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Monográfico

UM ESTRANHO EM GOA, DE JOSÉ EDUARDO


AGUALUSA: UM OLHAR TRANSATLÂNTICO
DA IDENTIDADE GOENSE
Um Estranho em Goa (A stranger in Goa) by José Eduardo Agualusa:
a transatlantic perspective of the Goan identity

Rita Amorim y Raquel Baltazar


Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas / CAPP (Universidade de Lisboa)
(Portugal)

Um Estranho em Goa (2000), de José Eduardo Um Estranho em Goa («A Stranger in Goa»), by José
Agualusa, é um romance que nos transporta ao Eduardo Agualusa (2000), is a novel that takes us
território indiano de Goa em busca de um Outro to the Indian territory of Goa in search of the Other
em reestruturação identitária vindo a revelar-se to restructure identity. It unfolds as a journey on
uma viagem da descoberta da individualidade. the discovery of individuality. The author beco-
Este autor que se faz narrador/personagem apre- mes the narrator and main character who presents
senta um olhar transatlântico sobre a população a transatlantic view of the Goan population, also
Goesa que ao se encontrar em processo de cons- in the process of building its own cultural identi-
trução da própria identidade cultural, questiona ty. He questions and rewrites the dialogue of the
e reescreve o diálogo do «espaço simbólico da «symbolic space of Lusophony» (Lourenço, 2001).
lusofonia» (Lourenço, 2001). Esta obra concreti- This novel discloses hybridity and acculturation as
za os hibridismos, aculturações, conflitos próprios characteristic conflicts of a post-colonial space and
de um espaço pós-colonial e a edificação de um portrays a people still yearning for a spiritual ho-
povo que todavia anseia pela pátria espiritual. Per- meland. Belonging to the genre of travel literature,
tencente ao género de literatura de viagens, o ro- the novel questions the alterity of a traveler who in-
mance questiona a alteridade de um viajante que tertwines India and Africa with Portugal and Brazil.
entrelaça a Índia e a África com Portugal e o Brasil.

Palavras-chave Keywords
José Eduardo Agualusa, Estudos Transatlânticos, Li- Jose Eduardo Agualusa, Transatlantic Studies, Tra-
teratura de viagens, Identidade, Goa vel Literature, Identity, Goa

TSN nº8, julio-diciembre 2019 ISSN: 2530-8521 57


Introdução Na procura de Plácido Domingo, o narrador parte Em Goa, o tempo é de reconstrução e o espaço subsiste uma sociedade mestiça residual» (Domin-
também à descoberta do Eu e da sua identidade: ocupa um papel preponderante, onde o narrador gues, 2005, p. 106). Em Um Estranho em Goa, é-nos
José Eduardo Agualusa nasceu em 1960, no Huam- «O irlandês quer saber de onde sou. Angola, res- questiona «O que faço eu aqui?» ocorrendo uma apresentada a localidade indiana através da paisa-
bo, em Angola, sendo um dos autores de maior pondo, e no instante seguinte já estou arrependi- descentralização da ficção (ou uma imposição do gem, clima, vegetação, odores e sabores, aromas e
sucesso na língua portuguesa. Os seus romances, do. «Onde fica isso?». Digo-lhe que também não caráter ficcional do texto a partir de uma meta na- cores. A história, o quotidiano, os hábitos e costu-
crónicas, contos e poesias têm sido traduzidos em sei, talvez ninguém saiba, suspeito até que não fi- rrativa) e do próprio leitor: mes, as diferenças e os conflitos surgem de encon-
mais de 25 idiomas e recebido vários prémios lite- que em parte alguma» (Agualusa, 2007, p. 26). O tros do narrador com várias personagens, goeses,
rários. À semelhança de outros autores africanos, próprio Plácido Domingo em diálogo com o narra- Há algum tempo que pretendo contar a história imigrantes e turistas. Para Sampaio Melo:
Agualusa utiliza a escrita como «instrumento de dor reitera que «Angola deixou de me interessar. de Plácido Domingo. Hesitei em fazer isso antes
afirmação da identidade» (Azevedo, 2014, p. 132). Está tão longe daqui que por vezes chego a duvi- porque já existe o Plácido Domingo, o tenor, mas Em 1961, com a ocupação indiana, houve o pro-
O autor que estudou em Portugal tem intercalado dar que realmente exista ou tenha existido um país nunca me conformei. […] Escrevi, há alguns anos, gressivo apagamento das tradições culturais que
a permanência entre estes países e o Brasil numa assim. Penso em Angola como você pensa, eu sei um conto que começava assim. Muita gente me Goa mantinha com Portugal. A população goesa,
perguntou se a história era verdadeira. Costumo identificada com os valores lusófonos, passou a
eterna itinerância transatlântica. Escreve para o jor- lá, no País das Maravilhas» (p. 50). Enquanto José
insinuar, quando a propósito de outras histórias me sentir-se alheia em seu próprio território. Os goe-
nal português Público, para a revista portuguesa anseia por uma reencarnação para deixar de ser an- colocam idêntica pergunta, que já não sei onde fi- ses tiveram que romper os vínculos com Portugal
LER, para o jornal brasileiro Globo e para o portal golano, Plácido Domingo, rejeita a(s) sua(s) nacio- cou a verdade — embora me recorde perfeitamente sem que fosse possível identificarem-se com a cul-
angolano Pé de Angola, atestando uma identidade nalidade(s) e/ou identidade(s): «Também fui ango- de ter inventado tudo do princípio ao fim. Naquele tura do dominador indiano. Divididos na pertença a
acima de tudo lusófona. Nas suas obras, Agualusa lano» (p. 47) e «Portugal, aquele Portugal que era a caso fiz o contrário. «Tretas», menti, «pura ficção». Portugal ou à Índia, os goeses tentam construir sua
recorre frequentemente a este tema da identidade minha pátria, já não existia» (p. 19). Esta pertença a Disse isto porque queria encontrá-lo. Inventei um própria identidade cultural. (2006, p. 111).
reescrevendo a/as história(s) nacionais numa tenta- um não-lugar (apropriando-nos da designação de nome para ele, ou nem isso, dei-lhe o nome de ou-
tiva de compreensão da realidade política, econó- Marc Augé (1994) revela uma vivência entre o con- tro homem. (Agualusa, 2007, pp. 13-14). O narrador parte em busca da identidade goesa
mica, cultural e social. Utilizando o encontro com o flito interno, a memória e o esquecimento, ou seja, e depara-se com uma crise identitária revelada pe-
Outro desconstrói fronteiras como encontramos em entre «o esvaziamento de projecto político e [a] in- Numa trajetória que cruza uma «perspectiva las vozes contrastantes de Sal (o motorista de táxi ca-
Passageiros em trânsito de 2006. capacidade de articulação entre tradição e moder- de contacto» (Mata, 2016, p. 131), acompanhamos tólico que nasceu na Índia e apenas sabe dizer bom
O narrador de Um Estranho em Goa (2000), um nidade» (Azevedo, 2014, p. 126). Segundo Azevedo José num diálogo cultural e histórico, sintetizando dia em português, mas que se sente português),
jornalista de nome José, enquadrando um parale- estas questões pertencem a um sistema no qual se as questões identitárias de um povo fragmentado dos descendentes (membros da velha aristocracia
lismo com o nome próprio do autor, afirma: «Escre- é obrigado a viver nos regimes totalitários «que se pelo colonialismo numa narrativa que levanta ques- católica goesa que se sentem portugueses e estran-
ver acalma-me, devolve-me a confiança, ajuda-me impõem, após as revoluções, extinguindo as liber- tões sobre a verdade/ficção como salientámos e geiros na própria terra), e dos freedom fighters (que
a pensar» (p. 121). Este revela um desencanto emo- dades individuais» (2014, p. 133). onde são utilizadas inúmeras referências a outras desejavam a anexação à Índia). Alguns goeses con-
cional com Angola, resumindo um sentimento de Em Agualusa, esta resistência e sobrevivência obras da autoria de Agualusa, «Dêem-me dois ou sideram os acontecimentos de 17 de novembro de
rejeição ou de luto pela nacionalidade angolana: da memória como encontramos nas teorias de três factos, ou nem isso, apenas vagos indícios, e eu 1961 como a invasão e outros como a libertação. A
«Quanto a mim, qualquer coisa servia, poderia re- Walter Benjamin auxiliam o questionamento da construo um romance. Aliás, quanto menos factos nostalgia pelo passado colonial e a lealdade identi-
encarnar numa abóbora ou num gafanhoto, contan- própria identidade individual do narrador-viajan- melhor, a realidade atrapalha a ficção» (Agualusa, tária e cultural ao colonizador coexistem com sen-
do que não fosse outra vez em Angola» (p. 45). A te. Para o historiador francês Le Goff, «A memória, 2007, p. 57). timentos de rejeição e de conflito espelhando a
complexidade da questão identitária está presente onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, Para encarnar a realidade angolana, o narrador realidade goesa em plena construção identitária.
em Um Estranho em Goa «que não é nem relato de procura salvar o passado para servir o presente e adquire uma identidade multicultural de matriz Ao longo da obra, o leitor depara-se com inúmeras
viagem, nem romance, ou é os dois, a tratar de um o futuro» (2003, p. 477). A construção da memó- Lusa: referências históricas à ocupação portuguesa e pos-
personagem que luta ao lado de portugueses e an- ria prende-se com uma lógica de poder, situação teriormente indiana revelando os contornos da fra-
golanos, ou contra os dois, em uma Goa que não que encontramos na prosa de Agualusa. Para o Se nos anos da guerrilha da independência, as turação identitária dos goeses: «A verdade, porém,
é nem portuguesa nem indiana. Ou é ambas» (Do- sociólogo Halbwachs (2004), a memória individual obras literárias não pareciam dissociadas de é que a Índia, tal como existe, é uma criação dos
mingues, 2005, p. 106). Trata-se de uma viagem ao existe a partir de uma memória coletiva, uma vez uma luta política, pautando-se pela afirmação
ingleses, da mesma forma que Goa foi uma criação
de uma ideia de nação livre, na atualidade o com-
território indiano de Goa em que literatura e viagem que as lembranças são constituídas no interior de dos portugueses» (Agualusa, 2007, p. 154).
promisso do escritor angolano, como o de muitos
estão interligadas: «Começo uma história e depois um grupo. Desta forma, a memória deve ser en- escritores africanos, se volta para uma solidarie- Sendo Goa um pequeno território situado na
continuo a escrever porque tenho de saber como tendida como um fenómeno coletivo, suscetível a dade transnacional. (Salgado, 2000, p. 177). costa oeste da Índia, onde coabitam indianos, des-
termina. Foi também por isso que fiz esta viagem» transformações e de acordo com a situação polí- cendentes de portugueses, mestiços de origem
(p. 13). Bakhtin assinala que a literatura de viagens tica e social do momento. A Goa de Agualusa está portuguesa ou portugueses nascidos na Índia e
se caracteriza por «mostrar e evidenciar a diversida- repleta de ruínas da presença colonial portuguesa A Lusofonia em busca do Outro onde ainda se fala e ensina português estamos pe-
de estática do mundo através do espaço e da socie- funcionando como um espaço entre-culturas, em rante uma miscelânea identitária. Na Goa colonial,
dade» (Bakhtin, 1992, p. 223), situação que encon- mutação, com uma identidade multifacetada. De A Lusofonia é uma terminologia de grande comple- os goeses que se sentiam e autodenominavam des-
tramos em Agualusa. acordo com o sociólogo Anthony Giddens, nas xidade, uma vez que estamos perante o contexto cendentes, mas que eram apelidados de mestiços,
José, um jornalista angolano, encontra-se em- sociedades tradicionais, o passado é venerado e histórico-social da expansão da língua portuguesa desejavam ser mais portugueses que os próprios
penhado em revelar o passado de Plácido Domin- os símbolos são valorizados perpetuando a expe- e das consequentes relações de poder. Por outro lusos. Na atualidade, os goeses encontram-se divi-
go para um livro que deseja escrever. Este perso- riência de gerações. «A tradição é um meio de lidar lado, as questões culturais, políticas e identitárias didos entre a herança cultural, linguística, religiosa e
nagem, ex-guerrilheiro da Guerra de Libertação de com o tempo e o espaço, inserindo qualquer ativi- estão associadas a um universo de falantes do por- o passaporte no qual se diferenciam os que recusa-
Angola, ex-comandante do MPLA, ou ex-agente da dade ou experiência particular na continuidade do tuguês. O território de Goa pós-colonial é um caso ram e os que apoiaram a integração à Índia: «Somos
PIDE, talvez infiltrado da polícia política portuguesa passado, presente e futuro, os quais por sua vez, exemplar de mestiçagem, «desde o seu estabe- portugueses. Portugueses da Índia. Não temos nada
com passagem pela Amazónia vive presentemente são estruturados por práticas sociais recorrentes» lecimento como capital do império português do a ver com esta gente» (p. 65). Em Um Estranho em
em Goa e torna-se a justificação para a sua viagem. (Giddens, 1990). Oriente, em 1510, até aos dias de hoje, já que lá Goa alguns velhos goeses continuam a sentir a nos-

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talgia desse passado colonial revelando sentimen- Um dos funcionários, na fronteira, estranhou que comunidade (a goesa), quer perceber-se e conhe- identidade. Ao mesmo tempo atualizam o discur-
uma senhora de pele tão clara, falando um portu- cer o eu. E ao descobrir o outro conhece o eu, que
tos de alienamento ou desencaixe: «muitos valori- não pertence à comunidade do outro: afinal, José,
so sobre os limites das identidades nacionais e dos
guês primoroso, lhe apresentasse um passaporte
zam determinados factores da herança portuguesa, o narrador-jornalista, reconhece-se como um es- diferentes espaços que as configuram. Exemplos
indiano:
incluindo a língua, procurando diferenciar-se dos —A senhora não é portuguesa? tranho em Goa. (2016, p. 141). destas andanças são a Nação Crioula (1997) onde
indianos recém-chegados ao território» (p. 113). Chorou: Fradique Mendes (personagem de nome igual à
Uma identidade espartilhada entre os costumes, —Sou portuguesa, sim, meu filho, no coração A obra de Agualusa apresenta a vivência do povo da queirosiana) viaja em Angola e no Brasil. Em Um
tradições, língua, religião de um sistema ancestral sou portuguesa. goês entre o dilema de uma identidade multicultu- Estranho em Goa verificam-se comparações de cul-
e da imposição de dois colonizadores: «Goa está a Mas obrigam-me a usar esta coisa. ral resultante da colonização e da descolonização turas e vivências entre Goa e os três países do triân-
morrer. Não se pode suprimir o passado. A ligação, A coisa era o passaporte. (Agualusa, 2007, p. 65). e que o espartilha entre a aceitação e recusa, afir- gulo transatlântico, Angola, Portugal e Brasil num
felizmente, permanece viva devido a este sistema mação e negação. Agualusa personifica uma identi- questionamento entre centro e periferia.
de crenças — na terra, no povo, nos velhos deuses» dade também ela dividida, ainda que transversal à Para escrever Um Estranho em Goa, o autor be-
(p. 38). A identidade goesa encontra-se, desta for- Uma identidade espartilhada língua portuguesa. A obra resulta numa fusão entre neficiou de uma bolsa de criação literária concedido
ma, em mutação e em afirmação, como salienta romance e relato ou diário de viagem e numa inter- pela Fundação Oriente e a publicação da obra pelas
Rocha: Segundo Stuart Hall, «as identidades modernas ligação entre ficção e fatos históricos: Edições Cotovia foi integrada numa série intitulada
estão sendo descentradas, isto é, deslocadas ou «Série Oriental Viagens», que de acordo com a edi-
Os processos de descolonização de Goa e o de sua fragmentadas» (Hall, 1996, p. 8). Em A identidade O narrador não viaja em busca de um homem, o tora «Paralela e complementar à Série Oriental (que
integração na Índia (1961), que provocaram nos fa- cultural na Pós-modernidade, o sociólogo defende que poderia configurar um relato de viagem, mas coloca à disposição dos leitores obras de referên-
lantes de língua portuguesa, nascidos em uma cul- em busca de um personagem, o que já configura
que «uma identidade unificada e estável está se tor- cia do e sobre o Oriente), […] regista as impressões
tura híbrida (catolicismo, hinduísmo e islamismo) a ficção. Com efeito, há no romance dois fios con-
nando fragmentada, composta não de uma, mas de dutores: a procura de Plácido e, depois, já em Goa, que esse mesmo Oriente suscita hoje em dia».
o sentimento de serem estranhos na sua própria
nação, não possibilitaram evidentemente a sua várias identidades, algumas vezes contraditórias ou a tentativa de aquisição de uma relíquia – o co- A maior parte dos livros de viagens começa com
identificação com os valores do invasor de tradição não resolvidas» (p. 12). O mesmo encontramos em ração de São Francisco Xavier. (Domingues, 2005, um mapa tal como ocorre nesta obra. Goa encon-
inglesa. (2017, p. 70). Um Estranho em Goa: p. 109). tra-se assinalada por um monstro que causa alguma
«estranheza» tal como a situação do protagonis-
A luta pela preservação do legado luso, numa —Hoje sente-se indiano? A identidade está ligada e condicionada pela lu- ta que se sente um «estranho» naquele território.
sociedade hindu de matriz inglesa (Rocha, 2017, —Não, indiano, não, mas às vezes sinto-me sofonia à qual faz uma apologia. Como afirma Mata, Acompanhadas ao mapa estão duas epígrafes. Uma
p. 68), separa os freedom fighters dos descenden- goês… «a coexistência de culturas pressupõe a convivência de Caetano Veloso, «Onde será que isso começa / A
tes dos portugueses que afirmam: «nós fomos in- —E português? em interação e, portanto, a existência de uma socie- correnteza sem paragem / O viajar de uma viagem /
tegrados à força nesta grande desordem […] em —Isso já não sei. O que é um português? dade multicultural, isto é, uma sociedade em que as A outra viagem que não cessa?» (p. 11), redireccio-
[…]
apenas vinte e quatro horas mudou-se a língua. A diferentes culturas se reconhecem na sua diferença nando o leitor para essa viagem da identidade que
—Bem antes de mais, suponho, um europeu…
língua era de uma potência colonial e passou-se —Os portugueses, europeus? — Riu-se com man-
como parte de um mesmo corpo» (2006, p. 290) tra- nunca termina. A outra, de Javier Moro, vem confir-
para a língua de outra potência colonial, a língua sidão. Nunca foram. Não o eram antes e não o são tando-se de uma viagem de autodescoberta: «Nos mar esta mesma jornada na procura do Eu:
inglesa. Imagine o trauma que tudo isto provocou» hoje. Quando conseguirem que Portugal se trans- olhos negros, muito abertos, surpreendi a minha
(Agualusa, 2007, p. 115). Desta forma transparece forme sinceramente numa nação europeia o país própria fugidia imagem. Achei-o de repente igual a Los viajes son una metáfora, una réplica terrenal del
a crise identitária de uma minoria lusófona, deno- deixará de existir. Repare: os portugueses cons- mim» (p. 154). Esta procura da identidade, tentando único viaje que de verdad importa: el viaje interior.
minados pelo próprio narrador como órfãos do im- truíram a sua identidade por oposição à Europa, fazer sentido do passado e presente para enfrentar El viajero peregrino se dirige, más allá del último
ao Reino de Castela, e como estavam encurralados horizonte, hacia una meta que ya está presente en
pério português face a uma identidade fabricada o futuro é comum a toda a obra de Agualusa, como
lançaram-se ao mar e vieram ter aqui, fundaram o lo más íntimo de su ser, aunque aún siga oculta a su
pelos portugueses que está em decomposição ou explica Silva. mirada. Se trata de descubrir esa meta, que equiva-
mesmo extinção. Para Sampaio Melo o narrador Brasil, colonizaram África. Ou seja, escolheram não
le a descubrirse a sí mismo; no se trata de conocer
ser europeus. (Agualusa, 2007, pp. 50-51). A questão da identidade — seja ela relacionada, de
«parece um estranho em Goa, mas, de fato, ele é al otro. (Agualusa, 2007, p. 11).
mais um irmão entre irmãos» (2006, p. 113) pela forma independente, à língua, à história, à litera-
sua histórica raiz lusitana. Embora o angolano se Agualusa afirma que a maioria dos escritores tura; ou, numa incontornável mescla, a outros ele- Como verificámos, a literatura de viagem, «sets a
africanos escreve sobre a procura pela identidade. mentos — está presente na produção ficcional de
depare com uma região diferente da sua, Angola, hardening perception of the foreign as well as of the
Agualusa desde seus primeiros escritos, mas ganha
esta na verdade assemelha-se devido à mesma co- Em Um Estranho em Goa encontramos também self into motion again» (Ette, 2003, p. 30). Patrick e
maior densidade nas obras mais recentes, quando
lonização portuguesa (p. 116). Eduardo Lourenço essa viagem interior onde os temas da identidade o autor faz desse conceito um dos elementos cen- Huggan defendem igualmente que a viagem é sim-
em A Nau de Ícaro e imagem e miragem da lusofo- e da alteridade se encontram desde logo no título. trais na sua reflexão acerca da cultura africana lusó- plesmente uma desculpa para a procura pessoal do
nia refere o «espaço simbólico da lusofonia» onde O narrador é o visitante multicultural e ocidental, o fona. (2015, p. 132). autor: «Perhaps it is best to see travel writing as pseu-
existem diferentes perceções como sendo «um fa- estranho, o Outro, para quem Goa é distante, dife- doethnographic, insofar as it purports to provide a
tor contingente de comunicação entre os homens, rente e exótica «cidade remota» (p. 12) recordan- document of, or report on, other peoples and cultu-
mas a expressão de sua diferença» (2001, p. 121). do-nos da descrição do Outro ocidental de Edward Um olhar transatlântico res while using them as a backdrop for the authors
Portugal funciona como a «essência genealógica» Said em Orientalismo (2004). José, vindo de Angola personal quest» (Patrick & Graham, 2007, p. 12). Os
da língua e não como imposição colonial. Eduar- observa o estrangeiro, o Outro, exótico e distante à A procura do sujeito e do seu lugar no mundo ex- mesmos autores defendem exatamente que a lite-
do Lourenço defende que a lusofonia deveria ser procura da própria identidade fragmentada, indefi- pressa-se na ligação à questão identitária e à língua ratura de viagens é de difícil definição revelando-se
pensada como uma «tapeçaria de diversa consis- nida e fabricada. A partir desta sua bagagem cultu- portuguesa como observámos. Segundo Maldona- um género híbrido que cruza várias categorias e dis-
tência e trama» (p. 183). Desta forma, em Agualusa, ral transatlântica e lusófona Mata salienta, do-Torres «coloniality survives colonialism» (2007, ciplinas. Segundo estes, a narrativa de viagens pode
a matriz linguística do português não surge como p. 243). A escrita de Agualusa está impregnada de consistir numa aventura picaresca, num tratado filo-
uma pressão hegemónica sobre o Outro mas [a]o mesmo tempo que quer conhecer uma história personagens que se encontram em deslocações sófico, comentário político, parábola ecológica ou
como instrumento ideológico: de vida (a de Plácido Domingo) e a história de uma espaciais numa tentativa de reescrita da própria mesmo procura espiritual, sendo que todos:

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borrow freely from history, geography, anthropolo- centram no espaço transatlântico, porque a língua Patrick, H., & Graham H. (2007): Tourists with Typewriters: Salgado, M. T. (2000): José Eduardo Agualusa: uma ponte
gy, and social science, often demonstrating great e a presença portuguesa, lusa e lusófona se expan- Critical Reflections on Contemporary Travel Writing. entre Angola e o mundo. In África & Brasil: letras em
erudition […]. Irredeemably opinionated, travel wri- Michigan: The University of Michigan Press. laços, pp. 175-196. Rio de Janeiro: Atlântica.
diu (e retraiu) para lá do Atlântico. Desta forma, o
ters avail themselves of the several licenses that are Rocha, D. (2017): «Nós somos portugueses. Portugueses Sampaio Melo, F. J. (2006): «A ambiguidade do discur-
granted to a form that freely mixes fact and fable, conceito referido anteriormente, «coloniality survi- da Índia: Identidade Pós-colonial em Um Estranho em so colonial: Um estranho em Goa, de José Eduardo
anecdote and analysis. (Patrick & Graham, 2007, ves colonialism» por Maldonado-Torres, revela-se Goa (2000), de José Eduardo Agualusa», Mulemba, Agualusa», Letras de Hoje, v. 41, n. 3, pp. 111-116. Por-
pp. 8-9). pertinente, uma vez que as personagens presentes v. 9, n. 16, pp. 66-85. Rio de Janeiro: UFR. to Alegre.
neste ultra-transantlatismo entrelaçam a Índia e a Said, E. (2004): Orientalismo: Representações Ocidentais Silva, M. (2015): «Anu. Lit. Florianópolis», v. 20, n. 1, pp. 213-227.
Ette reforça esta mesma posição e argumenta África com Portugal e o Brasil e experienciam des- do Oriente. (P. Serra, trad.). Lisboa: Livros Cotovia. http://dx.doi.org/10.5007/2175-7917.2015v20n1p213
que as relações entre diário de viagem e romance locações espaciais numa tentativa de reescrita da
são intensas e complexas: «Both genres, each of própria identidade. Contudo atualizam esse mesmo
them shattered into a multitude of subgenres, are discurso sobre os limites das identidades nacionais
literary hybrid forms, which are able to include the e dos diferentes espaços que as configuram.
most diverse literary and non-literary text types and
fragments» (Ette, 2003, p. 26).
Desta forma, Um Estranho em Goa sintetiza este Fontes e bibliografia
mesmo hibridismo literário e cultural. Com o narra-
dor viajante que interpreta o outro a partir do triân- Agualusa, J. E. (1997): Nação Crioula. Lisboa: Quetzal Edi-
gulo, Angola, Portugal e Brasil, encontramos várias tores.
passagens que sintetizam essa «transatlicidade»: —(2006): Passageiros em Trânsito. Lisboa: Quetzal Editores.
—(2007): Um Estranho em Goa. Lisboa: Biblioteca Editores
Havia alguns jovens indianos sacudindo-se em gru- Independentes.
po, no meio da pista, numa coreografia que me Augé, M. (1994): Não-lugares: Introdução a uma Antropo-
lembrou a dos índios do Brasil nas suas cerimónias logia da Sobremodernidade. (L. Mucznik, trad.). Lisboa:
Bertrand.
guerreiras para turistas. Acho um pouco melancóli-
Azevedo, V. (2014): «Memória e esquecimento: a recons-
co, quase constrangedor, ver dançar um europeu. trução da identidade angolana na ficção de José
Os indianos, imitando os europeus, não o são me- Eduardo Agualusa», Mulemba, v. 1, n. 11, pp. 126-140.
nos. (Agualusa, 2007, p. 144). Rio de Janeiro: UFRJ.
Bakhtin, M. (1992): «O romance de educação na história
A mesma confluência transatlântica ocorre nos do realismo», Estética da criação verbal. (M. E. Pereira,
seguintes parágrafos: trad.), pp. 221-276. São Paulo: Martins Fontes.
Benjamin, W. (2003): «On the Concept of History», Walter
Vi formar-se entre os meus dedos a ardência marí- Benjamin, Selected Writings. (E. Jephcott [et al.], trad.),
tima, fenómeno a que no Brasil também se chama vol. 4 (1938-1940). Cambridge: Harvard University
buxiqui, provocado pela existência de protozoários Press.
de corpo luminescente […]. O monumento ao Aba- Domingues, E. L. (2005): «Seis olhares sobre um estranho
de Faria, em Pangim, foi inaugurado em 1945. Re- em Goa», Niterói, n. 19, pp. 105-122.
presenta o hipnotizador com os braços estendidos, Ette, O. (2003): Literature on the Move. (K. Vester, trad.).
as mãos hirtas, e uma mulher deitada no chão, aos Amsterdam/New York: Rodopi.
seus pés, em pleno transe — aquilo a que em An- Giddens, A. (1990): The Consequences of Modernity,
gola se chama de xinguilamento. (Agualusa, 2007, pp. 37-38. Cambridge: Polity Press.
pp. 44-52). Halbwachs, M. (2004): A memória coletiva. São Paulo:
Edição Centauro.
Hall, S. (1996): «Cultural Identity and Diaspora», Con-
temporary Postcolonial Theory, pp. 110-121. London:
Considerações finais Hodder Arnold.
Le Goff, J. (2003): História e memória. Campinas: Ed. Uni-
O território de Goa é lugar de crise identitária camp.
pós-colonial vivida por parte da população goesa Lourenço, E. (2001): A nau de Ícaro e imagem e miragem
que aí se sentem estranhos, deslocados ou espar- da lusofonia. São Paulo: Cia. das Letras.
tilhados. Esta viagem a Goa acaba por ser também Maldonado-Torres, N. (2007): «On the coloniality of being:
uma viagem espiritual em que o narrador procura o Contributions to the development of a concept», Cul-
Eu e revela uma identidade também ela dividida tal tural Studies, 21, 2-3, pp. 240-270.
como ocorre com outras personagens. A visão do Mata, I. (2006): «Estranhos em permanência: a negação
da identidade portuguesa na pós-colonialidade»,
narrador da Goa exótica e dissemelhante é fruto da
Portugal não é um país pequeno: contar o império na
sua vivência multicultural e transatlântica. Este iden- pós-colonialidade, pp. 285-315. Lisboa: Edições Coto-
tifica-se com os goeses já que se sente um irmão, via.
alguém que partilha com eles a identidade Lusa —(2016): «Um estranho em Goa: viagem transitiva a
fruto de um passado colonial. O autor transporta um Oriente em demanda», Via Atlântica, n. 30,
para o Oriente as questões que normalmente se pp. 131-149. São Paulo.

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