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FILOSOFEMA 442 FILOSOFIA

tem a ver com a historiografia científica (v. igualmente na definição de Hobbes, segundo a :
HISTORIOGRAFIA). O adjetivo/íYofógzconão pode qual a F. é, por um lado, o conhecimento cau-
sequer ser usado para designar formas monó- sai e, por outro, a utilização desse conhecimen-
tonas e mal realizadas de historiografia, pois a to em benefício do homem (De corp., I, § 2, 6),
F. não é em nada responsável por elas. Tam- bem como na de Kant, que define o conceito
pouco a função de conservação e recons- cósmico da F. (o conceito que interessa neces-
tituição do material documentário e das fontes, sariamente a todos os homens) como o de "ei- [
que Nietzsche chamou de história arqueológi- ência da relação do conhecimento à finalida-
ca, (v.), é um tipo inferior de história, porque de essencial da razão humana" (Crít. R. Pura,
só é possível quando um interesse inteligen- Doutr. transe, do método, cap. III). Essa finali-
te guia as escolhas oportunas e as torna úteis dade essencial é a "felicidade universal"; por- :
à tarefa da crítica e da reconstituição históricas. tanto, a F. "refere tudo à sabedoria, mas através
FILOSOFEMA (gr. (piAoaó(pr|Lia; lat. Phi- da ciência" (Ibid., in fine). Não tem significação
losophema; in. Philosopheme, fr. Phílosophème, diferente a definição de F. dada por Dewey,
ai. Philosophem; it. Filosofemd). Em geral, dis- como "crítica dos valores", no sentido de "críti-
curso filosófico. Na lógica de ARISTÓTELES (Top., ca das crenças, das instituições, dos costumes,
VIII, 11, 162 a 15) é o "raciocínio demonstrati- das políticas, no que se refere seu alcance so- ;
vo". Fora da lógica: conceito ou lugar-comum bre os bens" (Experience and Nature, p. 407).
filosófico. Neste segundo sentido é usado pelo Estas definições (aqui citadas apenas como ,'
próprio ARISTÓTELES (De cael., II, 13, 294 a 19) exemplos) podem ser remetidas à fórmula de :
e pela tradição posterior. G. P.-N. A. Platão, citada no início, cuja vantagem é nada
FILOSOFIA (gr. (pita>ao(píoc; lat. Philosophia; estabelecer sobre a natureza e os limites do sa-
in. Phüosophy, fr. Philosophie, ai. Philosophie, it. ber acessível ao homem ou sobre os objetivos
Filosofia). A disparidade das F. tem por reflexo, para os quais ele pode ser dirigido. Portanto
obviamente, a disparidade de significações de pode-se entender esse saber tanto como revê- •
"F.", o que não impede reconhecer nelas algu- lação ou posse quanto como aquisição ou bus-
mas constantes. Destas, a que mais se presta a ca, podendo-se entender que seu uso deva
relacionar e articular os diferentes significados orientar-se para a salvação ultraterrena ou
desse termo é a definição contida no Eutidemo terrena do homem, para a aquisição de bens
de Platão: F. é o uso do saber em proveito do espirituais ou materiais, ou para a realização
. homem. Platão observa que de nada serviria de retificações ou mudanças no mundo. Por-
possuir a capacidade de transformar pedras em tanto, essa fórmula revela-se igualmente apta a
ouro a quem não soubesse utilizar o ouro, de exprimir as diferentes tarefas que a F. foi assu-
nada serviria uma ciência que tornasse imortal
mindo ao longo de sua história. Por exemplo, ,
a quem não soubesse utilizar a imortalidade, e
assim por diante. É necessária, portanto, uma exprime igualmente bem tanto a tarefa das F.
ciência em que coincidam fazer e saber utilizar positivas ou dogmáticas quanto a das F. negati-
o que é feito, e esta ciência é a F. (Eutid., 288 e vas ou cépticas. Quando o cepticismo antigo se
290 d). Segundo esse conceito, a F. implica: 1Q propõe realizar a imperturbabilidade da alma
posse ou aquisição de um conhecimento que pela suspensão do assentimento (SEXTO
seja, ao mesmo tempo, o mais válido e o mais EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 25-27), não faz senão
amplo possível;^2 uso desse conhecimento em entender a F. como uso de determinado
benefício do homem. Esses dois elementos re- conhecimento para conseguir uma vantagem.
correm freqüentemente nas definições de F. Analogamente, quando, na F. contemporânea,
em épocas diversas e sob diferentes pontos de Wittgenstein afirma que o propósito da F. é
vista. São reconhecíveis, por exemplo, na defini- levar ao desaparecimento dos problemas fi-
ção de Descartes, segundo a qual "esta palavra losóficos, eliminar a própria F. ou se "curar"
significa o estudo da sabedoria, e por sabedoria dela (Philosophical Investigations, § 133), não
não se entende somente a prudência nas coi- está recorrendo a conceito diferente de F.: li-
sas, mas um perfeito conhecimento de todas bertar da F. é a utilidade que o uso do saber
as coisas que o homem pode conhecer, tanto (neste caso a retificação lingüística deste) pode
para a conduta de sua vida quanto para a con- proporcionar.
servação de sua saúde e a invenção de todas Os dois elementos encontrados na defini-
as artes" (Princ. phil., Pref.). Encontram-se ção de F. considerada apta a constituir o quadro
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das principais articulações dos significados balho é subalterno e ancilar: não é nem pode
desse termo constituem por si mesmos a pri- ser decisivo quando se trata de interpretações
meira dessas articulações. Em outras palavras, é fundamentais e de instâncias últimas. Na reve-
possível distinguir os significados historicamen- lação e na tradição, encontra limites intrans-
te dados desse termo: ls com relação à nature- poníveis que vedam qualquer possibilidade de
za e validade do conhecimento ao qual a F. se desenvolvimento em direções diferentes das já
refere; 2S com relação à natureza do alvo para determinadas. Não pode combater e destruir as
o qual a F. pretende dirigir o uso desse saber; crenças estabelecidas, opor-se frontalmente à
3S com relação à natureza do procedimento tradição, promover ou planejar transformações
que se considera próprio da filosofia. radicais. Sua função é conservar as crenças es-
I. A filosofia e o saber— O uso do saber ao tabelecidas, e não renová-las ou aperfeiçoá-
qual o homem tem acesso de algum modo é, las, portanto, sua função é subordinada e ins-
em primeiro lugar, um juízo sobre a origem ou trumental, destituída de autonomia e da dignidade
a validade desse saber. E a propósito do juízo de força diretiva.
sobre a validade do saber surgem imediata- Já se disse que quase todas as F. orientais
mente duas alternativas fundamentais, que são dessa natureza, o que por vezes levou a
estabelecem a distinção entre dois tipos dife- duvidar de que pudessem ser chamadas de
rentes e opostos de filosofia. A primeira alter- filosofias. Mas, na verdade mesmo o mundo
nativa estabelece a origem divina do saber: para ocidental muitas vezes oferece exemplos de F.
o homem, ele é uma revelação ou um dom. A desse tipo, ainda que nenhuma delas apresente
segunda alternativa estabelece a origem hu- os caracteres ora expostos em todo o seu rigor.
mana do saber: ele é uma conquista ou uma A partir do nome do mais importante desses
produção do homem. A primeira alternativa é exemplos, as formas que esse tipo de F. assu-
a mais antiga e a mais freqüente no mundo, miu no mundo ocidental podem ser chamadas
prevalecendo de há muito nas filosofias orien- de escolãsticas. Uma escolástica, ao contrário
tais. A segunda alternativa surgiu na Grécia e de uma filosofia de puro tipo oriental; pressu-
foi herdada pela civilização ocidental. põe uma F. autônoma e vale-se dela pára a de-
Ã) De acordo com a primeira alternativa, o fesa e a ilustração de uma verdade religiosa
saber é uma revelação ou iluminação divina, para confirmar ou defender crenças cuja valida-
com que se privilegiaram a um ou mais ho- de se julga estabelecida de antemão, indepen-
mens, transmitida por tradição num grupo tam- dentemente de confirmações ou defesas. Uma
bém privilegiado de homens (casta, seita ou escolástica, como a própria palavra diz, é es-
igreja). Portanto, não é acessível aos mortais sencialmente um instrumento de educação:
comuns, a não ser através daqueles que são serve para aproximar o homem, na medida do
seus depositários; tampouco é possível aos possível, de um saber considerado imutável
mortais, comuns ou não, aumentar seu patri- em suas linhas fundamentais, portanto não sus-
mônio ou julgar de sua validade. Faz parte inte- ceptível de aperfeiçoamento ou renovação. Entre
grante dessa interpretação da origem do saber as tarefas — aliás, múltiplas, assim como são
a crença de que seu uso em benefício do ho- múltiplos os caminhos de acesso do homem à
mem — neste caso a "salvação" — também é verdade, bem como os obstáculos encontra-
ditado ou prescrito pela revelação ou ilumina- dos nesse caminho — assumidas por uma F.
ção divina. Portanto, esta interpretação parece escolástica, não está o eventual abandono das
eliminar ou tornar supérfluo o "trabalho" filosó- crenças de que ela é intérprete. As seitas filosó-
fico, que versa precisamente sobre esse uso. fico-religiosas do séc. II a.C. (p. ex., os es-
Mas na prática isso é raro. A exigência de apro- sênios), as doutrinas de Fílon de Alexandria
ximar a verdade revelada da compreensão hu- (séc. I d.C.) e de muitos neoplatônicos, a F.
mana comum, de adaptá-la às circunstâncias e islâmica e judaica, a Patrística e a Escolástica,
de fazer que ela atenda aos problemas novos bem como, no mundo moderno, o ocasiona-
ou modificados que os homens se propõem, lismo, o imaterialismo, a direita hegeliana e
de defendê-la de negações, desvios, increduli- boa parte do espiritualismo contemporâneo são
dades declaradas ou ocultas, faz que o trabalho escolásticos no sentido ora esclarecido: F. que
filosófico encontre nesse conceito do saber um consistem em utilizar determinada doutrina
vasto campo para desenvolver-se e tarefas (platonismo, aristotelismo, cartesianismo, em-
multiformes para enfrentar. Contudo, esse tra- pirismo, idealismo, etc.) para a defesa e a inter-
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pretação de crenças que não podem ser postas mito e, em geral, à crença infundada que os
em dúvida, corrigidas ou negadas por esse tra- gregos chamavam de opinião. É na diferença
balho. Certamente, essas diferentes escolásticas entre opinião e ciência, entre amor à opinião e
possuem graus diferentes de liberdade e esses amor à sabedoria, que Platão mais insiste ao
graus às vezes variam, em cada uma delas, de esclarecer o conceito de F. (Rep., V, 480 a). A F.
uma época para outra. P. ex., S. Tomás, apesar como investigação é contraposta por Platão,
de conferir à "F. humana" certa autonomia, na por um lado, à ignorância e, por outro, à sabe-
medida em que lhe atribui a consideração e o doria. A ignorância é ilusão de sabedoria e des-
estudo das coisas criadas como tais, ou seja, trói o incentivo à investigação (O Banq., 204
sua natureza e suas próprias causas {Contra a). Por outro lado, a sabedoria, que é a posse
Gent., II, 4), considera impossível que ela pos- da ciência, torna inútil a investigação: os Deu-
sa contradizer as afirmações da fé cristã, que ses não filosofam ilbid. 204 a; Teet., 278 d). A
deve ser tomada como norma do procedimento investigação é o que define o status de F. Já
correto da razão (Ibtd., I, 7). Ainda que as F. Herãclito dissera: "É necessário que os homens
desse tipo possam conseguir resultados impor- filósofos sejam bons investigadores de muitas
tantes, que passam a fazer parte do patrimônio coisas" (Fr. 35, Diels). Enquanto investigação,
filosófico comum, seu campo é rigidamente a F. é "conquista", como dizia Platão (Eutid.,
limitado pelo problema em torno do qual elas 288 d), ou esforço, como diziam os estóicos
giram, de defesa de crenças tradicionais: suas (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., IX, 13), ou "ati-
possibilidades não se estendem à correção e vidade", como diziam os epicuristas (Ibid.,
renovação de tais crenças. XI, 169).
E) Para a segunda alternativa, o saber é uma Mas se a F. é o compromisso de fazer do sa-
conquista ou uma produção do homem. O fun- ber investigação, condiciona o saber efetivo,
damento desta concepção é que o homem é que é "conhecimento" ou "ciência". No juízo
um "animal racional" e, portanto, como diz que a própria filosofia emite sobre ele, esse
Aristóteles no início da Metafísica (980 a 21), condicionamento pode assumir três formas que
"todos os homens tendem, por natureza, ao sa- definem três concepções fundamentais da F., a
ber": "tendem" significa que não somente dese- metafísica, a positivista e a crítica. Ia Para a pri-
jam o saber, mas também podem obtê-lo. O sa- meira delas, a F. é o único saber possível, e as
ber, sob esse ponto de vista, não é privilégio outras ciências, enquanto tais, coincidem com
ou patrimônio reservado a poucos; qualquer ela, são partes dela ou preparam para ela. 2-
um pode contribuir para sua aquisição e para Para a segunda delas, o conhecimento cabe às
seu enriquecimento, tendo, por isso, direito de ciências particulares, e à F. cabe coordenar e
julgá-lo, aprová-lo ou rejeitá-lo. Sob esse ponto unificar seus resultados. 3a Para a terceira delas,
de vista, a tarefa fundamental da F. é a busca e F. é juízo sobre o saber, ou seja, avaliação de
a organização do saber. Quando Tucídides (II, suas possibilidades e de seus limites, em vista
40) atribui a Péricles a frase "Amamos o belo de seu uso pelo homem.
com moderação e filosofamos sem timidez", 1- A primeira concepção da F. é a metafísi-
certamente está expressando a atitude e o espí- ca, que dominou na Antigüidade e na Idade
rito grego, do qual nasceu a F. nesta segunda Média, distinguindo ainda hoje muitas corren-
acepção do termo. Péricles não fazia alusão a tes filosóficas. Sua característica principal é a
uma disciplina específica, mas à busca do saber negação de qualquer possibilidade de inves-
conduzida sem compromissos preconcebi- tigação autônoma fora da F. Um conhecimento
dos ou com um único compromisso de experi- ou é filosófico ou não é conhecimento. Admi-
mentar e pôr à prova toda crença possível. te-se muitas vezes que, fora da F., existe um
Neste sentido, a F. é uma criação original do es- saber imperfeito, provisório e preparatório, mas
pírito grego e uma condição permanente da nega-se que tal saber possua validade cognos-
cultura ocidental. É um compromisso no senti- citiva própria. Assim, Platão, por um lado, cha-
do de que qualquer investigação, em qualquer ma a geometria e as outras ciências de F., refe-
campo, deve obedecer somente às limitações rindo-se em especial à sua função educativa
ou às normas que ela mesma reconheça como {Teet., 143 d; Tim., 88 c), e por outro lado con-
válidas em função de suas possibilidades ou de sidera tais ciências (aritmética e geometria, as-
sua eficácia em descobrir ou confirmar. Neste tronomia e música) simplesmente propedêu-
sentido, F. opõe-se a tradição, preconceito, ticas para a F. propriamente dita, ou seja, para
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a dialética, que teria, entre outras, a tarefa de e espírito, cumprindo, assim, a "tendência ne-
"descobrir a comunhão e o parentesco entre as cessária de todas as ciências naturais" (System
ciências e de demonstrar as razões pelas quais des transzendentalen Idealismus, 1800, Intr.,
estão interligadas" (Rep., VII, 531 d). Aristóteles § 1). Hegel afirmaria explicitamente que "as
define a F. como "ciência da verdade" (Met., II, ciências particulares se ocupam dos objetos
1, 993 b 20), no sentido de que ela compreen- finitos e do mundo dos fenômenos" (Geschichte
de todas as ciências teóricas, ou seja, a F. pri- der Philosophie, Intr., A, § 2; trad. it., I, p. 69); e
meira, a matemática e a física, e exclui somente que "uma coisa são o processo de origem e os
a atividade prática: mas também esta deve re- trabalhos preparatórios de uma ciência e outra
correr à F. para esclarecer sua natureza e seus coisa é a própria ciência", na qual eles desa-
fundamentos. Tanto Platão quanto Aristóteles parecem para serem substituídos pela "necessida-
admitem como ciência primeira uma disciplina de do conceito" (Ene, § 246). Isso significa que
determinada, que para Platão é a dialética e só a F., é ciência, porque só ela demonstra "a
para Aristóteles a F. primeira ou teologia, mas necessidade do conceito", utilizando e mani-
para eles essa disciplina determinada também pulando a seu modo (como Hegel realmente
é a mais geral. Com efeito, conforme já se viu, fez) o material preparado pelas chamadas ciên-
a dialética permitia compreender a ligação e a cias empíricas. Portanto, Hegel reservava para
natureza comum das ciências, e a F. primeira, a F. o privilégio de ser a "consideração pensante
como ciência do ser enquanto ser, tem por dos objetos" (Ibid., § 2). O conhecimento pre-
objetivo específico a essência necessária ou liminar ou preparatório assenta em representa-
substância que a cada ciência cabe indagar em ções; tem-se conhecimento propriamente dito
seu campo particular (Depart. an., I, 5, 645 a quando, com a F., "o espírito pensante através
1). Outras vezes, ao contrário, a F. resolve-se das representações e trabalhando sobre elas
nas disciplinas particulares, sem privilégio de progride para o conhecimento pensante e o
nenhuma delas. Era o que faziam os epicuristas, conceito" (Ibid., § 1). Está claro que, expresso
que a dividiam em canônica, física e ética (DIÓG. desta maneira, o conceito de F. como totalida-
L, X, 29-30), e os estóicos, que a dividiam em de do saber é uma manifestação de arrogância
lógica, física e ética (AÉCIO, Plac, I, 2), consi- filosófica, inexistente nesse mesmo conceito no
derando que essas três partes eram interli- período clássico. Naquela época, com efeito,
gadas como os membros de um animal (DIÓG. esse conceito agia como compromisso especí-
L, VII, 40). fico das disciplinas científicas, que graças a ele
ingressavam na esfera da investigação desinte-
Esta concepção, que identifica o saber inte-
ressada, recebendo dele incentivo e sustenta-
gral com a F. e se recusa a reconhecer que haja
ção em sua constituição conceituai. Mas na
ou possa haver um saber autêntico fora dela
concepção do idealismo romântico, as ciências
sobreviveu à constituição das ciências particu-
específicas eram rebaixadas à função de traba-
lares como disciplinas autônomas e con-
lho braçal destituído de validade intrínseca. A
servou-se substancialmente inalterada em
essa mesma função a ciência é reduzida tanto
certas correntes filosóficas até nossos dias. A
pelo idealismo quanto pelo espiritualismo. A
definição que Fichte deu da F. como uma "ciên-
definição de F. como "teoria geral do espírito"
cia da ciência em geral" (Über den Begriff der
leva Gentile a considerá-la como a consciência
Wíssenschaftslehre oder der sogernannten
que o Eu absoluto tem de si mesmo: dessa
Philosophie, 1794, § 1) não deixa qualquer auto-
consciência, os conhecimentos empíricos, ba-
nomia às ciências particulares, uma vez que, se-
seados na distinção entre objeto e sujeito e entre
gundo essa definição, a doutrina da ciência
os próprios objetos, são uma falsa abstração
"deve dar sua forma não só a si mesma, mas
(Teoria generale dello spirito, 1916, cap. 15,
também a todas as outras ciências possíveis", e
§ 2). Outrossim, apesar da formulação menos
constituir assim o "sistema acabado e único do
berrante, a definição dada por Croce de F. como
espírito humano" (Ibid., § 2). Essa pretensão
"metodologia da historiografia" implica a mes-
manteve-se inalterada em todas as definições
ma arrogância filosófica. Para Croce, o conhe-
que o idealismo romântico deu da filosofia.
cimento histórico é o único possível, visto que
Não é outro o significado das observações de
a história é a única realidade: portanto, a redu-
Schelling, para quem a tarefa da F. é aclarar a
ção da F. a metodologia desse conhecimento
concordância (que finalmente é identidade) en-
eqüivale a negar que o saber científico seja
tre objetivo e subjetivo, ou seja, entre natureza
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conhecimento; de fato, para CROCE, ele não é dam na mesma negação da ciência, uma vez
um saber, mas um conjunto de expedientes que negam autonomia estrutural e validade às
práticos (La storia, 1938, p. 144; Lógica, 1908, ciências específicas (Phil, § 1, pp. 53 ss.;
I, cap. 2). Por outro lado, o espiritualismo con- Existenzphii, 1938, Intr.). Uma desvalorização
temporâneo segue, em sua maior parte, esse ainda mais radical das ciências específicas é
mesmo caminho. Para Bergson, a intuição é o realizada por Heidegger, para quem os pressu-
órgão da F. por ser a intuição a "visão direta do postos da ciência moderna são o esquecimento
espírito por parte do espírito" (La pensée et le do ser, a redução do homem a sujeito e do
mouvant, 3a ed., 1934, p. 51), ou seja, o instru- mundo a representação (Brief über den "Hu-
mento para atingir, imediata e infalivelmente, a manismus", em PlatosLebre von der Wahrheit,
"duração real" que é a realidade absoluta. Seu 1947, p. 88).
reconhecimento da ciência como conhecimen- 2a A segunda concepção de F. como juízo
to adequado ao mundo material ou das "coi- sobre o saber é a que tende a resolvê-la nas
sas" é puramente fictício: para Bergson, nem a
matéria nem as coisas têm realidade como tais, ciências específicas, atribuindo-lhe às vezes a
porque não são senão consciência, e a cons- função de unificar as ciências ou de reunir seus
ciência só pode ser autenticamente conhecida resultados numa "visão de mundo". A origem
pela própria consciência: "Ao sondar sua pró- desta concepção pode ser vista em Bacon, que
pria profundidade, a consciência não estaria concebeu a F. como uma ciência que, em pri-
penetrando também no íntimo da matéria, da meiro lugar, dividiria e classificaria as ciências
vida, da realidade em geral? Isso só poderia ser particulares e depois conferiria a tais ciências a
contestado se a consciência se acrescentasse à posse de seus métodos, do material de que
matéria como um acidente, mas nós acredita- elas disporiam e das técnicas para a utilização
mos ter demonstrado que essa hipótese é absur- desse material em proveito do homem. Em De
da ou falsa, conforme o lado pelo qual é consi- dignitate et augmentis scientiarum (1623), es-
derada, contraditória em si mesma e desmentida boçando o plano de uma enciclopédia das
pelos fatos" (Ibid,, pp. 156-57). O conceito de ciências em bases experimentais, Bacon atri-
F. como conhecimento privilegiado (seja qual buía à "F. primeira", por ele considerada como
for o aspecto em que assente o privilégio) nada "ciência universal e mãe das outras ciências", a
mais é que uma das tantas expressões do anti- tarefa de reunir "os axiomas que não são pró-
go conceito de F. como saber único e absoluto. prios das ciências particulares, mas comuns a
As tendências do pensamento moderno que várias ciências" (Deaugm. scient., III, 1). Hob-
costumam ser chamadas de "metafísicas" bes, por sua vez, identificava a F. com o conhe-
caracterizam-se precisamente por esse concei- cimento científico: "A F. é o conhecimento ad-
to de filosofia. Husserl expõe assim o ideal quirido através do raciocínio correto, dos
cartesiano da F. que ele declara adotar: "Lem- efeitos ou fenômenos, a partir de suas causas
bremos a idéia diretiva das Meditações de Des- ou origens; ou, reciprocamente, o conhecimen-
cartes. Ela visa a uma reforma total da F., para to adquirido sobre as origens possíveis a partir
torná-la uma ciência de fundamentos absolu- dos efeitos conhecidos" (De corp., 1, § 2). Des-
tos. Isto implica, para Descartes, uma reforma te conceito de F. coincidente com o conheci-
paralela de todas as ciências, visto serem estas mento científico, e no esforço de esclarecê-la e
membros de uma ciência universal que outra estendê-la, proveio o sentido do termo em in-
não é senão a própria F. É só na unidade siste- glês, para o qual Hegel já chamava a atenção
mática desta que elas realmente podem tornar- (Ene, § 7 e nota; Geschichte derPhil., Intr., A,
se ciências" (Cart. Med., 1931, § 1). Em sua 2; trad. it, I, p. 70): segundo ele, esse termo
última obra, Husserl estabelecia como primeira não se aplicava somente à ciência da natureza,
condição da F. "uma 'epoché' de qualquer pres- mas ainda a certos instrumentos, como termô-
suposto das ciências objetivas, de qualquer to- metros, barômetros, etc, além dos princípios
mada de posição crítica em torno da verdade gerais da política; este último uso conservou-
ou da falsidade da ciência, uma 'epoché' até da se nos países anglo-saxônicos. Para o próprio
idéia diretiva da ciência, da idéia do conheci- Descartes, a F. compreendia "tudo aquilo que o
mento objetivo do mundo" (Krisis, § 35). espírito humano pode saber", e assim coinci-
dia em grande medida com as pesquisas científi-
Não obstante o amplo reconhecimento da cas, que, aliás, para Descartes deveriam ser
validade do método científico, as considera- remetidas a certos princípios fundamentais
ções de Jaspers sobre a natureza da F. redun-

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