Artigo CONSTITUCIONAL

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 A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO URUGUAI

(...) que el aborto sea legal, como quizá pensemos o deseemos,


no es el final de una larga lucha. Es el comienzo (Mario
Pecheny, doutor em Ciências Políticas, 2016)

No Uruguai, o processo de descriminalização do aborto se deu de forma


longa e combativa, não foi simplesmente da noite para o dia. Desde a década de 90, o
movimento de mulheres do Uruguai já levantava tais questões. No entanto, iremos
detalhar aqui, de forma sintética, as principais ações que levaram a aprovação da Lei de
descriminalização do aborto, a qual está em anexo.
Em primeiro lugar, é primordial lançar mão de estudos empíricos que
comprovam a realidade e prática do aborto, ainda que se tenha carência de dados. Neste
sentido, em 2003 houve um amplo e divulgado estudo no Uruguai para identificar a
magnitude do aborto, que foi coordenado por Rafael Sanseviero, chamada “Condena,
tolerância y negacion” (Oliveira, 2016). É interessante perceber que se criou uma
espécie de acompanhamento de dados oficiais. Estima-se que nos anos 2000, foram
realizados aproximadamente 33 mil abortos no Uruguai. Após a descriminalização, as
taxas de aborto caíram consideravelmente.
Entre 2000 e 2005, também foi criada a Frente Amplia, que era uma
bancada feminina no Congresso. Assim, é possível argumentar que a aprovação de Leis
favoráveis ao direito das mulheres deve ser precedida de uma forte participação
feminina na política, uma vez que elas teriam mais condições de compreender a
particularidade de suas situações. Em 2005, somente 12% do Parlamento era composto
por mulheres. Com a frente, foi aprovada a Lei 18476, que forçava os partidos a terem
pelo menos 25% de candidatas aos cargos políticos.
Uma outra questão foi a forte atuação do Ministérios da Saúde na
promoção de políticas. Por exemplo, a partir de 2004, houve uma portaria que cuidava
de mulheres que tinham realizado aborto (os órgãos de saúde não estavam realizado
aborto), apenas atendiam mulheres que tinham se submetido a tal procedimento, o que
contribuiu para dar visibilidade à questão, e principalmente, trazer a discussão para o
campo da saúde pública, e não ao campo moral ou religioso.
Por fim, cabe destacar a forte atuação do movimento feminista na
sensibilização do Congresso e também junto ao presidente. O projeto já tinha sido
vetado no mandato anterior, mas com a subida de Munjica, este se mostrou mais aberto
a discutir tais questões. Até a aprovação foi um longo percalço:

O processo foi bastante lento. A iniciativa foi primeiramente


debatida no Comitê do Senado (novembro de 2010), depois em
reuniões do plenário (dezembro de 2011) e, então, enviada para
o Comitê de Saúde da Casa dos Representantes em fevereiro de
2012.
(...) Presente na agenda política desde o começo do século, em
outubro de 2012 o Uruguai aprovou a Lei nº 18.987 de
Interrupção Voluntária da Gravidez - IVE (Interupción
Voluntária del Embarazo) [Anexo A], que permite à mulher
interromper sua gravidez desde que vá ao médico e seja
submetida a uma entrevista com uma equipe multidisciplinar.
Ela, então, terá cinco dias para pensar e, quando voltar ao
médico, se não tiver mudado de ideia, poderá realizar o aborto
(ROSTAGNOL, 2014)

Sendo assim, resumidamente temos os seguintes passos para a concretização


de uma política como a descriminalização do aborto no Uruguai:
a) Realização de estudos empíricos e científicos, antes, durante e após a
implementação de políticas, que servem como fundamento para a
tomada de decisões;
b) Grupos de pressão atuantes na esfera política, visando aumentar a
participação feminina;
c) Ampla atuação do Ministério da Saúde, tratando a questão
majoritariamente como de saúde pública;
d) Forte papel dos movimentos sociais/feministas, dialogando com a classe
política em especial o Executivo.

Segundo Rostagnol (2014), a medida aprovada ainda não foi a ideal, uma vez que
as mulheres ainda necessitam passar por uma ampla triagem, sujeitas ao aval de equipe
multiprofissional, sem contar que o aceso à rede de saúde pública ainda sofre limitações
(mulheres negras e pobres, por exemplo, estariam mais vulneráveis). Além disso, houve
uma onda de corporativismo de médicos que alegaram objeção moral para não fazerem
o aborto, sendo, na verdade, mais um movimento individual do que propriamente de um
amplo grupo.
No entanto, é inegável o avanço da questão no Uruguai, contribuindo para saúde
de mulheres e até mesmo para a redução do aborto, dado que, a partir de agora, as
mulheres têm acompanhamento especializado e podem contar com uma rede de apoio
antes de tomarem tal decisão.

 DIREITOS DAS MULHERES ENQUANTO DIREITOS HUMANOS

No hay democracia plena (aun ésta, la formal, la política, la


individualista liberal) si el Estado, el sistema político y la
sociedad en su conjunto no reconocen a cada cual su autonomía
ética y corporal, si no reconocen mínimamente esta autonomía.
(Correa, 2016).

Inicialmente, é importante notar que a discussão sobre aborto, em que pese


o cunho religioso e moral que o cerca, é necessariamente fruto da concepção de
indivíduo das democracias contemporâneas. Trata-se da radicalização da liberdade, um
direito que as mulheres buscam de serem donas do próprio corpo. A partir do momento
que o movimento feminista adentra fortemente o cenário político no século XX,
questionando as delimitações de esfera pública e privada, esses novos sujeitos políticos
que emergiam tinham como principal objetivo a consolidação de direitos civis,
assentados em uma perspectiva de Direitos Humanos.
Segundo Bobbio (1995) os direitos humanos são classificados em civis,
políticos e sociais. Os direitos civis versam sobre à personalidade do indivíduo, assim
como sua liberdade pessoal, de pensamento, etc, exigindo uma postura de abstenção do
Estado. Os direitos políticos são ligados à forma de construção e participação das
instituições, como os direitos a votar e ser votado, direito eleitoral, associações etc. Já os
direitos sociais exigem uma prestação positiva do Estado, assistência em áreas
fundamentais como saúde, educação, etc.
A questão do aborto, portanto, perpassa não apenas pela promoção da liberdade
individual, mas como visto no exemplo do Uruguai, de uma prestação social do Estado
ao garantir políticas de saúde. Para isso, é necessário compreender que este indivíduo
não é mais aquele indivíduo autônomo do iluminismo, mas sim um indivíduo situado
socialmente.
Segundo Ralws (2002), os indivíduos carregariam ideais de liberdade assentadas
no direito de intervir, no regime de independência moral e em responsabilidades. Logo,
trata-se de um indivíduo que tenta preservar seu caráter único e livre, cuja ênfase é posta
não em suas paixões ou vicissitudes, mas em suas concepções públicas de justiça numa
sociedade bem ordenada, e de como esta concepção comum ajuda a manter instituições
políticas básicas. Portanto, o objetivo é preservar o republicanismo, ou seja, uma certa
ordem moral, que resguarde a liberdade individual.
Embora Rawls pretenda alcançar uma concepção de justiça e de indivíduo
despida de caráter moral, religioso ou filosófico, há a preocupação com a solidariedade
em nossas instituições mesmo diante de uma pluralidade de visões e sujeitos. Isso é
importante para a questão do aborto, pois muitos dos argumentos contrários tem como
fundamento a defesa da vida ou outros elementos que pretendem ser basilares à vida em
comunidade, mas são usados para impedir certas decisões das mulheres.
A grande verdade é que o começo do debate feminista traz consigo um sujeito
questionador de sua posição no mundo, portanto, questionador do modus operandi das
instituições. Muitos homens do século XIX, por exemplo, temiam que as mulheres
pudessem mal conduzir a política. Assim, muito do que se discute é devido o reflexo do
pensamento masculino que vigorou no poder durante todos esses anos, daí a
necessidade do enfrentamento também ser feito com maior participação feminina na
política.
Assim, esse debate entre indivíduo e pensamento cívico é o ponto nodal da
construção teórica feminista, ressignificando ambos os conceitos. O indivíduo não está
mais autocentrado, como no liberalismo clássico. O grande desafio é conjugar o
pluralismo das identidades (fruto liberal) com a prevalência dos direitos e uma
revalorização da participação coletiva na esfera pública, a partir de uma concepção de
democracia moderna capaz de unir a cidadania e a comunidade.
Sendo assim, liberdade, igualdade, fraternidade e pluralidade se tornam
princípios a serem defendidos politicamente, nas relações sociais, e não um estatuto
ontológico do ser. O que a crítica feminista faz, além de situar o sujeito em várias
relações de poder, é também questionar a igualdade em seus aspectos materiais, e
primar pela liberdade da mulher, a qual sempre é secundarizada, posta de lado.
Uma teórica política do feminismo que defende a liberdade do sujeito de forma
radical e plural é Nancy Fraser. A autora diferencia a “redistribuição” do
“reconhecimento”, cabendo ao terreno da distribuição seu sentido econômico, e à esfera
do reconhecimento seu sentido cultural. O sujeito, sendo polivalente, estaria inserido em
múltiplas esferas, sejam elas de redistribuição ou de reconhecimento. Por exemplo, um
indivíduo pode ser da classe operária e, portanto, sofrer exploração de ordem
econômica. No entanto, este mesmo indivíduo pode manter uma relação hierárquica em
sua família por ostentar “ser homem” e independente, revelando traços de desigualdade
de gênero em suas relações. Em outras palavras, trata-se de perceber que os modos de
vida possuem um caráter histórico, precário e contingente. E é justamente a sua
indeterminação que move o conteúdo político de sua defesa, pois se fosse determinado,
estável e fixo, a política perderia o sentido de existir, ou então se transformaria em uma
concepção autoritária, unívoca.
Portanto, o feminismo se utilizou da crítica ao indivíduo autocentrado, como
visto aqui, e inserindo-o politicamente em várias esferas sociais que estão inter-
relacionadas. Seu conceito primordial certamente é o “gênero”, no entanto, fala-se aqui
de um gênero em variadas relações e politicamente situado.
Ao resgatar os direitos humanos, as mulheres situam a defesa de seus corpos
e de sua liberdade num sentido inalienável, mas o que é mais importante, não defendem
um sentido de sujeito autônomo, e sim um sujeito situado historicamente, detentor de
direitos e responsabilidades, que exige do Estado uma contraprestação em termos de
saúde pública e também garantias à sua liberdade individual.

BIROLI, Flávia. Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a


crítica democrática. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013.
___________. Autonomia e justiça no debate sobre aborto: implicações teóricas e políticas.
Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 15, p. 37-68, set./dez. 2014a.
______. O debate sobre aborto. In: MIGUEL, L. F.; BIROLI, F. (Org.). Feminismo e
política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014b. p. 123-130.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 7ª ed., Brasília, DF, Editora


Universidade de Brasília, 1995, págs. 353-355

Correa, S.; Pecheny, M. (2016): “Abortus interruptus: política y reforma legal del
aborto en Uruguay.” MYSU, Montevideo.

OLIVEIRA, Inayara. Democracia e aborto: as disputas acerca da


descriminalização no Brasil e no Uruguai. Monografia de Conclusão de curso
apresentada na Unb para obtenção de título de bacherel em Ciência Política. 1996.

RAWLS, J. Uma Teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes. 2002. 436 p.
ROSTAGNOL, Suzana. “Uruguayan politcs towards abortion: Voluntary Interruption of
Pregnanxy ACT (Ley de la IVE) in its first year of implementation”. 2014.
ANEXO A

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