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Transformacoes Da Experiencia Do Tempo e
Transformacoes Da Experiencia Do Tempo e
usos do passado
Tempo presente &
usos do passado
1a edição — 2012
Inclui bibliograia.
ISBN: 978-85-225-0856-3
CDD — 907.2
Int roduçã o
Transformações da experiência do
tempo e pluralização do presente*
mateus henrique de faria pereir a | sérgio da mata
Creio que estamos diante de uma das formas, e talvez se deva dizer, um dos
hábitos mais nocivos do pensamento contemporâneo, eu diria inclusive do
pensamento moderno ou, em todo caso, do pensamento pós-hegeliano: a
análise do momento presente como se este fosse precisamente, na história, o
momento da ruptura, ou da realização, ou da aurora que retorna, e assim
por diante. A solenidade com que toda pessoa que mantém um discurso
ilosóico relete sobre seu próprio tempo me parece um estigma. Digo
isso, sobretudo, porque eu mesmo procedi assim e porque o encontramos
constantemente em alguém como Nietzsche [...]. Creio que devemos ter
a modéstia de dizer para nós mesmos, por um lado, que o tempo em que
vivemos não é este tempo único, fundamental ou que irrompe na história, a
partir do qual tudo se acaba ou tudo recomeça.
Foucault (1998:449)
*
Apoio: Neaspoc, Capes, CNPq e Fapemig.
Há algum tipo de descontinuidade em nossa consciência, percepção e
experiência contemporâneas do tempo? Como o conhecimento histórico
pode contribuir para a reflexão sobre a complexa relação entre passado/
presente/futuro no século XXI? Um dos desafios é pensar as possibilida-
des e os limites da “transposição” de diagnósticos europeus para a realida-
de brasileira. Menos por uma disposição romântica qualquer do que pela
simples imposição dos fatos, perguntarmo-nos até que ponto não apenas
épocas, “regimes”, mas também sociedades distintas, mesmo aquelas in-
terligadas do ponto de vista civilizacional, relacionam-se da mesma forma
com o tempo. Enquanto escrevemos, a Europa enfrenta a sua mais grave
crise do pós-guerra. O Velho Mundo titubeia, mas a Primavera Árabe e a
criação da Comissão da Verdade para a investigação dos crimes cometidos
durante a ditadura militar brasileira dão prova de que alguns dos ideais e
conceitos produzidos há séculos pela Europa continuam vivos, podendo
ser, ao mesmo tempo, descompassados e ressignificados.
1
Cf. os artigos de Carlos Fico, Marieta de Morais Ferreira e Raquel Glezer neste livro.
Ver também, entre outros, Pereira (2011:56-65).
2
Cf. também o artigo de Olgária Matos sobre Walter Benjamin neste livro. 11
O tempo estava na ordem do dia. H. G. Wells havia publicado há pouco
seu conhecido livro A máquina do tempo (1895). No conto O novo acelerador
(1901),Wells narra a história do professor Gibberne, inventor de uma dro-
ga capaz de tornar excepcionalmente rápido aquele que a ingerisse. Depois
de testar o medicamento, ele se dá conta de que tão maravilhoso experi-
mento trazia consigo um irritante efeito colateral. Para quem ingeria o ace-
lerador, tudo à sua volta parecia “estar se movendo milhares de vezes mais
lentamente”.3 Depois de uma surreal experiência pelos arredores da casa
de Gibberne, em que o cientista e um amigo exercitam sua curiosidade em
meio a pessoas congeladas num eterno slow-motion, o narrador afirma: “É o
início de nossa fuga da roupagem do tempo de que fala Carlyle”. Oito anos
depois da publicação do conto de Wells, o manifesto futurista de Marinetti
fazia o elogio do automóvel e da “beleza da velocidade”. Em 1913, aparece
o primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Proust.
Embora timidamente, as ciências humanas deram resposta a tais estí-
mulos. Sob clara influência dos escritos de Bergson, Henri Hubert inau-
gura a sociologia do tempo com um “Estudo sumário da representação do
tempo na religião e na magia”, de 1905 (Pinheiro Filho, 2005:141-161).
E quanto à história? Caberia a um jornalista e historiador norte-america-
no elaborar, em 1904, o primeiro esboço de uma “lei da aceleração”. Dé-
cadas antes de Koselleck, Henry Adams constatava uma “estupenda acele-
ração após 1800”, determinada, acreditava ele, pelo avanço inexorável da
ciência. “A complexidade”, afirmava Adams na ocasião, “se expandiu por
horizontes imensos” (Adams, 1954:247-258).
Somente a partir de meados da década de 1970, a intuição de Henry
tempo presente & usos do passado
Adams sobre a “lei da aceleração” seria revisitada. Para tanto parecem ter
contribuído as recentes revoltas estudantis ao redor do globo, a apoca-
líptica frankfurtiana a respeito do “capitalismo tardio” e a redescoberta
das categorias “utopia” e “esperança” nos meios intelectuais progressistas
(Baczko, 1978). No caso da Alemanha, um fator adicional e, tudo leva a
crer, decisivo: a irrupção do terrorismo de extrema esquerda.
Há de fato uma aceleração do tempo? Numa conferência que se tor-
nou famosa, o teólogo e historiador Ernst Benz defendeu a tese de que
na origem do conceito de aceleração está a ideia cristã de que o tempo
3
12 Em <www.online-literature.com/wellshg/16/>. Acessado em 9 jan. 2012.
avança inelutavelmente para um “fim”. As teorias revolucionárias moder-
nas e mesmo o terrorismo político não passariam de versões laicizadas
daquela concepção. Para Benz, pode-se dizer, a aceleração é a soteriolo-
gia secularizada.4 Koselleck reconheceu o caráter originalmente religio-
so do fenômeno, mas ressaltou a importância da Revolução Industrial e
da Revolução Francesa como condicionantes macro-históricos decisivos.
A percepção de uma aceleração do tempo teria se alimentado tanto da
expectativa salvífica quanto da experiência produzida por épocas de cri-
se (como mostrara Burckhardt em suas Weltgeschichtliche Betrachtungen)
e da maior dinâmica civilizacional das sociedades industriais (Koselleck,
2003:150-176).
Vimos que no início do século XX as concepções sobre o tempo eram
viradas ao avesso. No entanto, o presente continuava a ser uma noção
obscura. A imprecisão crônica do termo “presente” sugere que ele não
se situa, talvez nem mesmo possa se situar, no âmbito do conceituável.
Certo é que, indiferente a tais dificuldades, o mundo lá fora segue seu
curso. Com isso se quer dizer que algum tipo de distinção entre passado,
presente e futuro sempre é intersubjetivamente construído. No mundo
da vida — onde reina a convenção — o problema sequer se apresenta,
ou se coloca apenas em termos de uma racionalidade prática. Num plano
distinto, mas nem tanto, a temporalidade aos poucos se torna alvo de dis-
puta entre disciplinas acadêmicas. Diferentes “fatias” do tempo são apro-
priadas por diferentes ciências. Para além de quaisquer esforços de deli-
mitação mútua, o que rege o âmbito de atuação de historiadores de um
lado e cientistas sociais do outro também são as convenções. O fato de o
passado distante ter se tornado, ao longo dos últimos 150 anos, o único
campo “legítimo” de atuação do historiador não pode ser reconstruído
sem que levemos em conta o advento de outros atores na arena do co-
nhecimento histórico-social. Foram esses atores que, a bem dizer, expro-
priaram o historiador da sua relação com o presente enquanto objeto — o
jornalista e o sociólogo.5
introdução
4
A conferência de Benz, “Aceleração do tempo enquanto problema histórico e de histó-
ria da salvação”, foi proferida em 1977 na Academia de Ciências de Marburg. A respeito,
ver os densos comentários de Blumenberg (2007:207-211).
5
Cf., entre outros, Pereira (2009) e Mata (1998:133-136). 13
II
entra para a história quando não interessa mais diretamente à política do dia
e pode ser negligenciado […]. Enquanto sua ação se fizer sentir, ele adere
à vida da nação e permanece presente para esta [Bergson, 2006:174-175,
grifos nossos].
III
6
Fiamo-nos no relato de Lübbe, que trabalhou ao lado de Koselleck no famoso grupo
“Teoria da História”, reunido na década de 1970 na Fundação Werner-Reimers, e do
qual participavam ainda Jürgen Kocka, Thomas Nipperday, Karlheinz Stierle e Niklas
Luhmann.
7
16 Salvo quando indicado, os trechos que se seguem baseiam-se ainda em três trabalhos
vações científicas, especialmente entre as ciências naturais, também di-
minui num ritmo espantoso. “Nunca como hoje”, constata Lübbe, “foi tão
grande a quantidade de informação ultrapassada disponível em nossas bi-
bliotecas.” De fato, é o que demonstram os inúmeros estudos recentes
sobre o período necessário para que dobre a literatura científica referente
a um determinado campo de investigação (“taxa de duplicação”). Segundo
Urbizagastegui, em princípios da década de 1970 estimava-se que “a lite-
ratura produzida na maioria dos campos científicos continuava a crescer
exponencialmente, com taxa de duplicação de aproximadamente 10 anos”
(Urbizagastegui, 2009:113).
Estreitamente relacionado ao conceito de encolhimento do presente
(Gegenwartsschrumpfung) está o de “precepção”, que diz respeito ao proble-
ma dos arquivos, isto é, daquelas instituições encarregadas de preservar
tudo aquilo que tenha “um presente duradouro como meios de presenti-
ficação do passado”. O aumento gigantesco do fluxo de informação pro-
duzido pelas grandes corporações públicas e privadas exige a aplicação de
critérios cada vez mais rigorosos pelos arquivistas.8 Na década de 1990 já
se previa que a taxa de seleção do que é digno de ser preservado (“cassa-
ção”) cairia de 10% para 5%.
Sendo esta a nossa situação civilizacional, como explicar que o homem
não se perca pela simples impossibilidade de orientar-se num mundo em
rápida mutação? (Lübbe, 1983:131-154) Esse ponto nos leva a outro
conceito proposto por Lübbe, o de que a aceleração é marcada por uma
“ilaminaridade evolucionária”. Inspirado na física, o conceito mostra que
processos de transformação jamais ocorrem numa velocidade homogê-
nea. Tal como no leito de um rio, a velocidade da mudança depende do
“lugar” que algo ou alguém ocupa. Lübbe toma como índice o fenômeno
das vanguardas, para mostrar seu caráter autocontraditório: quanto mais
vanguardismo, tanto maior a quantidade do que se torna “velho”, as van-
guardas de ontem inclusive. Ao se insurgir contra a instituição do museu,
Marinetti na verdade contribuiu para aumentar a quantidade daquilo que
ele próprio chamava de “matadouros de pintores e escultores”. Mais ainda:
introdução
IV
9
Sobre a experiência do trauma, cf. os artigos de Durval Muniz de Albuquerque Júnior
e Temístocles Cezar neste volume.
10
Cf. uma síntese crítica em Nicolazzi (jul-dez 2010:229-257). O autor ainda tece uma
consideração geral que merece ser destacada para os propósitos do nosso argumento
neste texto: “o presente, qualquer que seja ele, se impõe à reflexão para os historiadores
se não pela dimensão ética que o impregna, ao menos pela importância epistemológica
18 que ele assim delimita.” (p. 257)
“Presentismo pleno ou transitório (par défaut)”. Nesse texto, o autor inicia
sua reflexão procurando estabelecer algum tipo de relação entre a crise do
tempo que ele já indicava na primeira edição do livro de 2003 com a crise,
inicialmente financeira, em que a Europa está mergulhada desde 2008, sem
condições, na opinião do autor, de ver para além ou aquém dela.
A grande transformação, o presentismo, é definida, da mesma forma
que já havia sido ao longo da primeira edição, como um mundo em que
o presente se impõe como o único horizonte, um presente onipotente
e hipertrofiado. O autor pergunta, por exemplo, se a atual especulação
financeira, resultado também da plasticidade (transformação e adapta-
ção) do capitalismo, não seria um exemplo maior do presentismo, pois a
“imediaticidade” do tempo dos mercados não pode se ajustar aos tempos
da economia, da política, dos políticos (cada vez mais presos aos calendá-
rios eleitorais). Eis aí, segundo Hartog, mais uma demonstração de nossa
incapacidade coletiva de escapar do “presente único: este da tirania do
instante e do marasmo de um presente perpétuo” (Hartog, 2012:5-9). A
reflexão do autor é uma tentativa de demonstrar uma suposta especifi-
cidade na nossa atual forma de articular passado, presente e futuro, por
meio de uma temporalização do tempo (Hartog, 2010-a:9-30).11
Vivemos entre crises substituídas a cada novo escândalo. O presen-
tismo é o tempo em que não há nada além do evento. Como exemplo,
o autor afirma que a partir do 11 de Setembro de 2001 a administra-
ção americana decidiu fundar um ponto zero da história mundial. A
guerra contra o terrorismo seria um presente novo e único. (Sabemos
agora, em 2012, quanto esta tentativa fracassou. Vale para o argumento
a intenção? Talvez pela razão da referida guerra já fazer parte de um
“passado distante”?) O atentado, para Hartog, põe em evidência a lógica
do evento contemporâneo — ele se dá a ver enquanto acontece, se his-
toriza e “traz em si mesmo sua própria comemoração: sob os olhos das
câmeras. E, nesse sentido, ele é absolutamente presentista” (Hartog,
2003:116 e 156).12 Afinal, as câmeras filmando o segundo avião criaram
introdução
11
Nesse texto, Hartog sugere que nossa atual relação com o futuro é da ordem apoca-
líptica.
12
É interessante notar que historiadores de tradições diversas têm defendido posições
próximas às de François Hartog em certos pontos. Do ponto de vista de uma história
política, por exemplo, Tony Judt afirma que “contemporâneos podem ter lamentado a 19
as condições para tal; de forma semelhante, o mesmo teria ocorrido em
1968 e 1989.
Diante desse quadro restaria ao historiador oferecer às sociedades um
de seus atributos: o olhar distanciado. O instrumental fornecido pela no-
ção de “regimes de historicidade” ajuda a criar a distância necessária para
ver melhor o próximo: “solidários, a hipótese (o presentismo) e o ins-
trumento (o regime de historicidade) se complementam mutualmente”.
O regime de historicidade é entendido como articulação entre passado,
presente e futuro ou uma constituição mista das três categorias — com um
dos elementos dominantes13 — ao longo da experiência humana do tem-
po. Não se trata de uma realidade dada, é uma categoria, um tipo-ideal,
construída pelo historiador, sem sucessões mecânicas e sem coincidir
com o conceito de época: “é um artefato que é válido por sua capacidade
heurística”.
Para Christian Delacroix, um dos problemas desta “redução heurís-
tica” da noção de “regimes de historicidade” é, entre outros aspectos, o
risco de desencorajar a historicização da própria noção. O que poderia
resultar, no nosso entendimento, em uma naturalização do “instrumen-
to”. Ainda segundo Delacroix, a noção, em especial, de presentismo “não
pode ser reduzida à heurística, pois ela comporta um julgamento de reali-
dade sobre nossa época (ela é, então, de natureza ontológica, desse ponto
de vista)” (Delacroix, 2009:42).
A hipótese do presentismo (por vezes tomada, apesar das intenções
do próprio autor, como uma evidência) não pode ser entendida, ainda
segundo Hartog, sob o registro da nostalgia (um regime melhor que ou-
tempo presente & usos do passado
14
De forma mais direta o autor afirma: “el futuro ha dejado de ser un horizonte lumi-
noso hacia el cual dirigimos órdenes de marcha más o menos vibrantes, para volverse
una línea de sombra que hemos puesto en movimiento hacia nosotros, en tanto que
parecemos agitarnos inutilmente en el presente y rumiar un pasado que no termina de
pasar.” (p. 26) 21
mente de “crise do futuro” no Brasil? Estaríamos aqui nos trópicos sob o
signo de um tipo de futurismo que interage com dimensões do presentis-
mo, como a historicização imediata da era digital, mas que mantém uma
confiança e esperança, por vezes ingênuas, com a categoria de progresso
e/ou futuro?15 Sem procurar discutir se a hipótese (o presentismo) e o
instrumento (regimes de historicidade) são bons ou ruins, corretos ou
equivocados, procuraremos pensar brevemente a dificuldade de trans-
posição da referida hipótese para o contexto brasileiro atual. Para tal,
tomaremos como índice outro prefácio. De um livro denominado, sinto-
maticamente, Agenda brasileira.
Fazendo uso de um procedimento moderno, os organizadores da
Agenda brasileira procuram historicizar o presente, destacando que vive-
mos um tempo de grandes mudanças na sociedade brasileira. Eles acre-
ditam que nosso presente pode ser comparado com os anos 1950, os
anos desenvolvimentistas, período que ainda nos “interpela” não só pelas
promessas não cumpridas: “também porque a década de 1950 nos aler-
ta criticamente para o risco de que, mesmo cumprida, a modernização
possa não se traduzir diretamente em modernidade e emancipação” (Bo-
telho e Schwarcz, 2011:16). Mesmo reconhecendo o peso internacional
crescente do país e nossos pacíficos processos eleitorais em mais de 20
anos os autores destacam os dilemas da violência e da desigualdade. Per-
cebemos, desse modo, a persistência de um olhar crítico em relação ao
presente, ao passado e ao futuro; porém, diferentemente da análise de
Hartog, não nos parece que haja neste diagnóstico do presente uma crise
do futuro.16 Ao contrário, os autores afirmam que a obra por eles organi-
tempo presente & usos do passado
zada pretende, por meio de reflexões sobre os mais variados temas, pen-
sar a “mudança social” numa época de transformações aceleradas. “Olhar
para nós mesmos”, mais do que um gesto de nostalgia, é uma atitude de
crítica de autorreflexão e cidadania.
15
Para uma distinção entre mito do progresso e esperança no futuro, cf., em especial,
Rossi (2000). Cf., também, Jonas (1998).
16
Em um exercício de futurologia, o ministro da Economia, Guido Mantega, anterior-
mente ao anúncio, em 2011, de que o Brasil se tornaria a sexta economia do mundo, de-
clarou que dentro de 10 a 20 anos o país teria um padrão de vida europeu. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/1026365-mantega-diz-que-pode-levar-20-
22 anos-para-brasil-ter-padrao-de-vida-europeu.shtml>. Acessado em 9 jan. 2012.
Outro aspecto de fundo também merece ser destacado: a legitimi-
dade social da história e/ou dos historiadores nas duas realidades (fran-
cesa e brasileira). Ao que parece, verifica-se desde o final do século
passado um progressivo declínio da história e/ou dos historiadores na
cena pública francesa (Rioux, 2006, e Theullot, 2005).17 Diante desse
fenômeno, Pierre Nora, por exemplo, por meio de uma problemática
distinção entre história e memória na linha da sociológica de Maurice
Halbwachs, defende a tese de um aumento da aceleração da história, de
uma suposta ruptura entre história e memória e da perda da história-
-memória: “fala-se tanto de memória porque ela não existe mais”, ou
ainda, “o nascimento de uma preocupação historiográfica, é a história
que se empenha em emboscar em si mesma o que não é ela própria,
descobrindo-se como vítima da memória e fazendo um esforço para se
livrar dela” (Nora, 1993:7 e 10).18
Nessa direção, Hartog afirma, também de forma problemática, que
o questionamento da história deve-se a seu eclipse (temporário?) em fa-
vor da memória, termo que teria se tornado mais abrangente (Hartog
in Delacroix, 2010:766-771).19 O passado atrai mais do que a história.
Para alguns analistas, a história foi deixada de lado em nome do direito e
a história conduzida pelo direito cria uma situação ou de criminalização
generalizada do passado ou de uma vitimização generalizada.20 De algum
modo, a posição de François Hartog não deixa de ser uma tentativa de re-
fletir sobre a perda da legitimidade da história e/ou dos historiadores na
sociedade francesa. É o presentismo que explica a perda. O atual “fardo
17
Segundo François Hartog, “actualmente, para ser admitido en el espacio público, para
ser reconocido en la sociedad civil, el historiador debe ‘presentificarse’, proponiéndose,
como experto y transmissor [passeur] de presente: del presente al presente?” (Hartog,
2010-b:22).
18
Ricœur critica duramente a perspectiva aberta por Halbwachs (e desenvolvida por
Nora e outros) por trabalhar a relação entre história e memória sob o signo da oposi-
ção e/ou hierarquização e não da dialética. Ricœur (2000); Ricœur (2002:41-61). Cf.,
também, Hartog (2003:113-161).
introdução
19
Na mesma direção, Beatriz Sarlo comenta que o “presente, ameaçado pelo desgaste da
aceleração, converte-se, enquanto transcorre, em matéria da memória” (2005:95-96).
Cf. as análises de Irene Cardoso e Temístocles Cezar neste livro sobre a relação entre
testemunho, memória e história.
20
Ver, sobre isso, as seguintes referências: Gauchet (2002); Nora (2006); Eliacheff e
Larivière (2007). 23
da história” é posto nos seguintes termos: “não se trata de defender a his-
tória por ela mesma, em nome do que ela foi, mas pelo que ela poderá ser
(em um mundo presentista pleno ou imperfeito — par défaut)” (Hartog
in Delacroix et al., 2009:149). Nessa direção, o “fardo do historiador” é
tornar-se contemporâneo do contemporâneo, “lo que significa lo con-
trario de correr detrás de la actualidad o ceder a la lógica del momento”
(Hartog, 2010-b:16).21
Talvez seja desnecessário refletir se somos ou não o país do esque-
cimento, mas certamente é no mínimo inusitado falarmos, no Brasil,
de excesso de memória ou de perda de legitimidade da história. A res-
peito da “comemoração dos 500 anos”, Helenice Rodrigues da Silva
afirma: “se as comemorações nacionais têm por objetivo cristalizar as
memórias coletivas, a data de 22 de abril de 2000 já não passa de uma
lembrança negativa que o país se esforça em esquecer” (2003:425-439).
Não deixa de ser sintomático também a “verdadeira saga, em busca da
regulamentação da nossa profissão”.22 A própria tentativa de profissio-
nalização também já não é um sintoma da baixa legitimidade da práti-
ca histórica? Fato é que desde 1968 há projetos nesta direção, em um
país que nos últimos anos, por exemplo, regulamentou profissões novas
como as de enólogo e mototaxista. Em notícia sobre aprovação da pro-
fissão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, os jornalistas
da Agência Senado escreveram que “o relator reconheceu o ‘relevan-
te’ papel exercido pelos historiadores na sociedade” (Borges e Franco,
2011). Não deixa de ser no mínimo irônico o uso de aspas na palavra
“relevante”, para dizer pouco. O próprio pleito por parte da Associação
tempo presente & usos do passado
21
Hayden White denomina “fardo do historiador”, a saber: “restabelecer a dignidade dos
estudos históricos […] de modo a permitir que o historiador participe positivamente da
tarefa de libertar o presente do fardo da história” (1994:53).
22
Dossiê sobre a regulamentação da profissão de historiador disponível em <http://
24 www.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=317>.
naquele espaço social e, em última instância, dos rumos e crises que a
ideia de “Europa” vem experimentando desde, pelo menos, a década de
1980. Dimensões que não podem ser deixadas de lado em qualquer tipo
de transposição do argumento para a realidade brasileira. Crise na ordem
do tempo? De qual tempo? De que ordem? E qual crise? Ao que parece,
não temos experimentado o tempo, pelo menos em alguns aspectos, da
mesma forma que o Velho Mundo (Flusser, 1998).23
A imagem do artista de rua britânico conhecido pelo pseudônimo
Banksy, na qual vemos uma menina sentada na calçada segurando a letra
“O” da mensagem “No future”, como se fosse um balão, de algum modo
exprime certo imaginário social daquela experiência do tempo.24 Por
outro lado, nos parece que “O gigante adormecido”, peça publicitária
da empresa Johnnie Walker, exprime um imaginário social emergen-
te acerca da atual experiência do tempo nos trópicos. Nessa peça, o
morro do Pão de Açúcar se transforma em um gigante que caminha
pelo Rio de Janeiro, e a propaganda termina com o slogan da empresa,
“Keep Walking” (continue andando).25 Não se trata de dizer que uma
experiência seja “superior” à outra, mas o que se quer destacar aqui é
a “diferença” entre ambas. A metáfora do “gigante adormecido” pode
ser tomada como sintoma de uma nova reinvenção do otimismo (Fico,
1997).26 No entanto, agora não mais sob o signo da ditadura, por mais
que o futebol continue atravessando a política e a economia. Ainda que
os fantasmas de um passado, já não tão recente assim, continuem nos
atormentando e sendo justas as questões a serem enfrentadas.27 Enfim,
23
Na década de 1970, justamente quando mais se falava em “aceleração” na Europa,
Flusser afirmou — o que sempre lhe custou incompreensões — que o homem bra-
sileiro seria um “tipo a-histórico não primitivo” (1998). É algo irônico que sejam hoje
intelectuais europeus e norte-americanos os que falam num presente “lento” ou “oni-
presente”.
24
Disponível em <http://www.artofthestate.co.uk/banksy/banksy-no-future.htm>.
25
Disponível em <http://www.jb.com.br/economia/noticias/2011/10/08/propa-
ganda-da-johnnie-walker-com-pao-de-acucar-que-vira-gigante-faz-sucesso/>.
26
Vale a pena lembrar que, em face dos horrores da II Guerra Mundial, Stefan Zweig
introdução
retoma a metáfora do Brasil como país do futuro. A miscigenação e o “ódio à guerra” são
exaltados como uma das principais virtudes da jovem nação. Para uma análise geral da
questão, cf. Carvalho in Bethell (2002:45-75).
27
Cf., entre outros, Reis (2010); Gagnebin in Teles e Safatle (2010:177-186); Traverso
in Cernadas e Lvovich (2010:47-68). Cf. o artigo de Durval Muniz de Albuquerque
Júnior neste livro sobre trauma, esquecimento e usos do passado. 25
esperamos ter compartilhado nossas reticências quanto à utilização da
categoria de presentismo para se pensar a experiência do tempo no
Brasil do início do século XXI.28
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