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A LEI Nº 13.

964/2019 E O JUIZ DE GARANTIAS: DA SUA CONSTITUCIONALIDADE ATÉ


SUA IMPLEMENTAÇÃO
Law no. 13.964/2019 and the “judge of guarantees”: from its constitutionality to its implementation

Maria Eduarda Vier Klein


mariaeduardaklein@hotmail.com
Mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Pós Graduanda em
Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Advogada Crimi-
nalista. São Leopoldo, RS, Brasil.

Mauirá Duro Schneider


mduroschneider@gmail.com
Graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS e Bolsista de Iniciação Cien-
tífica. São Leopoldo, RS, Brasil.

Miguel Tedesco Wedy


miguel@unisinos.br
Doutor em Ciências Juridico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), De-
cano da Escola de Direito da Unisinos, Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos e
Advogado Criminalista. Porto Alegre, RS, Brasil.

Resumo

A Lei nº 13.964/2019 robusteceu as controvérsias que envolvem a introdução do juiz de garantias


no sistema processual penal pátrio. Em razão disso, são abundantes as críticas que sustentam desde
a sua inconstitucionalidade até a ineficiência desse instituto. Desse modo, o presente artigo além de
vislumbrar o juiz de garantias como símbolo de aproximação da imparcialidade judicial e de um sis-
tema verdadeiramente acusatório, propõe-se também a analisar a suposta inconstitucionalidade e a
conjugar a implementação dessa figura processual com o postulado da eficiência.
Palavras-chaves: Juiz de Garantias. Imparcialidade. Estado Democrático de Direito. Processo Penal.
Constituição Federal.

Abstract

Law no. 13.964/2019 strengthened the controversies surrounding the introduction of the “guarantee
judge” in the national criminal procedural system. As a result, criticisms abound from its unconstitu-
tionality to the inefficiency of this institute. Thus, this article, in addition to envisioning the “judge of
guarantees” as a symbol of approximation of judicial impartiality and a truly accusatory system, also
proposes to analyze the alleged unconstitutionality and to combine the implementation of this proce-
dural figure with the postulate of efficiency.
Keywords: “Judge of Guarantees”. Impartiality. Democratic Rule of Law. Criminal Procedure. Federal
Constitution.

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A Lei nº 13.964/2019 e o juiz de garantias: da sua constitucionalidade até sua implementação

1 Introdução

O ponto de partida dessa reflexão, inevitavelmente, exige que concordemos em um aspecto


específico, qual seja, a relevância da imparcialidade do juiz. Afinal, em que pese a relevância da im-
parcialidade expresse certa obviedade, sabemos que, por vezes, dizer o óbvio também é necessário.
Para tanto, com o intuito de asseverar a importância da imparcialidade, socorremo-nos da literatura
em razão da sua capacidade interdisciplinar. Nesse sentido, embora a autora Harper Lee tenha escrito
apenas um único livro, sem sombra de dúvidas, sua obra oriunda da metade do século passado e ven-
cedora do Prêmio Pulitzer de Literatura, consiste em um clássico que, dentre outras virtudes, enfrenta
com impecável originalidade os efeitos nefastos da ausência de imparcialidade judicial.
Em linhas gerais, “O sol é para todos” narra a história de um advogado, Atticus Finch, que foi
nomeado como dativo em um crime de estupro no Condado de Maycomb, local onde a segregação
racial ainda preponderava nos Estados Unidos. Desse modo, para além do crime ser de estupro, ainda
por cima, o acusado era negro, em um período absolutamente racista. O enredo da história é vasto e
traz consigo uma série de particularidades, porém, nesse momento, o que nos interessa é, especifica-
mente, o julgamento.
No decorrer do julgamento (LEE, 2019. p. 223-236), Atticus desmantela as alegações da acusa-
ção por meio de uma inconformidade entre os vestígios de violência presentes no corpo da vítima,
Mayella Ewell, e o acusado, Tom Robinson. Na verdade, Mayella fora agredida, exclusivamente, no
lado direito do seu corpo e da sua face, logo é perceptível que o acusado usou o braço esquerdo para
agredi-la, porém o braço esquerdo de Tom Robinson era inválido. Com isso, a tese da defesa, isto é, de
que o pai da vítima, Bob Ewell, agrediu-a embriagado e não o acusado, tornou-se contundente perante
os jurados.
Mesmo assim, os jurados condenaram por unanimidade Tom Robinson (como em geral ocorre
no Júri americano, em razão da exigência da unanimidade, exceto em dois estados). O advento da
condenação parecia algo inacreditável, tanto para nós, os leitores, como para a narradora-persona-
gem, Jean Louise ou Scout, a filha de Atticus. Afinal, tanto nós, como Scout, acreditamos na justiça.
Scout, por sua vez, mesmo vindo de um período cujo segregacionismo racial não era concebido
como injustiça, considerou injusta a condenação racista de Tom, pois era uma inocente criança. Nós,
paradoxalmente, consideramos a condenação de Tom injusta, pois sabemos que os jurados agiram
parcialmente, uma vez que estavam imersos em um preconceito racial que permeava o Condado de
Maycomb.
Como já alertamos, o objetivo dessa ilustração literária é somente demonstrar a necessidade de
concordarmos previamente sobre a importância da imparcialidade judicial e, então, reconhecermos os
motivos pelos quais a imparcialidade é um corolário da prestação jurisdicional contemporânea. Ao fim
e ao cabo, entretanto, o nosso desiderato não se esgota em reconhecer a importância da imparcialidade
no âmbito processual penal brasileiro. Afinal, pressupondo a importância de uma prestação jurisdi-
cional imparcial, inevitavelmente, deve-se discutir a contribuição do juiz de garantias. Por isso, há de
se louvar muitas das alterações que foram trazidas no âmbito da Lei nº 13.964/2019, especialmente a
figura do juiz de garantias.
Além do mais, é preciso dizer que a introdução do juiz de garantias e a menção expressa ao
sistema acusatório são conquistas paradigmáticas para aqueles que creem na democratização do pro-
cesso penal brasileiro e, como consequência, na efetiva concretização da imparcialidade. Contudo,
malgrado o quão recente seja a promulgação da referida legislação, já sobrevieram muitas críticas que
questionam a constitucionalidade e apontam a ineficiência dessa inédita figura processual. Destarte,
a fim de evitar que o mero pragmatismo detenha os avanços rumo à imparcialidade judicial, é fun-
damental que se discorra sobre a constitucionalidade da Lei nº 13.964/19 e que se reflita sobre a sua
implementação, a qual não será simples, mas necessária.
Desse modo, para além de elucidarmos a importância da imparcialidade no campo teórico e rela-
cioná-la com o juiz de garantias, também iremos contrapor o montante de críticas direcionadas a essa
figura processual, tendo em vista a sua relevância para a democratização e efetivação de um processo
penal justo. Mais especificamente, propusemo-nos a analisar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade

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(ADI’s) nºs 6298, 6299 e 6300 que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) e a refutá-las, mas
também revisitar o conceito eficiência e demonstrar sua compatibilidade com o juiz de garantias. No
fundo, na batalha entre prós e contras à introdução e à implementação dessa inédita figura processual,
reafirmaremos nossa posição ao lado daqueles que, como Tom Robinson, sofreram, sofrem ou viriam
a sofrer em decorrência da atuação parcial de um juiz penal.

2 A lei nº 13.964/2019 e a introdução do juiz de garantias como um passo rumo à efetivação da


imparcialidade judicial

Sobretudo no Brasil e em razão da nossa legislação processual penal obsoleta1, a práxis jurídi-
ca deixa de atribuir a relevância devida à imparcialidade, colocando-a, não raras vezes, em cheque2.
Justamente esse menosprezo para com a imparcialidade, impele-nos a dedicar algumas palavras para
resgatar a sua importância, mormente no âmbito processual penal.
Na verdade, de fato, iremos resgatar a importância dessa discussão, tendo em vista que ela não
é recente. Luigi Ferrajoli questionava-nos, já faz algum tempo, acerca do modelo ideal de jurisdição:
“Qual o sujeito legitimado a exercer aquele complexo poder [...] – de interpretação das leis ou
verificação jurídica, de valoração das provas ou de verificação dos fatos, de conotação equitativa
e de disposição discricionária? Quais são as qualidades subjetivas e a colocação institucional
requeridas ao juiz em relação às funções – a busca da verdade e a tutela das liberdades – que
representam as fontes de legitimação? (FERRAJOLI, 2006. p. 529)

O mesmo autor, na tentativa de responder suas indagações, vislumbrava a imparcialidade como


um dos pilares de sustentação da legitimação política do juiz. E acabava por conceituar a imparcia-
lidade na ocasião em que distinguia a atividade jurisdicional de outras atividades (administrativa,
legislativa, etc.):
Os juízes, ao contrário, não procuram um interesse pré-judicial, mas só a aproximação do ver-
dadeiro nas únicas causas às vezes julgadas, após um contraditório entre sujeitos portadores de
interesses em um conflito. Não só por razões estruturais, mas também por razões funcionais,
enquanto a atividade administrativa é discricionária ou subordinada a diretivas superiores, a
atividade jurisdicional é privada substancialmente de orientações políticas porque substancial-
mente, mais que formalmente, também vinculada à lei. (FERRAJOLI, 2006. p. 533-534).

Na época, em que pese a importância da imparcialidade já fosse inquestionável, podemos dizer


que a concepção de imparcialidade não tinha a densidade necessária, em decorrência da ideia de que
o juiz era essencial para a busca da chamada “verdade real”. Ou seja, acreditava-se que a mera equidis-
tância do juiz em relação às partes era suficiente. Isto é, era essencial uma imparcialidade subjetiva.
Pouco ou nada, porém, dizia-se sobre a chamada imparcialidade objetiva. Por óbvio, a equidistância
do juiz em face da atividade exercida pelas partes é fundamental, mas, de modo algum, podemos re-
duzir a imparcialidade a esse único elemento.
Jorge de Figueiredo Dias (1974), de um modo complementar, também contribuiu substancial-
mente para a compreensão da atividade jurisdicional e sua relação com a imparcialidade. Segundo o
autor, a imparcialidade é uma via de mão dupla, visto que possui uma face externa e uma interna. Em
resumo, a face externa exige uma posição de independência que o juiz deve assumir em face de outros
poderes do Estado, de quaisquer grupos da vida pública, da organização hierárquica da burocracia ju-
dicial, de outros tribunais. Por outro lado, a face interna, em suma, diz respeito aos impedimentos e às
suspeições, ou seja, vínculos particulares que o juiz pode ter com o caso concreto e que o torne parcial.
Ambas visões, apesar de clássicas e fundamentais, ainda demandam um aprofundamento. Com
isso, importante colocarmos que a imparcialidade não é uma substância estanque e heterogênea, ou
seja, a imparcialidade não é um objeto que o juiz coloca no bolso e, então, presta a jurisdição da for-

1 O termo “obsoleto”, quiçá, seja um elogio ao terreno em que fora germinado o Código de Processo Penal de 1941. Recordemos que a base do nosso CPP é fruto do Estado Novo,
período autoritário na história brasileira, e inspirada no Código de Rocco, isto é, na legislação processual penal italiana que vigorava durante o Regime Fascista.
2 Em nossa legislação processual penal, o que não faltam são exemplos da quebra de imparcialidade do juiz. Vide os artigos 127, 155, 156, 209, 242, 385 do CPP. Logo, não há
como dizer que o princípio da imparcialidade não está em cheque. O juiz que busca provas e recorre de ofício, via de regra, é um juiz que toma um dos lados da relação pro-
cessual.

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ma mais justa possível. Tampouco um estado de pureza que o juiz incorpora quando vai julgar o caso
concreto.
Na medida que aceitamos que não existe um estado absoluto de imparcialidade3, também não
podemos aceitar que o juiz julgue à luz de sua mera vontade. Afinal, como refere Lenio Streck:
Também sou contrário a essa espécie de fatalismo relativista, do estilo “assim que acontece no
mundo prático”, “é assim que os juízes pensam e decidem” ou “não há nada para fazer”. Se, de
fato, os juízes “pensam assim”, é porque se expressam a partir de um paradigma ultrapassado,
em que um sujeito “assujeita” o objeto. Na forma de um “subjetivismo original ou autêntico” ou
na forma de uma vulgata, enfim, de um voluntarismo, em que prevalece a “opinião pessoal” do
juiz-intérprete. (STRECK, 2017. p. 488).

Apesar do juiz trazer consigo uma carga de pré-compreensões, concordamos com o autor, na
medida que não podemos aceitar a ideia genérica e juridicamente falha de que a imparcialidade não
existe de nenhum modo e que o juiz será sempre parcial. Ora, a imparcialidade exige que o juiz pos-
sua a menor carga de pré-compreensões possíveis acerca do caso concreto. Desse modo, quanto mais
proximidade o juiz tiver com o inquérito policial (fase investigativa e pré-processual), maior será a
sua carga de pré-compreensões e, portanto, de parcialidade. Daí que surge a importância do juiz de
garantias e sua relação com a imparcialidade judicial.
Nesse sentido, embora a imparcialidade judicial não possua um abrigo expresso no texto cons-
titucional, Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco (2019) concebem a imparcialidade como uma
dedução lógica do princípio do juiz natural. Além disso, o artigo 8º, 1 do Pacto de San José da Costa
Rica, já incorporado ao sistema jurídico brasileiro, abrigou o direito da pessoa ser julgada por um juiz
imparcial. Não obstante, não há que se discutir sobre a constitucionalidade da imparcialidade do juiz,
visto que, para além do já referido, o nosso texto constitucional instituiu um Estado Democrático de
Direito e a imparcialidade judicial é um requisito inerente a este modelo.
Com isso, tendo em vista a importância da imparcialidade judicial, exige-se do juiz, mormente
no âmbito inquisitorial da investigação preliminar, um papel essencial e relevante a cumprir. Afi-
nal, não é incomum que no âmbito do inquérito e de investigações preliminares apareçam inúmeros
abusos, como restrições injustificadas de acesso aos autos, impedimento de acompanhamento de
perícias e nomeação de assistentes técnicos, negação de oitiva de testemunhas. Isso tudo debilita uma
adequada e imparcial coleta probatória na fase preliminar. Começa por aí, sem dúvida, a relevância
da figura do juiz de garantias.
Nesse aspecto, ainda sobre a relação entre imparcialidade e processo penal, importante analisar
decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), o qual já se debruçou sobre o tema em
diversas oportunidades. Para tanto, importante apresentar o que o TEDH entende como imparcialida-
de judicial com fulcro nos casos “Piersack” (01/10/1982) e “Cubber” (26/10/1984):
Segundo o TEDH, a contaminação resultante da parcialidade pode ser fruto da falta de impar-
cialidade subjetiva ou objetiva. Desde o caso Piersack, de 1982, entende-se que a subjetiva alude
à convicção pessoal do juiz concreto, que conhece de um determinado assunto e, desse modo,
a sua falta de pré-julgamentos. A objetiva diz respeito a se tal juiz encontra-se em uma situação
dotada de garantias bastantes para dissipar qualquer dúvida razoável acerca de sua parcialidade
(é a estética de imparcialidade). (LOPES JR; RITTER, 2016. p. 16).

Tendo em vista a compreensão do TEDH, Aury Lopes Jr. (2019), divide a imparcialidade em
objetiva e subjetiva. A primeira veda a participação “ex officio” do juiz no lugar das partes, isto é,
toda vez que o juiz se afasta de sua posição processual (terceiro imparcial) para praticar atos típicos
das partes (requerer produção de provas, decretar prisão de ofício, etc.) a imparcialidade objetiva foi
violada (LOPES JR, 2019. p. 103). A segunda, por sua vez, “diz respeito ao estado anímico do juiz, isto
é, à ausência de pré-julgamentos em relação àquele caso penal e seu autor. É a inexistência de prévia
tomada de decisão, capaz de gerar os pré-juízos que causam um imenso prejuízo”. (LOPES JR, 2019.
p. 103).

3 Na verdade, o que pretendemos dizer é que o juiz por ser um humano sempre trará consigo uma carga de subjetividade. Com isso, jamais haverá um “estado absoluto de
imparcialidade”. Todavia, isso não significa que o juiz será sempre parcial, visto que é plenamente possível aproximá-lo da imparcialidade.

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Com base nisso e pressupondo que o nosso sistema de justiça penal possui duas fases (a inves-
tigação preliminar e o processo judicial), torna-se necessário designar um juiz para cada uma dessas
fases (como prevê a lei, um juiz até o recebimento da denúncia e outro, que fará a instrução e a sen-
tença). Obviamente, a necessidade de dois juízes é um efetivo contributo à imparcialidade subjetiva do
juiz. Poder-se-ia indagar, por aqueles contrários à figura do juiz de garantias, tal como ele foi exposto
na recente reforma: o que se está a fazer é presumir a parcialidade do julgador? Trata-se disso, então?
É um interessante argumento retórico, mas é somente um argumento retórico. A pergunta que se deve
colocar é: qual o juiz mais imparcial, aquele que já atuou no inquérito ou investigação preliminar e
teve contato com tais elementos, decretando ou denegando prisões, interceptações telefônicas, buscas
e apreensões, ou aquele juiz que ainda não foi contaminado e encharcado pelos preconceitos e elemen-
tos da fase preliminar? A resposta é muito clara: o juiz mais imparcial é a aquele que não teve contato
com tais elementos preliminares. Portanto, refutar a figura do juiz de garantias parece uma clara ma-
neira de se querer um juiz mais parcial e contaminado. Os preconceitos e pré-compreensões que o juiz
da investigação preliminar traz ao processo são muito claros e denotam uma evidente fragilização da
imparcialidade, seja contra ou a favor do réu, no momento da sentença.
Ainda assim, por certo que ainda paira uma interrogação: por qual motivo, entretanto, a atuação
de um único juiz nessas duas fases (pré-processual e processual) rompe com sua imparcialidade?
Ora, o ser humano por ser um indivíduo racional realiza pré-julgamentos a todo instante. Com
o juiz, um ser humano e, portanto, um indivíduo racional, o caso não é diferente. Desde o primeiro
contato com o inquérito policial, nos famosos pedidos cautelares, até o último contato com o processo
antes da sentença, na leitura dos memoriais (de acusação ou de defesa), o juiz realiza uma série de
pré-julgamentos que vão, paulatinamente, consolidando sua tese sobre o caso.
Em síntese, visualiza-se que desde o primeiro pré-juízo, lá na concessão da medida cautelar, o
juiz pode formular uma tese a priori (de condenação ou absolvição) e, então, vai corroborando-a por
meio de uma busca seleta de informações. Nessa lógica, o juiz que atua desde o inquérito e que con-
cede um conjunto de medidas cautelares, indubitavelmente, possui menos imparcialidade subjetiva
em decorrência do seu contato com os elementos indiciários ou de prova já existentes. Daí que se
depreende o verdadeiro enfraquecimento da imparcialidade judicial.
Para tanto, é mister que algumas ferramentas sejam elaboradas, com o fito de suprimir ou, mini-
mamente, mitigar essa tese apriorística do juiz. Nesse aspecto, a figura processual intitulada no Brasil
de juiz de garantias e, recentemente, recepcionada pela legislação processual penal pátria, atuará es-
tritamente do início do inquérito até o recebimento da denúncia. Após o recebimento da denúncia e
com o início do processo judicial atuará outro juiz. Ou seja, o juiz de garantias atuará na fase pré-pro-
cessual e o outro juiz (juiz da instrução) atuará exclusivamente na fase processual e fará a sentença.
Desse modo, aquilo que intitulamos de uma tese apriorística oriunda lá do primeiro contato do juiz
com o inquérito policial não irá mais, em tese, existir, pois o juiz que julgará o mérito irá atuar so-
mente na fase processual. Ainda assim, é verdade que nada impede o contato do juiz de instrução com
eventuais decisões já proferidas, contudo a divisão de tarefas e funções tende a evitar a fragilização da
imparcialidade.
A partir disso, tendo como premissa que a imparcialidade judicial é fundamental e que esta fora
recepcionada pelo nosso texto constitucional, conclui-se que o juiz de garantias é um instituto que
fortalece e qualifica a atividade jurisdicional. Aliás, é nesse sentido a valiosa lição de André Machado
Maya:
O instituto do juiz de garantias aparece, aqui, como um instrumento de conformidade consti-
tucional da atuação jurisdicional na fase pré-processual. [..] Evita-se, assim – ou no mínimo se
opera uma redução de riscos –, que o juiz competente para presidir a instrução criminal e para
proferir a sentença seja influenciado pelo conhecimento aprofundado dos elementos informa-
tivos colhidos no inquérito policial, ou que antes mesmo do início da colheita de provas sob o
contraditório judicial, já tenha aderido a uma das teses, seja da acusação ou da defesa, “tornando
dispensável o processo, pois tem definida a questão independentemente da atividade probatória
das partes”. (MAYA, 2014. p. 199).

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A Lei nº 13.964/2019 e o juiz de garantias: da sua constitucionalidade até sua implementação

Ao fim e ao cabo, percorremos todo esse itinerário argumentativo para a) reconhecermos a im-
portância da imparcialidade judicial no processo penal, b) identificarmos o quão complexo é o pano
de fundo teórico que envolve a imparcialidade judicial e c) visualizarmos o juiz de garantias como
um instrumento de aproximação e fortalecimento da imparcialidade judicial. Eis uma necessária e
fundamental conclusão preliminar.
Enfim, após esse desfecho, parece-nos que é relevante defender a figura do juiz de garantias,
com as devidas adaptações que deverão ser feitas diante da realidade brasileira. Por exemplo, nos ca-
sos dos tribunais com competência originária e também dos órgãos fracionários dos tribunais, tendo
atuado na fase preliminar, poderão eles atuar novamente durante o processo? Ora, por coerência sis-
têmica, parece-nos que não. Isso exigirá, por conseguinte, uma série de modificações nos regimentos
dos respectivos tribunais.
Mesmo após nossa conclusão preliminar, é verdade que a recepção do juiz de garantias no Brasil
pela Lei nº 13.964/2019, fruto do denominado Pacote Anticrime, acarretou uma série de discussões
que questionam desde a sua constitucionalidade até sua importância como elemento tutelar acerca da
imparcialidade. Além disso, abundantes são as opiniões que vislumbram uma incongruência entre o
juiz de garantias e o postulado da eficiência, tendo em vista a onerosidade de sua implementação. Em
face disso, nos pontos seguintes, pretendemos enfrentar tais críticas e refletir sobre uma necessária
implementação eficiente dessa figura processual.

3 Uma análise da suposta inconstitucionalidade e de outros pontos controversos que englobam


a lei nº 13.964/2019

3.1 As adi’s nºs 6298, 6299, 6300 e a constitucionalidade da lei nº 13.964/2019

Uma das discussões que já está na ordem do dia do STF é a eventual inconstitucionalidade dos
artigos 3-A, 3-B, 3-C, 3-D, 3-E e 3-F do CPP, os quais foram introduzidos pela Lei nº 13.964/2019 e
preconizam a figura do juiz de garantias. Sem dúvida, o texto constitucional deve ser a bússola de
qualquer norma infraconstitucional, logo a figura do juiz de garantias, de modo algum, precede o cri-
vo constitucional. No entanto, prática contemporânea e preocupante é o uso utilitário da Constituição
por meio de pamprincipiologismos e argumentos cujo pano de fundo é meramente político. Em vista
disso, dispusemos energia para refletir sobre as ADI’s nºs 6298, 6299 e 6300 e as respectivas alegações
de insconstucionalidades formais e materiais provenientes da Lei nº 13.964/2019.
Em grande medida, os argumentos delineados aduziram inconstitucionalidades formais que
permearam a criação dessa figura pelo Congresso Nacional. Um dos principais argumentos asseve-
ra que o juiz de garantias por atuar sobremaneira no decorrer do inquérito policial não pertence ao
campo processual, o qual é matéria de competência privativa da União (art. 22, I da CF). Com isso, o
juiz de garantias integraria a matéria de procedimentos processuais cuja competência é concorrente
(art. 24, XI da CF) e, então, é incumbência da União apenas fixar normas gerais.
Esse argumento é de uma fragilidade inegável. Afinal, se essa visão preponderasse, seria plena-
mente constitucional atribuir ao legislador estadual a competência para legislar sobre medidas que
englobam o inquérito policial, por exemplo: aumentar o tempo de duração da prisão temporária,
dispensar a análise judicial na determinação da prisão preventiva, legalizar o flagrante forjado, entre
outras anomalias vedadas pelo CPP. Além disso, com base nessa visão pitoresca, seriam inconstitu-
cionais os institutos da transação penal e inclusive o recente acordo de não persecução penal, tendo
em vista que tais institutos podem ser propostos antes da recepção da denúncia e antes do início do
processo.
No entanto, em que pese o inquérito policial doutrinariamente possua natureza pré-processual,
tal natureza não o torna um mero procedimento processual. Com efeito, as intervenções do Poder
Judiciário no ínterim do inquérito policial possuem uma equivalência processual no que diz respeito
à matéria legislativa, logo é de competência privativa da União. Tanto é verdade que as legislações que

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versaram sobre o inquérito policial e alteraram a redação do CPP advieram do Congresso Nacional,
vide, para exemplificar, as leis nºs 9.043/95, 11.340/2006, 12.037/2009, 13.257/2006.
Outro equívoco argumentativo é considerar a criação da figura processual em abstrato como
sinônimo da criação de cargos e varas judiciárias, alegando eventual violação do art. 96 da CF. Afinal,
uma situação é criar uma figura processual que deverá ser implementada, outra é a sua própria im-
plementação por meio da criação de novos cargos e varas judiciárias. Nesse sentido, o legislador em
sua legítima atividade apenas criou a figura processual e, agora, será incumbência dos tribunais criar,
se necessário, novos cargos e varas para implementar essa figura. Porém, na verdade não são necessá-
rios novos juízes e varas, mas penas a adequação do Poder Judiciário diante de uma nova realidade.
Trata-se, em verdade, de uma necessária adequação do Poder Judiciário ao processo essencialmente
acusatório, previsto pela Constituição Federal. Por certo que isso demandará uma necessária adapta-
ção, mas não é um argumento com densidade para repelir, do ponto de vista constitucional, a figura
do juiz de garantias. Aliás, nesse aspecto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) terá uma função
extraordinária e transcendental no que diz respeito aos estudos econômicos e financeiros para a im-
plementação dessa figura.
Para além das refutáveis inconstitucionalidades formais, há uma argumentação no sentido de
eventual inconstitucionalidade material do juiz de garantias. Preliminarmente, indica-se que o juiz
de garantias afronta o princípio da igualdade e da isonomia, uma vez que aqueles acusados que pos-
suem prerrogativa de foro seriam prejudicados em razão da ausência do juiz de garantias em segundo
grau. Com isso, é notável a ampliação desmedida e extravagante destes princípios. Afinal, o próprio
STF já enfrentou algumas discussões sobre os princípios da igualdade e da isonomia e vislumbrou
-os como passíveis de limitação. A título exemplificativo, citamos os casos da constitucionalidade
da idade mínima para a investidura em cargos por meio de concursos públicos e a própria discussão
sobre a prerrogativa de foro. Aliás, no caso em comento, para justificar a quebra da igualdade e da
isonomia, utiliza-se justamente o próprio exemplo da prerrogativa de foro, tendo em vista que aqueles
que possuem tal prerrogativa não teriam acesso à atuação do juiz de garantias na investigação preli-
minar. Contudo, a própria prerrogativa de foro em uma concepção deveras ampliativa da igualdade
e da isonomia culminaria em uma inconstitucionalidade, porém o STF já decidiu sobre o tema e im-
pôs limites a essa visão desmedida e extravagante. Não obstante, se entendermos como necessária a
atuação do juiz de garantias para quem possui prerrogativa de foro, não deveríamos considerar essa
garantia como inconstitucional, mas sim exigir sua ampliação. E é por aí que deve ser a alternativa,
caso se tenha coerência sistêmica. Isso demandará uma necessária diminuição do número de sujei-
tos com prerrogativa de função, o que é essencial e correto num regime republicano, no qual todos
deveriam ser iguais, mas também pontuais adaptações nos regimentos dos tribunais, em matéria de
competência.
Além disso, outro argumento também refutável sustenta a violação do princípio do juiz natural,
visto que o juiz de garantias fragmentaria a jurisdição e, portanto, esta não seria mais indivisível e una.
Todavia, as lições de Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco (2019) esclarecem a importância do prin-
cípio do juiz natural, demonstrando que o caráter indivisível e uno da jurisdição possui o escopo de
vedar eventuais tribunais “ad hocs”, os quais são típicos de regimes autoritários. Desse modo, a criação
de um outro juiz que prestará a jurisdição no decorrer do inquérito policial e em consonância com
os ditames legais, jamais irá aviltar o princípio do juiz natural. Ao contrário, reforçará o juiz natural,
sua imparcialidade e um processo acusatório. Aliás, se essa visão de ofensa preponderasse, poder-
se-ia questionar à luz do caráter indivisível e uno da jurisdição inclusive o princípio do duplo grau
de jurisdição, porém essa é uma compreensão enviesada do princípio do juiz natural. Assim, como
se poderia questionar a usual e irrefutável variação e substituição de magistrados em varas judiciais
durante a tramitação dos processos. Algo que é absolutamente normal. É, pois, mais um argumento
de fragilidade evidente.
Ademais, a preocupação tanto da AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil) como da
AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) em relação à implementação do juiz de garantias e
sua decorrente insegurança jurídica deve ser observada com a devida atenção. De modo salutar, as
referidas associações se preocupam com eventual engessamento da investigação preliminar em razão
da insuficiência de juízes para abarcar a demanda. Outrossim, atentam para eventuais regulamenta-

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A Lei nº 13.964/2019 e o juiz de garantias: da sua constitucionalidade até sua implementação

ções dicotômicas e até incongruentes entre os tribunais no decorrer do processo de implementação.


Sob tais aspectos, partilhamos da opinião de que o prazo de “vacatio legis” para implementação dessa
figura era exíguo e, então, que era necessário suspender o processo de implementação, tendo em vista
a dimensão dessa figura. Para tanto, inclusive destinamos um item que será abordado posteriormente
nesse artigo para uma reflexão introdutória sobre a implementação do juiz de garantias.

4 Demais controvérsias e dúvidas sobre a lei nº 13.964/2019 e o juiz de garantias

Além das dúvidas acerca da constitucionalidade da Lei nº 13.964/2019 suscitadas nas ADI’s e
sobre as quais discorremos no ponto anterior, não faltam outras opiniões divergentes e controverti-
das no tocante à necessidade ou não da implementação do juiz de garantias no Brasil. Inclusive esses
pontos controversos sobre o juiz de garantias precediam a Lei nº 13.964/2019, uma vez que essa figura
já constava no anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal. No entanto, em que pese não
faltem críticas e controvérsias sobre o tema no Brasil, faz-se necessário pontuar que até a própria de-
cisão proferida pelo STF4 que suspendeu a figura deste instituto no ordenamento jurídico brasileiro
reconheceu que se trata de um avanço democrático. Até porque, o que houve foi uma suspensão e
não uma negativa de implementação. Além disso, a própria ADI nº 6300, proposta pelo PSL (Partido
Social Liberal), reconhece o mérito dessa figura processual.
Os críticos da figura do juiz de garantias, entretanto, pontuam diversos elementos para a não
implementação deste instituto, sendo os principais: 1) que não há quebra de parcialidade na utilização
do mesmo juiz para fases pré e pós processual, uma vez que a lei presume a imparcialidade do juiz, 2)
de que inexiste um estudo do impacto financeiro acerca da implementação dessa figura e 3) diversas
comarcas, principalmente aquelas do interior, só possuem um juiz, o que inviabilizaria o exercício de
dois juízes para atuação em ambas as fases.
Em nossa visão, a crítica mais relevante acerca do tema vem de Mauro Fonseca Andrade (2015).
Referindo-se ao anteprojeto de reforma do CPP, o autor entende que esta figura não significará ne-
nhum progresso no processo penal brasileiro, pois “não passará de uma simples mudança em nossa
prática judiciária, mas produzindo um risco concreto de involução em nosso direito (ANDRADE,
2015. p. 141)”. Além deste, outro argumento utilizado é o fato de que, na verdade, não se está buscando
a imparcialidade judicial, tendo em vista que nenhuma preocupação é demonstrada em relação a este
princípio na fase da investigação. Nesse sentido pontua o autor que “a criação do juiz de garantias está
claramente voltada a preservação do juiz da fase processual, e não da imparcialidade judicial ao longo
das duas fases da persecução penal. (ANDRADE, 2015. p. 74).”
Outro ponto abordado é no tocante à imparcialidade judicial, uma vez que os autores que são
contra a figura do juiz de garantias defendem a ideia de que não é qualquer contato com informações
advindas da investigação criminal que torna o juiz parcial (ANDRADE, 2015. p. 92). Além do autor já
mencionado, Paulo Costa Júnior também se posiciona nesse sentido:
[…] o mero recebimento de comunicação da prisão, mesmo acolhendo-se a tese que sustenta
o instituto proposto pela comissão, não tem o condão de influir na imparcialidade do magistrado a
ponto de impedir o seu funcionamento no processo. Basta imaginar que esta situação pode ocorrer
com um magistrado no plantão judiciário, redistribuindo-se depois o processo para outro juiz compe-
tente Segundo as normas de organização judiciária, para antevermos o excesso da previsão, a qual vai
apenas gerar o impedimento de um amior número de magistrados, o que em algumas Subseções da
Justiça Federal e Comarcas da Justiça Estadual pode ser um problema em razão do pequeno número
de magistrados (COSTA JÚNIOR, 2010. p. 227).
Na mesma linha, ao se manifestar acerca do anteprojeto de reforma do CPP, o qual já previa a
figura do juiz de garantias, ponderava Miguel Reale Júnior:
O projeto parte da suspeita de que o Juiz, ao conceder medidas cautelares, estará, por isso, com-
prometido com o seu ato de autorizar ou não autorizar escuta telefônica ou uma busca e apreen-
são. Com maior ênfase, surge a desconfiança de suspeita de um veredicto condenatório future

4 Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.299 do Distrito Federal.

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Maria Eduarda Vier Klein, Mauirá Duro Schneider e Miguel Tedesco Wedy

em face da decretação da prisão preventive a ser devidamente fundamentada com base no reco-
nhecimento de indícios de autoria e materialidade do crime. Não entendo, todavia, o que o Juiz
se vincula as suas decisões, precárias quanto ao exame da prova, de forma a estar comprometido
com o que decidiu a ponto de se tornar parcial. Se assim for, o Juiz que concede o pedido de
interceptação tendente a rejeitar a denúncia ou absolver no processo a ser instaurado. (REALE
JÚNIOR, 2011. p. 109-110).

Quanto ao primeiro argumento, como já afirmamos, não se trata de se presumir a parciali-


dade do juiz, mas de se reforçar a sua imparcialidade. Na fase de julgamento do processo há mais
imparcialidade do juiz que se contaminou com o manuseio de medidas cautelares na fase de inves-
tigação ou daquele juiz que acompanhou apenas a fase de instrução? Parece-nos que esse é um dado
objetivo. É inegável o ganho não apenas para o processo acusatório, para as partes e, também, para
a imparcialidade do juiz. Assim, em que pese hajam signifiticativas críticas ao juiz de garantias, ne-
nhuma parece sobrepor o ganho que essa figura traz em relação à imparcialidade judicial. Sobretudo
quando percebemos que processo penal brasileiro é um processo acusatório com um cunho inquisito-
rial, ainda profundamente influenciado pela herança autoritária de 1941, como já referimos.
Com isso, percebe-se o terrível e autoritário legado cultural e histórico que faz com que seja
possível ao julgador não apenas atuar de ofício, mas atuar também desde o inquérito até o final do
processo. A práxis de ofício, desde o inquérito até o processo, com buscas e apreensões, sequestros,
arrestos, interceptações, alastrou-se pelo sistema processual, gerando mais parcialidade e preconcei-
tos de tese. Aliás, o juiz que não faz isso é visto muitas vezes como “fraco”. Como se sabe, o juiz pode,
sem a implementação do juiz de garantias, sem o pedido dos sujeitos processuais, determinar man-
dados de busca e apreensão, novos interrogatórios, oitivas testemunhais, novas provas, sequestro de
bens dos suspeitos, interceptações telefônicas e telemáticas, e, ainda, recorrer de decisões próprias,
quando concede habeas corpus e mandados de segurança. A pergunta que fica é: um juiz que faz isso
não é um juiz menos imparcial? Não crer nisso é apenas uma decorrência de um juízo utilitário, no
qual o interesse do sujeito processual está acima da construção de um sistema processual acusatório
e imparcial.
Embora o mérito do caso “Cubber” possua diferenças da realidade brasileira, pois o que se dis-
cutia era a atuação de um juiz investigador e que tal figura específica não exista no Brasil, importante
compreender a conclusão que é feita pelo TEDH neste caso, qual seja, da incompatibilidade entre o
exercício das funções de investigação e julgamento. Obviamente, isso deve ser visto em cada caso con-
creto. Na Espanha, por exemplo, desde a Sentença nº 145/1988, o juiz que pratica atos de investigação
não pode julgar o processo, segundo o Tribunal Constitucional. Na Itália, a Corte Constitucional
também entendeu que um mesmo juiz não poderia atuar em diferentes fases do processo, por in-
compatibilidade com a imparcialidade. No Brasil, paradoxalmente, o juiz que atua na investigação
é o juiz que passa a ter competência para julgar o réu até o final do processo em razão da chamada
regra da prevenção. Ou seja, presume-se que esse juiz, que pode tomar inúmeras medidas de ofício
(busca e apreensão, interceptações telefônicas, sequestro de bens) e ainda outras medidas mais gra-
vosas (prisões temporárias e preventivas), a pedido dos órgãos de investigação, durante o inquérito, é
imparcial e, posteriormente, poderá depois julgar o mérito do processo criminal. Isso não é, portanto,
compatível com o ideário de um processo acusatório. Não se pode querer elementos do processo acu-
satório aos pedaços. Não se pode querer partes do processo acusatório (mecanismos de negociação e
colaboração), mas ao mesmo tempo repelir um juiz com imparcialidade subjetiva e, especialmente,
objetiva.
Imagine-se um juiz que determine uma interceptação telefônica ilegal contra um réu. Esse juiz
passa a ter competência sobre aquele caso e outros conexos aquele crime. Esse mesmo juiz irá julgar o
réu depois. Será que esse juiz que praticou uma ilegalidade contra aquele acusado possui imparciali-
dade para julgá-lo depois? Não há risco de que ele tenha aqui um preconceito de tese? Se um juiz atua
na investigação e decide questões de ofício, sem qualquer pedido das partes, como irá se afastar dos
seus preconceitos? Qual juiz será mais imparcial, aquele que atuou no inquérito ou outro juiz?
Luigi Ferrajoli (2004), concordando com Franco Cordero, ilustrava que o que se dá é uma es-
pécie de processo penal parcial, no qual a figura do juiz pode se confundir com a figura do acusador
ou do defensor, ao tomar o lado de uma das partes. E isso se dá muitas vezes em razão de haver um

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A Lei nº 13.964/2019 e o juiz de garantias: da sua constitucionalidade até sua implementação

reforço da ideia de um juiz “combatente do crime”, um juiz parceiro da “sociedade dos homens bons”,
da polícia e da investigação. No entanto, sempre se deveria perguntar se o melhor não seria um juiz
parceiro da Constituição. A Constituição é o que eu quero que ela seja ou a Constituição é o que é?
Ela é o que é! O jurista deve ser escravo da Constituição, não senhor dela! E a Constituição, por sua
vez, claramente tem uma estrutura acusatória de processo que, queiramos ou não, almeja preservar a
imparcialidade. Tudo isso se reforça com o juiz de garantias!
Desse modo, o juiz de garantias moderniza o processo penal brasileiro, uma vez que impede a
atual fragilização da imparcialidade judicial. Sob esse aspecto, em que pese o nosso CPP seja ante-
rior ao texto constitucional, o Estado Democrático de Direito exige uma devida constitucionalização
dessa legislação. Além disso, não pode o processo penal brasileiro estar atrasado em comparação a
diversos outros países que possuem a imparcialidade como cerne. Por isso estamos de pleno acordo
não apenas com a expressão que faz referência ao processo acusatório e a vedação de agir de ofício do
juiz (conforme art. 3º- A), mas também aos poderes assegurados ao juiz de garantias no decorrer do
art. 3º - B. Também parece absolutamente correta a previsão de que as decisões proferidas pelo juiz
das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou
queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10
(dez) dias. Trata-se, na verdade, de clara preservação da imparcialidade do juiz de garantias e do juiz
da instrução.

5 A implementação do juiz de garantias e o conceito de eficiência: uma necessária conjugação

Em diversas ocasiões, o conceito de eficiência tem sido utilizado como um argumento de


autoridade para frear alguns indispensáveis avanços em matéria de garantias, como se respeitar a
Constituição impedisse a realização da justiça.
O problema dessa visão, entretanto, é que ela acaba por denotar um conceito de eficiência que
não nos parece adequado, na medida que equipara-o, exclusivamente, ao puro pragmatismo, o qual
é totalmente alheio às garantias que englobam o sistema processual penal. Só haverá eficiência no
processo penal com o equilíbrio entre justiça e garantias. Esse tripé (eficiência, garantias e justiça) é
essencial para se falar em processo democrático. Um processo sem garantias claras e imparcialidade
assegurada não é um processo justo, legítimo e democrático. Um processo não é democrático, justo e
legítimo, também, se não é eficiente para chegar ao fim, se não alcança um resultado, seja a absolvição
ou condenação.
Nesse diapasão, em contrapartida ao equivocado conceito de eficiência, é mais que fundamental
a distinção entre a eficiência meramente pragmática e a eficiência alinhada às garantias e ao processo
penal democrático (WEDY, 2016. p. 293). Para tanto, é indispensável que se olhe e considere a quali-
dade do processo penal que se quer construir e, essencialmente, se esse processo é justo. Em face disso,
imperioso discutir sobre a possível e necessária conjugação entre o juiz de garantias e o conceito de
eficiência.
Inicialmente, parece-nos que o juiz de garantias irá trazer ganhos para um controle mais efi-
ciente das segregações cautelares. Um dos motivos da carcerização em massa provém de um número
exacerbado de prisões cautelares5 e é possível tal realidade seja modificada com a atuação do juiz de
garantias. Além disso, acreditamo-nos também que haverá um controle mais efetivo e minucioso do
processo judicial após o recebimento da resposta à acusação, visto que o juiz que receberá tal peça
processual será o juiz da instrução, o qual não teve nenhum contato ainda com o mérito do caso e fará
uma análise mais imparcial.
No entanto, mesmo assim, o pilar argumentativo das críticas que sustentam a ineficiência do
juiz de garantias alegam problemas de ordem prática. Tanto é verdade que nas ADI’s preponderam
as críticas políticas ao instituto, ou seja, critica-se mais os reveses financeiros e práticos do juiz de
garantias que a suposta e infundada inconstitucionalidade da legislação. Tais críticas tomam maior

5 Segundo dados de 2019, oriundos do CNJ e apresentados pelo G1, cerca de 41,5% da população carcerária são presos provisórios – pessoas ainda não condenadas. (BARBIÉRI,
Luiz Felipe. CNJ registra pelo menos 812 mil presos no país; 41,5% não têm condenação. Sítio eletrônico: Globo.com/Política. Publicado em 17/07/2019. Acessado em
06/07/2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml> ).

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Maria Eduarda Vier Klein, Mauirá Duro Schneider e Miguel Tedesco Wedy

proporção devido à exiguidade do prazo de “vacatio legis” concedido pelo legislador. Para tanto, pre-
cisamos concordar com a suspensão temporária dessa figura, com o propósito de que os tribunais
façam as devidas alterações em suas estruturas em tempo hábil.
Demais disso, não nos parece que a questão principal acerca da não aplicação imediata do juiz
de garantias seja econômica, mas sim de efetiva organização estrutural do Poder Judiciário. Efeti-
vamente, não era possível implementar uma mudança tão profunda em tão pouco tempo. É preciso
pensar em alternativas para aquelas comarcas com um ou poucos magistrados. Aliás, aí a criação de
varas regionais de garantias seria uma solução prática viável e segura.
No caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, segundo levantamento realizado com base no De-
partamento de Magistrados6, notamos que há 73 (setenta e três) comarcas7 com apenas um juiz. Sob
esse dado, uma visão meramente circunstancial diria que o número de comarcas com um único juiz
é elevado e que, portanto, a investidura de mais um magistrado em cada uma dessas comarcas repre-
sentaria um custo demasiado. Por isso, justamente, a relevância de se pensar em varas regionalizadas,
com a utilização dos mesmos magistrados que já atuam nos processos criminais. Trata-se, pois, não
de um aumento de custo, mas de uma necessária reorganização estrutural.
Outrossim, algumas propostas apresentadas por Aury Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa
(2020) consistem na possibilidade, por exemplo, de tornar eletrônico e unificado o sistema processual
penal, criar centrais de inquérito em comarcas próximas, de modo a facilitar e deixar clara a especial
função do juiz de garantias. São também alternativas plausíveis.
Ademais, essas breves considerações de caráter prático possuem uma conotação efêmera ou
transitória, visto que com o passar do tempo o Poder Judiciário irá conseguir se adaptar a essa trans-
formação processual. De imediato, razão assiste ao STF que compreendeu a dimensão dessa figura
processual e decidiu por suspendê-la temporariamente, garantindo assim um lapso temporal para que
o Judiciário se adapte aos novos tempos.

6 Conclusão

Por certo que não se pode esgotar um tema tão denso e relevante nessas poucas linhas, porém,
do ponto de vista acadêmico, é imprescindível, como procuramos fazer, apontar os inequívocos avan-
ços da figura do juiz de garantias para a afirmação de um processo que seja efetivamente acusatório.
Assim, impõe-se o reconhecimento da adequação da figura do juiz de garantias ao texto cons-
titucional, bem como ao paradigma comtemporâneo, o qual exige, ainda mais, a concretização da
imparcialidade judicial. De outra parte, os compreensíveis e naturais problemas para a efetivação do
juiz de garantias devem ser compreendidos e devem ser sanadas as dificuldades aventadas em tempo
razoável.
Por conseguinte, não nos parece que a separação entre juiz de garantias e juiz de instrução gere
prejuízos, mas, ao contrário, deverá reforçar a imparcialidade, a qualidade e especialidade das deci-
sões, bem como a afirmação da Constituição Federal.
Todavia, em um aspecto temos que estar em absoluta concordância com aqueles que criticam o
juiz de garantias: a mudança poderá se tornar inócua se a magistratura não compreender que o juiz
de garantias é e deve ser um baluarte das garantias e da Constituição e não mais um investigador ou
parceiro da investigação. Para isso, já há a polícia e o Ministério Público, figuras essenciais da demo-
cracia e do estado de direito.

6 Ao fim e ao cabo, aquilo que os primeiros chamam de efetividade e nós de eficiência real, veda uma compreensão do postulado da eficiência mediante o atropelo das garantias
do acusado. Com efeito, quaisquer argumentos que reivindiquem a eficiência contra o Juiz de Garantias almejam, no fundo, flexibilizar a imparcialidade judicial
Dados de 21/02/2020. Fonte: Departamento de Magistrados. Link: https://www.tjrs.jus.br/static/2020/02/Juizes-21-02-2020.pdf. Acessado em 26/04/2020.
7 São elas: Antônio Prado, Arroio Grande, Arroio do Meio, Arroio do Tigre, Arvorezinha, Augusto Pestana, Barra do Ribeiro, Bom Jesus, Butiá, Campina das Missões, Campo
Bom, Candelária, Can-guçu, Carlos Barbosa, Casca, Catuípe, Constantina, Crissiumal, Dois Irmãos, Dom Pedrito, Eldorado do Sul, Encruzilhada do Sul, Espumoso, Faxinal
do Soturno, Feliz, Flores da Cunha, Garibaldi, Gramado, Ibirubá, Igrejinha, Ivoti, Jaguari, Jaguarão, Júlio de Castilhos, Lavras do Sul, Marcelino Ramos, Mostardas, Nova
Petropólis, Não-me-toque, Nonoai, Palmares do Sul, Panambi, Pedro Osório, Piratini, Planalto, Porto Xavier, Quaraí, Restinga Seca, Rio Pardo, Ronda Alta, Rosário do Sul,
Salto do Jacuí, São Francisco de Assis, São Francisco de Paula, São Marcos, São Sebastião do Caí, Sarandi, Santo Cristo, Seberi, Sobradinho, Tapejara, Tapera, Tenente Portela,
Terra de Areia, Três Coroas, Três Passos, Triunfo, Tucunduva, Tupanciretã, Vera Cruz e Veranópolis.

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A Lei nº 13.964/2019 e o juiz de garantias: da sua constitucionalidade até sua implementação

Como dissemos em outra ocasião, o nosso legado deve ser o de um país que enfrenta o crime
com rigor, equilíbrio e, fundamentalmente, com um processo penal que respeite a Constituição.
O nosso papel, enquanto juristas, é afirmar as garantias constitucionais que nos foram legadas
literalmente com sangue, suor e lágrimas. Tenhamos a consciência de que vale muito cumprir a Cons-
tituição e se sacrificar por ela, ao menos para que deixemos uma herança de liberdade aos nossos
filhos.

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