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CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO CONCEITO

DE ARTE AMAZÔNICA

Gil Vieira Costa


UNIFESSPA

Resumo Abstract

Este ensaio busca investigar o termo arte This essay seeks to investigate the term
amazônica enquanto conceito, operado desde o Amazonian art as a concept, operated from
campo da arte especializada, cujo significado é the field of specialized art, whose meaning is
fabricado e disputado pelos diversos atores sociais formulated and disputed by the various social
que o manejam. São abordados textos críticos actors who manage it. Critical and curatorial
e curatoriais que tratam da arte amazônica. texts dealing with Amazonian art are addressed.
Também são analisadas algumas relações da arte Some relations between Amazonian art and the
amazônica com as fabricações de uma identidade fabrication of an Amazonian cultural identity are
cultural amazônica. Por fim, são apresentadas also analyzed. Finally, proposals are presented
propostas de compreensão das relações da arte to understand the relationship of Amazonian art
amazônica com tendências artísticas e ideológicas with artistic and ideological trends of local and/or
de circulação local e/ou global. global circulation.

Palavras-chave: Keywords:

Amazônia; Arte amazônica; Amazonia; Amazonian art;


Identidade cultural. Cultural identity.

AMAZÔNIAS INVENTADAS E IMAGINADAS comum, além do interesse mútuo por certa arte
amazônica. Outra pesquisa ainda mais atenta
Em 2019 foi realizada a I Bienal Internacional de
perceberia, não sem constrangimento, que mesmo
Arte Amazônica, na cidade peruana de Pucallpa
esse interesse não poderia ser considerado um
(Ucayali). A mostra foi promovida por instituições
tópico partilhado, pois cada mostra manejou (e
privadas e contou com financiamento do governo
foi manejada) por uma ideia específica de arte
peruano. Buscava um intercâmbio didático entre
amazônica, seguindo direções distintas.
os saberes das artes de herança ancestral e os
das artes contemporâneas, conforme os textos de Ademais, a “arte amazônica” (visual, subentende-
divulgação do evento. se) não é um tópico restrito aos impulsos dessas
duas bienais, ganhando destaque cada vez maior
Não foi a primeira vez que o campo da arte
nos debates do sistema internacional de arte. O
especializada (arte moderna e contemporânea,
tema – e suas variantes politicamente corretas,
artes plásticas, belas-artes, etc.) reuniu as palavras
como “arte na Amazônia” – tem servido a propostas
“arte” e “Amazônia” (ou palavras derivadas) em
curatoriais, coleções museológicas, pesquisas
um mesmo termo, e certamente não será a última.
historiográficas, dossiês temáticos de revistas
Há antecedentes dessa prática durante boa parte
especializadas, grupos de trabalho em eventos
do século XX, como a I Bienal Amazônica de Artes
acadêmicos, entre outras iniciativas, algumas delas
Visuais, realizada em 1972 na cidade brasileira de
ainda na primeira metade do século 20, mas com
Belém (Pará).
intensidade muito maior no século XXI.
Uma pesquisa comparativa entre essas duas
Diante de um assunto que interessa a tantos
bienais perceberia, com facilidade, que as mostras
tempos e lugares, cabe perguntar se de fato há
brasileira e peruana tiveram pouca coisa em
algo como uma arte amazônica, e investigar quais

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as causas e consequências dos muitos usos que se No entanto, é plausível considerar que nenhum
faz desse termo e de seus correlatos. A questão crítico ou historiador da arte afirme, hoje, que
causa mal-estar. Ainda que eu pesquise arte na exista uma relação automática entre a obra de
Amazônia e o faça a partir de uma cidade na região, arte e a paisagem natural onde ela é gestada.
colocar a arte amazônica em suspenso é, de certa Ao contrário: entre os fenômenos estritamente
maneira, ameaçar sua frágil notoriedade (inter) humanos, a arte talvez seja aquele que mais
nacional, construída e conquistada a duras penas recebeu esforços teóricos, no sentido de afirmar a
por artistas, curadores, críticos, historiadores, sua singularidade e autonomia. Por outro lado, hoje
gestores e outros personagens do mundo da é consenso entre os pesquisadores do assunto a
arte. Ainda assim, é uma questão que precisa ser ideia de que esta autonomia seja parcial e relativa.
encarada sem receios. Há muitos graus de comprometimento entre a
obra de arte e a natureza e, principalmente, entre
Para começar, por que é possível associar
a arte e seu ambiente social. É na sociedade que
a produção artística a um espaço como a
em geral se buscam os ecos e os silenciamentos,
Amazônia? Em geral, o adjetivo pátrio não é
as continuidades e as rupturas, que são
adicionado à produção artística a partir de um
característicos em cada obra.
bioma ou ecossistema, e sim a partir de um
território geopolítico. Se fala ou se falou bastante A arte amazônica, então, poderia ser pensada
sobre arte brasileira, peruana, latino-americana não como uma produção que surge do bioma
ou caribenha, mas se faz pouco ou nenhum uso Amazônia, como suas fauna e flora específicas,
de termos como arte na Caatinga, no Cerrado, mas como uma arte que é formatada e
na Mata Atlântica, nos Pampas, no Pantanal etc., condicionada pelas sociedades na Amazônia. Aqui,
como se a arte brotasse da paisagem natural a monumentalidade regional novamente precisa
em uma forma específica. Talvez o manejo ser considerada. A população da Amazônia está
frequente da ideia de arte amazônica indique que estimada em cerca de 34 milhões de habitantes
a Amazônia não é somente uma região natural, (ARAGÓN, 2018, p. 18). De novo, se fosse um
mas sobretudo um território geopolítico, ainda país, estaria colocada por volta da quadragésima
que não se configure nos moldes tradicionais do posição na lista dos mais populosos do mundo,
estado-nação e de suas subdivisões distritais. bem à frente da mesma Austrália, com seus 25
milhões de habitantes. Se contam na casa das
Vale lembrar ao leitor as dimensões monumentais
centenas as línguas ameríndias vivas na bacia
da região que estamos investigando. A
amazônica, além das línguas impostas ou trazidas
Amazônia possui uma área avaliada, por alguns
pela colonização. Há desde metrópoles urbanas,
pesquisadores, em cerca de 7,8 milhões de
congregando milhões de habitantes, até pequenas
quilômetros quadrados (FILHO, 2013, p. 94). Para
comunidades de povos da floresta, formadas por
efeito de comparação, sua área é maior que a da
algumas centenas ou mesmo dezenas de pessoas,
Austrália (7,7 milhões de quilômetros quadrados),
passando ainda por comunidades camponesas
sexta colocação na lista de países com maior
de variadas abrangências populacionais e com
território no mundo. Essa área está distribuída
estruturas complexas de relação campo-cidade.
no território de nove países, estando a maior
parte no Brasil (cerca de 67%), seguido por Peru, Quando falamos de arte amazônica partimos,
Bolívia, Colômbia e Venezuela, orbitando entre em geral, do pressuposto de que ela se vincula a
10% e 5% cada um, e depois Guiana, Suriname, essas sociedades e manifesta certa “identidade
Equador e Guiana Francesa, com cerca de 3% cultural amazônica” – mas pode ser um equívoco
a 1% cada. Como se pode imaginar, há uma procurarmos por alguma homogeneidade social
diversidade complexa de ecossistemas dentro em um território tão vasto e relativamente tão
do bioma Amazônia, das matas densas de terra populoso. Além disso, o mundo da arte tem
firme aos campos alagados. Se houver alguma acompanhado os debates das ciências humanas,
relação causal entre a paisagem natural e a nos quais as noções de “identidade” e “cultura”
produção artística, então é de se esperar que a estão sob desconfiança cada vez maior. E onde,
arte amazônica seja diversa e complexa. ao menos desde os estudos de Neide Gondim
(1994), se entende que a Amazônia foi inventada

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em certo período histórico: imagem e imaginário muitos países, como vimos. E menos, porque
sobrepostos ao lugar concreto pelo invasor qualquer tentativa de identidade geopolítica
europeu, no contexto da expansão marítima amazônica é ainda de pouca aderência popular,
colonial e de seus desdobramentos. Em uma época quando comparada às identidades nacionais (como
como a atual, portanto, discutir arte amazônica a brasileira, a peruana etc.) ou às identidades de
pode parecer contraditório, ou na contramão das povos na Amazônia (como a mundurucu, a shipibo-
ciências humanas – ao menos se tivermos como conibo, a ianomâmi etc.). A identidade cultural
princípio a ideia de que essa arte reflete uma amazônica está em processo de invenção (já que é
identidade cultural coesa e específica. referente a uma comunidade imaginada). Ela não
é a somatória das muitas identidades culturais
Em contrapartida, essa mesma atualidade que
locais, pois uma soma desse tipo carece de uma
é a nossa também vê um crescente recurso
entidade política tal qual um estado-nação, que a
de pautas identitárias, à direita e à esquerda,
Amazônia ainda não dispõe. Por isso, sempre que
fomentando movimentos políticos identitaristas
falamos em uma arte amazônica nos arriscamos a
que passam pelas questões étnico-raciais,
cometer um ato de simplificação e velamento de
religiosas, de gênero, de nacionalismos,
uma realidade social mais complexa do que nosso
entre outras, acarretados pelos processos de
discurso dá a entender.
globalização. Pode ser que a crescente defesa de
uma identidade amazônica ou, ao menos, de uma ARTE AMAZÔNICA ENQUANTO CONCEITO
condição amazônica, seja uma dessas respostas à
Não é possível falar de uma arte amazônica,
globalização. Ou seja, a integração das sociedades
no sentido de uma produção artística comum
locais dentro dos processos econômicos e culturais
à Pan-Amazônia, partilhando certa identidade
do capitalismo global é um fator importante para
cultural específica. Mais proveitoso é pensar
a recente construção de uma identidade política
a arte amazônica como um conjunto de
amazônica, pautada por diferentes movimentos
movimentações artísticas distintas, em tempos e
sociais articulados. Também há todo um outro
espaços também distintos, que apenas podem ser
movimento transnacional de resistência à
pensadas enquanto conjunto por partilharem uma
globalização hegemônica (capitalista), em defesa
característica: se articularem em torno das ideias
da “preservação da Amazônia”, entendida como
de Amazônia e de seus possíveis usos.
patrimônio comum da humanidade (SANTOS,
2002, p. 70). Investigar, criticamente, a arte na Essa formulação já aparece há algum tempo em
Amazônia e a ideia de arte amazônica é uma muitas curadorias e pesquisas sobre o tema. Fala-
maneira de contribuir com a compreensão de um se em “múltiplas Amazônias” (MANESCHY, 2013,
dos aspectos simbólicos da movimentação política p. 19), por exemplo, e na sua arte como um “rizoma
em torno desse bioma e território social. de individualidades” (HERKENHOFF, 2014, p. 12),
entre muitos outros termos que apontam para a
Falar de arte amazônica talvez seja apontar a
ideia (correta, a meu ver) de que a arte amazônica
Amazônia como uma “comunidade imaginada” –
é o conjunto da produção heterogênea de grupos
termo que Benedict Anderson (2008) formulou
heterogêneos. Porém, o que interessa perguntar
para tratar dos estados-nação típicos da
é como essa pluralidade é manejada na prática de
modernidade ocidental. As razões pelas quais
curadores, instituições e pesquisadores em geral.
inventamos e mantemos nossas comunidades
Estes estão, sempre, operando com um conjunto
imaginadas são difusas e complexas, mas
restrito de obras e artistas rotulados como arte
pode-se dizer que estão nas origens de muitas
amazônica. Há seleção, sobretudo. Algumas obras
das identidades nacionais que, mesmo em um
e artistas são mais convenientes que outros para
regime de globalização acentuada, ainda são
as narrativas construídas sobre a arte amazônica,
capazes de pautar grandes debates políticos
a depender dos personagens e interesses
intra- e inter-nacionais.
envolvidos. Por isso, quero destacar o fato de que
A Amazônia é ao mesmo tempo mais e menos que a arte amazônica é um espaço de disputas.
um estado-nação. Mais, porque suas dimensões
A ideia de que a arte é uma plataforma social
geográficas e culturais são maiores que a de
de enfrentamentos não é nova, e remonta, no

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mínimo, às reverberações da ideia marxista de que Já a arte amazônica pode ser entendida de outra
a história humana é a história da luta de classes. maneira. Tomo emprestado e parafraseio o termo
Boa parte da história da arte do século XX possui de Roberto Conduru (2007), para apontar uma
algum diálogo com a teoria materialista das classes arte projetivamente amazônica. Ou seja, uma
sociais. Mas pouco se investiga sobre o que estaria arte que tem como projeto trabalhar com certas
sendo disputado no campo artístico. Seriam características da Amazônia. Não me refiro a
concorrências ideológicas, políticas, estéticas? características estritamente visuais ou formais, e
O que configura o propriamente artístico nesse sim a aspectos amplos dos imaginários da e sobre
espaço de choques e conflitos? a Amazônia. Muitos artistas, de forma consciente,
têm buscado construir projetos estéticos nessa
No que diz respeito à arte na Amazônia, hoje há
direção, refletindo sobre questões culturais e
uma disputa até certo ponto velada em torno
sociais da região. Aqui, portanto, arte amazônica
do que pode ser considerado arte amazônica.
não diz respeito ao lugar em que certa arte foi
Essa é uma contenda que é tão estética quanto
produzida e experimentada (como ocorre na ideia
política. Ela envolve desde os debates sobre as
de “arte na Amazônia”), mas sim a uma postura
especificidades das linguagens artísticas até as
intencional de refletir sobre a região em seus
interpretações ideológicas sobre a região e seu
trabalhos. Nem toda arte produzida na Amazônia
imaginário. E decerto é atravessada por questões
pode ser abarcada pelo termo arte amazônica. E,
de pertencimento e identidade. Há disputas
por outro lado, certa produção artística de fora
a respeito de quais sujeitos podem falar em
da região deve ser incluída no termo, quando se
nome desse território e de quais obras possuem
apresentar como projetiva sobre a Amazônia. Um
suficiente amazonidade: que arte e que artistas
exemplo bastante conhecido está na exposição
podem ser considerados amazônicos?
Amazonia by Maria, individual da brasileira Maria
A pergunta carrega certo ar essencialista, Martins realizada na cidade de Nova Iorque (EUA),
como se a Amazônia fosse um dado objetivo em 1943.
e automaticamente traduzível na produção
Talvez uma definição deste tipo ajude a nos
artística de determinadas pessoas que vivem
aproximarmos de uma produção artística tão
ou se relacionam com a região. Discordo dessa
plural, vinda de variados lugares e épocas. E pode
posição. A Amazônia não é um dado objetivo,
nos ajudar a compreender melhor as disputas em
mas um emaranhado complexo entre diferentes
torno da inclusão ou exclusão de obras as mais
situações naturais e sociais (talvez unidas por
distintas no seio de um mesmo rótulo ou conceito.
alguma condição geográfica), imaginários e
De fato, o que muitos curadores, historiadores
formas de entender o próprio local. E esse
e demais pesquisadores nos apresentam como
emaranhado complexo que chamamos de
arte amazônica é uma produção projetivamente
Amazônia, que certamente possui aspectos
amazônica – certamente seguindo seus próprios
objetivos (a experiência concreta com o ambiente
recortes geográficos, afetivos, conceituais e políticos.
e/ou com os processos sociais na região), é
traduzido em produções artísticas nas maneiras Os pesquisadores que trabalham com o tema estão
mais díspares possíveis. cientes dessas operações. Temos, por exemplo,
a Coleção Amazoniana, que Orlando Maneschy
Neste ensaio, portanto, quero defender a
organizou, entre 2012 e 2013, no Brasil. O projeto
necessidade de pensar arte amazônica como
envolveu a realização de exposições de arte
algo distinto daquilo que é entendido por arte
contemporânea, mesas de debates e a aquisição ou
na Amazônia. O segundo termo diz respeito aos
doação de obras para a referida coleção, acolhida
fenômenos artísticos ocorridos no território
pelo Museu da Universidade Federal do Pará, com
transnacional, socialmente entendido como
a temática da Amazônia como eixo aglutinador.
Amazônia. Não há qualquer tentativa de um
Nas palavras de Maneschy (2013, p. 33), a Coleção
agrupamento por motivos estéticos, estilísticos,
Amazoniana não pretendeu “agregar toda e
temáticos ou o que quer que seja. O agrupamento
qualquer produção artística constituída sobre
se justifica tão somente por uma questão de
a Amazônia”, mas, sim, reunir “obras em que
localização geográfica ou territorial.
artistas, da região ou de fora, projetam suas

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vivências no lugar, materializando-as em forma A direção temática, que propõe a Amazônia como
de arte, geradas na dimensão do encontro com a assunto da produção artística, em geral, não faz
região”. Não uma arte na Amazônia, mas uma arte uso do termo “arte amazônica”, mas é nítido que
a partir de, a respeito de e para esse lugar. seus projetos almejam a reflexão sobre a região,
a partir da arte especializada. Ainda em 1943, o
Pode-se distinguir duas direções distintas
governo peruano promoveu em Lima a Exposición
e complementares, nos esforços críticos e
Amazónica, dentro das comemorações do IV
curatoriais a respeito da arte amazônica. Uma
Centenário de Descobrimento do Rio Amazonas.
delas é nativista, entendendo dentro do termo a
A mostra incluía um pavilhão de belas-artes,
produção estética de povos originários da região
reunindo obras com temáticas amazônicas feitas
ou, também, de artistas oriundos das cidades
por artistas peruanos de fora da região. Uma
amazônicas (por mais ocidentalizadas que elas
ideia semelhante aparece nas três exposições
sejam). A outra direção é temática, quando se
Amazonia, una exposición de pintura, realizadas
encara a Amazônia como assunto mobilizador da
em Caracas (Venezuela) na segunda metade dos
produção artística, seja ela produzida por seus
anos 1980, organizadas por Axel Stein; ou no
habitantes ou por estrangeiros refletindo sobre
grande projeto Arte Amazonas que o Goethe-
a região. É evidente que, a partir do momento
Institut realizou em 1992, mobilizando artistas de
em que as formas artísticas nativas começam a
várias partes do mundo (incluindo alguns nomes
servir como signo da Amazônia (como o grafismo
da própria região) para pensar e produzir na
marajoara no Brasil, ou o kené shipibo-konibo no
Amazônia. Para ficar em apenas mais um exemplo,
Peru), as duas direções se encontram.
tivemos em 2018 a exposição Amazônia: os novos
Muitas propostas de conceituação da arte viajantes, no Museu Brasileiro de Escultura e
amazônica, portanto, se vinculam às tradições Ecologia, com curadoria de Cauê Alves e Lúcia
visuais de povos indígenas. A revista Habitat Lohmann, também operando com artistas de fora
(São Paulo), por exemplo, especializada em da região, que refletiram sobre suas experiências
arquitetura e artes visuais sob uma visada de viagem à Amazônia.
modernista, publicou entre 1954 e 1956 quatro
Em geral, a arte amazônica é mostrada como
artigos chamados “arte amazônica”. Os quatro
a produção de determinados sujeitos artistas
textos são assinados pelo antropólogo paraense
que possuem alguma experiência com o bioma
Napoleão Figueiredo, e tratam, em geral,
Amazônia e com as sociedades na região. Há,
sobre as cerâmicas indígenas encontradas
decerto, muitos tipos de “experiência amazônica”,
nas investigações arqueológicas na Amazônia
e as situações biográficas dos artistas nas
brasileira. O fato se torna ainda mais curioso
cidades, no campo ou na floresta possivelmente
quando observamos que o mesmo autor, na
condicionam produções variadas. Essa diferença,
mesma revista, ao comentar em outro artigo
porém, muitas vezes, resulta em uma tipificação
sobre um artista moderno em Belém, não trata
da amazonidade pela via do exotismo, com o
a produção dele como arte amazônica, mas
mercado multiculturalista atribuindo a algumas
tão somente como a de um “pintor do extremo
formas estéticas o rótulo amazônico, talvez para
norte” ou do “norte do Brasil” (FIGUEIREDO,
potencializar seu valor simbólico e financeiro. É
1958, p. 76-77).
uma armadilha; e por isso exercerá demasiada
Atualmente, o campo brasileiro de arte atratividade até que finalmente seja percebida
especializada em geral não utiliza o termo arte como tal. O risco evidente, e já verificável em
amazônica como sinônimo de arte indígena, dado muitas cidades na região, é o de reduzir a arte
que essa generalização ignora a pluralidade tanto amazônica a padrões predeterminados, encarando
de uma quanto de outra, marcadas por agendas não uma identidade cultural específica como fórmula
necessariamente coincidentes. No senso comum, e formato inescapável, para atender ao gosto
porém, o embaralhamento entre arte amazônica educado pelo mercado.
e arte indígena permanece em uso, no Brasil e em
É possível que a elaboração do termo arte
outros países amazônicos – qualquer pesquisa do
amazonista, por parte de pesquisadores
termo na internet revela inúmeros exemplos.
peruanos do tema, como Christian Bendayán,

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seja uma maneira de responder e escapar ao estéticas ameríndias, apenas muito recentemente
uso já consolidado do termo arte amazônica. têm sido entendidas dentro da categoria arte em
Bendayán (2017) afirma que, ao fazer uso da nossas sociedades.
palavra amazonistas, buscou identificar uma
Os desdobramentos desse processo histórico são
prática disseminada nos últimos anos, no Peru,
evidentes, no que diz respeito à arte amazônica:
de valorização da Amazônia como espaço para
a relação com a arte especializada ocidental
pensar sobre o país como um todo. O termo
serve como parâmetro incontornável pelo qual
amazonistas não corresponderia a uma “categoria
medimos a nós mesmos. Por exemplo, ainda que
fechada e homogênea, mas a um novo e múltiplo
estejamos a falar de uma manifestação estética
espaço de investigação para artistas cativados
ameríndia, quando a inserimos dentro da ideia
pelas visões, pela cosmovisão, pela história
de arte amazônica, nos circuitos institucionais
e narrativas alternativas, pela selva urbana e
especializados em arte, estamos medindo
sua modernidade promíscua, pelo misticismo
essa manifestação a partir dos parâmetros
e conservação deste território pródigo”
ocidentais – mesmo que pretendendo negá-los.
(BENDAYÁN, 2017, p. 12-13, tradução minha). A
São os valores artísticos ocidentais que são
definição de arte amazonista formulada no Peru
naturalizados como nossos, e somente através
é, de alguma maneira, referencial para a definição
deles é que nos encaminhamos na direção de
de arte (projetivamente) amazônica que tento
estéticas não-ocidentais.
estabelecer, pois ambas apontam para o manejo
consciente e múltiplo da Amazônia, a partir das Diferente de interpretações que entendem a arte
práticas artísticas. amazônica como fruto do isolamento da região,
que garantiria os limites de sua especificidade,
ARTE AMAZÔNICA ENTRE LOCAL E GLOBAL
pressuponho que a arte amazônica opera a
Operar com as categorias de local e global, para partir do contato e das trocas culturais – mais
analisar o fenômeno artístico, requer cuidados. horizontais ou mais autoritárias, a depender do
Afinal, os limites entre elas são sempre imprecisos contexto e dos grupos sociais postos em relação.
e provisórios. Aqui, proponho usá-las de modo a É verdade que o isolamento ou insulamento
tornar visíveis algumas características daquilo amazônico é um tópico recorrente no discurso
que tem sido chamado de arte amazônica. Local e dos próprios sujeitos da região. Mas, se há um
global são categorias que se referem a processos ensinamento nítido trazido pela quarentena
de mundialização e globalização social, nos quais mundial recente, é o de que isolamento físico e
um elemento cultural, inicialmente localizado, conectividade já não podem ser entendidos como
se expande e é exportado, de modo a ser tornar termos auto excludentes. A arte na Amazônia
globalizado. A esse processo, que Boaventura possui ligações e vínculos transnacionais há
de Sousa Santos (2002) chama de “localismo muitas décadas, ou mesmo séculos, a despeito
globalizado”, cabe uma contraparte que é o de seu relativo isolamento geográfico.
processo de re-localização desse elemento cultural
No que diz respeito ao tipo de relação local/global
tornado global, um “globalismo localizado”.
estabelecido nas próprias obras da chamada
A ideia de arte especializada com a qual nossa arte amazônica, podemos diferenciar três
sociedade tem operado é, certamente, um exemplo categorias gerais: manifestações autóctones,
desse fenômeno de globalização hegemônica – a internacionalistas e mestiças. As manifestações
globalização cultural que é indissociável de um autóctones podem ser entendidas como as
processo econômico e político de hegemonização elaborações estéticas nativas, ameríndias,
de uma determinada sociedade. Nossa ideia de arte gestadas dentro de um sistema de valores
era uma ideia local (de alguns países europeus), estéticos próprio, paralelo e desvinculado do
que foi globalizada e, em seguida, vivenciada nas ocidental. As manifestações internacionalistas
Américas de uma maneira própria. A arte com a operam com os valores estéticos ocidentais,
qual operamos é certamente a arte ocidental – ou, globalizados desde o processo conhecido como
mais precisamente, a arte ocidentalizada. Outras modernidade, servindo como língua comum
estéticas, não-ocidentais, como as próprias às artes visuais das sociedades ocidentais e

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ocidentalizadas. Por fim, as manifestações Guardadas as devidas proporções, é a partir
mestiças são aquelas resultantes da chamada deste curto ensaio de Herkenhoff que comecei a
crioulização, tal como formulada por Édouard esboçar a ideia de quatro posturas gerais da arte
Glissant (2005), em que elementos culturais amazônica, aqui delineadas.
díspares são colocados em contato e resultam
A primeira delas é uma postura identitária, quando
em formas imprevisíveis e novas, articulando
artistas buscam se relacionar com a “identidade
heranças nativistas e tendências internacionais.
amazônica” – seja para afirmá-la, negá-la,
Essas três categorias gerais tratam das relações construí-la, desconstruí-la, ou mesmo para
propriamente estéticas/artísticas que as obras da explicitar, criticamente, os diversos mecanismos
arte amazônica estabelecem com as diferentes sociais envolvidos na formulação e manutenção
tendências e heranças culturais. Mas, se estamos de uma tal identidade. A segunda é uma postura
tratando de uma arte projetivamente amazônica, fenomenológica, em que ocorre um entendimento
que tem como característica a reflexão da região como fenômeno estético específico
intencional sobre a Amazônia, é preciso também (luz, cor, materialidade, espaço, tempo etc.), que
considerar as diferentes posições possíveis, no alimenta a produção de artistas interessados em
que diz respeito a um espectro ideológico de apreender e traduzir essa realidade perceptiva. A
representações da região. Ou seja, me parece terceira postura é antropológica, pois se volta para
importante considerar a arte amazônica nas a compreensão dos grupos sociais amazônicos,
suas características artísticas, entre as correntes seja em suas culturas visuais específicas, seja
locais e globais, e nas suas características nas suas formas de vida como um todo. Por fim,
ideológicas – mais especificamente a partir das a quarta é uma postura engajada, ativista ou
diferentes concepções ideológicas de Amazônia. participativa, na qual os artistas manifestam
diversos tipos de comprometimento social e
Focando nesse aspecto ideológico, que
político com aspectos específicos da realidade
denominador comum pode ser encontrado,
regional, por vezes objetivando intervir sobre ela.
partilhado por essas muitas obras e artistas
que buscam pensar a Amazônia? Esboço, aqui, É evidente que cabem muitas posições diferentes
quatro posturas gerais, que dizem respeito nessas quatro posturas. Para começar,
a como artistas e obras se relacionam com cada uma delas pode explorar, de maneiras
a ideia de Amazônia. Tais posturas não são complexas, tendências artísticas nativistas,
sequenciais, uma superando a outra, tampouco internacionalistas ou mestiças. Depois, essas
são mutuamente excludentes – podendo quatro posturas também compreendem
coexistir inclusive em um único trabalho. Não posições ideológicas diversas, a respeito de
obstante, algumas parecem ter surgido primeiro Amazônia. Ou seja, quando tratamos de arte
que outras, por isso, opto pelo ordenamento tal amazônica, é necessário entender que há, nesse
como estruturado neste ensaio. conjunto de obras, um eixo que diz respeito à
arte (enquanto campo social com herança e
Em um pequeno texto dos anos 1980, o curador
trajetória específica) e outro eixo que diz respeito
e crítico de arte Paulo Herkenhoff (1984, p. 30)
à Amazônia (enquanto imagem ou conceito com
apontava pela primeira vez algumas dessas
o qual os artistas operam em sentido político).
posturas: “Na Amazônia está-se produzindo
E, nesse conjunto chamado arte amazônica,
uma Arte que busca seu significado, de maneira
certas posições podem ser consideradas mais
nova, na própria região. Esta arte se situa entre
conservadoras ou mais progressistas, na
a Antropologia Visual e a Fenomenologia dos
dimensão da especificidade artística ou no
homens e da natureza da Amazônia”. Ele se
manejo de uma posição ideológica a respeito
referia a alguns artistas de Belém e Manaus que
de Amazônia. Há, certamente, obras que podem
começavam a se destacar nacionalmente. Essa
ser conservadoras em um eixo e progressistas
ideia aparentemente nunca foi aprofundada
no outro – sempre entendendo as ideias de
por Herkenhoff, mas foi retomada, em décadas
conservador e progressista como contextuais e
posteriores, nas suas curadorias de grandes
historicamente construídas e disputadas.
exposições temáticas sobre a Amazônia.

Visuais 153
Figura 01 - Projeto São Paulo, Jonier Marin, Figura 02 - Produto (árvore cubificada), Jonier
intervenção sobre fotografia, 1976. Marin, instalação, 2016 (a partir da obra
Fonte: Floræ (viajes & derivas), n. 3, Bogotá: originalmente realizada em 1976).
FLORA ars+natura, set. 2017, p. 78. Fonte: Floræ (viajes & derivas), n. 3, Bogotá:
FLORA ars+natura, set. 2017, p. 72.

Vale dizer que há antecedentes dessas quatro ideias: a exposição Amazônia Report, do artista
posturas que podem ser encontrados em vários colombiano Jonier Marin, realizada no Brasil
momentos entre os séculos XVI e XIX, seja no campo em 1976, na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
da arte especializada, seja em outras culturas Esta exposição foi reeditada em 2016, no espaço
visuais. No geral, esses antecedentes propuseram cultural FLORA, em Bogotá (Colômbia). Amazônia
algum tipo de reflexão sobre a Amazônia, sem, Report foi, possivelmente, a primeira exposição
entretanto, se preocupar com a formulação de de arte contemporânea a tratar da Amazônia
uma “arte amazônica”. Também podemos evocar desde um ponto de vista crítico, ecológico e
as culturas visuais dos povos originários e a comprometido com questões sociais concretas.
contribuição desses povos à arte ocidental (dita Enquanto manifestação artística, algumas de suas
arte especializada). Ou, ainda, podemos pensar em obras podem ser lidas como internacionalistas,
como a Amazônia serviu de apoio para inúmeros e outras como mestiças, já que Marin dialogou
projetos artísticos na região, dentro do espírito da tanto com as estéticas ameríndias quanto com as
arte acadêmica e dos interesses na fabricação de tendências globais em voga:
uma identidade nacional na arte. Esses e outros
Amazonia Report quer ser um trabalho que estabelece
antecedentes apontam para iniciativas com algum correspondências e contrastes entre os fenômenos
grau de compreensão e reflexão sobre a Amazônia chamados de “aculturação”, originado no caráter dos
que informaram, mesmo que indiretamente, instrumentos, sua finalidade e o efeito consciente ou
inconsciente de seu uso.
as elaborações da ideia de arte amazônica nos
Um dos motivos que me levaram a me interessar por
séculos XX e XXI. este fenômeno de tipo sociológico é a coincidência de
certos estados de espírito entre a arte nativa destas
Dados os limites deste ensaio, recorrerei a regiões e certas tendências da arte contemporânea
apenas um exemplo para ilustrar minhas (primazia da ideia, austeridade...) (MARIN, 2015, p. 98).

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Figura 03 - Duas mulheres, Jonier Marin, técnica mista, 1976.
Fonte: Floræ (viajes & derivas), n. 3, Bogotá: FLORA ars+natura, set. 2017, p. 77.

Enquanto manifestação ideológica sobre A postura antropológica, por outro lado, pode
a Amazônia, as obras de Marin revezam as ser percebida em obras como Duas mulheres
quatro posturas aqui comentadas. Muitos de (Figura 03), colocando a nudez feminina desde
seus trabalhos na exposição recorreram aos uma perspectiva cultural e comparativa, ou
povos indígenas como signo da Amazônia; Sublinhados, em que Marin reuniu cinquenta
outros, como Projeto São Paulo (Figura 01), frases relativas à Amazônia e ao indígena,
usaram a cor verde como metáfora, indicando a tomadas de revistas como Veja, Manchete e Time
postura identitária – ainda manejando imagens (BADAWI, 2016).
estereotipadas ou generalistas sobre a região
Por fim, trabalhos como a colagem sem título da
(o indígena e a floresta como representações
Figura 04 mostram como a postura antropológica
da identidade amazônica), a despeito de, aqui,
de Marin estava acompanhada também por um
servirem a um discurso crítico sobre os danos
engajamento social com as populações indígenas.
ambientais à floresta.
Sobressai o tom de denúncia a respeito do
Instalações como Hylea (espaço-poema) e Produto desenvolvimentismo materializado na abertura
(árvore cubificada) (Figura 02) apresentam uma de estradas, avançando sobre a floresta, forçando
nítida postura fenomenológica, ao trabalhar, a marginalização de populações indígenas ou
sobretudo, com a materialidade da Amazônia, mesmo seu genocídio.
seja em seus elementos naturais (terra, madeira,
É evidente que essas posturas se cruzam ou
plumas, água), seja em elementos artificiais
complementam em várias dessas obras. Legal
trazidos pela ocupação humana recente (pneu,
ou não (Figura 05), por exemplo, consegue
lata de combustível, lâmpada).
reunir aspectos das quatro posturas, ao manejar

Visuais 155
À GUISA DE CONCLUSÃO

Alguém poderia indagar qual a vantagem ou


a importância de discutir arte amazônica,
considerando que essa discussão abarca um
debate sobre identidades culturais já fora de moda
e, ainda mais grave, essa arte possuiria um caráter
projetivo – ideológico, interessado, jamais neutro
ou espontâneo. Bem, a discussão é proveitosa, no
mínimo, para compreendermos os meandros em
torno de um dos muitos usos da chamada “marca
Amazônia”. Hoje, a Amazônia vende, e paga-se
bem. Além disso, a arte amazônica possui outros
atrativos, ainda mais importantes do ponto de vista
global, já que a questão amazônica é atravessada
e se funde com três outras questões cruciais para
nossa época: o dilema ambiental; as alteridades
não ocidentais; e a compreensão da colonialidade.
Essas três questões são interrelacionadas e
inseparáveis, se considerarmos que a estrutura
da colonialidade é a causa direta das ameaças ao
meio ambiente amazônico (e global) e às formas
de vida não ocidentais ou não ocidentalizadas.

Na arte amazônica, essas questões têm


Figura 04 - Sem título, Jonier Marin, colagem, 1976.
reverberado há algum tempo, habitando os
Fonte: Site FLORA ars+natura. Disponível em:
interesses de muitos artistas e curadores. Essa arte
<http://arteflora.org/exposiciones/amazonia-
pode falar sobre tais temas a partir de um lugar
report-jonier-marin/>. Acesso em 12 out. 2020.
privilegiado, que é essa encruzilhada de problemas
impreteríveis para a contemporaneidade, e talvez
esteja aí um motivo de seu prestígio crescente.
identidade, materialidade, choque entre culturas Qualquer posição que a arte amazônica alcance
e comprometimento com populações amazônicas ou reivindique no sistema de arte global pode ser
– recorrendo apenas a um rolo de arame farpado justificada por esta singularidade.
atravessado por flechas indígenas.
O trabalho com o termo arte amazônica
Na exposição Amazônia Report, houve desde a permite formular imagens novas e construir
presença de imagens estereotipadas da região, imaginários diferentes sobre a região. Em outro
até a formulação de imagens novas, contribuindo texto (no prelo), busquei investigar como as
para a fabricação de um imaginário crítico sobre os representações da Amazônia na arte brasileira
projetos de ocupação da Amazônia empreendidos têm experimentado uma mudança progressiva,
por governos como o brasileiro. Marin lidou tanto das imagens simplificadoras da região como um
com informações históricas sobre a colonização da todo homogêneo (inferno verde, éden paradisíaco,
Amazônia, quanto com suas próprias experiências repositório de mitos, região aquém da história,
percorrendo a região naqueles anos. Em sua poética, pulmão do mundo, terra sem homens etc.), para
sintonizada com a arte contemporânea global, as imagens comprometidas com Amazônias
há, com certeza, um projeto de reflexão sobre a concretas e heterogêneas, povoadas por sujeitos
Amazônia e sua arte. Tal fato coloca essa exposição históricos e por questões sociais de grande
dentro do conceito proposto de arte amazônica, e complexidade. A produção artística recente
ilustra de maneira exemplar as diferentes posturas parece indicar que, mais do que uma “identidade
e posições, artísticas e ideológicas, que permeiam cultural amazônica” compartilhada, aquilo que
as obras reflexivas sobre a região. os grupos sociais da região têm em comum é,

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Figura 05 - Legal ou não, Jonier Marin, instalação, 1976.
Fonte: Site FLORA ars+natura. Disponível em: <http://arteflora.org/
exposiciones/amazonia-report-jonier-marin/>. Acesso em 12 out. 2020.

sobretudo, a condição histórica de colonialidade uma espécie de “cultura com aspas”. O termo
vivenciada de muitas formas nos últimos quatro foi formulado por Manuela Carneiro da Cunha
ou cinco séculos. (2017), mostrando como, grosso modo, o conceito
ocidental de cultura foi imposto às sociedades
Tenho suspeitado que qualquer traço da identidade
não ocidentais e, depois, apropriado por elas em
cultural amazônica é assim entendido não por
benefício de sua própria agenda política. Essas
suas características inatas ou por algum tipo de
sociedades possuem cultura (sem aspas), é claro.
essência, mas sim porque essa identidade vem
Mas performam sua “cultura” como mais uma
sendo fabricada a partir das práticas e discursos
estratégia nas relações com outras sociedades
de uma ampla gama de atores sociais. Em geral,
que o contato interétnico lhes condiciona. Os
a chamada cultura amazônica é um conceito que
grupos sociais na Amazônia possuem culturas e
tem sido operado tal qual uma sinédoque: toma-
produzem artes, no plural, mas a arte amazônica
se a parte pelo todo, uma identidade cultural de
talvez esteja mais próxima dessa “cultura com
grupos sociais específicos para figurar como
aspas”, performada a partir da recepção e
representação da identidade cultural amazônica
apropriação do conceito ocidental de arte (e de
como um todo. Vale investir mais esforço teórico
seus derivados, como arte contemporânea).
na compreensão dessas operações, inclusive nos
discursos da arte especializada. Afinal, o que isso quer dizer? Se arte amazônica
não é o mesmo que arte na Amazônia, se ela possui
Esta noção me faz pensar que a arte amazônica,
um caráter projetivo, se é a performance de uma
enquanto manifestação projetiva de uma
identidade cultural em processo de fabricação,
identidade cultural amazônica pressuposta, é

Visuais 157
então ela está mais para um conceito do que GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética
para uma categoria geográfica ou estilística. Há da diversidade. Tradução de Enilce Rocha. Juiz
diferentes projetos que concorrem para este de Fora: UFJF, 2005.
conceito, comprometidos com ideologias políticas
GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São
e artísticas às vezes opostas. Procurar o âmago
Paulo: Marco Zero, 1994.
ou a amazonidade pura e comum às obras locais
é uma tarefa desnecessária e contraproducente. HERKENHOFF, Paulo. Amazônia, a Pororoca e
Hoje poucos se atrevem a defender que exista alguns paradigmas possíveis. In: HERKENHOFF,
algo do tipo. Necessitamos, sim, distinguir Paulo (org.). Pororoca: a Amazônia no MAR. Rio
as características dos muitos projetos que de Janeiro: Circuito; MAR, 2014, p. 11-14. Catálogo
disputam o significado e os usos da Amazônia de exposição.
e da arte amazônica. Em especial, porque há
décadas a região se tornou objeto da atenção HERKENHOFF, Paulo. Arte na Amazônia,
internacionalista, atravessada por diversos entre a Antropologia e a Fenomenologia.
interesses velados. In: FUNARTE, 7º Salão Nacional de Artes
Plásticas, Rio de Janeiro: Funarte/MEC, 1984,
p. 30. Catálogo de exposição.
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estéticas nas múltiplas Amazônias: por uma
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas:
Coleção Amazoniana de Arte da UFPA. In:
reflexões sobre a origem e a difusão do
MANESCHY, Orlando (Org.). Amazônia, lugar
nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São
da experiência. Belém: UFPA, 2013, p. 19-33.
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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MARIN, Jonier. Amazônia Report [1976]. In: FREIRE,
da Amazônia: um aporte para sua interpretação.
Cristina (org.). Terra incógnita: conceitualismos
Revista NERA, ano 21, n. 42, UNESP/Campus
da América Latina no acervo do MAC USP. São
Presidente Prudente, 2018, p. 14-33.
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BADAWI, Halim. Jonier Marín: artista exiliado
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos da
y conceptualista amazónico. Arcadia, 21 set.
globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa
2016. Entrevista. Disponível em: <https://www.
(Org.). A globalização e as ciências sociais. 2ª
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BENDAYÁN, Christian. Amazonistas: artes visuales SOBRE O AUTOR


sobre la Amazonía peruana en el siglo XXI. In:
BENDAYÁN, Christian (org.). Amazonistas. Lima: Gil Vieira Costa é professor na Faculdade de Artes
Buféo, 2017, p. 11-17. Visuais da Unifesspa (Universidade Federal do Sul
e Sudeste do Pará), em Marabá. Possui Doutorado
CONDURU, Roberto. Arte afro-brasileira. Belo em História pela UFPA (Universidade Federal
Horizonte: C/Arte, 2007. do Pará). Atua nas áreas da crítica e história da
arte, com foco na produção artística em cidades
CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas
da Amazônia brasileira. Autor do livro “Espaços
e outros ensaios. São Paulo: Ubu, 2017.
em trânsito: múltiplas territorialidades da arte
FIGUEIREDO, Napoleão. Paolo Ricci, pintor do contemporânea paraense”, contemplado com
extremo norte. Habitat, n. 50, São Paulo: Habitat, o Prêmio IAP de Artes Literárias 2013. E-mail:
set.-out. 1958, p. 76-77. gilvieiracosta2@gmail.com

FILHO, Pio Penna. Reflexões sobre o Brasil e os desafios


Pan-Amazônicos. Revista Brasileira de Política
Internacional, v. 56, n. 2, Brasília, jul./dez. 2013, p. 94-111.

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