Você está na página 1de 25

Martha Abreu, Rachel Soihet e

Rebeca Gontijo (organizadoras)

Cultura política e
leituras do passado
Historiografia e ensino de história

FAPERJ
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Fundação Cario
* Chaga
* Filho de Amparo
A *a
Pe
qul do Estado do Rio da Janeiro

Rio de Janeiro
2007
COPYRIGHT © Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (orgs.)

CAPA
Evelyn Grumach

PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach e João de Souza Leite

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
C974 Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de
história / Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (orgs.). - Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-200-0695-5

1. História - Estudo e ensino. 2 Ciência política - Estudo e ensino.


3. Política e cultura. 4. Cultura política. 5. Pesquisa histórica. I. Abreu,
Martha. II. Soihet, Rachel, 1938- . III. Gontijo, Rebeca.

CDD - 907
06-4642 CDU - 930(072)

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou


transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia
autorização por escrito.

Direitos desta edição adquiridos pela


EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
Um selo da
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 2585-2000

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL


Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

Impresso no Brasil
2007
Sumário

AGRADECIMENTOS 9

APRESENTAÇÃO 11

PARTE I

Política, história e memória 21

O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória 23

Manoel Luiz Salgado Guimarães

Cultura política e cultura histórica no Estado Novo 43

Angela de Castro Gomes

PARTE II

O Antigo Regime e a colonização em questão 65

Dos “Estados nacionais” ao “sentido da colonização”:


história moderna e historiografia do Brasil colonial 67
Maria Fernanda Bicalho

Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas,


séculos XVII e XVIII 89
Maria de Fátima Silva Gouvêa/Marilia Nogueira dos Santos
CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PASSADO

Os “manifestos de Portugal”. Reflexões acerca de um Estado moderno 111

Rodrigo Bentes Monteiro/Jorge Miranda Leite

“Razão de Estado” na cultura política moderna: o império


português, anos 1720-30 131
Mônica da Silva Ribeiro

Murmurações e caridade. Distinção social e fama pública no império


português: o caso das órfãs da Misericórdia 155
Luciana Mendes Gandelman

Colônia de povoamento e colônia de exploração.


Reflexões e questionamentos sobre um mito 171
Mary Anne Junqueira

PARTE III

Identidades em construção: indígenas, negros e mestiços 187

Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e


identidades em construção (Rio de Janeiro e México
— séculos XVIII e XIX) 189
Maria Regina Celestino de Almeida

O herói negro no ensino de história do Brasil: representações e


usos das figuras de Zumbi e Henrique Dias nos compêndios
didáticos brasileiros 213
Hebe Mattos

Cultura histórica, República e o lugar dos descendentes de


africanos na nação 229
Carolina Vianna Dantas

6
SUMÁRIO

Memórias e histórias da Abolição: uma leitura das obras didáticas


de Osório Duque-Estrada e João Ribeiro 249
Renata Figueiredo Moraes

Mestiçagem e cultura histórica: debates 267


Larissa Viana

PARTE IV

Representações do povo, do intelectual e da nação 287

Povo, política e cultura: um diálogo entre intelectuais da Primeira


República e livros didáticos atuais 289
Magali Gouveia Engel

O intelectual como símbolo da brasilidade: o caso Capistrano de Abreu 309

Rebeca Gontijo

Um herói em dois tempos: apontamentos para uma história da


memória sobre Joaquim Nabuco 329
Luigi Bonafé

Cultura imaterial e patrimônio histórico nacional 351

Martha Abreu

PARTE V

Participação política 371

Ascensão social, participação política e abolicionismo popular


na segunda metade do século XIX 373
Andréa Marzano

7
CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PASSADO

Calçamentos e batatas: o Conselho Municipal e a cidade


(capital federal, 1892-1902) 395
Marcelo de Souza Magalhães

Feminismos e cultura política: uma questão no Rio de Janeiro


dos anos 1970-80 411
Rachel Soihet

A voz das mulheres: linhas da vida e associativismos feministas.


Rio de Janeiro, anos 1970-8 0 437
Suely Gomes Costa

Humor, lutas sociais e direitos femininos nos anos 1970 457

Conceição Pires

Interpretações do passado, leituras do tempo presente:


notas sobre o diálogo entre história e cinema 479
Flávia Cópio Esteves

8
O presente do passado: as artes de
Clio em tempos de memória
Manoel Luiz Salgado Guimarães
*

*Professor dos Departamentos de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisador do CEO/Pronex e do CNPq/Faperj.
Ele era mais belo do que se poderia dizer com palavras, e Aschenbach sen­
tiu dolorosamente, como tantas outras vezes, que a palavra pode somente
exaltar a beleza sensível, jamais reproduzi-la.

Thomas Mann, Morte em Veneza

A memória dos que envelhecem (e que transmite aos filhos, aos sobrinhos,
aos netos a lembrança dos pequenos fatos que tecem a vida de cada indi­
víduo e do grupo com que ele estabelece contatos, correlações, aproxima­
ções, antagonismos, afeições, repulsas e ódios) é o elemento básico na
construção da tradição familiar. Esse folclore jorra e vai vivendo do con­
tato do moço com o velho — porque só este sabe que existiu em determi­
nada ocasião o indivíduo cujo conhecimento pessoal não valia nada, mas
cuja evocação é uma esmagadora oportunidade poética.

Pedro Nava, Baú de ossos

As duas citações constituem duas oportunidades para a tematização dos


problemas e impasses inerentes à escrita da história, especialmente em nossa
contemporaneidade. Valendo-me da forma consagrada pelos antropólo­
gos, poderia dizer que elas são boas para pensarmos alguns problemas
apresentados para aqueles que se ocupam de narrar o passado em tempos
de presentismo. Em primeiro lugar, podemos — a partir, sobretudo, da
primeira citação — tematizar a falência de um projeto escriturário que,
fundado no século XIX, acreditava poder reproduzir o passado e, no li­
mite, tratar este passado como “realmente teria sido” segundo a célebre e

2 5
CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PASSADO

recorrente afirmação de Leopold von Ranke. O trabalho do historiador


podia ser compreendido pela chave da mímesis do real. Segundo este pro­
jeto escriturário, portanto, uma relação de continuidade entre evento e
narrativa estava pressuposta, e o texto apresentava-se como uma superfí­
cie lisa que refletia a realidade dos eventos passados trazidos à sua forma
textual pelo trabalho da pesquisa documental. Longe estávamos da
problematização do texto e da narrativa que vieram na esteira das refle­
xões ensejadas pelo linguistic turn dos anos 1970. A partir de então fo­
mos obrigados a compreender o texto como uma superfície cheia de altos
e baixos, silêncios e lacunas, que deveriam ser interrogados como elementos
constitutivos da narrativa acerca do passado. Aprendemos da mesma for­
ma que o texto escrito subordina a uma gramática e a uma semântica o
conjunto móvel das experiências humanas, instaurando, portanto, uma
tensão necessariamente presente na escrita do historiador. Enfim, a escri­
ta histórica, para ser mais bem compreendida, tomou emprestado o con­
ceito de representação complexificando por esse caminho a relação não
apenas entre o escrito e seu referente como também evocando a dimen­
são imagética inscrita no ato de escrita. Seus signos, ao serem lidos, evo­
cam imagens a partir das quais o passado se torna matéria de conhecimento.
Trata-se daquilo que Jorge Coli com tanta argúcia denominou “os pode­
res da arte fabricando a história”.1 Na esteira dessa falência, melhor di­
zendo, dessa mutação de um projeto escriturário articulado a um projeto
disciplinar da história nascido no século XIX, como parte de uma pode­
rosa cultura histórica, altera-se igualmente a compreensão do trabalho do
historiador. A dimensão evocativa ganha o primeiro plano, inscrevendo o
trabalho de narrar o passado como parte dos esforços voltados à lembrança
e à recordação, que assumem na cultura histórica oitocentista diferentes
formas, chegando ao século XX como uma das exigências por excelência
das sociedades contemporâneas, sobretudo para aquelas que viveram ex­
periências traumáticas: o dever de memória, a obrigação de permanente­
mente lembrar-se dos feitos realizados como condição de encontrar um
lugar no presente. E esse trabalho de evocação o único caminho que
presentifica de certa maneira o passado, tornando-o efetivamente um
objeto de inquirição. Esse ato de lembrança, realizado num presente, tor-

2 6
POLÍTICA, HISTÓRIA E MEMÓRIA

na-se a condição de fazer visível o invisível do passado. A recordação cons­


titui-se assim como condição de possibilidade de nosso ofício, um exercí­
cio submetido a demandas de natureza social e a regras originadas numa
comunidade de profissionais. Isso porque o passado só pode ganhar vita­
lidade (entendida como uma força criativa e significativa para uma cultu­
ra) como trabalho de captura de determinado presente. Diria mesmo que
o passado só poderá ganhar significação como parte desse trabalho de um
presente. Isso, contudo, não implica supor o passado à semelhança do
presente, rompendo a distância temporal que permeia experiências sociais
diversas.
Vivemos um tempo nas sociedades ocidentais contemporâneas em que
ganharam força os investimentos sociais nas tarefas de memória, que ad­
quiriram, por isso mesmo, grande visibilidade em nossas sociedades. Quer
pensemos nas tarefas de patrimonialização e musealização do passado,
definitivamente inscritas como políticas de Estado, quer observemos as
práticas voltadas para a visualização do passado através dos meios de co­
municação de massa, deparamo-nos com um trabalho significativo de
investimento na lembrança e nas narrativas de um passado de nossas socie­
dades. Na esteira daquilo que se convencionou chamar “dever de memó­
ria” e como parte dos desdobramentos de experiências traumáticas como
a do Holocausto, entramos num tempo em que nossa relação com o pas­
sado vem se alterando de maneira significativa. Parece haver um passado
que se recusa a ser passado segundo essas novas exigências, e sua recorda­
ção impõe-se como imperativo de ordem política. Como então submeter
às regras do ofício um conjunto de experiências que, ao não se transfor­
marem em passado, não cumprem aquilo que fundara a própria condição
de nosso ofício segundo uma perspectiva moderna ou, se quisermos, dis­
ciplinar? A condição de não serem mais presente para então serem conhe­
cidas pelo olhar historiador.
E preciso estarmos atentos para o fato de que mais lembrança, como
parte das demandas de nossa contemporaneidade, não necessariamente
implica mais conhecimento do passado e muito menos uma compreensão
crítica das experiências pretéritas. E preciso ter clareza que lembrança e
esquecimento caminham juntos, como processos ativos e necessários à vida

2 7
CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PASSADO

social, e que a escrita pode ser a forma mais rápida para o fácil esqueci­
mento. Se por um lado a invenção da escrita representou um enorme avan­
ço para a capacidade da memória, tornando a lembrança dependente de
um novo e revolucionário artifício, segundo a tese de Havelock,2 por outro
representou um golpe poderoso na capacidade da memória natural. Aquilo
que se escreve pode desaparecer da memória natural, o que constituiu um
curioso paradoxo nessa relação entre escrita/memória artificial e memó­
ria natural.3 Vivemos aquilo que Andreas Huyssen de maneira tão aguda
denomina a sedução pela memória, um tempo em que nossas sociedades
vivem uma verdadeira “inflação de memória” acompanhada por uma
monumentalização das formas de relação com o passado. A cultura mo­
dernista, que se constituíra a partir de investimentos no futuro como um
tempo de realizações, sofreu a partir dos anos 1980 uma virada em dire­
ção ao que denomina “passados presentes”.4 A sedução, que na formula­
ção conceituai freudiana se vincula à recordação de cenas vividas ou
imaginadas, supõe uma centralidade da lembrança e de seus mecanismos
de constituição de sujeitos. Apropriando-se da noção de sedução para
designar um momento particular de nossa experiência com o tempo,
Andreas Huyssen parece sugerir-nos que vivemos sob o imperativo da
recordação, prisioneiros da necessidade de sempre e de tudo lembrar. Este
imperativo nos leva à compulsão pelo arquivo e pelas tarefas de arqui­
vamento, fazendo-nos esquecer que, se tudo está arquivado, anotado,
controlado e vigiado, a história como criação não é mais possível, transfor­
mando-se o passado em espelho do próprio arquivo, transmutado em lu­
gar da verdade, reificado e deistoricizado.5 O arquivo perde sua dimensão
de escritura e, portanto, sua forma simbólica e necessariamente histórica
de significação das experiências humanas.
Gostaria então de abordar neste texto estas três questões, como parte
de um exercício de reflexão em torno do lugar da disciplina história em
nossa atualidade em face dos desafios de um tempo em constante acelera­
ção que nos acena com a sedução de uma “história online”. Trata-se, por­
tanto, de um exercício para pensar as condições da produção histórica
em nossa contemporaneidade, retomando, por um lado, o caminho de
que refazer a história da disciplina pode ajudar-nos a pensá-la como pro-

2 8
POLlTICA, história e memória

duto histórico; por outro, trata-se de um investimento que busca inserir a


produção do conhecimento acadêmico sobre o passado numa determina­
da cultura histórica, que, como o termo sugere, está sujeita à mutação
própria das criações culturais. Retomando a sugestão de Paul Valéry,

todas essas convenções são inevitáveis. Minha única crítica é a negligência


que não as torna explícitas, conscientes, sensíveis ao espírito. Lamento que
não se tenha feito com a história o que as ciências exatas fizeram consigo
mesmas quando revisaram seus fundamentos, pesquisaram com o maior
cuidado seus axiomas, enumeraram seus postulados. Talvez seja porque a
história é principalmente Musa, e porque preferimos que o seja. Conse-
qüentemente não tenho mais o que dizer... Eu reverencio as Musas.6

Talvez por se acreditar no espaço do sagrado, terreno da inspiração das


Musas, a história tenha se recusado sistematicamente a esse trabalho so­
bre si mesma. E talvez hora de repensarmos suas fontes inspiradoras.

II

Tomemos a primeira das questões: a falência de certo projeto escriturário


para a história, que acreditou poder fazer da escrita do passado uma
mímesis dos acontecimentos transcorridos. Recordando esse projeto de
escrita, sabemos que um dos seus pilares fundamentais era a fonte escrita,
sobretudo aquela coetânea ao acontecimento e preferentemente as fontes
consideradas oficiais. Esta escrita não apenas fundou os procedimentos
que marcariam o trabalho de pesquisa do historiador como também esta­
beleceu de forma definitiva a distinção entre fontes primárias e fontes
secundárias, as primeiras transformadas em único critério válido de aferi­
ção e legitimação de uma escrita acerca do passado. Segundo Ranke, “a
história não será feita senão a partir dos testemunhos diretos e das fontes
as mais autênticas”.7 Essa falência de um regime de escrita manifesta-se
pela constatação da impossibilidade de realização desse projeto; uma es­
crita que se colasse à própria experiência, como um decalque fiel do vivi­
do. A compreensão de que toda escrita é já um trabalho a posteriori de

2 9
CULTURA POLlTICA E LEITURAS DO PASSADO

significação da própria experiência obrigou os historiadores à proble-


matização de sua escrita, sobretudo a partir daquilo que se convencionou
chamar de linguistic turn. O que estava igualmente implícito num projeto
de escrita como o formulado pelo trabalho rankiano era a crença de uma
escrita que se realizaria como completude, como preenchimento dos va­
zios deixados pela ausência do passado, estabelecendo uma linha de con­
tinuidade absoluta entre o passado e o presente. O registro dessa escrita
era portanto o do preenchimento dessas faltas, a ser realizado pela pes­
quisa documental, transformando o documento em índice desse passado
ausente, prova material de sua existência pretérita. Esse projeto se viu
questionado, como sabemos, a partir dos intensos diálogos da história com
outras disciplinas do campo das humanidades, especialmente a filosofia,
a teoria literária e a história da arte, para só ficarmos em alguns exemplos
significativos. Desse diálogo emergiu a possibilidade de uma ressignificação
da ausência do passado. A falta tornou-se aquilo mesmo que tornava uma
escrita da história não apenas necessária como também dotada de signifi­
cado. Deixava, assim, de ser um sinal negativo para tornar-se condição da
própria escrita da história, reconhecendo a impossibilidade de uma rela­
ção de um para um entre escrita do passado e o passado propriamente
vivido pelas sociedades.8 A maneira de um mapa cartográfico, é pela pró­
pria impossibilidade dessa representação um por um que o trabalho da
escrita se faz significativo, necessário e capaz de estabelecer relações com
o passado. A escrita, percebida assim em sua função vicária em relação ao
passado, viabilizou aquilo que Paul Ricoeur denomina “a condição histó­
rica” — um regime de existência colocado sob o signo do passado enten­
dido “como tendo sido e não sendo mais”.9 Um regime de existência que
se tornou central para as sociedades ingressadas na modernidade e que
contemporaneamente vem sofrendo profundas reformulações. A repro­
dução do passado está definitivamente inviabilizada por esse procedimento,
uma perda que acarreta igualmente uma dor, da mesma maneira que o
escritor Thomas Mann constatara a dor inerente à impossibilidade de re­
produzir a beleza, mesmo em se tratando da tarefa central para o artista.
Trata-se na verdade, para o historiador, de enfrentar a contradição ine­
rente entre a fixidez de um trabalho de pôr algo em discurso e a própria

3 o
polItica, história e memória

mobilidade do vivido. O regime da escrita, como sabemos, supõe uma


ordenação, uma gramática e uma sintaxe segundo as quais as experiências
encontram possibilidade de serem narradas. Não defendo que as mes­
mas experiências se confundam com o ato de narrá-las, mas certamente
esse ato impõe regras e procedimentos que configuram de maneira pe­
culiar as experiências (móveis e sinuosas por elas mesmas) sob regime
de escrita.

III

Tratemos agora da segunda questão: a evocação como condição para a


realização do trabalho do historiador. A evocação como atitude ativa de
uma comunidade no presente que, ao se interrogar sobre sua existência,
produz igualmente a possibilidade de uma interrogação acerca do passa­
do. De forma mais radical, podemos afirmar que o passado só adquire
efetiva existência a partir dessa interrogação do presente, ou melhor, a
partir de uma relação que as sociedades humanas estabelecem com o trans­
curso do tempo e assim com as definições do que seja presente, passado e
futuro. Segundo nos indica o trabalho do historiador alemão Jõrn Rüsen,10
são as carências humanas por orientação em relação a agir e sofrer os efeitos
da passagem do tempo que podem tornar uma reflexão sobre o passado
algo significativo e necessário para uma determinada cultura humana.
Considerando que é o presente que torna o passado significativo, é preci­
so agora interrogar-se acerca dessa relação peculiar que um presente deve
ter com o passado. Este pode tanto ser um fardo como uma fonte de li­
bertação, cabendo a escolha àqueles que, ao se debruçarem sobre o passa­
do, o vêem ou como origem ou como condição de possibilidade de um
presente que se realiza não necessariamente como o futuro de um passa­
do. À historiografia como área de investigação caberia, entre outras, a tarefa
de se interrogar acerca dessas inúmeras formas de produção do passado e
dos regimes correlatos de escrita que se instauram para significar esse
conjunto pretérito de experiências. Interrogar as formas do discurso his­
tórico que, nas palavras de Jacques Revel e François Hartog, constitui um
“discurso verdadeiro a respeito daquilo que foi subtraído pelo tempo à

3 1
CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PASSADO

observação humana”,11 se apresenta como campo fecundo de investiga­


ção para o historiador. Um dilema que me parece ao mesmo tempo ser a
sua força: o de produzir sentido para as experiências passadas como for­
ma de podermos inventar nosso presente e nosso futuro, alargando nosso
horizonte de expectativas.
Mas tomemos duas sugestões que me parecem particularmente ricas para
abordarmos a questão da evocação/recordação/lembrança e de seu poder
ativo para as ações humanas e, por extensão, podemos imaginar, para a
possibilidade de um discurso sobre essas mesmas ações como se pretende
ser o discurso histórico. As duas sugestões estão ligadas a um mesmo autor,
Sigmund Freud, e seu projeto de um campo novo de investigação: a psica­
nálise. O papel das lembranças e das recordações como fundamentação para
sua reflexão em torno desse novo saber é por demais conhecido. Tomemos
um primeiro desses textos, que, segundo entendo, constitui fonte de ricas
indicações para pensarmos o lugar da memória em seu papel ativo para a
constituição da vida coletiva. “Totem e tabu”, texto de 1912-13 publicado
em quatro partes na revista Imago, que se pretendia um lugar de diálogo
interdisciplinar, tem como ponto de partida a lembrança de um ato primi­
tivo como ato constitutivo da vida coletiva. Segundo Freud, é a lembrança
de um crime primitivo perpetrado contra um chefe poderoso e autoritário,
igualmente fonte de culpa e sofrimento, que estaria na base instituinte da
vida coletiva, possível apenas a partir da aceitação de algumas regras. A lem­
brança desse ato seria periodicamente ritualizada através de um ato coleti­
vo, ao mesmo tempo lembrança e advertência, e assim reafirmação dos laços
instituintes da sociabilidade. Diz ele:

A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade,


seria assim uma repetição e uma comemoração desse ato memorável e
criminoso que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das
restrições morais e da religião.12

Duas observações são imprescindíveis para compreender meu argumento


e minha apropriação da sugestão freudiana. Em primeiro lugar, destaca­
ria o lugar das hipóteses de trabalho como substituto da observação

3 2
POLÍTICA. HISTÓRIA E MEMÓRIA

empírica de que estamos privados. A formulação freudiana está toda ela


assentada em uma hipótese de trabalho, impossível desde o início de com­
provação empírica, entendendo-se por tal a verificação histórica do ato
suposto em seu argumento explicativo para a instituição dos laços sociais.
Com isso Freud nos aponta numa direção em que as ciências humanas
dificilmente se sustentam em seu projeto como ciências empíricas e posi­
tivas, direção que o próprio criador da psicanálise tomara como condição
de formular seu projeto de ciência. Sobretudo para o caso do historiador,
não temos diante de nós o passado na sua existência pretérita nem sua
reprodução pela via documental — falência de um projeto abordado no
item anterior —, que não se define, portanto, a partir de sua função de
prova. Em segundo lugar, sublinharia a importância acordada pelo autor
ao ato rememorativo, ao esforço social da lembrança. Aqui se funda, a
meu ver, a riqueza das sugestões de Freud para se pensar o papel e a
centralidade do imaginário na interpretação dos fenômenos humanos, quer
de um ponto de vista coletivo, quer individual. A lembrança, como parte
do esforço imaginativo, assim como o esquecimento, são atos fundamen­
tais engendrados ativamente pelas sociedades como forma de se consti­
tuir. A vida coletiva estaria, assim, irremediavelmente ligada aos esforços
simbólicos, a um mundo imaginário, aos atos de recordar e lembrar, que,
mesmo não sendo passíveis de comprovação empírica segundo os dispo­
sitivos de uma ciência positiva, assumia para Freud e para a ciência que
acabara de fundar aspectos centrais. Não por acaso essas formulações
puderam ser realizadas num momento em que o próprio Freud já fizera
seu caminho sem retorno de crítica aos padrões da ciência positivista, que
iluminara suas primeiras investigações. O papel da lembrança e dos atos
de evocação assumem, portanto, através das sugestões freudianas, um
decisivo papel para a compreensão das sociedades humanas. Assumem a
dimensão de atos instituintes, condição de possibilidade, fundamentando
as ações humanas.
Um segundo texto igualmente importante para dimensionarmos o papel
da lembrança e dos atos rememorativos para as sociedades humanas foi
“Moisés e o monoteísmo”. Tomado em sua acepção propriamente psicanalí-
tica, o texto abordaria as questões relativas à volta do reprimido e às conse-

3 3
CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PASSADO

qüências inevitáveis de uma religião que se estruturou a partir da figura de


um pai e da primazia e centralidade do escrito e da lei em detrimento de uma
religião fundada na noção do culto. Como religião de crença, Moisés repre­
sentaria, na interpretação freudiana, um passo adiante num processo de “ra­
cionalização”13 capaz de fundamentar a vida coletiva numa ética e numa moral.

O povo judeu abandonou a religião de Aten que lhe foi dada por Moisés
e voltou-se para a adoração de outro deus que pouco diferia dos Baalim
dos povos vizinhos. Todos os esforços tendenciosos de épocas posteriores
fracassaram em disfarçar esse fato vergonhoso. Mas a religião mosaica não
se desvaneceu sem deixar traço; algum tipo de lembrança dela manteve-se
viva: uma tradição possivelmente obscurecida e deformada. E foi essa tra­
dição de um grande passado que continuou a operar (do fundo da cena,
por assim dizer), que gradativamente adquiriu cada vez mais poder sobre
as mentes das pessoas e que, ao final, conseguiu transformar o deus Javé
no deus mosaico e redespertar para a vida a religião de Moisés que fora
introduzida e, depois, abandonada havia longos séculos.14

Uma tradição esquecida, mas que, nas palavras de Freud, continuava a ope­
rar do fundo da cena, como memória, responsável pela ação em função de
sua capacidade criadora e instituinte de relações socioculturais. Do ponto
de vista da história, e de sua preocupação com o tratamento da memória, o
recurso aos dois textos pode indicar um caminho rico em desdobramentos
para se pensar a memória, a lembrança e a recordação, como atos de enor­
me força para a formulação de projetos sociais, para a organização da ação
social. Nesse sentido, uma historicização da memória, das formas como as
sociedades se lembram, é parte de um exercício para compreender o lugar
da história e a história em determinada sociedade.

IV

Nossa terceira e última questão: a força e o volume “do trabalho de me­


mória” que contemporaneamente inunda as sociedades ocidentais. Em
estreita correlação com essa hipervalorização contemporânea da memó-

3 4
POLÍTICA, HISTÓRIA E MEMÓRIA

ria, temos um retorno do “eu” e da subjetividade como critério de


legitimação dos discursos sobre o passado, assim como a sobrevalorização
do testemunho como fonte capaz de assegurar a veracidade das falas so­
bre o passado. Esse eu que ficara alijado da história retorna à cena quan­
do as críticas às diferentes formas de estruturalismo se fazem presentes
no cenário das ciências humanas a partir dos anos 1970. Uma filosofia do
sujeito acompanhava o primado do político como forma de inteligibilidade
da organização social. Esse movimento se fez acompanhar pela crescente
importância do conceito de representação para pensar a vida social.15
Particularmente no caso da história como disciplina acadêmica, o que se
verificava era um distanciamento em relação às práticas e aos princípios
que fundamentaram a prática dos historiadores, sobretudo a partir do
projeto da história social dos Annales. No campo historiográfico, esse tra­
balho de valorização da memória como objeto de investigação do próprio
historiador encontra seu sintoma mais eloqüente com o projeto dos Lu­
gares de memória, de Pierre Nora, que em 1984, ao dar início a uma im­
portante e vultosa pesquisa, afirmava que os lugares de memória vinham
em substituição à própria memória ameaçada pela aceleração desenfrea­
da do tempo. Daí em diante parece que as coisas apenas se agudizaram a
ponto de estarmos sob o signo de um avassalador projeto de memoriali-
zação dos mais diversos espaços da vida social, sinal de um presentismo
diagnosticado de maneira aguda por François Hartog em seu recente li­
vro acerca dos regimes de historicidade.16
Mas o que vem a ser exatamente esse regime sob o qual estaríamos vi­
vendo? Quais as implicações advindas dessa nova maneira de nos relacio­
narmos com o tempo para as nossas sociedades contemporâneas? Qual a
sua diferença em relação ao regime futurista de tempo, que, formulado a
partir das concepções da filosofia da história do século XVIII, reinvestia de
sentido a tradicional máxima ciceroniana da história como uma mestra? O
que fazer quando a relação entre o jovem e o velho do qual nos fala Pedro
Nava na citação que introduz este artigo, como sendo ainda uma “esmaga­
dora oportunidade poética”, já não faz mais sentido posto que a experiên­
cia do velho em nada mais parece servir a um presente forjado a partir de
experiências inovadoras e que se vê premido a incessantemente inovar? Uma

3 5
CULTURA POLlTICA E LEITURAS DO PASSADO

questão crucial se apresenta aos historiadores de ofício, qual seja, a de re­


pensar os fios que ligam o presente e o passado, sob pena de uma absoluta
indiferenciação do passado em relação a um presente tão onipotente. Este,
o presente, já se faz passado no próprio momento do acontecido pela força
midiática, produtora de passados consoladores para um presente que
narcisicamente só se vê como única possibilidade de existência. Todas essas
são perguntas e questões que integram um vasto horizonte de possibilida­
des para a pesquisa de natureza historiográfica, segundo concebo. Da mes­
ma forma, seu tratamento impõe-nos uma articulação entre a historiografia,
como forma específica de produção do conhecimento sobre o passado atra­
vés de uma narrativa metodologicamente controlada, e a cultura histórica.
Esta, a partir de um sentido mais alargado, supõe as diferentes possibilida­
des de construções narrativas sobre o passado, servindo-nos como indica­
dor a respeito de como as culturas humanas elaboram sua relação com a
passagem do tempo. Formulada por Jan Assmann,17 nos termos de uma
cultura da lembrança, seu estudo permitiria a compreensão das representa­
ções sociais a respeito do tempo. O tempo, matéria por excelência do tra­
balho do historiador, assume nessa perspectiva sua dimensão coletiva e
histórica, resultado de uma produção humana, figurado para as sociedades
que o experimentam segundo os significados, eles mesmos temporalmente
produzidos. E aqui, talvez, uma distinção importante se faça necessária, to­
mando as sugestões de Beatriz Sarlo18 para pensar em nossa contem-
poraneidade a produção de discursos acerca do passado: aquela entre uma
história de circulação maciça, cuja demanda vem a ser atendida pelos meios
de comunicação de massa, e uma história de corte acadêmico, voltada para
um conhecimento fundado na compreensão do passado. Podemos acres­
centar ainda uma história com finalidades pedagógicas, matéria de ensino
das escolas e objeto de políticas públicas de educação como outra forma de
produção de passado em nossa cultura histórica. Essa distinção, é preciso
lembrar com a autora, não significa uma hierarquização em termos de quali­
dade ou veracidade do que é produzido, mas indica regimes distintos de
produção do passado ou de passados. Indica que, em um dos regimes, a
noção de testemunho se torna central, já que a imediatez da voz e do corpo
parece assegurar maior credibilidade ao que é falado ou escrito acerca do

3 6
POLÍTICA, HISTÓRIA E MEMÓRIA

passado. No entanto, a retórica testemunhal como parte das narrativas pro­


duzidas acerca do passado não assegura, ainda segundo a leitura proposta
por Beatriz Sarlo, a veracidade do recordado. Direito à recordação como
parte de demandas sociais legítimas não assegura a veracidade daquilo que
é narrado como conseqüência. Se a primeira pessoa tornou-se de novo ator
importante para as tarefas da memória, não eliminou os problemas que
envolvem o ato da lembrança como ato que se realiza sempre e necessaria­
mente a posteriori do acontecido, numa situação vicária à própria experiência
vivida em primeira pessoa. No outro lado, a compreensão como atitude por
excelência das demandas acadêmicas sobre o conhecimento do passado se
coloca como tarefa central, mais até do que recordar, ainda que, como nos
lembra Sarlo, “para compreender também é preciso recordar”.’9 A distin­
ção proposta por Sarlo nos parece operativa e importante na medida em
que qualifica distintamente as produções narrativas acerca do passado, sem,
contudo, supor que exista aquela que será mais verdadeira em sua apresen­
tação do passado. Importante e significativa em nossa contemporaneidade,
sua compreensão demanda uma historicização dessas diferentes demandas
sociais pelo passado.
Algumas palavras sobre os contextos (propositalmente escritos no
plural) de emergência dos discursos de memória que se sustentam a par­
tir da noção de testemunho. Sua marca política é seu traço mais marcante,
e certamente uma de suas funções centrais, como uma maneira peculiar
de uso do passado em tempos de presentismo. Convocar os que foram
vítimas das mais diferentes formas de silenciamento é certamente cen­
tral e indispensável para a convivência em sociedade. Reconstruir possi­
bilidades dessa convivência em comum significa necessariamente dar voz
ao silenciado, como ato de elaboração do vivido e condição de produ­
ção de presentes e futuros. Confundir, no entanto, esses procedimentos
com as tarefas de conhecimento do passado — tarefa principal do histo­
riador no exercício de seu ofício — pode ser arriscado, demandando,
por isso, de nossa disciplina cuidados especiais. Em recente livro, o his­
toriador alemão Norbert Frei20 formula a instigante pergunta em torno
de um problema central para as narrativas construídas a partir da noção
de testemunho: o que fazer quando a geração que viveu as experiências

3 7
CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PASSADO

não mais existir, inviabilizando por razões óbvias a possibilidade de uma


narrativa fundada na suposta veracidade testemunhal, no relato em pri­
meira mão? É certamente a experiência do Holocausto aquela que se
situa no horizonte das formulações em torno do testemunho e de seu
papel para o conhecimento do passado, tomado como experiência-sím­
bolo para o entendimento das mais diferenciadas formas de silenciamento
e opressão praticada por regimes políticos. E como se, na era da glo­
balização, também a experiência do Holocausto assumisse sua dimen­
são universal para a inteligibilidade de regimes de força.21 As experiências
traumáticas vivenciadas pelo evento-limite do regime totalitário alemão
constituiriam uma espécie de passado que, para o historiador Christian
Meier em seu texto “40 Jahre nach Auschwitz Deutsche Geschichtse-
rinnerung heute”,22 parecia ser ainda tão presente. Presença que só os
eventos de celebração de uma Copa do Mundo no país novamente uni­
ficado parece ter esmaecido. É a partir dos anos 1970 que os discursos
sobre o Holocausto procuram se organizar a partir da chave do teste­
munho, o que indica algumas mutações significativas em relação ao tra­
tamento daquela experiência, que vai gradativamente perdendo sua
dimensão de um fato da história nacional da Alemanha para se tornar
uma experiência globalizada. Sintoma de mutações em nossa percepção
do tempo, a lembrança do Holocausto apresenta formas diferenciadas
ao longo da segunda metade do século XX, vindo a se constituir num
evento que teimaria em não passar e, dessa maneira, não se deixaria trans­
formar em passado.
No caso argentino estudado por Beatriz Sarlo, também as experiências
recentes com um regime de força e responsável pelo extermínio de milha­
res de cidadãos trouxe a questão do testemunho e sua centralidade para a
produção de narrativas do passado recente daquele país para a ordem do
dia. A força desses discursos testemunhais assumiu igualmente importân­
cia para a história recente da experiência ditatorial argentina, engendran­
do uma lembrança fundada nos relatos de experiência, que pretensamente
confeririam um melhor e mais verdadeiro conhecimento sobre a tragédia
do “terrorismo de Estado”. Tais relatos seriam como uma pós-memória,
menos contaminados pelos exercícios da lembrança e da recordação, e por

3 8
pol(tica, história e memória

isso mais aptos ao conhecimento do passado recente argentino. O livro


de Beatriz Sarlo interroga e polemiza em torno dessa pretensa maior ve­
racidade, constituindo importante referência para a discussão contempo­
rânea em torno da produção do passado.
A discussão em torno das formas contemporâneas do passado nos
remete, certamente, a um outro problema fundamental, que diz res­
peito aos usos políticos do passado. Revisitar o passado não pode ser
desvinculado das demandas e exigências de um tempo presente e, nes­
se sentido, sua compreensão é também parte da inteligibilidade de uma
cultura histórica que aciona experiências, imagens e atores do passado
para uma contemporaneidade que busca nesse tempo que ficou para
trás referências para imaginar o mundo em que vive. Esboça-se aqui,
segundo defendo, um projeto para a historiografia como campo de
investigação, que articula política, cultura histórica e uma história das
formas do lembrar-se.

Concluindo, ainda que provisoriamente, poderíamos formular a seguinte


questão: qual o futuro do passado, a partir das interrogações formuladas
com este texto, que busca discutir alguns pontos relativos ao presente do
passado? Ao propor essa questão penso nas diferenciadas formas de tra­
tamento e elaboração do passado, desde sua forma acadêmica até sua for­
ma de pedagogia escolar, por vezes tão distanciada daquilo que se produz
na universidade. Formular uma questão para o futuro é ainda, segundo
penso, acreditar na vida e nas possibilidades de transformação pela ação
humana, sem no entanto acreditar que o futuro nos aguarda com a casa
pronta. Termino com ítalo Calvino, para quem só teremos algum futuro
se quisermos e fizermos um presente. E acrescentaria: se formos capazes
de reinventarmos constantemente nossos passados.

3 9
CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PASSADO

Notas

1. Jorge Coli, Como estudar a arte brasileira no século XIX?, São Paulo, Ed. Senac São
Paulo, 2005, p. 43.
2. Eric A. Havelock, A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais,
São Paulo/Rio de Janeiro, Ed. Unesp/Paz e Terra, 1996.
3. Harald Weinrich, Lete: arte e crítica do esquecimento, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2001, p. 112. Ao fazer uma história do esquecimento, o autor nos ajuda
a compreender as profundas imbricações entre lembrar e esquecer como parte de
tarefas sociais, igualmente importantes e necessárias à vida das coletividades humanas.
4. Andreas Huyssen, Seduzidos pela memória. Arquitetura, monumentos, mídia, 2a ed.,
Rio de Janeiro, Aeroplano, 2000, p. 9.
5. Elisabeth Roudinesco, A análise e o arquivo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006.
Afirma a autora: “Em outros termos, o culto excessivo do arquivo resulta numa
contabilidade (a história quantitativa) destituída de imaginação e que proíbe que
possamos pensar a história como uma construção capaz de suprir a ausência de
vestígios” (p. 9).
6. Paul Valéry, na distribuição solene dos prêmios do Liceu Janson-de-Sailly, em 13 de
julho de 1932.
7. Leopold von Ranke, apud Anthony Grafton, Les Origines tragiques de Vérudition.
Une histoire de la note en bas de page, Paris, Seuil, 1998, p. 50.
8. Os trabalhos de Michel de Certeau, especialmente A escrita da história, viabilizaram
uma outra compreensão para a dimensão da falta constitutiva da escrita historio-
gráfica, sobretudo ao formular o conceito de não-dito (Michel de Certeau, A escrita
da história, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982).
9. Paul Ricoeur, La Mémoire, 1’histoire, Toubli, Paris, Seuil, 2000.
10. Jörn Rüsen, Razão histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica,
Brasília, Ed. UnB, 2001.
11. François Hartog e Jacques Revel, Les Usages politiques du passé, Paris, École des
Hautes Études en Sciences Sociales, 2001.
12. Sigmund Freud, Totem e tabu, Rio de Janeiro, Imago, 1999, p. 146.
13. O termo no original alemão usado pelo autor é Geistlichkeit, que aponta no sentido
de um processo de espiritualização (o final keit indica uma substantivação da pala­
vra Geist, espírito) que deve ser mais bem traduzida por um processo de “cultu-
ralização”, de constituição de uma experiência social particular marcada pela cultura.
14. Sigmund Freud, Moisés e o monoteísmo, Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 63.
15. Ver especialmente o texto esclarecedor de Roger Chartier, “Le Monde comme
représentation”, em Au bord de la falaise. L’histoire entre certitudes et inquiétude,
Paris, Albin Michel, 1998, p. 67-86.

4 0
POLÍTICA, HISTÓRIA E MEMÓRIA

16. François Hartog, Régimes d’historicité. Présentisme et expérience du temps, Paris,


Seuil, 2003. Especialmente o quinto capítulo, intitulado “Patrimoine et présent”,
aborda de maneira instigante esse avassalador projeto de memória.
17. Jan Assmann, Das kulturelle Gedächtnis. Schrift, Erinnerung und politische Identität
in frühen Hochkulturen, Munique, Beck, 1999.
18. Beatriz Sarlo, Tientpo pasado. Cultura de la memoria ygiro subjetivo. Una discusión,
Buenos Aires, Siglo Veintiuno Editores, 2005.
19. Ibidem, p. 26.
20. Norbert Frei, 1945 und Wir. Das dritte Reich im Bewustsein der Deutschen, Munique,
Beck, 2005. Investigando a memória do Terceiro Reich para a sociedade alemã, o
autor, professor na Universidade de Jena, aponta para o fato de que o conhecimento
do nacional-socialismo se tornou sinônimo de um sistema explicável a partir da
lembrança retrospectiva de seus derradeiros contemporâneos (p. 11).
21. Huyssen, op. cit., p. 12. Em torno do tema do Holocausto iniciou-se a famosa Querela
dos Historiadores na Alemanha Ocidental na década de 1980, evento que envolveu
em acirrado debate polemistas em torno da possível comparação entre as experiências
perpetradas pelo nacional-socialismo e outros regimes ditatoriais posteriores.
Consultar a respeito: Historikerstreit. Die Dokumentation der Kontroverse um die
Einzigkeit der nationalsozialistischen Jedenvernichtung, Munique, Piper, 1989. Ver
também: Imanuel Geiss, Die Habermas-Kontroverse. Ein deutscher Streit, Berlim,
Siedler Verlag, 1988.
22. Christian Meier, 40 Jahre nach Auschwitz. Deustsche Geschichtserinnerung heute,
Munique, Deutscher Kunstverlag, 1987.

4 1

Você também pode gostar