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Carlo Gínzburg

NOX—"li Riilíl EíÍXÓI-S SOBRE A [VISI'ÁNCIA

ISBN 85435940153-1

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cente'l'eria sido possível recorrer ao caiafalco fúnebre coberto com
ceses e ingleses como o leito fúnebre vazio e coberto com um lenf
çol mortuário que mai: antigamente “representava” o soberano um lençol mortuário: uma alternativa baseada numa evocação não
defunto. A vontade mimética presente no primeiro caso es ava mimética, e consagrada pela tradição," lá em Londres, em 1327,
ausente no segundo; mas em ambos se falava de “representam decidiufse pagar um arte o para que f “se qmmdam ymagincm
Partarnos daqui, de Iigno ml similitudinem (lí ri domini Regis, uma imagem de
madeira que se parecesse com o rei morto, Eduardo li. Por quê? E
2. O testemunho mais antigo de um caiafalco vazio num fune— por que e ()
seria adotada na França um culo depois,
ral régio remonta a 129 l, Nesse ano, informamos um documento prolongandose por tanto tempo em ambos os reinos?“
conservado nos arquivos de Barcelona, os sarracenos que viviam Falei de“inovação", termo talvez ilegítimo. As imagens de
na cidade aragones' de Daroca atacaram os judeus agrupados em cera util ndas durante os funerais dos imperadores romanos nos
torno de um esquife “que estava ali representando [m representar ulos u e lll eram muito semelhantes notou lulius von
A

tionem] “Afonso ut, o soberano que acabara de morrer.“ zt utiliza- Schlosser — aquelas de cera, madeira ou con ro dos reis franceses
ção do manequim nos funerais dos reis e bem mais tardia: na einglese' exibidas em circunstanciasanálogas um milênio depois.
Inglaterra, remonta a 1327 (quando da morte de Eduardo li); na Devemos supor uma filiogªo ou uma redescoberta espontânea?
Françaa 1422 (quando da morte de Carlos VI).“ De nanequins Schlosser lnclinavavse para a primeira hipótese, se bem que os test
objetos frágeis, destinados a um uso efêmero "»,
pouquíssimos
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temunbos de tal continuidade sejam mirrados," Pela segunda hi”


restaram,quase sempre grosseiramente restaurados: pot se pronunciaramvse outros historiadores, entre eles Gicsey.
Ernst Kantorowicy, sustentou queo manequim exibido nos fur Ele não nega as semelhanças (sobre as qua voltarei em breve)
ncrais dos soberanos ingleses e france es ao lado do cadáver entre os funerais dos reis franceses e ingleses e os dos imperadores
exprimiu de forma palpável a teoria juridica do duplo eorpo do rei. romanos", mas a comparação entre ritos pertencentes il Culturas
De um lado, o manequim, o corpo eterno do rei. ; Mudo a uma
tão distantes entre. lhe pareceu “ il, porem esterilllde um ponto
,

instituição pública (rlignitas); de outro, o cadáver, o corpo efêmero


de vista história), E acrescentou: “Do ponto de vista da antropo-
do soberano como indivíduo.“ A demonstra o e convincente,
logia cultural, as semelhança. () estimulantes, mas as conexões
ainda que seja forçoso recordar que, pelo menos na França, o cos-
histór s são (rage
tume de exibir nos funerais uma efígie do defunto, cha mada preciw
A hipótese que orienta estas páginas e exatamente oposta,
semente de representzteion, não se limitava aos soberanos. Mas
Procurarei demonstrar que as semelhan trausculturais podem
'

como surgiu o hábito de exibir ambos? Segundo Ralph Giesey, ado—


lou-sc o manequim como “substituto do corpo“ por motivos de
ajudar a compreender a espec idade dos fenômenos de que par”
tiram, E um caminho laborioso, que demanda uma quantidade
ordem prática: as tecnicas de embalsamamento se encontravam
signiticativa de vaivéns espacia *e temporais, Os manequins dos
tão pouco evoluidas que,,se não se quisesse expor um cadáver semi”
reis franceses e ingleses servirão de ponto de referência.
putrefnto, era preciso recorrer a um manequim de madeira, couro
ou cera) Trata—se, no entanto, de uma explicação pouco convlnv

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3. O próprio Giesey revela ter partido, por sugestão de seu analisados por Heil Em ambos os ioswram seguidos dos fune-
mestre Kantorowicr, claro, do ensaio de Elias Biclterrnan sobre a rais das imagens, ou seja, de um rito não apenas definitivo, mas
apoteose dos imperadores romanos ( 1929)“ Em paginas brilliant etern irador. () imperador era consagrado deus; o rei,em virtude da
tes, que sr ttaram eritic Vi gora, s, iàiclterman analisou os ritos afirma o da perenidade da função monárquica, não morria
*

da EthStft'YatÍU. baseada em uma dupla ineinerr , : a do corpo do n unca.A tmngensimper deceraea. efígie ,queconsuma
imperador e, dias depois, a da sua imagem de cera. ("traças a esse vam a morte dos imperadores como processo social, equivalium,
funus imagimtríum, a esses “funerais da imagem”, o imperador, num plano diferente, às múmias ou aos esqueletos. lá há algum
qneiá havia almndonado "eus despojos rnortais,era recebidoentte tempo, Florence Dupont chegou à mesma conclusão, seguindo
os deuses. Biciterman salientam exatamente as analogias entre outro roteiro de pesqui
es, es ritos e os fenômenos inglês e francês da Idade Média tardia; Nesse horizonte amplo, transculttiral, é possível avaliar mer
numa nota, também aludia aos ritos funerários estudados por lhor a espceilludade da Solução idealizada quer na Roma dos
Frazer. Aparentemente, escapoullhe a “Contribuição para um Antoninos, quer na inglaterra e na França do Quatrocentos e do
estudo sobre a representação coletiva da tnortel'que Robert i iertz Quinhentos le tiltimocaso,sabe«se qtieaesftnge mostrava o rei
havia publicado em Aimee 'ocioloxiquei1907)?" E no entanto, no “vivo“; mas também em Roma a imagem era inse ita no quc foi
fun do primeiro parágrafo do ensaio de Biekennan podemos ler definido como ttma“ficção da soberania [mst triorttrlrt'il“ Uma pag
uma afirmação que poderia ter sido subscrita por i-lert' :“A morte na bein conheeida da História rumo/m de Dion (já o d Vea

não constitui o fim da vida do corpo no mundo: não e o fato biolt'v estátua de cera do imperador Pertinax, falecido em l93,“ztdornada
gico, mas o ato social os funern que separa os que se vão dos com hábitos triunfais”; diante dela, “um jovem ravo espantava
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que iieam , O esplêndido ensaio de Hertz. investiga, nurna persi as moscas com um leque de plumas de pavão, como se o soberano
peetiva bastante ampla,o rito do duplo sepultamento estudado por estivesse dormiudo”.“lierodianode creve “um ainda maior tique?
lãickerman no contexto romano. Hertz mostra que a morte, toda 73 de detalhes as ceritrionias que se seguiram à morte de Sétimo

morte, é um acontecimento traumático para a comunidade: uma Severo: durante sete dias a imagem de cera do imperador, atomo
verdadeira crise, que pode ser dominada mediante a adoção de dada num grande leito de marfim com cobertura dourada, foi visit
ritos que transformam o acontecimento biológico num proeeSO tada por médicos que constatavam que o doente estava “cada vez
ie il, controlando o pa agem do cadáver putr ente (objeto ins? pior”,' ' sas descrições certamente lembram o que aconteceu na
ta'vel e ameaçador por excelência) a esqueleto, En tre ess ºs ritos está França em 1547, depois da morte de Francisco 1. Por onze dias,
o sepultamento provisório ou, em outras culturas, a mtnnilie eito foram realizados banquetes, primeiro junto do cadáver, depois
e a cremação, as vezes combinada soluções específicas, segundo junto da efígie do rei comia “e junto dele, bebi; se junto dele, e
Hertz, de um problema extremamente difuso.“ Na Roma dos "bacias de água limpa [eram] oferecidas ao trono do supracitado
Antoni nos,; sim como na Inglaterra ena França do Quatroçentos Senhor, como se ainda ali es iv “esentadowivoªí (& rey observa
e do Quinhentos, os funerais do corpo dos imperadores e dos re s queo texto de llerodiano começou a circular na França por volta
tinham uma função comparável a dos sepultarnentos provisórios de 1480 e que os mais antigos testemn nhos franceses sobre o cnsluf

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