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Tempo presente &

usos do passado
Tempo presente &
usos do passado

FLÁVIA FLORENTINO VARELLA


HELENA MIRANDA MOLLO
MATEUS H. F. PEREIRA
SÉRGIO DA MATA
organizadores
Copyright © 2012 Flávio Florentino Varella, Helena Miranda Mollo, Mateus H. F. Pereira
Sérgio da Mata

Direitos desta edição reservados à


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em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98).

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.

1a edição — 2012

preparação de originais | Natalia Lima


revisão | Eduardo Carneiro Monteiro
capa e diagramação | Santa Fé ag.

Ficha catalográica elaborada pela


Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Aprender com a história? : o passado e o futuro de uma questão / Organiza-


dores: Fernando Nicolazzi, Helena Miranda Mollo, Valdei Lopes de Araujo. — Rio
de Janeiro : Editora FGV, 2011.
256 p.

Inclui bibliograia.
ISBN: 978-85-225-0856-3

1. Historiograia. 2. Historicismo. I. Nicolazzi, Fernando. II. Mollo, Helena Mi-


randa. III. Araujo, Valdei Lopes de. IV. Fundação Getulio Vargas.

CDD — 907.2
Int roduçã o

Transformações da experiência do
tempo e pluralização do presente*
mateus henrique de faria pereir a | sérgio da mata

Creio que estamos diante de uma das formas, e talvez se deva dizer, um dos
hábitos mais nocivos do pensamento contemporâneo, eu diria inclusive do
pensamento moderno ou, em todo caso, do pensamento pós-hegeliano: a
análise do momento presente como se este fosse precisamente, na história, o
momento da ruptura, ou da realização, ou da aurora que retorna, e assim
por diante. A solenidade com que toda pessoa que mantém um discurso
ilosóico relete sobre seu próprio tempo me parece um estigma. Digo
isso, sobretudo, porque eu mesmo procedi assim e porque o encontramos
constantemente em alguém como Nietzsche [...]. Creio que devemos ter
a modéstia de dizer para nós mesmos, por um lado, que o tempo em que
vivemos não é este tempo único, fundamental ou que irrompe na história, a
partir do qual tudo se acaba ou tudo recomeça.
Foucault (1998:449)

A última década do século passado e a primeira do século XXI foram


marcadas por uma obsessão: as reflexões sobre a temporalidade. Fomos
seduzidos não só pela memória, mas também pela suposta “crise” da tem-
poralidade moderna. Foram tempos de pós-tudo e de muitos fins, anun-
ciados ou reais. A partir disso, este livro pretende refletir sobre uma vasta
gama de problemas que se articula com o tempo presente, ampliando os
quadros de uma tradição historiográfica para a qual o “presente” abarcaria
a história da ditadura militar (1964-1985). Esse passado que não passa é
ainda presente. Mas seria ele atual, contemporâneo?

*
Apoio: Neaspoc, Capes, CNPq e Fapemig.
Há algum tipo de descontinuidade em nossa consciência, percepção e
experiência contemporâneas do tempo? Como o conhecimento histórico
pode contribuir para a reflexão sobre a complexa relação entre passado/
presente/futuro no século XXI? Um dos desafios é pensar as possibilida-
des e os limites da “transposição” de diagnósticos europeus para a realida-
de brasileira. Menos por uma disposição romântica qualquer do que pela
simples imposição dos fatos, perguntarmo-nos até que ponto não apenas
épocas, “regimes”, mas também sociedades distintas, mesmo aquelas in-
terligadas do ponto de vista civilizacional, relacionam-se da mesma forma
com o tempo. Enquanto escrevemos, a Europa enfrenta a sua mais grave
crise do pós-guerra. O Velho Mundo titubeia, mas a Primavera Árabe e a
criação da Comissão da Verdade para a investigação dos crimes cometidos
durante a ditadura militar brasileira dão prova de que alguns dos ideais e
conceitos produzidos há séculos pela Europa continuam vivos, podendo
ser, ao mesmo tempo, descompassados e ressignificados.

Um diagnóstico do tempo presente: tarefa difícil, quanto mais para o


historiador! Desde Santo Agostinho os filósofos não avançaram muito a
respeito do que vem a ser tal coisa, o “presente”. Por que justamente os
historiadores parecem cada vez mais interessados por ele? Se o presente
torna-se um problema isso se deve, em grande medida, ao fato de que se
tornaram cada vez mais estreitas as chances de se construir um discurso
tempo presente & usos do passado

homogêneo a seu respeito.


Definir o presente como “época”? Os marcos canônicos (via de regra
de natureza política) variam, sabidamente, ao gosto das experiências na-
cionais. Na França, na península Ibérica e no Brasil, o marco que define o
início da história contemporânea é a Revolução Francesa. Na Alemanha e
na Inglaterra, o historiador que se dedica à Zeitgeschichte ou à contemporary
history trabalha preferencialmente com eventos posteriores à II Guerra
Mundial. Contemporânea, na Rússia, é a história posterior a 1918. Na Itália,
por sua vez, trata-se do período que advém após o Congresso de Viena.
A impossibilidade de se articular uma linguagem comum pode ser ates-
10 tada ainda com exemplo recente. Em princípios de novembro de 2011,
realizou-se na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) um
simpósio dedicado à história do “tempo presente”, período que, segundo
a página do congresso na internet, compreenderia os “fenômenos históri-
cos transcorridos ao longo do século XX e início do século XXI”. Temos
uma ideia vaga do que seria o contemporâneo, mas não do momento
aproximado que demarcaria seu início. Como essas diferenças têm um
evidente substrato cultural, nunca chegaram a ser objeto de disputa entre
os historiadores, dado o alto grau de arbitrariedade que preside a escolha
de quaisquer marcos cronológicos. Embora o debate atual sobre o tempo
presente mostre que tal resignação tenha seus limites, também aí reina a
desordem. O que implica a busca de outras soluções entre os estudiosos
do chamado “tempo presente”.1
Parece haver alguma relação intrínseca entre o advento de uma nova
centúria e a redescoberta da temática do tempo. Tal como hoje, em prin-
cípios do século XX a intelectualidade europeia dedicou especial atenção
ao tempo e inclusive à possibilidade de aceleração do tempo. Os físicos
tiveram, naquela ocasião, um papel tão ou mais importante que o dos fi-
lósofos e historiadores (a ciência não fora levada ainda ao banco dos réus).
Entre 1902 e 1905, Henri Poincaré e Albert Einstein estabeleceram os
fundamentos da teoria da relatividade restrita. O tempo, ao qual os ma-
temáticos e físicos se referiam com a bela expressão “a quarta dimen-
são”, tornara-se agora uma grandeza relativa. Naquele mesmo momento,
Edmund Husserl dava em Göttingen suas primeiras preleções sobre a
fenomenologia da consciência interna de tempo. Finalmente, em 1915,
Einstein apresentou sua teoria da relatividade geral. O impacto gerado
por esta revolução entre os filósofos pode ser facilmente constatado na
conferência de Heidegger de 1915 sobre o tempo na ciência histórica,
na qual remete a escritos de Max Planck e inclusive ao famoso artigo de
Einstein sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento (Heidegger,
2009:13-28). É difícil imaginar que as reflexões de Georg Simmel sobre
“o problema do tempo histórico”, feitas em 1916, não tenham recebido
qualquer influxo de tais descobertas (Simmel, 2011:9-23).2
introdução

1
Cf. os artigos de Carlos Fico, Marieta de Morais Ferreira e Raquel Glezer neste livro.
Ver também, entre outros, Pereira (2011:56-65).
2
Cf. também o artigo de Olgária Matos sobre Walter Benjamin neste livro. 11
O tempo estava na ordem do dia. H. G. Wells havia publicado há pouco
seu conhecido livro A máquina do tempo (1895). No conto O novo acelerador
(1901),Wells narra a história do professor Gibberne, inventor de uma dro-
ga capaz de tornar excepcionalmente rápido aquele que a ingerisse. Depois
de testar o medicamento, ele se dá conta de que tão maravilhoso experi-
mento trazia consigo um irritante efeito colateral. Para quem ingeria o ace-
lerador, tudo à sua volta parecia “estar se movendo milhares de vezes mais
lentamente”.3 Depois de uma surreal experiência pelos arredores da casa
de Gibberne, em que o cientista e um amigo exercitam sua curiosidade em
meio a pessoas congeladas num eterno slow-motion, o narrador afirma: “É o
início de nossa fuga da roupagem do tempo de que fala Carlyle”. Oito anos
depois da publicação do conto de Wells, o manifesto futurista de Marinetti
fazia o elogio do automóvel e da “beleza da velocidade”. Em 1913, aparece
o primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Proust.
Embora timidamente, as ciências humanas deram resposta a tais estí-
mulos. Sob clara influência dos escritos de Bergson, Henri Hubert inau-
gura a sociologia do tempo com um “Estudo sumário da representação do
tempo na religião e na magia”, de 1905 (Pinheiro Filho, 2005:141-161).
E quanto à história? Caberia a um jornalista e historiador norte-america-
no elaborar, em 1904, o primeiro esboço de uma “lei da aceleração”. Dé-
cadas antes de Koselleck, Henry Adams constatava uma “estupenda acele-
ração após 1800”, determinada, acreditava ele, pelo avanço inexorável da
ciência. “A complexidade”, afirmava Adams na ocasião, “se expandiu por
horizontes imensos” (Adams, 1954:247-258).
Somente a partir de meados da década de 1970, a intuição de Henry
tempo presente & usos do passado

Adams sobre a “lei da aceleração” seria revisitada. Para tanto parecem ter
contribuído as recentes revoltas estudantis ao redor do globo, a apoca-
líptica frankfurtiana a respeito do “capitalismo tardio” e a redescoberta
das categorias “utopia” e “esperança” nos meios intelectuais progressistas
(Baczko, 1978). No caso da Alemanha, um fator adicional e, tudo leva a
crer, decisivo: a irrupção do terrorismo de extrema esquerda.
Há de fato uma aceleração do tempo? Numa conferência que se tor-
nou famosa, o teólogo e historiador Ernst Benz defendeu a tese de que
na origem do conceito de aceleração está a ideia cristã de que o tempo

3
12 Em <www.online-literature.com/wellshg/16/>. Acessado em 9 jan. 2012.
avança inelutavelmente para um “fim”. As teorias revolucionárias moder-
nas e mesmo o terrorismo político não passariam de versões laicizadas
daquela concepção. Para Benz, pode-se dizer, a aceleração é a soteriolo-
gia secularizada.4 Koselleck reconheceu o caráter originalmente religio-
so do fenômeno, mas ressaltou a importância da Revolução Industrial e
da Revolução Francesa como condicionantes macro-históricos decisivos.
A percepção de uma aceleração do tempo teria se alimentado tanto da
expectativa salvífica quanto da experiência produzida por épocas de cri-
se (como mostrara Burckhardt em suas Weltgeschichtliche Betrachtungen)
e da maior dinâmica civilizacional das sociedades industriais (Koselleck,
2003:150-176).
Vimos que no início do século XX as concepções sobre o tempo eram
viradas ao avesso. No entanto, o presente continuava a ser uma noção
obscura. A imprecisão crônica do termo “presente” sugere que ele não
se situa, talvez nem mesmo possa se situar, no âmbito do conceituável.
Certo é que, indiferente a tais dificuldades, o mundo lá fora segue seu
curso. Com isso se quer dizer que algum tipo de distinção entre passado,
presente e futuro sempre é intersubjetivamente construído. No mundo
da vida — onde reina a convenção — o problema sequer se apresenta,
ou se coloca apenas em termos de uma racionalidade prática. Num plano
distinto, mas nem tanto, a temporalidade aos poucos se torna alvo de dis-
puta entre disciplinas acadêmicas. Diferentes “fatias” do tempo são apro-
priadas por diferentes ciências. Para além de quaisquer esforços de deli-
mitação mútua, o que rege o âmbito de atuação de historiadores de um
lado e cientistas sociais do outro também são as convenções. O fato de o
passado distante ter se tornado, ao longo dos últimos 150 anos, o único
campo “legítimo” de atuação do historiador não pode ser reconstruído
sem que levemos em conta o advento de outros atores na arena do co-
nhecimento histórico-social. Foram esses atores que, a bem dizer, expro-
priaram o historiador da sua relação com o presente enquanto objeto — o
jornalista e o sociólogo.5
introdução

4
A conferência de Benz, “Aceleração do tempo enquanto problema histórico e de histó-
ria da salvação”, foi proferida em 1977 na Academia de Ciências de Marburg. A respeito,
ver os densos comentários de Blumenberg (2007:207-211).
5
Cf., entre outros, Pereira (2009) e Mata (1998:133-136). 13
II

Num livro que se ocupa com a história do tempo presente, é natu-


ral, porém, que não possamos nos dar por satisfeitos com meras con-
venções, sejam as da linguagem cotidiana, sejam as da academia. Se
há algum caminho capaz de lançar luz sobre a questão com que nos
ocupamos aqui, certamente é o que conduz à obra de Henri Bergson.
Devemos a ele a distinção pioneira entre “tempo” e “duração”, e, sobre-
tudo, uma solução sofisticada para o problema do “presente”. Em sua
fenomenologia da consciência de tempo interior, e que se aproxima de
Bergson mais do que talvez estivesse disposto a admitir, Husserl não dá
maior atenção à questão. O “presente” é ali, rigorosamente falando, um
ponto-cego deslocando-se ininterruptamente entre as retenções pri-
márias e secundárias, de um lado, e as pretensões antecipadoras, de
outro (Husserl, 1959).
Bergson reconheceu a impossibilidade de se chegar a uma definição
substantiva do “presente”. Trata-se, diz ele, de “uma pura abstração, uma
visão do espírito”, sem qualquer “existência real”. O passo decisivo foi
dado em 1911, quando ele chega à conclusão que:

A distinção que fazemos entre o nosso presente e o nosso passado é […] se


não arbitrária, pelo menos relativa à extensão do campo que nossa atenção à
vida pode abarcar. Numa palavra, nosso presente cai no passado quando deixamos
de lhe atribuir um interesse atual. Ocorre com o presente dos indivíduos o
mesmo que com o das nações: um acontecimento pertence ao passado e
tempo presente & usos do passado

entra para a história quando não interessa mais diretamente à política do dia
e pode ser negligenciado […]. Enquanto sua ação se fizer sentir, ele adere
à vida da nação e permanece presente para esta [Bergson, 2006:174-175,
grifos nossos].

Eventos já ocorridos são um “presente” para nós pelo tempo em que


nosso interesse por eles estiver aceso. Para empregar o jargão fenomeno-
lógico: enquanto eles se mantêm no foco do nosso fluxo de consciência.
Disso sabia, a seu modo, o mestre holandês Johan Huizinga. Num curto e
brilhante artigo de 1936, intitulado “Como o presente se torna passado?”,
14 ele chegava à mesma conclusão que Bergson.
Eu posso perceber minha véspera como história e minha infância como pre-
sente. A fronteira entre história e presente radica no olhar do momento, ou,
melhor dizendo, não há fronteira alguma. Não existe agora, só há passado
e futuro. […] O presente, porém, só recebe sua essência histórica, e que é
única, no processo de constituição (Formgebung) por intermédio do observa-
dor [Huizinga, 1954:121].

Desenvolvendo um pouco mais o mesmo argumento, o filósofo Her-


mann Lübbe entende o “presente” como “aquele conjunto de experiên-
cias que não se tornaram ainda uma alteridade para nós”. Somente quan-
do se produz um “estranhamento” em relação a dados bens de cultura de
que dispusemos um dia, ou ainda a vivências pessoais ou coletivas, é que
tais coisas se tornam “passado” (Lübbe, 2003:402). O simples fato de
algo ser pretérito não basta para que o consideremos “passado”. Haverá
presente enquanto estiverem ativos determinados interesses de presen-
tificação do passado (Vergangenheitsvergegenwärtigungsinteressen) (Lübbe,
2004:134).
Ninguém há de negar que essa forma de compreender o “presente”
é bastante plausível. Mas o que ela não é capaz de garantir, por si só, é
um consenso no que se refere aos diagnósticos quanto ao presente. Ao
afirmar que vivemos há algum tempo num “lento presente”, com o ar-
gumento de que nossos ícones intelectuais são basicamente os mes-
mos de há três ou quatro décadas, Hans Ulrich Gumbrecht confirma
a perspectiva exposta acima. Isso nos conduz à questão de saber se a
nossa época estaria marcada por uma aceleração ou, ao contrário, se
teríamos deixado para trás a lógica da aceleração e do tempo histórico.
Gumbrecht sustenta que o presente “se dilata cada vez mais” (Gum-
brecht, 2010:45-49). Para Lübbe, porém, o que estamos a vivenciar
é um “encolhimento do presente” (Lübbe, 2009:159-178). Vejamos os
argumentos mais de perto.
introdução

III

Ainda lemos Foucault, Derrida e Bourdieu, constata Gumbrecht. A “sen-


sação”, diz ele, é a de que “as estruturas centrais de nosso mundo se trans- 15
formam agora mais lentamente do que até pouco tempo”. Estaríamos
diante do esgotamento do “cronótopo moderno”. Desapareceram as te-
leologias, a aceleração interrompeu-se. Gumbrecht lança mão de uma
quantidade surpreendentemente pequena de evidências em apoio à sua
tese. A tentação e o fascínio produzidos por prognósticos desse tipo já
haviam marcado autores como Joachim Ritter, Arnold Gehlen e Fran-
cis Fukuyama. Será possível subscrever a ideia de que vivemos hoje um
tempo “mais lento” depois da crise que ameaçou pôr abaixo a economia
mundial, depois da Primavera Árabe e da crise do euro? Tais eventos são
“história” ou tratar-se-á de mera espuma, destinada a desfazer-se em bre-
ve? Tudo depende do campo da vida social sobre o qual centramos nosso
interesse, e ainda de qual sociedade, e até de qual estamento se está a
falar. A aceleração não há de afetar tudo e a todos com a mesma inten-
sidade, e o mesmo se pode dizer das eventuais desacelerações. Caso não
queira se tornar refém de ilusões, o olhar deve tornar-se mais dialético.
Mas também mais rigoroso. Os fatos, dizia o próprio Koselleck, têm
“poder de veto”. Ele tinha dúvidas a respeito das possibilidades de se evi-
denciar empiricamente a aceleração (Lübbe, 2003:vi).6 Poder-se-ia falar
de uma experiência de aceleração, mas não de uma aceleração da história
(Koselleck, 2003:167). Talvez se possa dizer que desta dúvida nasceu a
analítica do tempo presente de Lübbe.
A fim de verificar os efeitos socioculturais concretos da aceleração,
Lübbe empregou soluções no mínimo originais para um filósofo. Uma das
primeiras foi investigar o processo de proliferação exponencial dos mu-
seus nas últimas décadas. Para ele, o avanço da musealização e a preocupa-
tempo presente & usos do passado

ção crescente com o patrimônio são formas de compensação ante a nossa


acelerada dinâmica civilizacional. Nessas condições, o presente torna-se
cada vez mais curto. Cresce na mesma proporção, portanto, a quantidade
de “relíquias” a serem preservadas. Dito com concisão: “ao progresso per-
tence, de forma estrutural, a musealização daquilo que o progresso deixou
para trás” (Lübbe, 1977:319-320).7 O prazo de validade de teorias e ino-

6
Fiamo-nos no relato de Lübbe, que trabalhou ao lado de Koselleck no famoso grupo
“Teoria da História”, reunido na década de 1970 na Fundação Werner-Reimers, e do
qual participavam ainda Jürgen Kocka, Thomas Nipperday, Karlheinz Stierle e Niklas
Luhmann.
7
16 Salvo quando indicado, os trechos que se seguem baseiam-se ainda em três trabalhos
vações científicas, especialmente entre as ciências naturais, também di-
minui num ritmo espantoso. “Nunca como hoje”, constata Lübbe, “foi tão
grande a quantidade de informação ultrapassada disponível em nossas bi-
bliotecas.” De fato, é o que demonstram os inúmeros estudos recentes
sobre o período necessário para que dobre a literatura científica referente
a um determinado campo de investigação (“taxa de duplicação”). Segundo
Urbizagastegui, em princípios da década de 1970 estimava-se que “a lite-
ratura produzida na maioria dos campos científicos continuava a crescer
exponencialmente, com taxa de duplicação de aproximadamente 10 anos”
(Urbizagastegui, 2009:113).
Estreitamente relacionado ao conceito de encolhimento do presente
(Gegenwartsschrumpfung) está o de “precepção”, que diz respeito ao proble-
ma dos arquivos, isto é, daquelas instituições encarregadas de preservar
tudo aquilo que tenha “um presente duradouro como meios de presenti-
ficação do passado”. O aumento gigantesco do fluxo de informação pro-
duzido pelas grandes corporações públicas e privadas exige a aplicação de
critérios cada vez mais rigorosos pelos arquivistas.8 Na década de 1990 já
se previa que a taxa de seleção do que é digno de ser preservado (“cassa-
ção”) cairia de 10% para 5%.
Sendo esta a nossa situação civilizacional, como explicar que o homem
não se perca pela simples impossibilidade de orientar-se num mundo em
rápida mutação? (Lübbe, 1983:131-154) Esse ponto nos leva a outro
conceito proposto por Lübbe, o de que a aceleração é marcada por uma
“ilaminaridade evolucionária”. Inspirado na física, o conceito mostra que
processos de transformação jamais ocorrem numa velocidade homogê-
nea. Tal como no leito de um rio, a velocidade da mudança depende do
“lugar” que algo ou alguém ocupa. Lübbe toma como índice o fenômeno
das vanguardas, para mostrar seu caráter autocontraditório: quanto mais
vanguardismo, tanto maior a quantidade do que se torna “velho”, as van-
guardas de ontem inclusive. Ao se insurgir contra a instituição do museu,
Marinetti na verdade contribuiu para aumentar a quantidade daquilo que
ele próprio chamava de “matadouros de pintores e escultores”. Mais ainda:
introdução

de Lübbe (1996), (2004:129-141) e (2003:91-94; 269-280).


8
Cf. o artigo de Paulo Knauss neste livro a fim de pensar a relação, no Brasil, entre
história do tempo presente e arquivos da repressão. 17
o culto do novo anda a par-e-passo com a valorização crescente dos clás-
sicos, ou seja, daquelas realizações culturais “resistentes ao envelheci-
mento”.
Como traduzir movimentos aparentemente tão contraditórios numa
visão coerente do “presente”? Apoiado no conceito de “compensação” de
seu mestre Joachim Ritter (Marquard, 2000:11-29), Lübbe demonstra
que a aceleração civilizacional não pode deixar de ocorrer sem suscitar a
sua antítese: processos de desaceleração (Verlangsamungsvorgänge) e todo
tipo de zona de exclusão como o são o clássico, a tradição, o rito, o trau-
ma.9 Por que ainda lemos Aristóteles ou Gilberto Freyre, por que ainda
ouvimos Bach ou Debussy, por que ainda nos deleitamos com Chaplin
ou Bergman? O “clássico” não é apenas a expressão de um passado “que
não quer passar”, ele é também a prova (certamente a mais sublime) de
que nossa capacidade de subjetivação do “novo” é limitada. Esta limitação
especificamente antropológica explica por que, depois de atingido um
determinado ponto, já não somos capazes de acompanhar ou responder
à quantidade de inovações com que somos bombardeados diariamente.
Simmel, como se sabe, viu nisso “a tragédia da cultura”.

IV

E como os historiadores têm se posicionado diante desse debate? É ainda


no interior de perspectivas unilaterais que a posição de François Hartog
sobre a questão do “presentismo” e dos “regimes de historicidade” pode ser
tempo presente & usos do passado

lida e tomada como “um caso” para se pensar a inserção historiográfica no


debate aludido. A reflexão já é bastante conhecida no Brasil.10 Assim, nos
deteremos aqui, praticamente, no prefácio à edição francesa de 2012 do
livro Regimes de historicidade. Presentismo e experiências do tempo, denominado

9
Sobre a experiência do trauma, cf. os artigos de Durval Muniz de Albuquerque Júnior
e Temístocles Cezar neste volume.
10
Cf. uma síntese crítica em Nicolazzi (jul-dez 2010:229-257). O autor ainda tece uma
consideração geral que merece ser destacada para os propósitos do nosso argumento
neste texto: “o presente, qualquer que seja ele, se impõe à reflexão para os historiadores
se não pela dimensão ética que o impregna, ao menos pela importância epistemológica
18 que ele assim delimita.” (p. 257)
“Presentismo pleno ou transitório (par défaut)”. Nesse texto, o autor inicia
sua reflexão procurando estabelecer algum tipo de relação entre a crise do
tempo que ele já indicava na primeira edição do livro de 2003 com a crise,
inicialmente financeira, em que a Europa está mergulhada desde 2008, sem
condições, na opinião do autor, de ver para além ou aquém dela.
A grande transformação, o presentismo, é definida, da mesma forma
que já havia sido ao longo da primeira edição, como um mundo em que
o presente se impõe como o único horizonte, um presente onipotente
e hipertrofiado. O autor pergunta, por exemplo, se a atual especulação
financeira, resultado também da plasticidade (transformação e adapta-
ção) do capitalismo, não seria um exemplo maior do presentismo, pois a
“imediaticidade” do tempo dos mercados não pode se ajustar aos tempos
da economia, da política, dos políticos (cada vez mais presos aos calendá-
rios eleitorais). Eis aí, segundo Hartog, mais uma demonstração de nossa
incapacidade coletiva de escapar do “presente único: este da tirania do
instante e do marasmo de um presente perpétuo” (Hartog, 2012:5-9). A
reflexão do autor é uma tentativa de demonstrar uma suposta especifi-
cidade na nossa atual forma de articular passado, presente e futuro, por
meio de uma temporalização do tempo (Hartog, 2010-a:9-30).11
Vivemos entre crises substituídas a cada novo escândalo. O presen-
tismo é o tempo em que não há nada além do evento. Como exemplo,
o autor afirma que a partir do 11 de Setembro de 2001 a administra-
ção americana decidiu fundar um ponto zero da história mundial. A
guerra contra o terrorismo seria um presente novo e único. (Sabemos
agora, em 2012, quanto esta tentativa fracassou. Vale para o argumento
a intenção? Talvez pela razão da referida guerra já fazer parte de um
“passado distante”?) O atentado, para Hartog, põe em evidência a lógica
do evento contemporâneo — ele se dá a ver enquanto acontece, se his-
toriza e “traz em si mesmo sua própria comemoração: sob os olhos das
câmeras. E, nesse sentido, ele é absolutamente presentista” (Hartog,
2003:116 e 156).12 Afinal, as câmeras filmando o segundo avião criaram
introdução

11
Nesse texto, Hartog sugere que nossa atual relação com o futuro é da ordem apoca-
líptica.
12
É interessante notar que historiadores de tradições diversas têm defendido posições
próximas às de François Hartog em certos pontos. Do ponto de vista de uma história
política, por exemplo, Tony Judt afirma que “contemporâneos podem ter lamentado a 19
as condições para tal; de forma semelhante, o mesmo teria ocorrido em
1968 e 1989.
Diante desse quadro restaria ao historiador oferecer às sociedades um
de seus atributos: o olhar distanciado. O instrumental fornecido pela no-
ção de “regimes de historicidade” ajuda a criar a distância necessária para
ver melhor o próximo: “solidários, a hipótese (o presentismo) e o ins-
trumento (o regime de historicidade) se complementam mutualmente”.
O regime de historicidade é entendido como articulação entre passado,
presente e futuro ou uma constituição mista das três categorias — com um
dos elementos dominantes13 — ao longo da experiência humana do tem-
po. Não se trata de uma realidade dada, é uma categoria, um tipo-ideal,
construída pelo historiador, sem sucessões mecânicas e sem coincidir
com o conceito de época: “é um artefato que é válido por sua capacidade
heurística”.
Para Christian Delacroix, um dos problemas desta “redução heurís-
tica” da noção de “regimes de historicidade” é, entre outros aspectos, o
risco de desencorajar a historicização da própria noção. O que poderia
resultar, no nosso entendimento, em uma naturalização do “instrumen-
to”. Ainda segundo Delacroix, a noção, em especial, de presentismo “não
pode ser reduzida à heurística, pois ela comporta um julgamento de reali-
dade sobre nossa época (ela é, então, de natureza ontológica, desse ponto
de vista)” (Delacroix, 2009:42).
A hipótese do presentismo (por vezes tomada, apesar das intenções
do próprio autor, como uma evidência) não pode ser entendida, ainda
segundo Hartog, sob o registro da nostalgia (um regime melhor que ou-
tempo presente & usos do passado

tro) ou da denúncia. Assim, refletir sobre um presente onipresente é uma


forma de se interrogar sobre as possibilidades de saída desse regime de
historicidade. Não se sabe se a situação é transitória ou durável, mas o
fato é que a imediaticidade da nossa sociedade, da mídia, das tecnologias,

perda do mundo anterior à Revolução Francesa, ou o ambiente cultural e político da


Europa antes de agosto de 1914. Mas não os esqueceram. […] Muito do que fora consi-
derado familiar e permanente por décadas, ou mesmo séculos, agora ruma celeremente
para o esquecimento” (2010:15-17).
13
Um exemplo do argumento da existência de um elemento predominante: “o século
XX aliou, finalmente, futurismo e presentismo. Se ele inicialmente foi mais futurista
20 que presentista, ele terminou mais presentista que futurista” (Hartog, 2003:119).
do mercado e a importância atual da memória, do patrimônio e da dívida
são indícios importantes de transformação. O autor afirma que no livro
não havia se colocado a seguinte questão: viveríamos em um presentismo
pleno ou “transitório” (par défaut). Dada a impossibilidade de um retorno
passadista (em que o passado comanda, na expressão do autor), será que
poderíamos pensar que estamos vivendo apenas uma suspensão, uma pa-
rada, para que o futuro retome o comando? Ou trata-se de uma inédita
experiência do tempo? A dúvida em face de um presente que não é unifor-
me nem unívoco depende também do lugar social que se ocupa no interior
das sociedades. Em outras palavras: “se trata, […], de un presentismo por
defecto — transitorio, temporario, a la espera de otra cosa, por ejemplo,
una reactivación de un régimen moderno — o de un presentismo pleno:
de una estruturación efectivamente inédita donde el presente es en ver-
dad la categoría dominante […]” (Hartog, 2010-b:27).14
Em parte, o livro de Hartog pode ser visto como um desenvolvimento
do texto “A crise do futuro”, de Krzysztof Pomian (1980). Nesse texto,
o autor procura demonstrar como as “ideologias” teriam perdido a ca-
pacidade de imaginar um futuro possível e atraente, pois o prognóstico
possível era sempre o pior. Essa grave situação se dá na medida em que
“a nossa civilização depende do futuro como ele depende do petróleo”
(Pomian, 1999:241). Mostrando os problemas do “passadismo” e do “fu-
turismo”, em especial com as tentativas deste último regime em buscar
rupturas excessivas com o passado, o autor afirma que falta inventar uma
via intermediária.
De algum modo, a categoria de presentismo pode ser lida como uma
solução negativa para a proposta de Pomian. Mas o “instrumento” “regi-
mes de historicidade” pretende ir além, pois ambiciona tornar mais in-
teligível as múltiplas experiências do tempo, de preferência, por meio
da perspectiva comparatista. Poderíamos nos perguntar: até que ponto
o diagnóstico de Hartog sobre a atual experiência do tempo europeia é
válida para a atual experiência brasileira do tempo? Podemos falar atual-
introdução

14
De forma mais direta o autor afirma: “el futuro ha dejado de ser un horizonte lumi-
noso hacia el cual dirigimos órdenes de marcha más o menos vibrantes, para volverse
una línea de sombra que hemos puesto en movimiento hacia nosotros, en tanto que
parecemos agitarnos inutilmente en el presente y rumiar un pasado que no termina de
pasar.” (p. 26) 21
mente de “crise do futuro” no Brasil? Estaríamos aqui nos trópicos sob o
signo de um tipo de futurismo que interage com dimensões do presentis-
mo, como a historicização imediata da era digital, mas que mantém uma
confiança e esperança, por vezes ingênuas, com a categoria de progresso
e/ou futuro?15 Sem procurar discutir se a hipótese (o presentismo) e o
instrumento (regimes de historicidade) são bons ou ruins, corretos ou
equivocados, procuraremos pensar brevemente a dificuldade de trans-
posição da referida hipótese para o contexto brasileiro atual. Para tal,
tomaremos como índice outro prefácio. De um livro denominado, sinto-
maticamente, Agenda brasileira.
Fazendo uso de um procedimento moderno, os organizadores da
Agenda brasileira procuram historicizar o presente, destacando que vive-
mos um tempo de grandes mudanças na sociedade brasileira. Eles acre-
ditam que nosso presente pode ser comparado com os anos 1950, os
anos desenvolvimentistas, período que ainda nos “interpela” não só pelas
promessas não cumpridas: “também porque a década de 1950 nos aler-
ta criticamente para o risco de que, mesmo cumprida, a modernização
possa não se traduzir diretamente em modernidade e emancipação” (Bo-
telho e Schwarcz, 2011:16). Mesmo reconhecendo o peso internacional
crescente do país e nossos pacíficos processos eleitorais em mais de 20
anos os autores destacam os dilemas da violência e da desigualdade. Per-
cebemos, desse modo, a persistência de um olhar crítico em relação ao
presente, ao passado e ao futuro; porém, diferentemente da análise de
Hartog, não nos parece que haja neste diagnóstico do presente uma crise
do futuro.16 Ao contrário, os autores afirmam que a obra por eles organi-
tempo presente & usos do passado

zada pretende, por meio de reflexões sobre os mais variados temas, pen-
sar a “mudança social” numa época de transformações aceleradas. “Olhar
para nós mesmos”, mais do que um gesto de nostalgia, é uma atitude de
crítica de autorreflexão e cidadania.

15
Para uma distinção entre mito do progresso e esperança no futuro, cf., em especial,
Rossi (2000). Cf., também, Jonas (1998).
16
Em um exercício de futurologia, o ministro da Economia, Guido Mantega, anterior-
mente ao anúncio, em 2011, de que o Brasil se tornaria a sexta economia do mundo, de-
clarou que dentro de 10 a 20 anos o país teria um padrão de vida europeu. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/1026365-mantega-diz-que-pode-levar-20-
22 anos-para-brasil-ter-padrao-de-vida-europeu.shtml>. Acessado em 9 jan. 2012.
Outro aspecto de fundo também merece ser destacado: a legitimi-
dade social da história e/ou dos historiadores nas duas realidades (fran-
cesa e brasileira). Ao que parece, verifica-se desde o final do século
passado um progressivo declínio da história e/ou dos historiadores na
cena pública francesa (Rioux, 2006, e Theullot, 2005).17 Diante desse
fenômeno, Pierre Nora, por exemplo, por meio de uma problemática
distinção entre história e memória na linha da sociológica de Maurice
Halbwachs, defende a tese de um aumento da aceleração da história, de
uma suposta ruptura entre história e memória e da perda da história-
-memória: “fala-se tanto de memória porque ela não existe mais”, ou
ainda, “o nascimento de uma preocupação historiográfica, é a história
que se empenha em emboscar em si mesma o que não é ela própria,
descobrindo-se como vítima da memória e fazendo um esforço para se
livrar dela” (Nora, 1993:7 e 10).18
Nessa direção, Hartog afirma, também de forma problemática, que
o questionamento da história deve-se a seu eclipse (temporário?) em fa-
vor da memória, termo que teria se tornado mais abrangente (Hartog
in Delacroix, 2010:766-771).19 O passado atrai mais do que a história.
Para alguns analistas, a história foi deixada de lado em nome do direito e
a história conduzida pelo direito cria uma situação ou de criminalização
generalizada do passado ou de uma vitimização generalizada.20 De algum
modo, a posição de François Hartog não deixa de ser uma tentativa de re-
fletir sobre a perda da legitimidade da história e/ou dos historiadores na
sociedade francesa. É o presentismo que explica a perda. O atual “fardo

17
Segundo François Hartog, “actualmente, para ser admitido en el espacio público, para
ser reconocido en la sociedad civil, el historiador debe ‘presentificarse’, proponiéndose,
como experto y transmissor [passeur] de presente: del presente al presente?” (Hartog,
2010-b:22).
18
Ricœur critica duramente a perspectiva aberta por Halbwachs (e desenvolvida por
Nora e outros) por trabalhar a relação entre história e memória sob o signo da oposi-
ção e/ou hierarquização e não da dialética. Ricœur (2000); Ricœur (2002:41-61). Cf.,
também, Hartog (2003:113-161).
introdução

19
Na mesma direção, Beatriz Sarlo comenta que o “presente, ameaçado pelo desgaste da
aceleração, converte-se, enquanto transcorre, em matéria da memória” (2005:95-96).
Cf. as análises de Irene Cardoso e Temístocles Cezar neste livro sobre a relação entre
testemunho, memória e história.
20
Ver, sobre isso, as seguintes referências: Gauchet (2002); Nora (2006); Eliacheff e
Larivière (2007). 23
da história” é posto nos seguintes termos: “não se trata de defender a his-
tória por ela mesma, em nome do que ela foi, mas pelo que ela poderá ser
(em um mundo presentista pleno ou imperfeito — par défaut)” (Hartog
in Delacroix et al., 2009:149). Nessa direção, o “fardo do historiador” é
tornar-se contemporâneo do contemporâneo, “lo que significa lo con-
trario de correr detrás de la actualidad o ceder a la lógica del momento”
(Hartog, 2010-b:16).21
Talvez seja desnecessário refletir se somos ou não o país do esque-
cimento, mas certamente é no mínimo inusitado falarmos, no Brasil,
de excesso de memória ou de perda de legitimidade da história. A res-
peito da “comemoração dos 500 anos”, Helenice Rodrigues da Silva
afirma: “se as comemorações nacionais têm por objetivo cristalizar as
memórias coletivas, a data de 22 de abril de 2000 já não passa de uma
lembrança negativa que o país se esforça em esquecer” (2003:425-439).
Não deixa de ser sintomático também a “verdadeira saga, em busca da
regulamentação da nossa profissão”.22 A própria tentativa de profissio-
nalização também já não é um sintoma da baixa legitimidade da práti-
ca histórica? Fato é que desde 1968 há projetos nesta direção, em um
país que nos últimos anos, por exemplo, regulamentou profissões novas
como as de enólogo e mototaxista. Em notícia sobre aprovação da pro-
fissão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, os jornalistas
da Agência Senado escreveram que “o relator reconheceu o ‘relevan-
te’ papel exercido pelos historiadores na sociedade” (Borges e Franco,
2011). Não deixa de ser no mínimo irônico o uso de aspas na palavra
“relevante”, para dizer pouco. O próprio pleito por parte da Associação
tempo presente & usos do passado

Nacional dos Professores Universitários de História (Anpuh) para que a


Comissão da Verdade tenha ao menos um historiador também é repre-
sentativo para efeitos do nosso argumento.
O que se desejou mostrar até aqui é que a discussão sobre o “presentis-
mo”, tal qual elaborado por Hartog, é indissociável da própria “crise” atu-
al da França, dos intelectuais franceses, dos (des)caminhos da disciplina

21
Hayden White denomina “fardo do historiador”, a saber: “restabelecer a dignidade dos
estudos históricos […] de modo a permitir que o historiador participe positivamente da
tarefa de libertar o presente do fardo da história” (1994:53).
22
Dossiê sobre a regulamentação da profissão de historiador disponível em <http://
24 www.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=317>.
naquele espaço social e, em última instância, dos rumos e crises que a
ideia de “Europa” vem experimentando desde, pelo menos, a década de
1980. Dimensões que não podem ser deixadas de lado em qualquer tipo
de transposição do argumento para a realidade brasileira. Crise na ordem
do tempo? De qual tempo? De que ordem? E qual crise? Ao que parece,
não temos experimentado o tempo, pelo menos em alguns aspectos, da
mesma forma que o Velho Mundo (Flusser, 1998).23
A imagem do artista de rua britânico conhecido pelo pseudônimo
Banksy, na qual vemos uma menina sentada na calçada segurando a letra
“O” da mensagem “No future”, como se fosse um balão, de algum modo
exprime certo imaginário social daquela experiência do tempo.24 Por
outro lado, nos parece que “O gigante adormecido”, peça publicitária
da empresa Johnnie Walker, exprime um imaginário social emergen-
te acerca da atual experiência do tempo nos trópicos. Nessa peça, o
morro do Pão de Açúcar se transforma em um gigante que caminha
pelo Rio de Janeiro, e a propaganda termina com o slogan da empresa,
“Keep Walking” (continue andando).25 Não se trata de dizer que uma
experiência seja “superior” à outra, mas o que se quer destacar aqui é
a “diferença” entre ambas. A metáfora do “gigante adormecido” pode
ser tomada como sintoma de uma nova reinvenção do otimismo (Fico,
1997).26 No entanto, agora não mais sob o signo da ditadura, por mais
que o futebol continue atravessando a política e a economia. Ainda que
os fantasmas de um passado, já não tão recente assim, continuem nos
atormentando e sendo justas as questões a serem enfrentadas.27 Enfim,
23
Na década de 1970, justamente quando mais se falava em “aceleração” na Europa,
Flusser afirmou — o que sempre lhe custou incompreensões — que o homem bra-
sileiro seria um “tipo a-histórico não primitivo” (1998). É algo irônico que sejam hoje
intelectuais europeus e norte-americanos os que falam num presente “lento” ou “oni-
presente”.
24
Disponível em <http://www.artofthestate.co.uk/banksy/banksy-no-future.htm>.
25
Disponível em <http://www.jb.com.br/economia/noticias/2011/10/08/propa-
ganda-da-johnnie-walker-com-pao-de-acucar-que-vira-gigante-faz-sucesso/>.
26
Vale a pena lembrar que, em face dos horrores da II Guerra Mundial, Stefan Zweig
introdução

retoma a metáfora do Brasil como país do futuro. A miscigenação e o “ódio à guerra” são
exaltados como uma das principais virtudes da jovem nação. Para uma análise geral da
questão, cf. Carvalho in Bethell (2002:45-75).
27
Cf., entre outros, Reis (2010); Gagnebin in Teles e Safatle (2010:177-186); Traverso
in Cernadas e Lvovich (2010:47-68). Cf. o artigo de Durval Muniz de Albuquerque
Júnior neste livro sobre trauma, esquecimento e usos do passado. 25
esperamos ter compartilhado nossas reticências quanto à utilização da
categoria de presentismo para se pensar a experiência do tempo no
Brasil do início do século XXI.28

O topos do “mais rápido do que nunca” sempre se faz acompanhar do


topos “mais lento do que nunca”. Daí que hipóteses como a de Hartog,
Gumbrecht ou a “dromologia” de Paul Virilio tenham apenas um alcance
muito limitado: pecam por sua unilateralidade. Caso estivesse valendo
a lei da velocidade de Virilio, não seríamos capazes de nos orientar no
mundo (Virilio, 2007). Caso fossem corretas as teses do presentismo ou
do presente lento, teríamos retornado ao tempo do eterno retorno, ao
“regime de historicidade” mítico e mesmo, no limite, a uma desculturali-
zação do homem. Avessa a toda forma de hiperbolização, a abordagem de
Lübbe — ele a caracteriza como uma “fenomenologia da dinâmica evo-
lucionária de nossa civilização atual” — oferece-nos uma alternativa inte-
ressante. Talvez o mais sensato seja mesmo falar em “dinâmica civilizacio-
nal” moderna, sem ceder à tentação de estabelecer quaisquer tendências
definitivas a priori. Tal como Lübbe o concebe, este termo contempla e
pressupõe ambas as possibilidades — a aceleração e o seu oposto. Desse
modo se chega, por outra via, àquela “dialética da duração” de que falava
Fernand Braudel.
A fixação do olhar sobre o que supostamente se foi ou desapareceu
tempo presente & usos do passado

pode nos impedir de ver as reconfigurações, num momento em que se


assiste a certos deslocamentos de olhares e questões colocadas ao passa-
do, ao presente e ao futuro (Zawadzki, 2008:126 e 2002). Abandono da
experiência do tempo moderna? Ao que parece, os elementos para res-
ponder positivamente a esta questão são ainda insuficientes. Resta-nos,
por fim, o lúcido comentário de Raymond Aron (2004:261): “em nossa
consciência histórica se mesclam e se opõem as visões fatalistas — tudo
28
Apesar dessas reticências, Rodrigo Bonaldo faz uma boa articulação entre a obra de
Eduardo Bueno com a categoria de “presentismo”. Mas o autor pensa mais o presentis-
mo como uma presentificação do passado, mediado por uma escrita jornalística sintéti-
26 ca, do que como historicização imediata. Ver Bonaldo (2010).
se repete —, as visões melancólicas — uma época se acaba, a da preemi-
nência da Europa — e as visões otimistas — nosso presente marca tanto
um começo como um fim”.
Mariana, janeiro de 2012

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