inci- mentar esse projeto, é também verdade que
piente industrialização permitiu a adesão todos fazem referência à ideia de “América
a uma integração forte e a consolidação do Latina”. Certamente é um conceito consoli-
conceito de América Latina. Nesse novo dado, embora não o seja enquanto projeto.
momento, ele vem acompanhado por uma Hoje, em um contexto no qual a última
teoria econômica do desenvolvimento, que onda de integração vinha refluindo, cabe
é a outra face da identidade cultural. Ao perguntar sobre o futuro dessa ideia. Haverá
acrescentar a teoria econômica ao latino- ainda uma integração latino-americana e
-americanismo, os economistas da Cepal mesmo uma “América Latina”? A resposta
completaram a construção do conceito. passará pela capacidade das novas gerações
Mais que isso, permitiram a articulação incorporarem mais elementos e teorias a
dos primeiros acordos de integração efetivos esse conceito vivo e entranhado na história
da história da região. Se é verdade que a dos países da região.

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