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Figueiredo Gremaud Braga 2023
Figueiredo Gremaud Braga 2023
Este artigo pretende compreender o pro- conceito complexo, para o qual convergem
jeto integracionista a partir de sua relação várias expressões do pensamento.
com o conceito de uma “América Latina”. No primeiro tópico, “‘América Latina’:
Assim, será abordada a evolução desse con- do conceito político e cultural à dimensão
ceito desde seu surgimento, em meados econômica”, apresentaremos o debate em
do século XIX, ainda como a expressão torno do surgimento do nome “América
de uma unidade pretensamente cultural, Latina” para, em seguida, discutirmos as
até sua afirmação, pela Comissão Econô- atribuições propriamente conceituais que
mica para a América Latina (Cepal), em essa expressão recebeu desde sua origem.
1948, como objeto de análise designador A intenção é demonstrar que esse conceito,
de uma mesma estrutura econômica e his- criticado por Alan Rouquié exatamente por
tórica, compartilhada por todos os países uma abertura de significados que lhe per-
da região, em que pesem suas particula- mite não ser “nem plenamente cultural,
ridades. O projeto unionista que remonta nem apenas geográfico” (Rouquié, 1992, p.
às independências é, portanto, anterior à 24), tem sua força justamente nessa capa-
ideia de uma unidade cultural, histórica cidade de comportar mais de uma defini-
e socioeconômica da região que integrava ção, ou melhor, de possuir uma definição
os antigos impérios ibéricos no continente aberta. Como será debatido, em um pri-
americano. Porém, foi o processo de con- meiro momento, ele tomará a forma de
solidação de uma identidade continental uma identidade em oposição aos Estados
que abriu o caminho para a concretização Unidos, unificando toda uma vasta região
de organismos mais duradouros de integra- multicultural em torno do objetivo comum
ção. Se na segunda metade do século XIX de fazer frente a agressões externas. Essa
surgiu o conceito de “América Latina”, foi definição pela oposição incorpora a lenta
em meados do século XX, com a fundação construção de uma identidade própria vinda
da Associação Latino-Americana de Livre- desde antes das independências.
-Comércio – Alalc, em 1960, que surgiu Já no segundo tópico, “‘América Latina’:
o primeiro grande acordo de integração um conceito para a integração e o desen-
regional dando consequência econômica volvimento”, pretendeu-se apresentar a
e política àquele conceito. forma pela qual o conceito de “América
Assim, este trabalho procura apresentar Latina” ganhou contornos econômicos e
a evolução de uma ideia que surgiu como estruturais mais precisos. As alterações tra-
proposta de identidade cultural continental zidas pelas guerras mundiais abriram novas
e chegou, menos de 100 anos depois, a possibilidades que, por sua vez, permitiram
embasar um ambicioso projeto político e que “América Latina” expressasse também
econômico. Destaca-se que a pesquisa parte uma estrutura econômica com caracterís-
do pressuposto de que “América Latina” ticas próprias, problemas e soluções ori-
não se refere apenas a uma região geo- ginais. O projeto “unionista” dos tratados
gráfica. Sua construção histórica recebeu do século XIX será sucedido pelo projeto
vertentes políticas, artísticas, filosóficas integracionista do século XX, constituído
e econômicas. Trata-se, portanto, de um graças também à consolidação do latino-
suas impressões. É nesta obra (Lettres sur Revue des Races Latines (Phelan, 1993, p.
l’Amerique du Nord), de 1836, que ele teria 473). Nas décadas seguintes, o termo teria
feito pela primeira vez a distinção entre sido adotado tanto pela intelectualidade
uma América protestante e anglo-saxônica francesa como pela americana.
e uma América católica e latina. Assim, em sua origem, a expressão
Chevalier propôs, na década de 1850, “América Latina” seria própria de uma
uma política externa “pan-latina” para a visão eurocêntrica e colonialista. Não sem
França, partindo do pressuposto de teo- razão, muitas críticas a essa nomenclatura
rias raciais em voga na época. A Europa, surgirão posteriormente, dada a exclu-
dizia, estava dividida entre três “raças”: os são imensa que ela comporta da vasti-
anglo-saxões ou germânicos, os eslavos e dão da cultura da região, como os povos
os latinos, sendo que Inglaterra, Rússia e originários, os que vieram escravizados
França eram os Estados que lideravam cada da África, dentre outros que não podem
um desses blocos. A “latinidade” ampara- ser reduzidos àquela ideia de “latini-
va-se no compartilhamento de um mesmo dade”. Sintomático, aliás, que um autor
tronco linguístico, de uma origem política da segunda metade do século XIX, cer-
comum na Roma Antiga e de uma mesma tamente conhecedor do termo “América
religião, a católica. Caberia à França lide- Latina”, tenha preferido não utilizá-lo.
rar o bloco “latino”, composto ainda de José Martí, em sua crítica aos “pensa-
Portugal, Espanha, Bélgica, Itália e até dores raquíticos, os pensadores de lam-
mesmo a Áustria. Além disso, caberia tam- piões” que “tecem e requentam as raças
bém a ela estar presente junto aos Estados de livraria”, preferirá, em texto de 1891,
“latinos” da América, para defendê-los do a expressão “Nossa América” em oposi-
expansionismo dos “anglo-saxões” (Phelan, ção a uma outra América, que não seria
1993, p. 473). É com essa política que a “nossa”, ao norte (Martí, 1985).
França embarcou na frustrada invasão do A tese segundo a qual a ideia de uma
México que depôs o governo republicano “América Latina” teria a origem apontada
para instaurar um novo império sob a por Phelan foi contestada pelo filósofo e
coroa de um príncipe Habsburgo, Maxi- historiador uruguaio Arturo Ardao (1980),
miliano I. Como legado desse intento, um dos intelectuais que, juntamente com
teria restado o nome “América Latina”, Leopoldo Zea, levaram adiante o que foi
uma construção ideológica do pensamento chamado de movimento latino-americano
francês e seu projeto neocolonial. Cheva- de História das Ideias, ele próprio um
lier não chegou a utilizar o termo como marco para a consolidação, na filosofia
um substantivo próprio, mas sim como e na história, do conceito de América
um adjetivo: haveria uma Europa “latina” Latina (Carvalho, 2009). Na obra Géne-
como haveria uma América “latina”. Foi sis de la Idea y el Nombre de America
um intelectual de seu círculo, L. M. Tis- Latina (1980), Ardao defende que o termo
serand, que o teria empregado pela pri- é de autoria de intelectuais hispano-ame-
meira vez como nome próprio, “l’Améri- ricanos, preocupados com a questão da
que Latine”, em 1861, em artigo na revista identidade da região e já antevendo uma
no século XIX. Em verdade, ele viu cres- com os EUA (Bueno, Ramanzini Jr. &
cer a proposta rival: o pan-americanismo Vigevani, 2014).
(Ardao, 1986). Em 1889-90, por iniciativa Não obstante, o sentimento de oposi-
do governo dos Estados Unidos, aconteceu ção aos Estados Unidos ganhou fôlego. A
a Conferência Internacional de Washin- expansão militar já havia deixado prejuízos
gton. Era a primeira reunião da maio- políticos que as reuniões pan-americanas
ria dos Estados americanos. A pretensão buscavam superar. A guerra contra a Espa-
dos EUA, ecoando a Doutrina Monroe, nha em 1898, concluída com a anexação
era construir seu predomínio na região, de Cuba e Porto Rico pelos EUA na con-
antagonizando com a hegemonia inglesa dição de protetorados, havia gerado uma
que ainda se mantinha. Não foram assi- forte reação que reforçou o caminho para
nados tratados de comércio que dariam o latino-americanismo. Cuba e Porto Rico
tratamento favorecido à indústria norte-a- moviam suas tardias guerras de independên-
mericana em expansão após a Guerra de cia. Ao intervirem no processo, os Estados
Secessão, até porque a ideia de rebaixar Unidos mostravam uma face agressiva e
as tarifas de importação dos países lati- ameaçadora. Entre a intelectualidade, foram
no-americanos punha em xeque a própria muitas as manifestações contrárias a essa
fiscalidade destes países, dada a importân- medida, enfatizando o que seria a cultura
cia das tarifas aduaneiras nos orçamentos comum de origem ibérica e latina, agre-
(Saraiva, 2004). Porém, foi criada uma dida pelo expansionismo “anglo-saxônico”
Oficina Comercial das Repúblicas Ameri- (Royano, 2000). Foi nesse contexto que
canas, embrião da futura Organização dos surgiu Ariel, obra do uruguaio José Enri-
Estados Americanos (OEA). Além disso, que Rodó, publicada em 1900. Se nome
se consolidaria um espaço institucional e conteúdo são entes separados, no início
que falava em “Américas”, enfatizando a do século XX a ideia de uma “América
pluralidade, e não um grande bloco com Latina” se chamava “arielismo”. Ariel con-
identidade e interesses comuns. Os con- solidou a visão de uma identidade cultural
gressos de Estados “latino-americanos” regional, em oposição aos perigos trazidos
não mais se reuniram, mas sim ocorre- pelos Estados Unidos, e lhe deu grande
ram as reuniões pan-americanas. No pri- difusão. Mais que isso, a obra acentuava
meiro quarto do século XX aconteceram o que seria uma superioridade moral dos
algumas tentativas regionais de articula- latino-americanos diante do utilitarismo e
ção que não chegaram a abranger toda a materialismo do Norte. Conforme Krause,
América Latina e nem a plenamente se se Rodó não foi o autor do conceito de
concretizar. Pode-se destacar, neste sen- América Latina, foi certamente o primeiro
tido, o Pacto ABC entre Brasil, Argentina ideólogo do nacionalismo latino-americano
e Chile, que, além de prever a paz e a boa (2011, p. 37). Assim, em Ariel Rodó teria
vizinhança entre os três países, buscou concebido o argumento mais eficiente e
não se contrapor ao pan-americanismo, duradouro de uma união da região: sua dis-
no fundo alinhando-se às tentativas de tinção cultural e sua oposição, também em
acordos pacifistas que então se buscava termos culturais, aos Estados Unidos. As
REFERÊNCIAS