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COMO VENCER UM DEBATE TENDO RAZAO opi- nides sdes esta cada vez mai en iadas e ofensas em q encedor - @ 0 outro, d que, para além do conforto rcionar, Ie critico, para ‘agdes fa- S tas n oferece com persuaséo do, étice @ possa er um debate no qual sim, razao. #acreditamosnoslivros Se vocé gosta de conversar, expressar sua opiniéo, argu- mentar, discutir nas redes socials ou bater na mesa do boteco enquanto diz ‘mas ai é que tal", este livro é pra vocé. Com a ajuda de Aristoteles, de Platao e da filosofia moderna, aqui sao respondidas algumas questées como: + Quando participar de um debate? E como saber se um debatedor esté de fato em busca da verdade? + Como reconhecer e estrutu- rar um argumento bem cons- truido? + Quais so os estratagemas falaciosos utilizados em deba- tes, de maneira intencional ou acidental, e como se defender deles? +E, principalmente, como ven: cer um debate tendo razao? Vocé vai aprender a construir argumentos sélidos, coeren- tes, éticos e bem fundamen- tados; vai descobrir como como debater sem se dei- xar influenciar pelo ego ou se inflamar pelas emogoes, além de identificar e se defen- der de argumentos enganosos. Mais ainda, vocé aprender que um debate é muito mais do que uma mera discussao. como VENCER UM DEBATE TENDO RAZAO HENRY BUGALHO como VENCER UM DEBATE TENDO RAZAO _ PORUMA ETICA DO DEBATE RACIONAL @Planeta Copyright © Henry Bugalho, 2022 Copyright © Editora Planeta do Brasil, 022 ‘Todos os direitos reservados, ‘Preparago: Vivian Miwa Matsushita Revisio: Caroline Silva e Alessandro Thomé Projetogrifico e diagramagio: Maria Beatriz Rosa (Capa: Filipa Damio Pinto | Foresti Design Dados Internacionais de Catalogagio na Publicago (CIP) [Bogie Henry | | Panta aon 2 Bibliografia | ISBN 978-65-5535-796-7 22-2874 Angélica Hacqua CRB-8/7057 1. Discusses ¢ debates 2. Etica 3. Argumentacio I. Titulo Indie para etlogo sitematico 1 Discusses ¢ debates ‘manejo responsivel das QC) ‘Todos os direitos desta edigio reservados & Editora Planeta do Brasil Ltda Rusa Bela Cintra 986, 4* andar — Consolagio ‘iio Paulo ~ SP — 0143-002 ‘wow planetadelivros.com.br faleconosco@editoraplaneta.com.br Ao escolher este livro, vocé esti apoiando © do mundo CD 302.346 ‘Como vencer um debate tendo razio / Henry Bugalho.— Sio Paulo: | Apresenta¢do Aqui divido com vocé a minha despretensiosa contribuicio para uma ética do debate em tempos de tamanha divisio entre as pessoas — di- visio tio visceral, ¢ por vezes excessivamente agressiva, que beira a irracionalidade. Ainda estudante de Filosofia, eu havia decidido seguir carreira fora da academia, dedicando-me 4 literatura ¢ ao universo da ficcio. ‘Algumas décadas depois, arrastado pela forga das circunstincias e por um cenirio politico global polarizado, me encontrei diante de um enorme dilema: deveria encarar ou no 0 desafio de tentar popularizar certas reflexdes filos6ficas, com temas e questdes comumente abstratos € muitas vezes incompreensiveis para os leigos? Seria possivel desper- tar nas pessoas comuns, habituadas ao ritmo frenético da internet, 0 interesse pela filosofia, disputando espago com videos de gatinhos, teorias conspirat6rias, misicas do momento, tutoriais de maquiagem, receitas culinarias, entre outros milhdes dé contetidos mais divertidos, apelativos, chocantes ou priticos? Haveria espago para 0 pensamento critico em meio a tudo isso? A decisio, muitos de voces sabem qual foi. Apesar de minha formagio académica ter sido orientada para a estética, isto €, a investigagdo sobre a obra de arte, ¢ também dire- cionada a questio da verdade, ou seja, se existe algo que possamos chamar de “verdadeiro” — se hé uma verdade absoluta ¢ imuté- vel atravessando todos os tempos; se ela é relativa e contextual, modificando-se e reconstruindo-se hist6rica e socialmente; ou se devemos ceder ao ceticismo e suspender nossos juizos diante da avassaladora variedade de hipéteses, proposices ¢ conclusdes so- bre a realidade ~, acabei me deparando com problemas imediatos, com questdes politicas concretas, com movimentos populistas in- ternacionais, com a ascensio de grupos extremistas de direita pelo mundo, incluindo o Brasil, e a constante ameaca que representam 3s. democracias contemporaneas. Foi um percurso imprevisivel: desde © universo de ideias ¢ teorias filosOficas, atravessando 0 fantistico reino da fic¢do, até que, enfim, cai neste mundo real de pessoas reais com problemas reais. E foi observando problemas palpiveis que afligiam a todos nés, analisando o discurso de diversos agentes politicos ~ candidatos, in- fluenciadores, personalidades, por vezes até académicos e intelec tuais -, que me dediquei a analisar 0 modo como eles defendiam suas posigdes. Notei como frequentemente se muniam de uma ar- gumentagio falha, ou, 0 que me soava ainda pior, deliberadamente desonesta no intuito de convencer os demais. Pois todos nés cometemos erros de raciocinio logico, todos nés in- corremos em inferéncias incorretas, todos nés cometemos algum tipo de fabicias logicas. Na maioria dos casos, fizemos isso por descuido ou desconhecimento; podemos até ser induzidos ao erro por informagées incorretas ou incompletas ou por causa de agentes maliciosos. Alias, 14 uma vasta literatura da Psicologia Cognitiva e Social que lida com ‘COMO VENCER UM DEBATE TENDO RAZKO ‘os numerosos vieses de nossa mente,' isto 6, distorgdes das nossas fa~ culdades mentais que, embora turvem © nosso raciocinio, certamente serviram para nos manter vivos como espécie num mundo hostil ¢ repleto de desafios priticos, consequéncia do longo processo evolutivo de nossa espécie e que nos trouxe até os dias de hoje. Em esséncia, o ser humano nio foi treinado para pensar estrita~ mente de maneira racional e légica. A nossa evolugio (assim como a de qualquer outra espécie de ser vivo) visa, antes e acima de tudo, a nossa sobrevivéncia e a de nossa prole. Na savana africana, diante de uma ameaga, era muito mais importante para os nossos ancestrais sim- plesmente se salvar, fagindo ou lutando, do que ficar divagando sobre profundas questdes filosoficas a respeito da natureza do medo ou do sentido da vida. Portanto, 0 esforso do pensamento racional e da argumentagio logica é, de fato, uma tarefa consciente ¢, com frequéncia, trabalhosa ‘Mas, para que sejamos capazes de conceber ¢ construir um argumento bem elaborado, precisamos aprendé-la, Nao é uma habilidade intuitiva, embora todos sejamos dotados de uma logica natural que nos serve para a maioria das situagSes cotidianas e, desse modo, sermos capazes de reconhecer com relativa facilidade uma argumentagio claramente absurda, Por outro lado, a habilidade para identificar as sutilezas de uma argumentagio errénea ou desonesta acaba por exigir uma boa dose de conhecimento e pritica. E se considerarmos que todos nés, em diferentes momentos do nosso dia a dia, precisamos expressar e defender bem as nossas ideias € pontos de vista, principalmente quando confrontados com posi- ges que nos parecem opostas as nossas (especialmente as que soem 1. Um trabalho espetacular nese sentido ¢ 0 de Daniel Kahneman, em Répido e dev. gua formas de pensar (2012). ApnasenTacho incorretas), conhecer as boas praticas de um debate e saber como evitar erros de raciocinio se tornam competéncias essenciais, Num mundo ideal, tais habilidades de pensamento légico e critico seriam ensinadas nas escolas, para que desde cedo as criangas pudes- sem desenvolver essa capacidade de anilise e de reflexio, este sim um ponto de partida basilar da propria atividade filos6fica. Pois ai se encontra o pilar fundamental do pensamento cieitifico, por exemplo, ¢ da possibilidade de olharmos para © mundo de ma- neira cuidadosa ¢ criteriosa, permitindo-nos acessi-lo ¢ compreendé- -lo sem a venda do dogmatismo ou da irracionalidade. Embora uma grande parte do pensamento filos6fico contempor’- neo tenha empreendido uma verdadeira guerra contra a nogio de racio- nalidade ocidental, que, segundo certas perspectivas, serviria de funda~ ‘mento para incontiveis formas de opressio e exclusio e que, de maneira até inquestionivel, foi de fato uma ferramenta de dominagio e discrimi- nagio, por outro lado, o irracionalismo decorrente dessa rejeigio tam- pouco pareceu nos propiciar qualquer tipo de solucio para os intimeros problemas que nos atormentam.? Além disso, a propria natureza do debate se degenerou para uma forma de disputa ou de confronto. Uma das grandes referéncias usa~ das pela extrema-direita brasileira é a obra do filésofo alemao Arthur Schopenhauer, disponfvel em suas diversas edigdes com os mais varia~ dos titulos, sendo um deles Como vencer um debate sem precsar ter raxio, a partir do titulo mais usual A arte de fer razdo.’ Na obra, Schopenhauer 2. Em sua obra O dlscuno floss da modemidade (2000), Jirgen Habermas reraga 0 percurso desse embate que os fil6sofos modernos ¢ contemporineos da Europa continental empreenderam contra a razio e se esforga para propor uma sada a ese paradoxo de uma critica racional 4 racionalidade por meio de um retorno a0 expi- ‘ito iluminista, sem ignorar suas contradicSes. 3 Texto excita por Schopenhauer em 130 com o ao oxginal Die Kins eh 20 (COMO VENCER UM DERATE TENDO RAZAO expde uma série de recursos ou estratagemas, muitos deles claras falacias égicas, quando nio insultos diretos, que, quando aplicados com maes- tria em um debate, desorientariam ou enganariam seu interlocutor ou a audiéncia, levando, assim, a vitéria. A propria nogdo de vencer ou perder um debate é, em si mesma, bastante problematica, porque encara a discussio como uma espécie de pugilato (ou esgrima) intelectual, uma briga entre dois opositores pata descobrir qual deles € 0 melhor, o mais habil, portanto o mais apto a ser admirado pelos demais. Nem seria preciso explicitar que, ao falar- ‘mos em vit6ria, se subentende que o objetivo primordial de qualquer debate honesto € criterioso se torna automaticamente secundatio. Se a meta for a vitéria, o importante nao ser ter razio de fato, mas sim- plesmente parecer ter raz. E aquele que parece ter razio € 0 extremo oposto daquele que busca, por meio da razio, a verdade das coisas. Um no poderia ser mais diferente do outro. ‘Aqui nos deparamos com um dos grandes problemas que jé assola- vam 08 filésofos atenienses do século 4 a.C. Segundo nos conta Platio, de um lado estavam os pensadores amantes do saber, 0s tais fildsofs, enquanto do outro lado estariam os sofistas, mercendrios do conheci- ‘mento que vendiam seus talentos oratérios para vencer os debates € a disputas nos julgamentos, ou professores pagos para ensinar truques ret6ricos aos filhos da aristocracia. ‘Até onde sabemos, a representagio feita por Platio dos sofistas nao das mais precisas ou honestas, ainda mais se pensarmos que muitos filésofos posteriores da tradigo ocidental talvez se aproxi- ‘assem mais da postura sofistica do que da platdnica.O modo como 4. PLATKo, Protgors, 3136. Tradusiio: Carls Alberto Nunes, Belém: Editora da Uni~ versidade do Pari, 2002: “O sofista, Hipécrates, nfo sera, porventura, uma espécie de mercador, ou trafcante de vitualhas para alimentar a alma? A mim, pelo menos, & 0 que parecem sex” APRESENTAGKO retratamos nossos adversirios para contaminar o que dizem também sera um objeto da nossa ética do debate. De todo modo, 0 livro de Schopenhauer nao é um manual do sofista, ensinando as pessoas a fingirem que sabem o que nio sabem ou a terem razio quando nio tém — ele deixa isso bastante evidente Jogo na introdugio de seu trabalho. Para o flsofo,o problema é ainda ‘mais profundo: geralmente, quando nos envolvemos em um debate, Pensamos ter razio e, 6 a0 longo da discussio, vamos constatando se 4 temos ou néo, Porém, movidos pela vaidade natural do ser humano, mesmo quando nos damos conta de que estamos errados; persistimos com 0 intuito de provar que estamos certos. Ainda assim, & explicito que qualquer um poderia se munir de tais estratagemas para se tornar um “campedo dos debates”, encurralando seu oponente e destruindo-o por meio de brilhantes titicas argumentativas, ‘Mais uma vez, encontramos a clara distingdo entre aqueles que incorrem em erros argumentativos por desconhecimento ou descuido © 0s que maliciosamente se armam de falicias para enganar seu deba- tedor. Nesse segundo sentido, os estratagemas seriam blefes — se 0 de- batedor cair no blefe, eu ganho; endo, reforgo minha posigio e avango ara a proxima jogada. Entretanto, em tese, o debate seria justamente uma busca conjunta pela verdade: um processo por meio do qual cada um dos debatedores exporia suas considerages, claboraria seus argumentos, demonstraria a verdade de suas afirmagdes ¢, com integridade e critétio, estaria disposto a reconhecer seu erro ¢ aceitar a verdade, mesmo se esta for apresentada por um adversério. E isso que se denominou tradicional- mente na filosofia como dialética. O fato € que esse tipo de troca argumentativa raramente se dé ‘no mundo real, em especial quando falamos de questées politicas ou sociais altamente complexas, controversas ¢ com vasta margem para (COMO VENCER UM DERATE TENDO RAZAO intepreta¢io. Talvez se dé, 3s vezes, entre amigos ou colegas, quando, em condigdes bem menos antagénicas, sio capazes de recuar e de fazer concessdes sem se sentirem humilhados. Ou talvez em situagdes priva~ das, quando os debatedores nio estio diante de uma plateia, cimeras ¢ microfones. Talvez este represente o tipo mais puro da dialética: dois participantes numa troca real de informagdes ¢ consideragdes, sem a necessidade de um espezinhar 0 outro ¢ cantar vitéria no final. Contudo, como afirma Schopenhauer, as pessoas so realmente ‘movidas pela vaidade e deslumbradas pelo prestigio. Quem se envolve em debates piiblicos no quer apenas provar que tem razio e derrotar seu interlocutor, mas ser admirado pela plateia. Qualquer debate que se dé diante de um pilico j4 nasce contaminado pelo anseio humano por aceitagao ¢ aplausos. Nesse cenirio, qualquer recuo ou reconhe- cimento de seu proprio erro pode ser interpretado como humilhagio €, consequentemente, como derrota. Somos, desde muito cedo, inculcados de um conjunto de valores, que tende a exaltar 0s vitoriosos, os que atingem o topo, que chegam em primeiro lugar, que tiram as melhores notas — fomos criados numa cultura do acerto. Mas, a0 analisarmos certas areas de atuagio, e até mesmo a propria experiéncia humana, individual e coletiva, no nos surpreende constatar que © nosso aprendizado se dé principalmente através da tentativa e do erro, e boa parte de nosso desenvolvimento existencial acontece na base da superagio de nossos fracassos. Nés somos bichos imperfeitos, que erram e fracassam o tempo todo enquanto louvam 0 acerto e o sucesso, talvez.justamente por serem conquistas excepcionais. Como a norma é a perda, valorizamos de mancira desproporcional o ganho. Mesmo num debate intelectual, qut pertenceria a outro campo de experiéncia ~ o da racionalidade humana —, em vez de aceitarmos © aprendizado por meio de erros e fracassos, também nos sentimos arnesentacho 2 tentados a parecer tet razio, o que acaba por se tornar muito mais vital do que ter razio de fato. Em suma, a tese central de Schopenhauer. Com tudo isso em mente, eis lista das questdes que me atormen- tam e que abordarei nestas paginas: 1. Quando participar de um debate? Como saber se um debatedor esti de fato em busca da verdade? 2. Como reconhecer e estruturar um argumento bem construido? 3. Quais so os estratagemas falaciosos utilizados em debates, de ma- neira intencional ou acidental, e como se defender deles? Se conseguir responder a essas trés indagagdes, acredito que terei prestado um enorme favor, no limite de minhas capacidades, para 0 debate piiblico e, de maneira mais ampla, para a nossa propria cons- trugdo do conhecimento. Por que ser ético? Um dos primeiros problemas da filosofia, ainda na Antiguidade, diz respeito 20 melhor modo de nos comportarmos diante das demais pessoas e mem- bros de nossa comunidade. Os filésofos se perguntavam qual é o comporta- mento correto, 0 que é ser justo, o que € ser bom e como, 20 descobrirmos a resposta para esse tipo de pergunta, utilizar a nossa constatagao a fim de aprimorar a vida coletiva, 5 A ética nada mais é do que um dos campos da filosofia que tém em- preendido essas indagagdes e tentado suprir alguma explicagio. Em sua origem grega, a palavra éthos (00s) significa simplesmente “cariter” ou “natureza moral”, e a ética, também denominada como filosofia moral, seria a investigagio relacionada a essa nossa natureza, COMO VENCER UM DEBATE TENDO RAZAO Tao longo da histori, erés grandes correntes de pensamento ético aca- param se destacando: i - ‘A dvica da virtde, como proposta por Aristteles, sugere que © comp: to moral pode ser ensinado e aprendido; que alguém pode refinar 2 ‘assim como um miisico pode se aperfeigoar em seu das religides, mas tendo instrumento. sua virtude, [A ica do dever 0% deontologia, presente na maioria «9 flésofo alemio Immanuel Kant como seu maximo expoente filos6fico, 5 morais daguilo que é acetivel, luz de explcita deveres ¢regras de condutas moras daguilo que damentos sagrados ou da razlo, em nosss relagdes humanas, As palavas mandamentos sagrados ou . ‘Ame a teu préximo como a ti mesmo” pertenceriam a esa corrente, de Jesus eee © consequencialsme, populatizado por pensacores uilitaristas [Benham e John Stuart Mill, defende que as agdes humanas deve ser avala- dos de acordo com as suas consequéncias, Se 0 resultado for bom,a agio deve set considerada boa. Essas correntes, rest do mesmo problema, mas chegam a respostas distintas (embora smidas acima, e todas as demais vertentes éticas excs- tentes partem nso sejam necessariamente excludentes) sobre quais seriam os melhores {deais ou priticas para o bem viver em sociedade. Por isso, adotar uma postura ética para um debate tacional é © Gnico modo de estabelecermos uma troca intelectual honesta ¢ produtiva, gue gore conhecimento rexguarde a dignidade dos debatedores ¢ aprimore 0 debate pitblico. ApnasenTAGhO 8 Sumario 15. 16. A ética do debate 17 Vencet o debate ou nio? Bis a questio! 19 © que é argumentagio? 23 O que éaverdade? 27 Os perigos do dogmatismo 31 ‘A ética do debate 35 Quem afirma tem de provar 41 O debate assimétrico nas redes sociais 45 ‘A natureza do debate piblico st . Quando o debate pode prejudicar a sociedade 55 As falicias logicas 63 . © que sio falicias logicas? 65 . Falicias que violam o critério da relevincia 73 Falicias que violam o critério da aceitabilidade 95, . Falicias que violam o eritério de suficiéncia 107 . Falicias que violam o critério da refutagio 127 O debate real 139 A hhierarquia da argumentagio 14 Como se di o debate real 147 Referéncias 153 A ética do debate PARTEI 1. Vencer o debate ou n4o? Eis a questao! Eu me recordo de um tempo ~ alias, nio muito distante ~ quando ainda era possivel se sentar 3 mesa com alguém de quem discordasse- ‘mos em praticamente tudo e, mesmo assim, ter uma conversa racional € aprendermos um com 0 outro. Isso se chama didlogo. Numa época de polarizacio ideol6gica ¢ politica, como ja se sucedeu em outros periodos histdricos, a pritica acaba sendo substituida por acusagdes e ofensas, o que fatalmente ter~ ‘mina por vetar qualquer tipo de troca intelectual genuina entre duas ‘ou mais pessoas. Diilogos no sio necessariamente debates. Um diélogo nao pre- cisa nem sequer ser amistoso, j que, mesmo entre amigos, temas mais espinhosos podem inflamar os animos. No entanto, um didlogo pressupde pelo menos dois interlocutores, cada um expressando suas ideias quando Ihe é cedida a palavra, Mesmo quando é movido mais pelas paixdes, um didlogo pressupée igualdade moral entre as pes- soas; ambas fazem parte de uma atividade tipicamente humana e social, que envolve a criagio de lacos ¢ o aprimoramento de relagdes, 9 20 embora também possa levar 4 sua corrosio, uma vez que a comuni- ca¢ao é um profuso manancial de mal-entendidos. Na filosofia, a forma do didlogo foi utilizada magistralmente por Plato como um recurso pedagégico sobre como ele compreendia, sendo um bom discfpulo de Sécrates, a maneira pela qual se dava a busca pela verdade. Dois ou mais personagens se deparavam com indagagSes monumentais ¢, guiados por Sécrates, navegavam por um ‘mar de incertezas, constantemente sendo fustigados pelas perguntas ou consideragdes perturbadoras que o fil6sofo thes dirigia. Ji muito cedo na historia da filosofia, os pensadotes compréen- deram que 0 percurso das ideias ~ aqui vou me recusar 4 falsa ¢ facil nogio de progresso — ocorria justamente nesse embate entre posi¢des diferentes, naquilo que chamaremos de debate, ou, para sermos mais Precisos, de dialética, a busca consciente, por intermédio da argumen- taco racional, da verdade sobre determinado tépico. Pois um debate é justamente isto: ideias e posigdes em disput Entio, imagine dois amigos sentados a mesa de um bar discutindo assuntos altamente controversos e para os quais a maioria de nés nio tem uma resposta satisfatoriamente definitiva: aborto, pena de morte, eutandsia, vida apés a morte, a existéncia de Deus (ou deuses), se so- mos livres ou nao, o que é a justiga ou a verdade, ou seja, perguntas ue assolaram pensadores desde tempos imemoriais e que continuario a set objeto de impasse no futuro. Um dos amigos adota uma posigio; © outro, a contriria; e cada um, reunindo os argumentos que Ihes Parecem os mais coerentes ¢ fatuais possiveis, emitem seus vereditos, © objetivo de um debate désses € 0 convencimento do outro, partindo, obviamente, da crenga de que eu tenho a tazio quando se trata deste assunto em particular, de que eu sei qual é a verdade ou, pelo menos, de que eu tenho elementos convincentes o suficiente ara poder afirmar que meu veredito € o mais préximo da verdade A 11CA DO DenaTE 4 qual podemos chegar neste momento. Mas a outra parte est con- vencida da mesma coisa. ‘Vemos, portanto, que 0 grande desafio de um debate como esse & provar que 0 outro esti errado a partir de duas taticas principais: 1. Demonstrar que as premissas e/ou a conclusio da outra pessoa estio erradas, isto 6, sio falsas. 2. Provar que a argumentagio do interlocutor é falha, ou seja, que a conclusio nio se segue das premissas.’ No primeiro caso, precisamos nos concentrar nas provas ou evi- déncias apresentadas como base para as premissas ou para a conclusio. Por exemplo, alguém afirma que, com base em certos estudos, temos fortes indicios de que a pena capital reduz crimes hediondos. Cabe a0 debatedor questionar a validade de tais estudos (possivelmente apre- sentando outros que nio estabelegam os mesmos indicios), ou mesmo pér em diivida se hé algum tipo de relagio causal, isto 6 se podemos concluir que a redugio dos crimes hediondos nio pode ser conse- quéncia de outras causas que nio tenham nenhuma relagio com a pena de morte. ‘Ja no segundo caso, a diivida ni se volta para a verdade ou falsi~ dade da afirmagio a respeito da redugio dos crimes, mas sim para a composi¢io do argumento, se a conclusio (a redugio dos crimes) se segue da puni¢io (pena capital). Mesmo sendo uma disputa de ideias, um debate no é, nem pre cisa ser, uma briga para estabelecer quem é superior, entio a propria nogio de “vencer um debate” é por si s6 bastante bizarra, pois teria como objetivo implicito derrotar o outrd, independentemente de 5. Na L6gica, chamado de non sequitur, ou seja, no se segue. VENCER 0 DEBATE OU NAO? EIS A QUESTKO! terem avangado rumo a apreensio da verdade. Portanto, se vocé es— tiver se deparando com um debate cuja finalidade explicita é saber quem venceu ou perdeu, saiba que é uma cilada. A vitéria num debate deveria ser sempre compreendida como ‘uma vitéria coletiva, na qual as duas ou mais partes envolvidas saem aprimoradas, avangando rumo a um entendimento mais preciso so- bre o mundo. E, se houver um piblico, que ele também fique com a sensagio de que houve algum avango em relagio ao tema em questio, mesino que signifique o reconhecimento de que nao ha uma resposta conclusiva no momento. O debate nio é como um esporte compe- titivo, no qual vocé tem um claro vencedor, que é coroado com os louros da conquista. Num debate, se a vitéria nio for de todos, é por- que todos, incluindo 0 proprio ato de debater, acabaram perdendo. A ET1CA Do DEBATE 2, O que é argumentagao? Se um debate é uma troca de ideias em dirego A verdade, nem tudo 0 que falamos serve como argument. Um insulto, por exemplo, ndo & um argumento, embora seja considerado um ataque & pessoa, em vez de um confronto fs ideias da pessoa Uma descrigio, isto é,a apresentagio de certas caracterfsticas ou elementos de um cendrio ou de um individuo tampouco € um ar- gumento. A narragio ou o relato de uma histéria também nio é um argumento, nem dislogos; embora possam servir para enriquecer ou esclarecer um argumento, atuam s6 como recursos retéricos. Entio, o que é um argumento? ‘Argumento € toda aquela construgio de ideias que visa defender ‘uma posi¢io composta de premissas e de pelo menos uma conclusio. Para dar um exemplo, veja o silogismo mais clissico da légica. ‘Todo homem é mortal. Socrates é homem, Logo, Sécrates é mortal 23 4 Nese argumento, hé duas premissas: todo homem é mortal e Sé- crates é homem., E uma conclusio: Sécrates é mortal. Premissa 1:Todo homem é mortal. Premissa 2: Socrates é homem., Conctus: Logo, Sécrates € mortal Porém, em geral, nos debates reais, naquilo que chamariamos de logica informal, raramente — ou melhor, quase nunca — veremos uma estrutura tio rigorosa e sistemitica. Em nossas conversas cotidianas, incluindo quando argumentamos em defesa de alguma ideia, o modo como organizamos as nossas proposi¢des pode ser extremamente de- sordenado, tornando-se bastante dificil identificar suas partes. Vejamos um exemplo de argumentagio informal, de uma conversa ficticia entre um casal planejando suas proximas ferias: Marido:“Fard muito calor no més que vem.Vi um meteorologista na Tv dizendo que este seri o ano mais quente da histéria, quebrando todos os, recordes. Deveriamos ir para um lugar fresco, talvez pra serra”. Esposa:“Eu acho que devemos ir praia, assim poderemos nos reffescar ‘no mar. Além de jé termos onde ficar, pois a casa dos meus pais estar vazia. Sairé bem mais em conta”, Neste exemplo, o marido apresenta uma premissa: fard muito calor no préximo més, afitmagio respaldada por um argumento de autori- dade, o meteorologista, que funciona como uma subpremissa, isto & uma premissa de apoio & premissa principal. A partir disso, ele conclui que deveriam ir a um local mais fresco, nesse caso, para a serra. A esposa nio contesta a premissa do marido, talvez porque tam- bém tenha visto 0 mesmo meteorologista na TV ou nio tenha as A f11ca Do ERATE informagdes necessirias para contesté-la, quem sabe outra autori- dade apresentando um cenirio distinto. No entanto, a conclusio da esposa a partir da mesma premissa é diferente. Ela prefere ir a praia ¢ apresenta duas novas premissas para sustentar sua conclusio: podem se refiescar no mar ¢ sairi mais barato, pois terdo onde se hospedar. O diilogo poderia prosseguir com novas premissas sendo elabora- das até que um dos dois fizesse uma concessio e aceitasse a conclustio do outro, ou até que chegassem a um impasse, quando nenhum abre mio do proposto, ou pensassem juntos numa terceira alternativa sa~ tisfat6ria para ambos. Apesar de pensarmos num debate como um confronto de ideias ele- vadas e que podem solucionar grandes problemas da humanidade, o fato 6 que, na maioria dos casos, a argumentagio se di em ocasiées bastante tiviais, quando temos um adolescente tentando convencer sua mie a deixdlo voltar mais tarde da balada, sobre qual melhor rota devemos pegar para evitar um congestionamento, sobre a que restaurante iremos no sibado 4 noite ou sobre qual série assstiremos no fim de semana. Vale lembrar, no entanto, que a argumentagio racional é diferente de juizo de gosto. Se alguém disser“Quero ver 0 novo filme da Mar- vel porque gosto muito dos personagens” ou “Gostei bastante desta blusa porque verde combina com vocé”, nao se trata de argumentacio, pois a conclusio no se segue de premissas que possam ser verificadas, como verdadeiras ou falsas no mundo real. Que alguém goste de certa coisa, ou a ache bonita, é 0 tipo de julgamento bastante individual e que nio tem a pretensio de ser um critério absoluto de verdade e que deva servir como referencial para todas as demais pessoas.® Se voc8 curte pizza de calabresa, nio significa 6. Na verdade, hi todo um campo de investigacZo na filosofia em constante debate a respeito do tema, a estética, sobre se & possivel fazer juizos universais em re: 4 beleza ou determinar crtérios que nos permitam avaliar © que € uma obra de arte, © que # ancumetachor 35 26 que todo mundo também deva gostar. Se vocé acha Picasso o melhor pintor de todos os tempos, ninguém é obrigado a concordar com vocé, embora duas das obras do artista estejam entre as vinte mais valiosas do mundo hoje ~ mas este ndo é um argumento vilido para justificar mérito artistico. No entanto, quando vocé argumenta sobre um assunto como a des~ criminalizago do aborto, porte de armas ou legalizacio da maconha, trata-se de posturas que nio afetam apenas a sua vida, mas a dos demais participantes da sociedade cm que vocé vive. Nesse sentido, esti defen dendo nogdes que nao valem apenas para o modo como vocé entende a realidade e deseja reger sua propria existéncia, mas que devem servir para persuadir os demais de que sio verdadeiras e, por isso, também devem servir como normas sociais. ‘Veja que mesmo a discussio do casal sobre onde passari as férias também esti pautada na tentativa de convencer outro sujeito racional com base na forga dos argumentos, ¢ no apenas porque um prefere ir, por gosto pessoal, para a serra ou para a praia. Portanto, argumentagio é toda aquela sustentagio verbal de defesa de uma posicao, podendo ocorrer tanto num profundo debate filo~ s6fico como numa decisio doméstica trivial, seja ela sobre trocar ou no 0 carro, seja ela sobre comprar um cachorro. e,como se pode imaginar, até o momento nio hi nenhuma conclusio defintiva ‘ou consensual sobre o assunto, 3. O que é a verdade? Como dissemos, ha uma vasta discussio na filosofia sobre a questo da verdade. O que 6, afinal, a verdade? Existe uma verdade ou nio? Se existe, podemos acessi-la? A propria nogao de verdade ¢ um tipo de regime de dominagio opressio? H4 muitas outras indagagdes a respeito da natureza da nossa relagio com a possibilidade de conhe- cermos a realidade tal qual ela é.Assim como se d com outros temas de debate na filosofia, estamos longe de haver encontrado qualquer tipo de consenso ou de encerramento da questio. No entanto, quando falamos de argumentacio logica, mesmo em_ situagdes cotidianas e triviais, partimos, ainda que inconscientemente, de um pressuposto: existe uma posigio racional, que normalmente entendemos como a mais proxima de uma verdade possivel, Isso quer dizer que, uma vez que nos empenhamos num debate, estamos concordando com algumas regras,sendo que a principal delas &a de que a nossa argumentacio faca sentido para quem nos ouve, ou pelos menos aparente fazer, ou seja, se nao for, a0 menos deve parecer ser racional. 4 28 E essa nogio de racionalidade, que perpassa boa parte da propria histéria da filosofia, desempenhando um papel crucial nos sistemas de Pensamento modernos, tem como ponto de origem certos principios elementares. ‘Um desses principios € o da nao contradiio, segundo 0 qual duas afirmages contradit6rias ndo podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Um exemplo seria que “o homem esté morto” e “o homem nio esta motto” ndo podem ser verdadeiras 20 mesmo tempo. Se uma for ver~ dadeira, a outra serd necessariamente falsa, como dita outro desses prin-

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