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O DESCONTENTAMENTO

O conhecimento logosófico dirige-se à pró-


pria vida do ser, à sua natureza e a tudo que
forma o conjunto do que lhe é próprio, ou seja,
de sua exclusiva posse. É a luz que ilumina o
espírito, mas é necessário que essa luz penetre
na mente sem a oposição dos preconceitos, que
impedem toda iluminação. Quem oferecer um
mesquinho lugar nela para recebê-lo não pode-
rá pretender que sua luz o ilumine, mas quem a
abra para que se encha de claridade não demo-
rará muito a desfrutar seus benefícios.

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Como se explica o fato de que, anelando o homem viver, por
descuido ou por ignorância vá matando gradualmente essa vida?
Um inimigo, que costuma penetrar dentro dele sem ser visto, é
quem se encarrega de amargar-lhe a vida e de fazer com que ela se
debilite, perca força e até sucumba, se não ocorrer a tempo uma reação.
Esse inimigo se chama descontentamento. Neste estudo, propomo-nos
pô-lo a descoberto, a fim de que quem tenha interesse nisso possa
ajuizá-lo, sentenciá-lo e ainda lhe ditar a pena de morte.
Convém, para compreender melhor o que iremos expondo, que
cada um realize um exame de si mesmo, do que é, do que pode ser, e
investigue, além disso, a quem deve sua própria razão de ser.
Vejamos: o que é que cada um quer sem tê-lo pensado? Viver.
Ninguém pode negá-lo. Todos, ainda que não pensem nisso, todos que-
rem viver. Por quê? Por que o ser gosta tanto dessa vida que quer
conservar? Porque sente, no mais íntimo de si, esse algo tão terno, tão
grande, quando por um instante é consciente de que vive. Nesses
momentos, não sente ele uma alegria indescritível? Não experimenta
tristeza quando está doente e alegria quando recupera a saúde, a saúde

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que traz a vida, a vida que traz o motivo da existência neste mundo?
Então, por que o descontentamento? Contra quem? Contra si mesmo?
Há motivo para tê-lo em relação aos demais?
Muitas vezes afirmamos nestas páginas que o conhecimento logosó-
fico previne contra todos os riscos, os perigos, e contra todos os
inimigos. Mostra-os aos olhos de cada um e ensina a eliminá-los, sendo
isto já um grande passo para a felicidade e a paz. Ele é orientação clara
para a vida e representa o encontro do ser consigo mesmo. Experimentar
a realidade desse encontro e a grata sensação de perceber as forças do
próprio existir age como incentivo poderoso da vontade, permitindo
ver até onde se é hábil no exercício da própria inteligência. Portanto,
no ser que recebe a luz do conhecimento e experimenta os benefícios
que essa luz lhe proporciona, o descontentamento não pode permane-
cer. Quando a confirmação de verdades que ele acreditou impossíveis
e inexistentes faz com que viva momentos felizes e lhe permite encon-
trar dentro de si virtudes, condições, qualidades; quando sente em si o
despertar de sentimentos novos e percebe a força de uma vida antes
desconhecida, devido à falta de consciência dessa nova forma de existir
que exalta seu ser em seus melhores valores e virtudes e o faz vibrar
acima de tudo o que é comum, não pode haver nele descontentamento.
Os dias de triunfo, de alegria, de felicidade e de paz vividos já serão
mais do que suficientes para acalmar suas inquietudes e ajudá-lo a
suportar qualquer contrariedade. Por isso, pode-se muito bem dizer
que o conhecimento dá vida; essa vida que cada um subtrai de si pelo
descontentamento, que, quando se manifesta, não faz nem deixa fazer.
Mas voltemos ao ser que, sem recurso ou defesa alguma, é dominado
pelo descontentamento e mergulha em lamentável incompreensão. Em
tal situação, parece que um negro fantasma o envolve, privando-o de ver,
ouvir e sentir o belo, o agradável e o justo. Sofre e, ao mesmo tempo, é
insofrível; e como todos os seres humanos buscam por natureza a ale-
gria, a paz, a felicidade, o bom humor, quando o descontentamento
aparece em algum deles, de imediato preferem se afastar, fugindo de sua
presença. Não queremos dizer com isto que o homem tenha, necessaria-
mente, que estar sempre contente; mas pensamos, isso sim, que a falta
de disposição para o bom humor não deve dar lugar a que apareça nele
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o descontentamento. Quando este chega a se apossar do ser, torna-se
crônico e, chegando a tal estado, nada há que lhe permita dissimulá-lo.
Poderá estar alegre por um momento, porém só em aparência, porque o
descontentamento estará regendo sua conduta. Por isso, deve-se ter
como verdade que ele é um grande inimigo do ânimo pessoal; é o que
faz com que muitos fracassem na vida e o que desvia constantemente o
homem de um caminho ou de outro.
O descontentamento não é desgosto nem mau humor; não é,
tampouco, um momento de irreflexão. Não; o descontentamento é
outra coisa: é algo que se vai infiltrando lentamente no ser; algo que,
sem que ele o sinta, vai se apossando de sua mente e de sua vontade.
Não é produto de um instante, mas acompanha o ser a todas as partes,
porque fez dele sua presa e não o abandona até acabar com ele.
O descontentamento é um tóxico psíquico que age como um entor-
pecente; o conhecimento logosófico, ao contrário, é um desintoxicante
psicológico. Quem o aplicar a si mesmo se verá livre deste incômodo
inimigo; livre de suas travas; e só então poderá conservar sua liberdade
interna tal como ela é e deve ser conservada.
Aquele que em algum momento se sinta descontente deverá usar sua
razão e se perguntar por que seu ânimo se mostra ressentido e que bene-
fícios esse fato lhe pode trazer. Isto o conduzirá a muitas reflexões e a se
fazer sérias censuras, ao constatar em si mesmo tal anomalia psíquica.
Se analisarmos as possíveis causas do descontentamento, conclui-
remos que elas não existem em realidade, porquanto tal estado de
ânimo provém de um acentuado debilitamento da vontade, que, por
sua vez, obedece à influência predominante de pensamentos inibido-
res da inteligência. O fato, por exemplo, de crer que tudo é impossível
de alcançar ou realizar; de julgar invariavelmente as coisas com ceti-
cismo, ou de olhar com os olhos do preconceito cada palavra ou ato
do semelhante, define esse estado anormal que caracteriza o descon-
tentamento. Se, pelo contrário, diante de uma circunstância, um fato
ou um propósito qualquer, concentra-se o ânimo na direção do
propósito de evitar todo possível desvio, o peso morto, opressor e
angustiante do descontentamento será eliminado, precisamente, pela

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ação decidida do pensamento, estimulado e sustentado em virtude da
mudança experimentada, tão reconfortante como promissora.
Diz o homem com suma frequência: “Eu poderia ter isto ou
aquilo, e não tenho.” Pois que se empenhe em alcançá-lo; enquanto
isso, seu pensamento estará em atividade, procurando consegui-lo e,
enquanto faz isso, a posse já será dele, porque sua vontade irá até ela,
e ele estará desfrutando da posse enquanto caminha em direção à sua
conquista. Porém, se nada faz pelo fato de estar descontente, a posse
não virá até ele, pois sem sua solicitude ele mesmo afastará toda pos-
sibilidade de alcançá-la.
De modo que não há nada que justifique o descontentamento.
Quem estiver descontente se terá desconectado do Autor de sua exis-
tência, e reclamará para si algo que ele mesmo afastou de seu lado.
Por acaso sabia, ao nascer, como haveria de ser e o que iria possuir?
O homem deve contemplar a si mesmo e também aos demais e, ao
fazê-lo, experimentar a grata sensação de que vive, pensa e é capaz de
conter a vida dentro de si pela consciência, sem a qual não poderia
recordar o que foi ou o que fez até ontem. Porque a verdade é, sem
dúvida alguma, que todo o passado do ser humano está contido na
consciência, e esse armazenamento de vida é o que aviva o fogo inex-
tinguível da própria existência, já que é a permanência da vida na
própria vida. Mas se a vida por viver – que haverá de ser igualmente
contida ou, melhor ainda, conservada na consciência – é revivida, é
exaltada, poderá ela manifestar-se de outra maneira; o ser experimen-
tará outras alegrias e sentirá surgir nele o conhecimento da razão de
ser de sua existência.
Trate o homem de que essa vida futura, que a consciência deverá
conter, seja muito melhor do que a anterior, porque assim, ao evocá-la,
experimentará em sua revivência a verdadeira felicidade, e viverá pela
recordação ativa uma vida, enquanto continua vivendo a existência.
Quando o homem aprender bem estas lições que o conhecimento
logosófico ministra, terá assegurado para si um futuro venturoso, já
que nada pode, como o saber, favorecer o desenvolvimento feliz da
vida humana.

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