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LINGUAGEM ACADÊMICA

Dossiê: Direito e suas interfaces


Grupo de Estudos em Direito, Justiça e Desenvolvimento (GEDED)
Revista Científica do Claretiano – Centro Universitário
Reitoria / Rectorate
Reitor: Prof. Dr. Pe. Sérgio Ibanor Piva
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Informações Gerais / General Information


Periodicidade: semestral
Número de páginas: 194 páginas
Número de artigos: 9 artigos neste volume
Mancha/Formato: 11,3 x 18 cm / 15 x 21 cm

Os artigos são de inteira responsabilidade de seus autores.


ISSN 2237-2318

LINGUAGEM ACADÊMICA
Dossiê: Direito e suas interfaces
Grupo de Estudos em Direito, Justiça e Desenvolvimento (GEDED)
Revista Científica do Claretiano – Centro Universitário

jul./dez.
Linguagem Acadêmica Batatais v. 12 n. 2 p. 1-194
2022
© 2022 Ação Educacional Claretiana

Equipe editorial / Editorial team


Editor responsável: Prof. Me. Rafael Menari Archanjo

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Prof. Dr. Everton Luís Sanches e Prof. Me. Tulio Pires de Carvalho

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Linguagem acadêmica : dossiê direito e suas interfaces : revista científica


do Claretiano – Centro Universitário – v.7, n.5, jul./dez. 2022) -. – Batatais, SP :
Claretiano, 2022.
194 p.

Semestral.
ISSN: 2237-2318

1. Educação - Periódicos. I. Linguagem acadêmica : revista científica do Claretiano


- Centro Universitário.

DORIS 340

Os trabalhos publicados nesta Revista são de inteira responsabilidade dos seus autores, não refletindo
necessariamente a opinião do Claretiano – Centro Universitário, do Conselho Editorial ou da
Coordenadoria Geral de Pesquisa e Iniciação Científica.
Sumário / Contents
Editorial / Editor’s note

ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL PAPER

Análise da psicopatia e das implicações jurídicas do diagnóstico:


os desafios da norma diante da imprecisão do conceito
Analysis of psychopathy and the legal implications of the diagnosis: the
challenges of the norm in the face of imprecision of the concept

Política de língua, globalização e diversidade linguística


Language policy, globalization and linguistic diversity

Esperança Garcia: uma presença feminina no Direito


Esperança Garcia: a female presence in Law

Criminalização das drogas no Brasil: validação da Lei


11.343/2006 sob o olhar de Norberto Bobbio
Drugs criminalization in Brazil: validation of the Act 11.343/2006 by
Norberto Bobbio

A imposição do Código Penal de 1890 e as tendências penais no


início da República
The imposition of the Penal Code of 1890 and the penal tendencies in
the beginning of the Republic

A garantia fundamental ao uso moderado dos meios necessários


para defender direito próprio ou de terceiro em face de injusta
agressão, atual ou iminente, com fulcro na constitucionalização do
Direito Penal
The fundamental guarantee for the moderate use of the means
necessary to defend one’s own or third party’s rights in the face
of unfair aggression, current or imminent, with a focus on the
constitutionalization of criminal law
O princípio da identidade física do juiz na seara processual penal
The principle of the judge’s physical identity in the criminal procedural
field

Políticas ambientais e participação social: os arranjos


participativos sob a perspectiva de efetividade
Environmental policies and social participation: the participatory
mechanisms and the effectiveness

Urbanismo, meio ambiente e a perturbação do sossego público


Urban planning, environment and public nuisance

Política Editorial / Editorial Policy


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Editorial / Editor’s note

Os últimos anos foram cruciais para todas as áreas de estudo,


envolvendo os desafios compartilhados por toda a comunidade
acadêmica diante da crise da saúde, acompanhada das demais crises
econômica e social que foram subsequentes e das expectativas de
que novas crises pudessem vir.
O Direito enquanto área crucial para os processos de
organização das balizas que orientam o atendimento de antigas e
novas demandas, assim como enquanto participante do processo
regulatório para assegurar a promoção da justiça e da democracia
do Estado, tem cumprido importante papel, exigindo de estudantes
e profissionais da área atenção redobrada para antigos e novos
temas de pesquisa.
Nesse sentido, o Grupo de Estudos de Direito, Justiça e
Desenvolvimento (GEDED) tem se empenhado em promover
debates entre professores e alunos sobre os mais variados temas,
relacionando a sua relevância no âmbito da atuação do operador do
Direito que estiver voltado para o pleno atendimento da sociedade
no que tange ao sistema de justiça. Desse esforço conjunto, que
envolveu professores e alunos do Claretiano – Centro Universitário,
resultou o presente Dossiê Direito e Suas Interfaces, abarcando
alguns dos diversos temas abordados e referendando a produção
efetiva do grupo.
O Curso de Graduação em Direito do Claretiano – Centro
Universitário teve início nos anos 2000, na Unidade de Rio Claro.
Em 2018, teve início no município de Batatais e, recentemente, no
primeiro semestre de 2022, foram abertas as vagas em Boa Vista,
estado de Roraima. Em sua gênese, o curso pautou-se na formação
integral do aluno, visando não somente colher os resultados de
aprovação em exame de Ordem, ENADE ou concurso público.
Sobremodo, visou-se à formação de operadores do Direito com
espírito ético, crítico e reflexivo, preparando-os para a resolução

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pacífica de conflitos, bem como para o atendimento das questões


contemporâneas de natureza plural e diversificada, visando à
construção de uma sociedade aberta, mais justa, sustentável e
igualitária.
Nesta seara, a criação e o desenvolvimento de um grupo
de pesquisa com ênfase no Direito pelo Claretiano, tal como o
GEDED, não deixam de ser, paradoxalmente, multidisciplinares,
haja vista que efetivam o diálogo com as variadas fontes, ciências,
graduações, instituições e atores sociais, que constituem um rico
acervo direcionado à pesquisa. Na mesma linha, enfatizam a
valorização da pessoa humana. Esta ambiência faz emergir entre
os alunos e professores a criação de uma verdadeira identidade
de pesquisa, no sentido de que promove cada vez mais, dentro do
grupo, o surgimento de trabalhos densos, múltiplos e, sobremaneira,
universais em seu contexto acadêmico.
Diante desta maturação pedagógica, ainda que incipiente
perante a amplitude e magnitude de todo o rol de pesquisa presente no
país, coadunam-se os artigos deste dossiê, propiciando discussões,
reflexões, outrossim, o amplo debate, típico do viés jurídico, multi
e interdisciplinar, certamente inerentes à preservação e contínua
construção de um Estado Democrático de Direito.
Todos aqueles que tomarem contato com as discussões aqui
propostas terão, sem dúvida, a oportunidade de fazer parte dessa
rede de reflexão que privilegia a busca do bem-estar coletivo.
Ótima leitura!

Prof. Dr. Everton Luís Sanches


Líder do Grupo de Estudos de Direito, Justiça e Desenvolvimento
Editor da Revista Educação

Prof. Ms. Tulio Pires de Carvalho


Líder do Grupo de Estudos de Direito, Justiça e Desenvolvimento
Coordenador do curso de Direito do Claretiano Centro Universitário - Batatais-SP.

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Análise da psicopatia e das implicações


jurídicas do diagnóstico: os desafios da norma
diante da imprecisão do conceito

Everton Luís SANCHES1


Lilian Paula Degobbi BERGAMO2
Resumo: A psicopatia integra a vida e o imaginário da atualidade de maneira
intensa, porém multifacetada, em discursos ficcionais, como filmes e seriados,
e nas análises produzidas por pesquisadores da área. O psicopata, todavia,
também cria uma narrativa ficcional, própria de sua condição, não estabelecendo
os vínculos que o integrariam à sociedade de maneira saudável. Nesse ínterim,
existem normas jurídicas que pretendem alinhar os discursos em torno da
identificação e da imputabilidade do psicopata, tendo em vista seu possível alto
grau de letalidade no convívio social. Não bastassem tais complicadores no
enfrentamento da psicopatia e de suas consequências para a sociedade, há ainda
dilemas éticos envolvidos na dinâmica de funcionamento da própria sociedade:
algumas das principais características que identificam um psicopata são
amplamente requisitadas e consideradas indispensáveis para a atuação de certos
profissionais que são comprometidos com o desempenho financeiro de grandes
corporações. Posto isso, o presente artigo faz um breve relato da discussão e
análise bibliográfica referente a tal problemática que foi realizada durante os
encontros de 2021 do Grupo de Estudos em Direito, Justiça e Desenvolvimento
(GEDED) do Claretiano – Centro Universitário.

Palavras-chave: Psicopatia. Ficção. Direito.

1
Everton Luís Sanches. Pós-doutorado em História e Cultura pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Doutor e Mestre em História e Cultura Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Bacharel e licenciado em História Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Docente e líder do Grupo de Estudos em Direito, Justiça
e Desenvolvimento (GEDED) do Claretiano – Centro Universitário. Terapeuta Sistêmico/Constelação
Familiar. E-mail: everton_sanches@hotmail.com.br.
2
Lilian Paula Degobbi Bergamo. Doutora e Mestra em Ciências, área Psicologia pela Universidade
de São Paulo (USP). Bacharela em Psicologia pela Universidade Paulista (UNIP). Integrante do
Grupo de Estudos em Direito, Justiça e Desenvolvimento (GEDED) e Docente do Claretiano – Centro
Universitário. E-mail: lilianbergamo.claretiano@gmail.com

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Analysis of psychopathy and the legal


implications of the diagnosis: the challenges
of the norm in the face of imprecision of the
concept

Everton Luís SANCHES


Lilian Paula D. BERGAMO
Abstract: Psychopathy integrates the life and imagery of today in an intense,
yet multifaceted way in fictional discourses, such as movies and TV series, and
in the analyses produced by researchers in the field. The psychopath, however,
also creates a fictional narrative, proper of his condition, not establishing the
bonds that would integrate him to society in a healthy way. Meanwhile, there
are legal norms that intend to align the discourses around the identification and
imputability of the psychopath, in view of his possible high degree of lethality
in social coexistence. As if these complications in dealing with psychopathy and
its consequences for society were not enough, there are also ethical dilemmas
involved in the dynamics of the functioning of society itself: some of the main
characteristics that identify a psychopath are widely requested and considered
indispensable for the performance of certain professionals who are committed
to the financial performance of large corporations. Having said that, the present
article is a brief report of the discussion and bibliographic analysis regarding
such problematic that was carried out during the 2021 meetings of the Grupo de
Estudos em Direito, Justiça e Desenvolvimento (GEDED) of Claretiano – Centro
Universitário.

Keywords: Psychopathy. Fiction. Law.

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1.  INTRODUÇÃO

A partir da análise do artigo de Geoff Hamilton (2008) “Mythos


and mental illness: psychopathy, fantasy, and contemporary moral
life”, conjuntamente com outros estudos que abarcam o tema da
psicopatia e que foram abordados durante os trabalhos de 2021
do Grupo de Estudos em Direito, Justiça e Desenvolvimento
(GEDED), é proposta uma apreciação de alguns dilemas ainda
em debate quanto à psicopatia e ao tratamento que é dado ao
tema pela sociedade, seja no campo das normas propostas pelo
direito, seja em relação à compreensão que o discurso ficcional
estimula a esse respeito – ou ainda à compreensão ficcional traçada
pelo próprio psicopata. Considerou-se também a ausência de
critérios diagnósticos claros quanto ao fenômeno na infância e na
adolescência, o que não contribui para a prevenção do aparecimento
desse transtorno, posteriormente, na vida adulta.
Tem-se em vista, nesse debate, as dificuldades vivenciadas
na sociedade atual, em que alguns modelos de conduta profissional
desejados pelas empresas promovem comportamentos considerados
comuns entre psicopatas, como a apatia e o foco unívoco em
objetivos individuais que desconsideram os seus desdobramentos
para o outro. Tal contexto, no limite, leva à geração de “esconderijos”
para aqueles que possuam a psicopatia.
De acordo com Hamilton (2008), algumas características
que identificam um psicopata também são pré-requisitos para o
trabalho de CEO, pois ambos fazem uma encenação para tornarem-
se aceitáveis – e, no caso do CEO, convencer a empresa a empregá-
lo. Todavia, eles são diferentes em alguns elementos: no contexto
corporativo, é desejável que o CEO seja um camaleão, predador
e venenoso, mas não se deve levar isso a cabo o tempo todo, pois
isso o tornaria um psicopata. Tal fragmentação da compreensão e
dos papéis sociais permite um arranjo considerado esquizofrênico
pelo autor, em que o sujeito deve ser uma boa pessoa em alguns
contextos e um tirano implacável em outros.

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A fragmentação da compreensão e dos papéis sociais é


considerada comum ao contexto contemporâneo, devido à dinâmica
de globalização da economia. Tornou-se uma exigência adaptar-se
aos mais diversos contextos, não se fixar em um local ou ideário e,
diante disso, não se prender também às relações interpessoais. Uma
mudança nas estruturas de funcionamento do mercado, uma crise
de qualquer natureza (ambiental, econômica, política, sanitária
etc.) obriga a mobilidade física tanto dos aspectos fundamentais da
formação profissional, quanto do exercício do próprio trabalho e das
relações sociais. As convicções pessoais precisam ser adaptadas a
contextos sempre mutantes. Assim, os significados mudam o tempo
todo, tal como os compromissos com a sociedade e o entorno em
que se vive são regulados de maneira volátil diante das oscilações
vindas, muitas vezes, do outro lado do mundo. O sociólogo Bauman
(1999, p. 9) adverte:
Questionar as premissas supostamente inquestionáveis
do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais
urgente que devemos prestar aos nossos companheiros
humanos e a nós mesmos.
Tendo em vista as fragilidades de nosso modo de vida e
as dificuldades de estabelecer significado diante das oscilações,
fica mais fácil entender como a disposição do psicopata a não se
comprometer senão com seus interesses obscuros pode se tornar um
fator de destaque para a sua contratação em uma grande empresa.
Nesse sentido, podemos investigar o psicopata e sua patologia
diante da necessidade da atualidade – ou, ainda, se não é apenas
o psicopata, mas a própria sociedade que está doente, sendo ele (o
psicopata) a representação mais severa de um mal compartilhado.

2.  PSICOPATA, PSICOPATIA E MODERNIDADE


LÍQUIDA

Para tratar do tema da psicopatia na atualidade, partimos da


compreensão do contexto tomando o conceito de modernidade
líquida, de Zigmunt Bauman (2001). De acordo com ele, o período
de dissolução das utopias sociais da modernidade – também

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identificado por outros autores como pós-modernidade – impõe a


necessidade constante de adaptação às condições voláteis e pouco
duradouras. Com isso, as pessoas são levadas a se comportar como
os líquidos, que assumem a forma do recipiente que os contêm.
Nesse cenário, nenhuma certeza resiste ao jugo do tempo, pois o
ritmo da vida é alterado constantemente para dar lugar a novos
hábitos, compreensões e tecnologias.
Ser moderno passou a significar, como significa hoje em
dia, ser incapaz de parar e ainda menos de ficar parado.
[...] A consumação está sempre no futuro, e os objetivos
perdem sua atração e potencial de satisfação no momento
de sua realização, se não antes. Ser moderno significa estar
sempre a frente de si mesmo, num estado de constante
transgressão [...]; também significa ter uma identidade que
só pode existir como projeto não-realizado (BAUMAN,
2001, p. 37).
O ser humano, uma vez condenado ao constante movimento,
é impulsionado a um processo de adaptação constante, que não
constitui um ordenamento de seus valores humanizadores ou de
construção de sentido para as relações humanas. De acordo com
Bauman (1999, p. 6-7):
Os centros de produção de significado e valor são hoje
extraterritoriais e emancipados de restrições locais — o
que não se aplica, porém, à condição humana, à qual esses
valores e significados devem informar e dar sentido.
Isso equivale a dizer que os compromissos locais de satisfação
de necessidades cotidianas, compartilhadas por grupos humanos que
interagem entre si, envolvem o indivíduo numa cadeia de eventos
que permitem a significação de suas ações e comunicam sentido
para a sua vida. Porém, na medida em que a globalização estabeleceu
uma dinâmica econômica em que as tendências atitudinais e os
padrões de consumo são definidos fora da localidade, o indivíduo
vê-se esvaziado: suas ações apenas tentam satisfazer valores que
não lhe pertencem e que nunca são atendidos plenamente, uma vez
que mudam constantemente, antes mesmo de sua realização plena.
Nesse contexto desagregador, orientado pela dinâmica de
mercado e pelas tendências geradas diante das suas oscilações, o
profissional considerado qualificado para determinados cargos de

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liderança – o de CEO, por exemplo – não deve ter compromissos


com a localidade, nem com as pessoas, mantendo preservados os
interesses da empresa. Essa falta de empatia com as pessoas e a
fixação de um objetivo que apenas atende aos interesses próprios
são atitudes que coincidem com a postura de um psicopata. A esse
respeito, analisando a obra de Hamilton (2008), para fins didáticos,
compomos um esquema explicativo sobre como ele aborda a
definição de psicopatia, a atitude do psicopata e a dificuldade de
identificar quem é a pessoa saudável e o psicopata no ambiente de
trabalho.
Figura 1. Esquema explicativo sobre a abordagem de Hamilton
(2008).

Fonte: elaborado pelos autores.


Fonte: elaborado pelos autores.

A
A definição
definição dede psicopatia
psicopatia ééproduzida
produzidaconforme
conformeo ométodo
método
científico, analisando dessa maneira também a narrativa
científico, analisando dessa maneira também a narrativa fantástica fantástica
composta pelo discurso ficcional; este último, por sua vez,
composta elementos
incorpora pelo discurso ficcional;
das análises este último,
científicas para dar porveracidade
sua vez, à
narrativa e cativar seu público, criando exemplos “ideais” do que é
aincorpora elementos
psicopatia e daquilodasqueanálises
poderiacientíficas para dar veracidade
levar um indivíduo à
a desenvolvê-
la, descrevendo,
narrativa e cativarpor
seuesses meios,
público, a atitude
criando do psicopata.
exemplos “ideais”Adoatitude
que
do psicopata, considerando a análise realizada por Hamilton (2008),
éé carregada
a psicopatia e daquilo
de métodos que poderia racionais:
e procedimentos levar um deindivíduo a
modo geral,
odesenvolvê-la,
psicopata é meticuloso e constrói
descrevendo, por uma
essesnarrativa
meios, fantástica
a atitudedentro
do
da qual se insere no lugar que é desejado, assumindo um papel e
psicopata. A outras
estimulando atitudepessoas
do psicopata, considerando
a assumir suas funçõesa análise
dentrorealizada
do enredo
que está sendo construído. Para sair ileso, é necessário que alguém
por Hamilton
assuma o papel(2008), é carregada
de “bode de métodos
expiatório”, e que hajae procedimentos
instituições que
racionais: de modo geral, o psicopata é meticuloso e constrói uma
narrativaRevista
fantástica
Linguagemdentro daBatatais,
Acadêmica, qualv. 12,
se n.insere
2, p. 9-25,no lugar
jul./dez. 2022 que é
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reconheçam a culpabilidade e punam aquele(a) escolhido(a) para


assumir as responsabilidades sobre os atos ilícitos.
O que pode confundir a compreensão sobre o tema é que
todo esse trânsito entre ficção, ciência e vida em sociedade pode
ser realizado também por pessoas saudáveis que se perderam
no contexto da produção de informações ficcionais e científicas
amplamente divulgadas pelas tecnologias de informação e
comunicação, especialmente quando tal difusão de informações é
acompanhada de afirmação de interesses políticos. A manipulação
das informações com uso de recursos de edição e o apelo do
audiovisual com “[...] técnicas para suavizar emotivamente as
mensagens, com o propósito de causar uma espécie de curto-
circuito no senso crítico e analítico dos cidadãos” (ZARZALEJOS,
2017, p. 11) pode complicar ainda mais o quadro exposto.
A confusão sobre a realidade, a gestão de manobra
conspiratórias para incitar o receio ou a hostilidade de
grupos sociais, a vitimização ou as mitomanias políticas
são instrumentos de persuasão das massas que remontam
à antiguidade, mas que no século XX causaram os piores
desastres, sendo, dois deles, autênticas falhas na história da
humanidade: o nazismo e o estalinismo (ZARZALEJOS,
2017, p. 11-12).

Contudo, pressupõe-se que a pessoa saudável estabelece


predominantemente a empatia, e a pessoa adoecida têm predomínio
da apatia.
Do ponto de vista institucional, o local privilegiado para um
psicopata se esconder são grandes empresas, exercendo a função de
CEO. Encontrar um psicopata nesse contexto torna-se uma tarefa
muito difícil, mesmo porque algumas características da psicopatia
figuram como pré-requisitos na contratação de um CEO. Ambos
fazem uma encenação para tornarem-se aceitáveis e convencerem a
instituição a empregá-los, sendo apenas diferentes alguns elementos
da encenação. Já o CEO que é uma pessoa saudável está exposto a
uma situação que caracteriza o dilema de um esquizofrênico, pois

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não há conexão entre as suas metas e funções e os códigos éticos


defendidos em sua vida pessoal – ou muitas vezes pela própria
empresa. Há uma fragmentação da compreensão, de modo, que
no contexto corporativo, é desejável ser um camaleão, predador
e venenoso, mas não levar isso a cabo o tempo todo, pois isso o
tornaria um psicopata. Contudo, esse é um arranjo que poderia
definir o quadro da esquizofrenia (HAMILTON, 2008).
Uma das questões cruciais diante do exposto é que uma
pessoa saudável mantém laços fortes com a sociedade, mesmo
vivendo o paradoxo da sociedade moderna, a qual definiu o seu
lema de liberdade como a escolha do indivíduo – escolha essa que
permite, inclusive, abarcar quanto e quais serão os seus laços reais
e ficcionais com a sociedade.
Então, o que diferencia um psicopata de uma pessoa saudável?
No bojo das discussões, traçamos que é preciso considerar como
ocorre o desenvolvimento desse fenômeno para articular esse
complexo e inconcluso debate.

3.  A PSICOPATIA: DILEMAS RELACIONADOS AO


CONSTRUCTO, À ETIOLOGIA E EVOLUÇÃO DO
FENÔMENO AO LONGO DO TEMPO

Como dito anteriormente, a extrema falta de empatia é uma das


características mais marcantes da psicopatia, e é nesse sentido que
a discussão se desenvolverá neste tópico. No contexto do GEDED
(Grupo de Estudos em Direito, Justiça e Desenvolvimento), também
foi discutido o artigo de Martens (2001), “The hidden suffering of
the psychopath”, o qual nos apresenta algumas características ou
sintomas da psicopatia comuns aos indivíduos com esse transtorno
de personalidade: charme ou encanto superficial e boa inteligência,
egocentrismo patológico, falta de remorso/culpa, falta de
aprendizagem pela experiência, mentira patológica, incapacidade
de estabelecer vínculos afetivos, manipulação, entre outras. Todas
essas características apresentam o indivíduo com psicopatia como
um ser insensível, incapaz de demonstrar empatia, o que nos leva

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ao questionamento: os indivíduos com diagnóstico de psicopatia


apresentariam uma completa falta de empatia?
Para responder a tal questionamento e a outros, uma busca
bibliográfica foi realizada, apontando, de forma geral, que os
estudos corroboram a ideia de que a psicopatia deve ser pensada
em termos de níveis ou graus.
Porém, antes de nos atentarmos a essa questão, devemos ter
clareza no tocante à diferenciação entre psicopatia e psicose, já que,
na primeira, há ausência de delírios e outros sinais de pensamento
irracional, ou de perda de contato com a realidade (ANTON; TONI,
2014). O indivíduo com psicopatia, diferentemente do acometido
pela psicose, mantém preservado o contato com a realidade, é
extremamente inteligente e racional, e possui compreensão do
prejuízo que causa aos outros, porém há incapacidade de controle
de comportamentos agressivos e impulsivos, o que, talvez, leve a
crer que todos teriam completa falta de empatia, sendo indivíduos
“do mal” (SIQUEIRA, 2021; MARTENS, 2001). E, nesse sentido,
poderíamos dizer que ganha destaque a associação da psicopatia às
cenas de crimes violentos ou a serial killers no imaginário do senso
comum, reforçada pelas mídias.
Refletindo sobre a questão do grau em que se apresenta a falta
de empatia nos psicopatas, Martens (2001) refere-se a indivíduos
que conseguem estabelecer vínculos afetivos com pessoas mais
próximas, como pais, irmãos, cônjuges, possuindo dificuldades
relacionais com outros, fora do contexto familiar. Outro aspecto
que revela certa dose de empatia é o sofrimento emocional que
alguns indivíduos conseguem vivenciar perante acontecimentos
impactantes ou trágicos, como a morte de um ente querido, o
divórcio, vivenciando, por vezes, esse tipo de sofrimento quanto à
percepção do próprio comportamento desviante.
No entanto, apesar de alguns indivíduos com psicopatia
apresentarem certo grau de empatia, por conta das outras
características patológicas e desdobramentos decorrentes delas,
eles possuem rede social fraca, laços superficiais, vivências de
divórcios, de vida familiar caótica, o que acaba por gerar mais
sofrimento emocional, indicando-nos um ciclo de vivências

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catastróficas, principalmente quando levamos em conta que o


desenvolvimento da psicopatia na adolescência e vida adulta
associa-se a experiências de abusos e negligência na infância
(RODRIGUES, 2020; SIQUEIRA, 2021). Martens (2001) discute
que a arrogância exterior ou a grande onipotência que os indivíduos
com psicopatia expressam encobre um sentimento de inferioridade,
relacionado à percepção que têm sobre a estigmatização que sofrem
por seus comportamentos desviantes. Ainda, esses indivíduos com
certo grau de empatia conseguiriam perceber os laços de amizade
e vínculos estabelecidos por outras pessoas, e se ressentiriam por
compreender que não terão essa qualidade em suas relações. Todas
essas características, de certa forma, humanizam o psicopata e nos
fazem pensar justamente na questão dos níveis de psicopatia.
Por um lado, temos a psicopatia primária, com origem
orgânica e inata; nesses casos, temos indivíduos com mais alto grau
de impulsividade e crueldade, e menos responsivos aos tratamentos,
além de possuírem extrema habilidade em mascarar seus impulsos
antissociais. Seriam indivíduos com baixo grau de ansiedade, o
que contribuiria para a maior propensão ao cometimento de crimes
violentos.
Por outro, temos a psicopatia secundária, desenvolvida a
partir das experiências de vida familiar e social e extremamente
marcada por vivências traumáticas, como violências ou maus-
tratos, ou outra forma de trauma. Nesses casos, os indivíduos seriam
mais reativos a situações de estresse e teriam a impulsividade como
principal característica, havendo sentimento de culpa e, portanto,
certo grau de empatia. Quando cometem crimes, seriam menos
articulados, justamente pela pouca capacidade de planejamento,
pela impulsividade apresentada (SIQUEIRA, 2021; BLACKBURN
apud SERAFIM; SAFFI, 2019).
O cometimento de atos ou crimes violentos é explicado
por Martens (2001) como decorrente justamente dos sentimentos
de solidão, isolamento e sofrimento emocional vivenciados por
indivíduos com psicopatia, sendo que o aparecimento de crimes
em série estaria relacionado ao mais alto nível da vivência desses
sentimentos, tornando também os crimes mais bizarros e grotescos.

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As crenças relacionadas à imensa solidão que vivenciam estariam


acompanhadas da sensação de que o mundo está contra eles, e que,
portanto, são merecedores de privilégios ou direitos especiais que
consigam satisfazer às suas necessidades e, assim, os crimes são
cometidos.
Levando em conta o panorama geral apresentado por Martens
(2001) e outros autores sobre os níveis de empatia e psicopatia,
buscou-se compreender melhor a seguinte questão: se há níveis para
a psicopatia de acordo com o grau de empatia, os sinais e sintomas
apresentados na infância e adolescência relativos aos transtornos de
conduta já indicariam diferentes níveis de empatia?
Pensando sobre a etiologia da psicopatia, nos deparamos com
as classificações nosológicas dos transtornos mentais em uso, que
não indicam o diagnóstico antes dos 17-18 anos, assim como com
os outros transtornos de personalidade (APA, 2002). No entanto,
há que se considerar que esses transtornos já se manifestam desde
a infância, consolidando-se ao longo da adolescência e da vida
adulta. Isso coloca em debate o período ou momento evolutivo no
qual fatores de risco, sinais e sintomas aparecem, sendo preditores
de um possível transtorno antissocial ou psicopatia na adolescência
ou vida adulta. De qualquer forma, sabe-se que a psicopatia é ainda
pouco conhecida quando se examina a sua etiologia e evolução.
Desse modo, nomear e mensurar esse constructo na infância
torna-se um desafio ainda maior, já que, mesmo para a população
jovem, o desenvolvimento de uma terminologia mais apropriada
e de instrumentos de avaliação ainda se encontra em andamento
(DAVOGLIO et al., 2012).
Devemos lembrar que na infância e, principalmente, na
adolescência há manifestações de agressividade, impulsividade
e até comportamentos antissociais e delinquentes que são
transitórios, considerados manifestações desenvolvimentais típicas
dessas fases de desenvolvimento (GALINARI, BAZON, 2020). No
entanto, quando há uma trajetória persistente e um início precoce
de comportamentos antissociais ou delinquentes envolvendo
violência, há chance de que a psicopatia seja diagnosticada na
adolescência ou vida adulta. Ainda, sabe-se que os comportamentos

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desviantes na infância e que ainda não se encaixam em categorias


psicopatológicas e não se caracterizam como transtornos recebem
a denominação de comportamentos externalizantes (quando
associados a agressividade, intolerância a frustração, oposicionismo,
fugas, roubos, entre outros), pois dizem respeito a conflitos
existentes entre a criança e o ambiente; ou, então, são considerados
comportamentos internalizantes (quando associados a problemas
depressivos, ansiosos, retraimento social), referindo-se a conflitos
inerentes ao self. O termo “comportamento de externalização” ou
“comportamento externalizante” possibilita justamente a descrição
de problemas de comportamento em crianças pequenas, sem a carga
relativa à expressão “antissocial” ou “psicopata” (DAVOGLIO et
al., 2012; ACHENBACH, 1991).
Como já apontado, e segundo o DSM-IV, o Manual
Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (APA, 2002),
apenas a persistência de comportamentos de externalização
associa-se a sintomas ligados a critérios diagnósticos compatíveis
com transtornos de conduta, como também transtorno desafiador
opositivo e TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade).
E, especialmente no transtorno de conduta, há a manifestação já
na infância de pouca empatia em relação ao outro, ou de fraco
constrangimento pelas atitudes realizadas.
As pesquisas também levantadas por Davoglio et al. (2012)
demonstra que, a depender da idade de início desses comportamentos
antissociais, há variação: quando se iniciam na idade pré-escolar,
tendem a durar até adolescência ou idade adulta, e manifestam-se
com oposicionismo, atitudes desafiadoras; e há também um grupo
que apresentará esses comportamentos antissociais circunscritos
à adolescência/juventude, sendo indivíduos capazes de empatia
e atitudes pró-sociais. Há, além disso, os trabalhos que apontam
que o aparecimento de condutas antissociais na infância seriam
indícios de possível manifestação de delinquência na adolescência,
podendo, inclusive, aparecer como transtorno de personalidade
posteriormente.
O que se ressalta é a dificuldade de reconhecer a origem da
psicopatia de forma precoce, pois se sabe que a própria manifestação

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psicopatológica na infância apresenta uma “roupagem” diferente


daquela da vida adulta; e, ainda, há uma heterogeneidade de
manifestações comportamentais para um mesmo diagnóstico.
No entanto, tal conhecimento seria essencial para que se possa
estabelecer programas de prevenção e intervenção adequados e
direcionados a fases do desenvolvimento mais maleáveis do que a
vida adulta.
De qualquer forma, há clareza de que indivíduos com
psicopatia possuem desprezo às regras sociais e grande dificuldade
em considerar os sentimentos alheios, além de serem egocêntricos,
manipuladores, insensíveis, transgressores de regras, entre outras
características, e, assim, nota-se que apresentam comportamentos
antissociais; porém, nem todos que apresentam comportamentos
antissociais serão enquadrados nos critérios diagnósticos para
psicopatia (HARE, 2013; HARE, 2003 apud DAVOGLIO et
al., 2012). Ressalta-se, também, que, apesar da dificuldade para
estabelecer uma trajetória etiológica para a psicopatia, as pesquisas
avançaram na construção de escalas que verificam características
na população jovem, a partir de avanços realizados junto à
população adulta. O Hare Psychopathy Checklist: Youth Version
(PCL:YV) (FORTH et al., 2003 apud DAVOGLIO et al., 2012),
destinado à adolescência, surge como adaptação da Escala de
Psicopatia de Hare – Revisado (PCL-R), instrumento mais utilizado
mundialmente para diagnóstico da psicopatia. Foi criado por Robert
Hare, a partir da primeira versão, o Psychopathy Checklist (PCL),
o qual lista 20 sintomas divididos em dois fatores, o interpessoal/
afetivo, composto por itens relativos a expressão emocional e
comportamento interpessoal, e o fator do estilo de vida socialmente
desviante/antissocial (OLIVEIRA, 2011 apud ANTON; TONI,
2014).
Evidencia-se que, na população jovem, estão presentes, além
de características relacionadas a dimensão interpessoal, afetiva
e comportamental, transgressões legais e criminais típicas das
personalidades antissociais. Os itens da escala estão divididos em
quatro fatores: interpessoal (avaliando, por exemplo, a loquacidade),
afetivo (medindo, por exemplo, ausência de empatia); estilo de
vida (avaliando, por exemplo, a impulsividade) e antissocial

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(avaliando, por exemplo, comportamentos problemáticos precoces)


(SEIXAS, 2019). Se há mais evidências de que adolescentes com
traços psicopáticos elevados possuem mais tendência a demonstrar
comportamentos antissociais e agressivos, na infância essa
evidência é mais frágil, já que a associação entre diferentes subtipos
de agressão, comportamento antissocial e as dimensões distintas da
psicopatia é ainda pouco pesquisada (FORTH; BOOK, 2010 apud
SEIXAS, 2019).
No entanto, há a Escala de Psicopatia de Crianças (Child
Psychopathy Scale – CPS), fundamentada teoricamente na PCL-R,
operacionalizando 13 dos 20 itens dessa última escala, ou seja,
excluindo 7 itens inadequados à faixa etária da infância, como,
comportamento sexual promíscuo, relacionamentos conjugais
numerosos, delinquência juvenil (LYNAM, 1997 apud SEIXAS,
2019). Nos estudos de validação da escala, observou-se que
crianças com pontuações altas na CPS seriam, no futuro, os
adolescentes delinquentes mais graves, persistentes e agressivos
numa linha temporal. A Child Psychopathy Scale sofreu várias
expansões e revisões, demonstrando que as diferentes versões
possuem associações significativas com medidas de conceitos
relevantes à psicopatia, especificamente variáveis relacionadas
a comportamentos antissociais, agressão, comportamentos
externalizantes, impulsividade, empatia, atitudes pró-bullying,
afeto negativo entre crianças e pais e déficits fisiológicos e
neuroanatômicos.
Todavia, diante do exposto, pode-se considerar as dificuldades
do diagnóstico precoce e o caminho fecundo, porém inconcluso da
análise quanto à manifestação da psicopatia em seus possíveis e
diferentes níveis. Tudo isso pode levar a uma dificuldade ainda
maior na consideração das definições justas para o encaminhamento
jurídico do psicopata, tendo em vista ainda a gravidade dos
crimes por ele cometidos e as possibilidades plausíveis ao sistema
judiciário.

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4.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do panorama geral apresentado aqui sobre a etiologia


da psicopatia, das dificuldades de estabelecer critérios diagnósticos
mais robustos para infância e adolescência e dos avanços já
produzidos para avaliar características da psicopatia em crianças
e jovens – especificamente a nível internacional –, constata-se a
necessidade de mais pesquisas e estudos em nosso contexto, visto
que, no próprio sistema penal brasileiro, os investimentos no tema
têm sido escassos, contribuindo para reincidência como presidiários
de indivíduos com psicopatia.
Como o psicopata não consegue internalizar o conceito de
lei ou de pena, quando considerado imputável pelo sistema penal
brasileiro, tal pena acaba por não alcançar sua função de punição,
repressão, por mais que possua o entendimento de que seus atos
são criminosos; dada a sua personalidade disfuncional, o psicopata
continuará a praticá-los conforme sua vontade e satisfação de
suas ambições e prazeres. Quando considerado inimputável ou
semi-imputável pelo sistema penal brasileiro, sofrerá medida
de segurança, podendo ser cumprida em hospitais de custódia
e tratamento psiquiátrico adequado (BONVICINI; CAIXETA
JÚNIOR; OLIVEIRA, 2021), demonstrando que, ainda para a
justiça, assim como para a área médica e psicológica, há dificuldades
e desafios para caracterizar a psicopatia e para ajustar o melhor
tratamento e intervenção para os diferentes níveis de psicopatas.

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Burlington: University of Vermont Department of Psychiatry, 1991.

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psicodebate.dpgpsifpm.com.br/index.php/periodico/article/view/757. Acesso
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revisão de literatura. Revista de Psicologia, v. 38, n. 2, p. 577-612, 2020.

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SERAFIM, A. P.; SAFFI, F. Psicologia e práticas forenses. 3. ed. atual. ampl.


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SIQUEIRA, M. G. S. Os níveis de psicopatia e o tratamento dado ao psicopata


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Escola de Direito e Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica de
Goiás, Goiânia, 2021. Disponível em: https://repositorio.pucgoias.edu.br/jspui/
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Disponível em https://www.revista-uno.com.br/wp-content/uploads/2017/03/
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Política de língua, globalização e diversidade


linguística

Carlos Henrique SOLIMANI1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo o estudo da política de língua


como fator primordial na consolidação de poder por meio da imposição de uma
cultura colonizadora em face de um território colonizado. No Brasil, destaca-se
o fato de o primeiro grupo de Jesuítas ter chegado ao Brasil em 1549, liderado
por Manuel da Nóbrega, que garantiu aos Jesuítas o monopólio das atividades
de conversão dos indígenas. Após longo período de trabalho dos Jesuítas, o
pombalismo permeou grandes transformações no Brasil no período colonial,
especialmente na política de língua, culminando com o projeto pombalino de
imposição da língua portuguesa aos índios, marco a ser visitado neste trabalho,
contextualizando-se as questões históricas e políticas no período entre a chegada
dos Jesuítas e sua expulsão do território. A língua portuguesa foi alçada ao marco
constitucional, conforme se observa na Constituição Brasileira de 1988, porém
se assegura às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas
maternas e processos próprios de aprendizagem. Utilizando-se do método
dedutivo e análise de bibliografia específica, a proposta do artigo é a realização
de uma revisão bibliográfica e conceitual acerca do planeamento e das políticas
de língua, a abordar o trabalho de execução linguística dos missionários Jesuítas
no Brasil, o legado e seus resultados, as dificuldades, permear pelos aspectos
históricos e políticos observados na pesquisa a situação atual das políticas
públicas quanto a manutenção da herança linguística indígena e sua integração
ao cenário contemporâneo. Procurar-se-á centralizar a discussão no aspecto do
planeamento e das políticas de língua na perspectiva da sua realização pelos
missionários Jesuítas e do pombalismo no cenário das políticas linguísticas.

Palavras-chave: Diversidade Linguística. Globalização. Missões Jesuíticas.


Política de Língua. Ratio Studiorum.

1
Carlos Henrique Solimani. Doutorando em Estudos Globais pela Universidade Aberta de Portugal.
Mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Especialista em Direito das
Obrigações, com ênfase em Direito do Trabalho, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP). MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas ( FGV).
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Docente
do Claretiano – Centro Universitário. E-mail: carlossolimani@claretiano.edu.br.

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Language policy, globalization and linguistic


diversity

Carlos Henrique SOLIMANI

Abstract: The present work aims to study language policy as a key factor in
the consolidation of power through the imposition of a colonizing language
culture in the face of a colonized territory. In Brazil, it is noteworthy that the
first group of Jesuits arrived in Brazil in 1549, led by Manuel da Nóbrega, who
guaranteed the Jesuits a monopoly on indigenous conversion activities. After a
long period of work by the Jesuits, Pombalism permeated great transformations
in Brazil in the colonial period, especially in the language policy, culminating
with the Pombaline project of imposing the Portuguese language on the Indians,
a landmark to be visited in this work, contextualizing the historical issues and
politics in the period between the arrival of the Jesuits and their expulsion from
the territory. The Portuguese language was raised to the constitutional mark, as
observed in the Brazilian Constitution of 1988, but it also guarantees indigenous
communities the use of their mother tongues and their own learning processes.
Using the deductive method and analysis of specific bibliography, the purpose of
the article is to carry out a bibliographical and conceptual review about language
planning and policies, approaching the work of linguistic execution of the Jesuit
missionaries in Brazil, the legacy and its results, the difficulties, permeate
through the historical and political aspects observed in the research the current
situation of public policies regarding the maintenance of indigenous linguistic
heritage and its integration into the contemporary scenario. It will seek to focus
the discussion on the aspect of planning and language policies in the perspective
of their realization by Jesuit missionaries and Pombalism in the scenario of
language policies.

Keywords: Globalization. Jesuit Missions. Linguistic Diversity. Language


Policy. Ratio Studiorum.

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1.  INTRODUÇÃO

Este trabalho destina-se à análise da Política de Língua e sua


influência entre as nações, especialmente a havida entre um país
colonizado e seu colonizador, um grande desafio a ser enfrentado,
considerando a complexidade e o alcance das narrativas e teorias
que abrangem a temática de política e planeamento de línguas.
Cooper (1989) assevera que o planejamento linguístico deve
ser analisado e compreendido em face do contexto social e histórico
no qual houve ou haverá a ação a ser concretizada. A língua como
meio de comunicação e definida como língua oficial de uma nação é
sinal de sua expressão cultural e política, já que toda a sua estrutura
nacional foi estabelecida por meio de seu código linguístico e a
manutenção dessa codificação é sinônimo de poder e de coesão
de sua capacidade de domínio, como ocorreu com várias línguas e
nações, dentre outras, a língua portuguesa desde sua origem e matriz
em Portugal, a consolidar-se por meio das propostas colonialistas
em diversos países, como Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-
Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e
Timor-Leste e Macau hoje pertencente à República Popular da
China (ĆIRIĆ, 2017).
Nesse sentido, com a chegada dos portugueses ao Brasil, no
século XVI, a educação escolar, especialmente aquelas desenvolvida
e aplicada pelos Jesuítas, teve grande importância na aplicação
de políticas e planeamento linguístico, a atingir as comunidades
indígenas que, posteriormente, levaram os índios à sociedade
branca e a sua integração nacional, por meio de programas de
proteção e gestão dos serviços dedicados à essas comunidades.
A língua portuguesa, herdada e consolidada no Brasil pelos
portugueses, apesar de ser um marco na identidade brasileira, vem
sofrendo impulsos étnicos no sentido de um resgate da identidade
linguística dos povos indígenas, a partir da mobilização das próprias
comunidades indígenas.
As políticas de língua tiveram grande influência na educação
escolar brasileira, seja nas comunidades portuguesas, seja nas de
outras nacionalidades, provindas especialmente da Europa, mas,

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de modo importante, nas comunidades indígenas no Brasil. Essa


tarefa foi exercida preponderantemente pelas missões jesuíticas,
compostas por sacerdotes católicos. A ordem religiosa denominada
Companhia de Jesus, criada por Inácio de Loyola e aprovada em
1540 pelo papa Paulo III, tinha como missão o caráter reformista e
militante, “[...] cuja ética loyolana baseava-se no ‘salvar a alma’ ”
(TORRES, 2007, p. 217 apud BAUER; COSTA, 2020, p. 87).
Destaca-se o fato de o primeiro grupo de Jesuítas ter chegado
à Terra Brasilis em 1549, liderado por Manuel da Nóbrega,
juntamente com a equipe de Tomé de Souza, o primeiro governador-
geral nomeado pela Coroa Portuguesa. “Aos Jesuítas, foi garantido
o monopólio das atividades de conversão dos indígenas, chamados
de ‘gentios’, o que demonstra a confiança conquistada com a coroa”
(VAINFAS, 2000 apud BAUER; COSTA, 2020, p. 88).
No entanto, o pombalismo permeou grandes transformações
na administração portuguesa, especialmente no Brasil, em seu
período colonial, em diversos setores, inclusive na política de
língua, culminando com o projeto pombalino de imposição da
língua portuguesa aos índios, marco a ser visitado neste trabalho,
contextualizando-se as questões históricas e políticas no período
entre a chegada dos Jesuítas e sua expulsão do território, em face de
divergências com o comando do Marquês de Pombal.
De outro lado, na era recente, a Constituição Federal de 1988,
promulgada após período ditatorial, de conteúdo democrático,
define, em seu artigo 13, que a língua portuguesa é o idioma
oficial da República Federativa do Brasil, assegura seu ensino
oficial, conforme parágrafo segundo do artigo 210, porém assegura
às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas
maternas e processos próprios de aprendizagem, ou seja, uma “[...]
primeira sinalização de mudança no planejamento de status de
línguas minoritárias brasileiras, com a abertura para o seu uso como
meio de instrução” (CUNHA, 2008).
A proposta do artigo é a realização de uma revisão bibliográfica
e conceitual acerca do planeamento e das políticas de língua,
a abordar o trabalho de execução linguística dos missionários
Jesuítas no Brasil, o legado e seus resultados, as dificuldades, a

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permear pelos aspectos históricos e políticos observados nos


artigos pesquisados a situação atual das políticas públicas quanto
a manutenção da herança linguística indígena e sua integração
ao cenário contemporâneo. A discussão da política linguística no
Brasil, a iniciar-se pelos povos indígenas, é bastante ampla e de
complexa estrutura antropológica e humanística, já que a extinção
de inúmeras comunidades culminou também com a extinção de
inúmeras línguas maternas. Nesse aspecto, procurar-se-á centralizar
a discussão no aspecto do planeamento e das políticas de língua
na perspectiva da sua realização pelos missionários Jesuítas e no
pombalismo no cenário das políticas linguísticas.

2.  O PLANEJAMENTO LINGUÍSTICO E POLÍTICAS


DE LÍNGUA

Cooper (1989) desde o início de sua obra consolida o


entendimento de que o planejamento linguístico não pode ser
compreendido sem referência ao seu contexto social, isto é, sem
avaliar a relação que possa existir entre o planejamento linguístico
e as mudanças sociais havidas em cada um de seus momentos
históricos. Exemplo disso seria a língua portuguesa desde sua origem
e matriz em Portugal a embrenhar-se pelo mundo desde o início do
colonialismo nos diversos países de Angola, Brasil, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe
e Timor-Leste e Macau, hoje pertencente à República Popular da
China (ĆIRIĆ, 2017). Não apenas em relação ao português, mas
também às línguas originárias dos países colonialistas, Inglaterra,
França e Espanha, há evidente demonstração de que o planejamento
linguístico é resultado de dinâmicas históricas e necessidades ou
transformações do contexto.
Além das transformações linguísticas havidas nos países
colonizados, nos países sede das colônias, em razão dos conflitos
internos e da origem latina, houve grandes modificações em cada
um de seus contextos, como citado por Cooper (1987), o que
ocorreu na França, após a implantação de políticas em substituição
do latim pelo francês a partir da fundação da academia francesa.
Infere-se nesse desiderato que as questões históricas e políticas

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influenciaram sobremaneira grandes transformações nas artes e na


literatura.
No Brasil colonial, a igreja teve grande influência na
implantação do português, especialmente com o trabalho dos
Jesuítas que, inicialmente, fizeram um trabalho de assimilação das
línguas nativas, mesclando o ensino da língua geral e a catequese
por meio da implantação da língua portuguesa. O movimento de
evangelização a partir de Portugal e sua postura na educação formal
modificou e influenciou substancialmente a formação da sociedade
brasileira. Impende observar que, desde a Carta de Pero Vaz de
Caminha ao Rei sobre a vida encontrada no Brasil, os índios e
sua cultura, a missão religiosa da Companhia de Jesus, criada por
Ignácio de Loyola em 1534, importou em cristianização dos índios,
não sem antes ter empreendido o aprendizado de sua cultura, tendo
procedido por mais de duzentos anos com o ensino jesuíta, cujo
legado compreende uma “[...] visão de mundo, uma concepção de
educação e uma prática pedagógica que ajudaram a edificar o que
comumente se chama de escola ou pedagogia tradicional” (PAIVA,
2015).
O movimento histórico dos povos, as conquistas, a
colonização foram importantes para a formação e transformações
linguísticas pelo mundo, como o latim a superar o grego, o
francês e o português a superar o latim como as principais línguas
implantadas e utilizadas pelas diversas sociedades. A imposição
de uma língua sobre outra significa a imposição de uma cultura,
de um modo de vida e é marca de dominação entre os povos. No
Brasil, em passado recente, a grade curricular específica do ensino
das línguas estrangeiras teve como marco inicial o francês, porém,
com o declínio do domínio francês pelo mundo e o incremento da
cultura estadunidense, marcou-se a exclusão do ensino oficial do
francês, substituído pelo inglês, num claro exemplo de influência
política, social e econômica de uma nação sobre outra.
Cooper (1987) exemplifica a questão citando a promoção
do ensino do hebraico na Palestina, o movimento feminista como
forma e caráter linguístico, corporificado como um importante
movimento social, que se deu com a reformulação de algumas

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palavras e a utilização de um gênero não masculino; e uma


campanha de alfabetização em massa que se propagou na África
para instituição de uma língua comum.
Uma questão de importância que exsurge dos textos pesquisados
está centrada no multiculturalismo, que impõe a necessidade
de um planejamento eficaz para que a língua, como ferramenta
substancial para comunicação, seja utilizada e implementada de
maneira eficiente diante das complexas relações sociais. Na esteira
dos acontecimentos históricos sociais, é necessário destacar novas
formas de comunicação entre os povos interligados pelas redes
sociais. A internet é inovadora e condutora de uma nova linguagem,
mais rápida, mais codificada em simbologia, menos formal e que
modula de maneira especial o contexto linguístico. A necessidade
de domínio de várias línguas está diretamente voltada aos anseios
e necessidades do capitalismo e da globalização. De milhares de
línguas e dialetos que originaram as conversações e a comunicação
dos povos, certamente haverá redução para não mais de dez línguas
a circular globalmente.
De acordo com Djité (1994), nesse aspecto, a política
linguística é geralmente definida como as escolhas deliberadas
feitas pelos governos ou qualquer outra autoridade com relação às
relações entre a linguagem e a vida social. No entanto, nos parece
que as escolhas não se dão de modo aleatório, mas impregnado
de posturas voltadas às necessidades do capitalismo de mercado,
já que nenhum governo estimularia o estudo de uma língua morta
ou que simplesmente se circunscreve aos ambientes acadêmicos.
O pragmatismo governamental serve aos interesses nacionais,
ligados umbilicalmente aos interesses econômicos e diplomáticos.
Djité (1994), nesse sentido, nos esclarece ainda que planejamento
linguístico geralmente surge como resultado da política linguística
que se opera também no nível social, e na linguagem, que passa
por uma modernização estilística e terminológica da norma para
atender às funções de um mundo moderno. Ao citar Kloss (1969),
Djité (1994) elucida que o planejamento de status lida com a
alocação de idiomas ou variedades de idiomas para determinadas
funções, como meio de instrução, de definição do idioma oficial ou
como veículo de dominação em massa.

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Ou ainda como função para compreender as forças que


influenciam a linguagem em uma sociedade e aprender como
tirar vantagem dessas forças para atingir os objetivos planejados,
exatamente como fizeram os portugueses por meio da catequese
dos indígenas durante o período do Brasil colônia. Djité (1994),
ainda a citar Kloss (1969), distingue o planejamento de status do
planejamento de corpus como processo linguístico para cunhar
novos termos, reformar a ortografia ou adotar um novo script e
formular regras da gramática correta, conforme se concretiza em
países lusófonos, com os acordos ortográficos e a universalização
da língua portuguesa, como forma de manutenção do padrão
linguístico.
A ausência de revisões e operações de padrões universais
pode colocar em risco a língua mater, pois as influências locais
e o multiculturalismo podem modificar de modo expressivo o
contexto local, luta esta que se implementa no Brasil em desfavor
do estrangeirismo e com a absorção pela população de termos
principalmente em inglês, a lembrar que, na última reforma
ortográfica, foram incluídas letras que são originárias do inglês,
como o w e y, que não ocorriam no vocabulário anterior. Nesses
termos, Djité (1994) nos fornece as acepções necessárias a
compreender a interação existente entre a elaboração de políticas e
a implementação do planejamento.
Para Calvet (2007) a política linguística está estruturada no
sentido de observar as relações intrínsecas entre a língua e sociedade,
mas não basta o olhar imanente ao Estado, mas também abarcar suas
relações com o mundo global. Conforme Djité (1994), a motivação
dominante para o planejamento linguístico está direcionada para os
fins práticos, voltados aos principais interesses nacionais, mas, de
modo marginal, está relacionado às questões reais de comunicação
e enfatiza que as questões linguísticas estão inextricavelmente
ligadas a processos políticos e objetivos nacionais importantes
que não são facilmente administrados ou governados apenas pela
razão, mas são inevitavelmente carregados de valores e envolvem
sentimentos poderosos e a consideração de todos os interesses.

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O objetivo de uma teoria da política linguística é a conta para


as escolhas feitas por falantes individuais com base em padrões
governados por regras reconhecidas pelo discurso da comunidade
(ou comunidades) de que eles são membros. Algumas dessas
escolhas são o resultado da gestão, refletindo conscientes e explícitos
esforços dos gerentes de linguagem para controlá-las. Infere-se de
suas assertivas que os fenômenos sociais envolvem as interações
de um grande e limitado número de entidades heterogêneas, cujos
comportamentos se desdobram ao longo do tempo e se manifestam
em múltiplas escalas (SPOLSKY, 2009).
Tentar esboçar um modelo teórico preliminar envolve como
primeira suposição a de que, embora a política linguística se
destine a dar conta das escolhas individuais, ela é um fenômeno
social, dependendo das crenças e comportamentos consensuais dos
membros de uma comunidade de fala. Nesse sentido, os domínios
devem ser definidos empiricamente para qualquer comunidade
específica. Primeiro, um domínio é nomeado para um espaço
social, como casa ou família, escola, bairro, igreja (ou sinagoga ou
mesquita ou outra instituição religiosa), local de trabalho, mídia
pública ou nível governamental (cidade, estado, nação) e, para a
construção de uma teoria da linguagem, cada um desses domínios
tem sua própria política, com algumas características geridas
internamente e outras, sob a influência de forças externas para o
domínio (SPOLSKY, 2009).
Para Sousa Galito (2006, p. 2):
[...] língua é talvez um dos elementos culturais mais
fortemente relacionados com uma determinada identidade
colectiva. Parece contribuir para a interacção das partes
que a reconhecem e gerem a vida sob a sua influência.
Uma língua pode ser partilhada por uma ou mais culturas.
Para Cooper (1989), as modificações sociais implementam
modificações no contexto linguístico, promovem a dominação,
unificação, exclusão, e podem significar homogeneização global, o
que parece ser uma tendência face aos movimentos do capitalismo
neoliberal e da globalização inserida nesse contexto.

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Em termos de políticas de língua, Höffner (1986 apud


SEVERO, 2018, p. 16-17) enaltece o entendimento de que o período
entre os séculos XVI e XVIII, até a expulsão dos Jesuítas no Brasil,
foi um momento de grande produção
[...] de instrumentos linguísticos – como gramáticas,
dicionários, listas de palavras – sobre as línguas locais,
bem como de instrumentos de evangelização e de formação
espiritual – como catecismos, sermões e doutrinas.
Tais ações vieram a ser consideradas “políticas linguísticas
jesuíticas”, como forma de “um projeto religioso, centrado na
cristianização, como de um projeto político, centrado em uma dada
lusitanização”, que, apesar das enormes dificuldades, culminou
com a unificação da língua portuguesa no Brasil.
Paiva (2015, p. 203), por sua vez, esclarece que, quando
os portugueses “[...] chegaram para dominar as novas terras,
as sociedades tribais já possuíam uma forma de transmitir seus
conhecimentos aos mais novos”, porém a aplicação das políticas de
língua fizeram uma leitura equivocada do cenário que encontraram,
na medida em que estabeleceram práticas autóctones e etnocêntricas
a desconsiderar as ações indígenas como processos formativos,
o que levou os portugueses a entender que eles “ignoravam leis,
territórios e divindades, mas é que os tinham na memória porque não
desenvolveram nenhuma forma de escrita e de institucionalização
do ensino”. Vistos como selvagens e a expressar grande oposição
às políticas de então, evidenciou-se uma evolução na disseminação
da língua, não pela aceitação da política linguística, mas pelo
desaparecimento das comunidades indígenas. Essa vertente não
será objeto de análise neste trabalho, pois são fatos históricos
multifatoriais e que escapam aos objetivos desenhados.
Em análise do texto de Garcia (2007), observa-se que, em
pleno século XVIII, no Brasil, de modo geral, o português ainda
não estava consolidado como língua oficialmente utilizada de
modo corrente, pois os diversos segmentos sociais e as populações
indígenas não utilizavam o português para a comunicação usual,
mas sim a “língua geral, falada por moradores de várias regiões da
Colônia”, o que determinou uma mudança de postura da Coroa de
modo a buscar meios de impor a língua portuguesa no Brasil, o que

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se deu por meio da imposição dos critérios normativos contidos no


Diretório Pombalino.
Observa ainda Garcia (2007) que, no Brasil, em razão do
regime escravocrata, havia uso dos idiomas indígenas e de línguas
africanas, o que também representava um enorme entrave ao objeto
de uma política de língua que previa a sua extinção para o projeto
de exclusividade do português.
A perspectiva de impor aos índios o uso da língua
portuguesa, no entanto, tinha um objetivo bem claro neste
período: buscava transformá-los em vassalos iguais aos
demais colonos. Isto se fazia necessário num momento
no qual foram intensificados os conflitos territoriais
entre Portugal e Espanha, acarretando a necessidade de
o Rei de Portugal possuir um contingente populacional
suficiente para habitar as suas fronteiras, garantindo assim
a permanência dos seus domínios (GARCIA, 2007, p. 26).
A análise do texto de Garcia (2007) deixa claro que a política
de língua exercida por Portugal no Brasil se assemelha ao que
Cooper (1989) menciona em sua obra relativamente ao planeamento
linguístico empreendido na Etiópia, uma grande campanha de
alfabetização em massa, como forma de dominação social, e as
estratégias para utilização da língua como fator de dominação e
controle social, como a utilização de missionários como agentes de
fomento da língua, a obrigatoriedade de os tribunais governamentais
utilizarem o amárico de modo exclusivo, a promoção de uma única
língua a servir como um fator supraétnico unificador, aumento da
taxa de alfabetização em determinada língua como forma de exercer
controle sobre a população. As semelhanças de planeamento nos
parecem indiscutíveis.
No aspecto mencionado por Calvet (2007), quanto à
formulação de decisões estruturantes em relação à língua e à
sociedade, permeia o entendimento de uma postura confiável
e adequada, na medida em que os países colonizados, que não
tinham a língua portuguesa como língua materna, ou daqueles em
África que não tinham o inglês, o francês ou espanhol como língua
originária, passaram por processos de planeamento de políticas
linguísticas similares. O domínio econômico nos dias hodiernos

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também está afeto a decisões quanto ao uso da língua de acordo


com interesses nem sempre em acordo com os de seus Estados.
Tais fatos confirmam sua intervenção, já que “a política linguística
é inseparável de sua aplicação” (CALVET, 2007); o planeamento
linguístico surge como a forma de implementação dessas opções
políticas; o quadro de Djité (1994) é elucidativo quanto à dinâmica
da política e do planeamento, que não operam de forma isolada.
Certamente, a Política da Língua e Planeamento Linguístico deve
considerar a multiculturalidade e a multidisciplinariedade para a
efetiva compreensão das dinâmicas sociais, culturais e políticas
para o respeito aos direitos humanos e à sua dignidade.
Na sequência, serão observados os aspectos da proposta
jesuítica aplicada no contexto colonial desde o século XVI.

3.  A S MISSÕES JESUÍTICAS E O RATIO STUDIORUM –


A EDUCAÇÃO HUMANISTA

Os aspectos históricos e pedagógicos do percurso dos Jesuítas


exteriorizam a sua relevância e importância para o entendimento das
políticas linguísticas na relação entre Portugal e Brasil no contexto
do início do período colonial, instrumentalizado pelos missionários
da Companhia de Jesus e incrementado pelo pombalismo,
estratégias que definiram e concretizaram a língua portuguesa no
Brasil e a própria consolidação do Império Português, resultado de
suas atividades ultramarina como forma de globalização. O aparato
político e globalizante no cenário brasileiro, contextualizado
em grande diversidade linguística, resultou em grande sucesso
estratégico, não apenas em razão das inúmeras nações indígenas
aqui existentes, mas também pela manutenção do português como
língua oficial apesar das inúmeras invasões de outras nações
europeias que se realizaram em território brasileiro durante sua
história, especialmente a dos franceses e holandeses entre os
séculos XVI e XVII.
Relativamente à educação, durante a Idade Média, a Igreja
foi a grande responsável pela educação, já que a instrução era
deveras importante para disseminação dos dogmas eclesiásticos

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e do próprio Cristianismo, na medida em que o desenvolvimento


da educação e de estruturas linguísticas e instrucionais de forma
unificada era fundamental para o atingimento de metas religiosas
e políticas. Nesse aspecto, foi necessário uniformizar a educação
e sua forma de instrução por meio de métodos; dentre eles, o
mais importante ficou conhecido como Ratio Studiorum, uma
abreviação de Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu, ou
Plano e Organização de Estudos da Companhia de Jesus. Tratou-
se de uma espécie de compilação selecionada e fundamentada nas
experiências no Colégio Romano como um método pedagógico
que se relaciona ao surgimento e estruturação do Humanismo no
início da Idade Moderna (STORCK, 2016).
Antes de comentar sobre o Ratio Studiorum, é importante
mencionar o surgimento da Companhia de Jesus, fundada como
uma estratégia de reação à Reforma Protestante, que ameaçava o
domínio da Igreja e que, por isso, deveria introduzir de maneira
rápida e eficiente seus dogmas nas sociedades, bem como garantir
que seus missionários atuassem conforme fundamentos e métodos
pedagógicos previamente estabelecidos. Historicamente, foi função
do Padre Cláudio Aquaviva desenvolver de modo definitivo o
método pedagógico da Companhia de Jesus, tendo sido a primeira
versão do método:
[...] apresentada em 1585 e aprovada em 1586. O projeto
foi revisto em 1591 e apresentava 837 regras dentro das
400 páginas. Somente em 1599 foi apresentada a versão
definitiva do método, bastante enxuta, contendo 467
regras em 208 páginas (SHIGUNOV NETO; MACIEL;
LAPOLLI, 2012, p. 277).
O Ratio Studiorum, como método formal de ensino, foi
desenvolvido para ser utilizado em todos os lugares, seja em Portugal
ou nas colônias, em que os Jesuítas efetuassem suas atividades, e
instituía o “[...] currículo, a orientação e a administração do sistema
educacional a ser seguido pelos padres Jesuítas” (SHIGUNOV
NETO; MACIEL; LAPOLLI, 2012, p. 277). Um verdadeiro código
de leis utilizado em atividades pedagógicas e de catequização da
Companhia de Jesus que perdurou cerca de duzentos anos, até a
extinção da ordem Jesuíta, em 1773.

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Conforme Franca (1952 apud NEGRÃO, 2000), o Ratio


Studiorum prescreve uma formação intelectual moralista fundada
nos elementos virtuosos do evangelho, além de sua vinculação
aos bons costumes, práticas de vida saudáveis. Nesse verdadeiro
manual, havia detalhamento de:
“[...] modalidades curriculares, o processo de admissão,
acompanhamento do progresso e a promoção dos alunos;
métodos de ensino e de aprendizagem; condutas e posturas
respeitosas dos professores e alunos; os textos indicados a
estudo; a variedade dos exercícios e atividades escolares;
a frequência e seriedade dos exercícios religiosos;
a hierarquia organizacional; as subordinações...”.
(FRANCA, 1952 apud NEGRÃO, 2000, p. 155).
Ademais, é importante mencionar que, além dos métodos
pedagógicos, a Igreja se utilizava de duas estratégias:
[...] a educação dos homens e dos índios; desenvolvimento
de ações missionárias, procurando converter à fé católica os
povos pagãos das regiões que estavam sendo colonizadas
(SHIGUNOV NETO; MACIEL; LAPOLLI, 2012, p. 274).
Nesse aspecto histórico, calha mencionar que a Companhia
de Jesus
[...] foi uma ordem religiosa formada por padres, conhecidos
por Jesuítas, fundada por Inácio de Loyola em 1534, mas
somente oficializada, em 1540, pelo Papa Paulo III. Os
Jesuítas constituíram-se em uma poderosa e eficiente
congregação religiosa. Esta eficiência, em parte, ocorreu
em função de seus princípios fundamentais que visavam:
a busca da perfeição humana através da palavra de Deus e
a vontade dos homens; a obediência absoluta e sem limites
aos superiores; a disciplina severa e rígida; a hierarquia
baseada na estrutura militar; a valorização da aptidão
pessoal de seus membros. Teve uma grande expansão
nas primeiras décadas de sua formação, constatada pelo
crescimento de seus membros. Em 1856 contava com mil
membros e, em 1606, esse número cresceu para treze mil.
Pode-se supor que o Projeto Educacional dos Jesuítas,
apesar de estar subordinado ao Projeto Português para
o Brasil tinha determinada autonomia, e teve papel
fundamental na medida em que contribuiu para que o
Governo português atingisse seus objetivos no processo

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de colonização brasileiro, bem como se constituiu no


alicerce da estrutura educacional da colônia brasileira
(SHIGUNOV NETO; MACIEL; LAPOLLI, 2012, p. 274-
275).
O papel dos missionários Jesuítas foi muito importante para
a propagação da fé cristã, mas também para implementar o projeto
de interesse português relacionado à consolidação da presença de
Portugal no Brasil e permitir a concretização da política de língua,
imposição do português como língua oficial. Conforme Cooper
(1987), a instalação de um projeto linguístico é fundamental para a
dominação de um país ou para a autoridade colonizadora perante o
colonizado ou dominado. Desse modo, o método jesuíta de aplicar
sua pedagogia permeada pela sua rigidez autoritária, na qual inexistia
preocupação com a liberdade, mas sim o império de uma disciplina
rigorosa, modulada aos costumes locais, leva ao entendimento e
ao reconhecimento de seu caráter político. A Companhia de Jesus,
criada no auge do avanço das ideias protestantes, tinha como uma
de suas características principais a representação da ortodoxa
ideologia católica (FREIRE, 2009). Nesse sentido cabe mencionar
a lição de Freire (2009, p. 179) sobre a atuação dos Jesuítas no
Brasil, que foi
[...] classificada por Barcellos (2007) como um sistema
retórico milico-católico do tempo das Cruzadas adaptado
a uma nova milícia, que teve em Manuel I, o suporte
iniciador, quando ele, rei a suceder João II, preterindo a
Ordem de Santiago e seu almirante Vasco da Gama, em
favor da Ordem de Cristo e do condestável Pedro Álvares
Cabral, deu as condições institucionais para a alteração
do conceito das expedições científico-mercantis pedro-
joaninas, transformando-as em armadas coloniais do
absolutismo manuelino-bragantino. O poder na Casa Real
Portuguesa, que o Vaticano não tivera acesso com João II,
chegou-lhe de mão beijada com o bragantino Manuel I, e
foi aí que o surgimento da Companhia de Jesus mereceu
todo o apoio do Papado enquanto milícia mística para
abrir os caminhos da colonização luso-vaticana nas terras
da Vera Cruz. Assim, a pedagogia praticada pelos Jesuítas
não poderia ter como base cultural outra proposta que não
fosse a cultura do poder colonial/colonizador.

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Os Jesuítas tiveram um profundo impacto na cultura, na


sociedade e na história da educação brasileira. O objetivo
da instrução que ofereciam era controlar a mente e o
comportamento das pessoas.
A educação jesuítica implementada no Brasil, como espelho
da política de língua de Portugal, ao proporcionar o ensino da língua
portuguesa, sua metodologia e rigorismo missionário, resultava
desde então no início do desaparecimento da cultura local, a dos
indígenas. Não obstante a metodologia rígida, no que se refere ao
aspecto humanista da proposta do Ratio Studiorum, seu conteúdo
tinha como finalidade uma formação humana e cultural cristã. O
Ratio Studiorum
[...] tinha como orientação filosófica Aristóteles e São
Tomás de Aquino e foi fortemente influenciado pelo
Movimento da Renascença. Seus fundamentos básicos
estavam direcionados para o ensino religioso e a catequese
(SHIGUNOV NETO; MACIEL; LAPOLLI, 2012, p. 277).
Além disso, sua proposta mantinha seu teor universalista
e dedicado à formação humanista e literária, com utilização da
língua indígena e da música para a formação indígena na fé cristã
(SHIGUNOV NETO; MACIEL; LAPOLLI, 2012).
No contexto de uma política de línguas e de consolidação
das estruturas colonialistas no Brasil, após a chegada das primeiras
caravelas portuguesas, as missões Jesuítas desembarcaram na Terra
de Santa Cruz em 1549, na Bahia, onde posteriormente foi fundada
a primeira capital brasileira, Salvador, juntamente com Tomé de
Souza, e o Padre Manuel da Nóbrega. A primeira instituição de
ensino baiana foi edificada em 1556, denominada Colégio de Todos
os Santos, culminando com uma jornada de 210 anos e 17 colégios,
seminários e outras escolas iniciais (FREIRE, 2009).
A missão jesuíta no Brasil acabou sendo um importante fator
de integração e homogeneização da língua, da implantação da cultura
e educação de base a formar gerações de indivíduos, integrando-os
ao futuro que se avizinhava. Apesar das inúmeras discussões sobre
a legitimidade ou não da imposição de uma língua em detrimento
de outras, a verdade é que o Brasil estava e permaneceu durante
muito tempo à mercê de sua ignorância diante de um mundo que se

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tornava cada vez mais integrado. Um país, uma colônia embrutecida


no panorama de uma natureza ainda selvagem.
No aspecto da evolução educacional, os colégios Jesuítas
criaram as possibilidades de inclusão cultural em seus espaços
vocacionais, num misto de missão evangelizadora e de preparação de
alunos, que se transformaram em professores e novos missionários,
utilizando-se do Ratio Studiorum como meio de unificação dos
procedimentos escolares, modulada pelos princípios humanistas e
princípios dos modus parisiensis (FREIRE, 2009). Isso significa
que o Ratio Studiorum se baseou e foi elaborado conforme a
organização
[...] interna própria dos colégios parisienses e a maneira
de ensinar, igualmente própria dos mestres de Paris, que
se estruturou ao longo do tempo e no qual se mesclaram
diferentes experiências, não se constituindo, portanto,
num método de todo original (STORCK, 2016, p. 143).
Em sua criação, os propósitos Jesuítas eram imbuídos de
uma educação voltada a desenvolvimento e transmissão de um
humanismo cristão, baseada na experiência espiritual de Inácio de
Loyola e nos desafios culturais, sociais e religiosos da Renascença
e da Reforma na Europa;
[...] esta espiritualidade habilitou os Jesuítas a se
apropriarem do humanismo da Renascença e a fundarem
uma rede de centros educativos, que significavam uma
renovação e respondiam às necessidades urgentes do seu
tempo (KOLVENBACH, 1993, p. 89 apud STORCK, 2016,
p. 142).
Todavia, apesar dos propósitos de uma elevada estirpe
humanista, em relação ao desenvolvimento efetivo dos
indivíduos para uma formação e preparação que primasse o
autoconhecimento, conscientização de sua condição humana
a usufruir das ferramentas que possibilitassem aos indivíduos
tornarem-se cidadãos, a mecanização educacional jesuíta se
mostrou fragilizada. Sua proposta educacional e linguística se
adequou aos propósitos de uma política de língua até o advento
da governança pombalina, mas acabou sendo extinta em face dos
ventos da modernidade europeia.

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4.  O CONTEXTO COLONIAL E OS JESUÍTAS

Apesar da implantação de uma política de língua na forma


esculpida por Cooper (1989), em relação à população indígena, não
houve uma importante transmutação de uma cultura nativa para
uma cultura verdadeiramente convertida, asseverando-se que não
ocorreu a esperada sobreposição dos valores católicos e europeus
aos costumes nativos, fato que se prolongou pelo tempo até os dias
atuais. Apesar de grande parte da cultura indígena estar integrada
à cultura branca, continua a haver uma dicotomia seletiva nessa
agregação e aproximação das etnias. O índio continua segregado
da cultura nacional, apenas uma minoria se estabeleceu totalmente
aos costumes da sociedade hodierna. O desparecimento de milhões
de indígenas desde o início da colonização se deve justamente
ao avanço da cultura europeia e africana sobre as terras dantes
dominadas pelos nativos.
Ainda hoje se observa, na metodologia escolar, as práticas
Jesuítas, não obstante eventuais vantagens para a época e adequação
ao modus operandi missionário. São práticas consentâneas ao
momento vivido na Idade Moderna, que representava um avanço
das práticas da Idade Média, porém encontramos ainda grande
similaridade entre as práticas metodológicas atuais e as do período
jesuíta, já que não é incomum a lógica educacional que perpassa
pelo processo de decorar textos, fatos históricos, geográficos,
científicos, em quase todos os setores da educação brasileira,
sem que os alunos promovam algum modo de avaliação e análise
crítica do conteúdo estudado. Um sistema mecanizado e que não
empreende a afirmação do conhecimento no tempo, pois o que
se decora se esquece, não é mantido no cerne do conhecimento
(FREIRE, 2009).
Decora-se e imprime-se um método com finalidades
específicas consubstanciadas em alguma forma de recompensa:
ser aprovado na disciplina, ser aprovado no concurso público,
tirar boas notas na escola, ser bem-visto por colegas e família etc.
O ensino ainda hoje estabelecido no Brasil privilegia essa forma
de aprendizado, um conhecimento robotizado enraizado desde o
ensino fundamental até a universidade, que deveria privilegiar a

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capacidade de solucionar problemas com visão ampliada dos


horizontes do conhecimento. A modalidade e metodologia de
ensino mecanizado teve seu momento, seu tempo, sua finalidade,
mas é necessário que as instituições se preocupem com a realidade
do século XXI, em que a velocidade das mudanças empreendidas
pelo capitalismo neoliberal impõe necessidades mais abrangentes
e conhecimentos que tornem os indivíduos cidadãos do mundo e
possam, por isso, desempenhar seus papéis como entes proativos e
conscientes de seu papel na sociedade.
O ensino mecanizado e robotizado torna-se um empecilho para
que a cidadania plena chegue a todos os cidadãos, já que cidadania
“[...] está intimamente ligada às ‘liberdades políticas – ao direito de
participação – e às liberdades civis – direito de autodeterminação.
[...] e os direitos sociais” (PASSOS, 2005, p. 12-13). O contrário
de uma cidadania plena é a cidadania tutelada, na qual o indivíduo
perde ou deixa de ser o titular do poder de participar efetivamente
na vida política de seu país, deixa de ter autodeterminação pessoal,
“[...] seja em termos de impor abstenções ao Estado, seja em termos
de lhe exigir prestações” (PASSOS, 2005, p. 16).
Cidadania tutelada seria aquela formalmente deferida,
mas operacionalmente impedida. Outorga-se formalmente
cidadania, mas não se deferem, de forma institucionalizada,
os instrumentos que a garantem.
Cidadania tutelada não é apenas aquela em que há
incapacitações e controles formais e explícitos, sim
também a que é atribuída a sujeitos diminuídos em sua
dimensão política, por meios indiretos, implícitos e
ardilosos (PASSOS, 2005, p. 16).
É importante observar que a forma jesuíta de educação, a
forma mecanizada de decorar e não aprender, está intimamente
ligada à política de língua, não apenas no sentido de impor uma
nova língua aos locais, como também de tornar os indivíduos
sujeitos desprovidos da capacidade de questionar a si e o que ocorre
a seu redor. Educação é muito mais do que um processo de ensinar
a saber, é um ato de tornar o indivíduo um cidadão do mundo,
consciente de tudo e de todos.

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É interessante a exposição de Freire (2009), a legitimar


as conclusões anteriores, quanto à metodologia utilizada pelos
Jesuítas, não muito diversa do que ainda se observa atualmente:
um método expositivo, com uso de textos contidos em documentos
literários oficialmente estabelecidos, uso da língua portuguesa
sem dispensar o latim, utilização do “[...] reforço ancorado em
recapitulações, sabatinas e disputas semanais e anuais. Os alunos
eram solicitados a realizar leituras, debates, redações, e eram
interrogados sobre os temas em estudo”, além de outras estratégias
lúdicas, como festas, teatro, música, recreio e tertúlias (FREIRE,
2009, p. 181); o “[...] curso primário privilegiava a educação física
e intelectual e o ensino médio, a educação das Letras, ministrada,
sobretudo, através da leitura de autores clássicos” (TOBIAS, 1986
apud FREIRE, 2009, p. 181).
A bem-sucedida missão dos Jesuítas no campo da educação
foi relativa. É bem acertada a afirmação (FRANCA, 1952;
LARROYO, 1979 apud FREIRE, 2009, p. 181) “[...] especialmente
se considerarmos os seus aspectos quantitativos”, devendo-se, entre
outras coisas, ao seu processo (regular) de ensino. O método era
composto por cinco etapas bem definidas e operacionalizadas:
Na verdade, a Companhia de Jesus pretendeu restaurar
o dogma e a autoridade, sendo repulsiva às atividades
inovadoras, ao livre exame, ao espírito de análise e
de crítica, e ao gosto pela pesquisa; (FRANCA, 1952;
LARROYO, 1979 apud FREIRE, 2009, p. 181).
O ensino jesuítico afastava o Brasil das atividades criadoras
presentes na Europa, restringindo-se ao domínio intelectual
dos padres, que eram avessos à liberdade e defensores da
autoridade. A educação empreendida pela Companhia de
Jesus, porque materializava o espírito da Contra-Reforma,
caracterizava-se por uma pedagogia que não valorizava o
pensamento crítico que começava a despontar na Europa,
mas por um apego a formas dogmáticas de pensamento
e pela revalorização da escolástica como método e
como filosofia, pela reafirmação da autoridade, quer da
Igreja, quer dos antigos, enfim, pela prática de exercícios
intelectuais com a finalidade de reforçar a memória e
capacitar o raciocínio dos alunos para fazerem comentários
de textos (ROMANELLI, 1997).

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Lembremos que já no século XVI, na Europa, Erasmo de


Rotterdam (1512) afirmava relativamente à educação que
o conhecimento das coisas é mais importante do que o
das palavras; Françoise Rabelais (1532) que a ciência sem
consciência é mais que ruína da alma (VIDAL, 1967, apud
FREIRE, 2009, p. 182-183).
Verifica-se, dessa forma, que já na segunda metade
do século XVI estabelecia-se uma diferenciação entre
aprendizagens mais e menos desenvolvidas. Cinco séculos
depois, Paulo Freire continuaria a fazê-lo, afirmando que
a pedagogia podia ser “bancária” (acumulação passiva
do conhecimento) ou “problematizadora” (baseada na
compreensão) ambas determinadas pelas concepções
construídas e construtoras das relações sociais. Nesse
sistema de educação binário e vertical, o educador
seria paradoxalmente o sujeito da ação, a quem caberia
prescrever e depositar os conhecimentos, enquanto o
educando seria o objeto, a quem caberia arquivá-los.
Na sua opinião, e concordamos com ele, a consciência
bancária “pensa que quanto mais se dá mais se sabe. Mas
a experiência revela que com este mesmo sistema só se
formam indivíduos medíocres, porque não há estímulo
para a criação” (FREIRE, 2003, p. 38), (FREIRE, 2009,
p. 184).
Apesar disto, a educação jesuítica teve sua importância, sua
glória e pujança, pois foi capaz de se manter incólume desde o
período colonial, atravessando o imperial e atingindo o republicano
brasileiro, asseverando-se que a mecanização do ensino não foi
interrompida na educação brasileira, com patentes laivos da política
educacional da missão jesuíta em nossa contemporaneidade, como
mencionado alhures. Nesse sentido, pode-se dizer que a missão
jesuíta se comprometeu com a política de língua na forma como
exposta por Cooper (1989), pois o planejamento linguístico estava
afeto ao contexto de sua realidade e das ordens consubstanciadas
às necessidades de sua contemporaneidade, porém, com o passar
dos tempos, sua imutabilidade, rigorismo, impulso tradicionalista
não se ajustou ao contexto posterior aos duzentos anos de suas
atividades, especialmente com o advento do período pombalino.
O isolamento sacerdotal e a rigidez dogmática significaram
a sua extinção. Para Cooper (1989), o planejamento linguístico

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deve ser compreendido e concretizado de acordo com seu contexto


social, o que significa dizer uma constante avaliação e interpretação
da relação concreta entre o planejamento e as mudanças sociais que
ocorrem em face da dinâmica social. A missão jesuítica se mostrou
eficiente no planejamento e implantação, porém não se ajustou à
modernidade que se propagou pelo mundo após sua criação, no
século XVI.

5.  A POLÍTICA DE LÍNGUA – AS LÍNGUAS GERAIS E


SEU DESAPARECIMENTO

A língua é um conjunto de signos codificados que expressam


o pensamento humano em todas as suas formas, traduzidas na
linguagem. Mais do que um meio de comunicação, a língua
serve para o indivíduo considerado em si mesmo e para toda a
comunidade em que está inserido. A partir do momento em que
essa linguagem está disseminada no conjunto social, torna-se um
excelente instrumento de identificação de uma cultura construída
no seio social de modo a permitir o reconhecimento de um povo, de
uma nação. A língua construída passa a representar a própria nação
que, sendo conduzida a um processo de transnacionalidade, carrega
dentro de si todos os ingredientes identificadores de um povo. As
conquistas humanas consolidaram-se por meio de movimentos de
incorporação de territórios, de dominação dessas novas terras, da
conquista dos povos, que se tornam vencidos e obrigados a ceder
aos propósitos dos conquistadores. Nesse aspecto, a política de
língua serve como estratégia de consolidação das conquistas.
Spolsky (2009) aduz que, em termos de linguagem política
e escolhas de idioma, o processo de escolhas linguísticas também
faz parte do resultado da gestão de língua, a refletir esforços
conscientes e explícitos dos gestores da linguagem para controlar
essas escolhas, num complexo processo que faz a correlação entre
estruturas e situações sociais. Na atualidade, há inúmeros repertórios
linguísticos, sendo certo que os indivíduos fazem suas escolhas,
caso não lhe sejam impostas, de modo a selecionar recursos, sons,
grafias, itens lexicais ou padrões gramaticais, que, para Spolsky
(2009) são os marcadores significativos dos idiomas, dos dialetos,

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dos estilos ou outras variedades de idioma e que, agrupados,


constituem idiomas reconhecidos e rotulados.
Nesse sentido, o Brasil, desde o início de sua colonização,
fez emergir enormes dificuldades relativamente à política de
língua, em razão das centenas de etnias indígenas aqui existentes,
cujos idiomas se somaram às línguas africanas inseridas em razão
do contexto da escravidão, ao português como língua que se
pretendia oficial em razão das políticas implementadas pela Coroa
Portuguesa, e a outras línguas que foram agregadas posteriormente
ao território brasileiro em face das imigrações europeias e de outros
países. A missão jesuíta enfrentou grandes dificuldades em seu
início, obrigando os missionários a aprender os principais idiomas
no sentido de tornar possíveis a comunicação e a inserção da língua
portuguesa junto aos habitantes locais. Nessa verdadeira Torre de
Babel linguística, surgiram as denominadas línguas gerais, que
foram fundamentais para o sucesso da colonização portuguesa e
espanhola no continente americano.
Durante muito tempo, elas foram o principal veículo de
comunicação entre as diversas populações coloniais. Inicialmente,
“o termo ‘língua geral’ foi utilizado pelos colonizadores portugueses
e espanhóis para designar as línguas veiculares indígenas
disseminadas” regionalmente (LEITE, 2013, p. 1). No Brasil, o
termo passou a ser utilizado oficialmente pelos colonizadores a
partir da segunda metade do século XVII, não obstante seu uso ter
sido registrado a partir do século XVI, no sentido de identificar
as línguas que tinham sua origem nas línguas indígenas faladas
e usadas pela população local. A língua geral foi resultado da
miscigenação do povo tupiguarani e europeu, ou seja, da língua
indígena e portuguesa, mas também do espanhol, tendo a ela sido
agregadas línguas de diversas regiões de África e ainda contingentes
de vários outros povos indígenas (RODRIGUES, 1996, p. 6 apud
LEITE, 2013, p. 1)
Nesse contexto, Rodrigues (1996 apud LEITE, 2013)
assevera que, no continente brasileiro, foram registradas três
variações da língua geral, a Língua Geral Amazônica, a Língua
Geral Paulista e o Guarani, sendo que a

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[...] primeira surgiu no norte do país, na região dos atuais


estados do Maranhão e Pará, como fruto do contato
entre portugueses e índios tupinambá, no século XVII.
A segunda se originou na região de São Vicente, já no
século XVI, como produto dos casamentos entre homens
portugueses e mulheres tupi, e foi levada para o atual
interior paulista, e para os atuais estados de Minas Gerais,
Goiás, Mato Grosso e norte do Paraná pelos bandeirantes,
nos séculos XVII e XVIII. Houve, ainda, a formação
de uma terceira língua geral, o Guarani, no sul do atual
território brasileiro, quando este ainda estava sob o
domínio espanhol. O Guarani como língua geral surgiu do
contato entre colonizadores espanhóis e índios guarani na
região sul do país.
Em comparação com a LGA e o Guarani, línguas que
foram estudadas e registradas em diferentes documentos
– gramáticas, vocabulários e textos de lavra missionária
– desde o início da colonização, a LGP (Língua Geral
Paulista) possui pouquíssimos documentos de registro.
Segundo Rodrigues (1996:8), atualmente, conhecem-
se somente dois documentos da LGP (Língua Geral
Paulista): “um dicionário de verbos, não datado e de autor
desconhecido [...] publicado por von Martius em seus
Glossaria linguarum brasiliensium, sob o nome de ‘Tupi
Austral’ (MARTIUS, 1867:99-122)” e uma pequena lista
de palavras colhidas por Saint-Hilaire no início do século
XIX em comunidades de mestiços de índios bororo e
negros na província de Minas Gerais (SAINT-HILAIRE,
[1847] 1937:254-255).
De acordo com Freire e Borges (2003:7), embora haja
estudos e diversas fontes de registro sobre as línguas
gerais, mais especificamente sobre a LGA e o Guarani,
desde o início da colonização da América do Sul, “os
estudos sobre as línguas gerais ainda ocupam um espaço
pequeno de reflexão como se pode observar pela escassa
produção acadêmica existente, incompatível com a
relevância do tema”. O autor entende que “a compreensão
histórica e linguística dessas línguas pode constituir uma
chave para acessar informações sobre as nossas sociedades
e compreender o processo, ainda obscuro, de hegemonia
das línguas europeias em nosso continente” (FREIRE;
BORGES, 2003, p. 7 apud LEITE, 2013, p.1-2).

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A título de exemplo, apresenta-se a reprodução parcial do


Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica oriunda da
pesquisa de Leite (2013), considerada uma fonte rara da Língua
Geral Paulista falada em meados do século XIX, publicado sob
a autoria de José Joaquim Machado de Oliveira (1791-1867) na
Revista do Arquivo Municipal da cidade de São Paulo no ano de
1936. A seguir, tem-se uma tabela contendo palavras na língua
geral paulista e sua tradução para o português. Assevere-se que os
Jesuítas tiveram papel importante em todo processo de assimilação
das línguas indígenas e na identificação da língua geral, suas
variantes, que permitiram, em momento posterior a criação dos
vocabulários e dicionários da Língua Geral.
Figura 1. Detalhe do Dicionário da Língua Geral Brasília para
Português.

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Fonte: Leite (2013, p. 89-90).

Os Jesuítas, como mencionado alhures, tiveram um papel


fundamental na intermediação da cultura europeia aos povos
indígenas e à população em geral que foi se formando com o
desenvolvimento da colônia. Aprenderam a língua dos indígenas
e também a própria língua geral, um misto das línguas faladas
na colônia. Nesse sentido, ao impor a política de línguas, os
portugueses e, especificamente os missionários Jesuítas, incluíram
no ensino dos povos indígenas, habitantes das aldeias, a cultura
europeia e a própria Língua Geral, que se tornou também um meio
para o alcance da língua portuguesa. Não obstante, Barros, Borges
e Meira (1996) argumentam que muitos povos indígenas foram
inclinados a uma situação de imposição linguística. Observa-se,
assim, que os Jesuítas, além de utilizarem as políticas de língua
portuguesa, adaptaram esta mesma política com o uso da Língua
Geral como um “[...] instrumento de controle e poder colonialista
sobre os povos indígenas” (BARROS; BORGES; MEIRA, 1996,
p. 212).

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De todo modo, a política de línguas imposta pelos Jesuítas,


seja pelo uso do português ou pelo uso da língua geral, teve seu
limite temporal imposto pelas diretrizes pombalinas que coincidiram
com a perseguição e expulsão dos Jesuítas no século XVIII, pois,
a partir de então, houve um recrudescimento por parte do Marquês
de Pombal e uma severa:
[...] repressão ao uso da Língua Geral, então falada pela
maioria da população indígena e “tapuia” da Amazónia.
A intenção então, em parte fracassada, era “aportuguesar”
aquele poder, por razões estratégicas: ocupação e controle
territorial e político. A reação à Cabanagem, no início
do XIX, fez, pela via do genocídio, o que Pombal não
conseguira: “apagou” a Língua Geral, matando a maioria
dos seus falantes. Gonçalves Dias e outros autores
românticos ensejaram a valorização de uma ancestralidade
indígena brasileira através da Língua Geral, – embora
na “vida real” os índios devessem aprender o português
e assim caminhar em direção à “civilização brasileira”.
Couto de Magalhães enfatizou a necessidade de essa
língua ser utilizada no processo “aculturativo” dos índios,
num projeto geopolítico. Enfim, tudo levaria a crer que
o século XIX teria acabado com o uso da Língua Geral,
transformando-a apenas num dos signos da brasilidade.
O fenômeno de permanência da Língua Geral entre os
índios do Rio Negro, acompanhado da transformação
desses mesmos índios, que obviamente se transfiguram ao
longo do processo, pode ser um exemplo da força que a
raiz colonial impõe a certas facetas da cultura brasileira.
Numa interpretação rigorosa de aspectos dessa cultura,
que nesse caso nos ilumina, Bosi (1992:p.30-31) enfatizou
que “em algumas de suas manifestações é possível não só
reconhecer o lastro do passado como também entrever as
esperanças do futuro que agem por entre os anéis de uma
cadeia cerrada. A condição colonial, como o sistema, é
reflexa e contraditória. [...] Há casos de transplantes bem
logrados, enxertias que vingam por gerações e gerações,
encontros afortunados; e há casos de acordes dissonantes
que revelam contrastes mal resolvidos, superposições
que não colam. De empatias e antipatias se fez a história
colonial” (BARROS; BORGES; MEIRA, 1996, p. 212-213,
aspas do autor).

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Segundo as observações de Garcia (2007) quanto a utilização


do Diretório Pombalino, também conhecido como Diretório
dos Índios, tinha como objetivo principal a completa integração
dos índios à sociedade portuguesa. Trata-se de uma lei criada
em 1755, publicada em 1757 por D. José I, rei de Portugal, por
meio de seu ministro Marquês de Pombal – por isso chamado
de Diretório Pombalino –, cuidava de assuntos relacionados aos
aldeamentos indígenas, elevando-os à condição de vilas ou aldeias
e administradas por um diretor (AZEVEDO, 2003). Por meio do
Diretório Pombalino, buscou-se o fim das discriminações e das
diferenças entre índios e brancos.
Pretendia-se uma miscigenação biológica e cultural por
meio vários dispositivos de homogeneização, para que, no futuro
idealizado, não houvesse mais diferenças entre brancos e índios.
A referida norma enfatizava, de acordo com Garcia (2007), as
seguintes diretrizes: a necessidade da realização de casamentos
mistos entre índios e brancos; consideração dos filhos gerados
como mais capacitados que os colonos brancos para ocupar cargos
administrativos nas antigas aldeias indígenas transformadas em vilas
e lugares portugueses; proibição de chamar os índios de “negros
da terra”; imposição do uso obrigatório do idioma português,
que deveria ser viabilizado por intermédio das escolas fundadas
para educar os índios, com a justificativa normativa de que (i) a
imposição da autoridade do colonizador aparece como derivada da
implantação do seu idioma às populações “conquistadas”; (ii) o uso
do idioma nativo estava relacionado aos costumes tribais, em que um
reforçava o outro; (iii) a adoção do idioma civilizado redundaria na
civilização dos costumes; (iv) a imposição da “língua do príncipe”
acarretaria a sujeição dos povos conquistados (GARCIA, 2007).
Destaca-se a passagem do Diretório Pombalino (apud
GARCIA, 2007, p. 25-26, destaque nosso):
Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas
as nações, que conquistaram novos domínios, introduzir
logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser
indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para
desterrar dos povos rústicos a barbárie dos seus antigos
costumes; e ter mostrado a experiência, que ao mesmo

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passo, que se introduz neles o uso da língua do príncipe,


que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a
veneração, e a obediência ao mesmo príncipe.
Observando pois todas as nações polidas do mundo este
prudente, e sólido sistema, nesta conquista se praticou
tanto pelo contrário, que só cuidarão os primeiros
conquistadores estabelecer nela o uso da língua, que
chamaram geral; invenção verdadeiramente abominável,
e diabólica, para que privados os índios de todos aqueles
meios, que os podiam civilizar, permanecessem na rústica,
e bárbara sujeição, em que até agora se conservavam.
Para desterrar este perniciosíssimo abuso, será um
dos principais cuidados dos diretores, estabelecer nas
suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa,
não consentindo por modo algum, que os meninos, e
meninas, que pertencem as escolas, e todos aqueles
índios, que forem capazes de instrução nesta matéria,
usem da língua própria das suas nações, ou da chamada
geral; mas unicamente da portuguesa, na forma, que
Sua Majestade tem recomendado em repetidas ordens,
que até agora se não observaram com total ruína
espiritual, e temporal do Estado.
Observa-se, pois, que com os esforços Jesuítas e, por fim,
as incursões pombalinas em terras brasileiras a impor o idioma
português, mesmo que não tenham sido uma façanha ao tempo de
suas propriedades, a língua portuguesa se tornou o idioma oficial
brasileiro, com sua previsão expressa na Constituição Federal de
1988 (Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República
Federativa do Brasil), apesar de as constituições anteriores, de
1946 e de 1967, explicitarem que o ensino e a educação se dariam
na língua nacional. Todavia, no dizer de Garcia (2007, p. 37), a
[...] língua, no entanto, não é um dos elementos
fundamentais para a formação de comunidades, pois
estas podem existir sem uma uniformidade linguística,
ao mesmo tempo em que comunidades diferentes podem
compartilhar um mesmo idioma. Nenhum critério é por si
só significativo de diferenças culturais e étnicas, mas estas
são construídas a partir da escolha, dentro de um conjunto
de especificidades, dos elementos de diferenciação e
coesão, entre os quais é comum a língua ter um espaço
privilegiado.

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6.  O CONTEXTO HISTÓRICO DO PERÍODO POMBA-


LINO E A EXPULSÃO DOS JESUÍTAS

Marquês de Pombal, aclamado no império português,


implantou grandes reformas e mantinha uma linha de pensamento
estabelecida conforme os padrões do enciclopedismo francês. Suas
ações políticas, econômicas e jurídicas tiveram como consequência
a determinação da expulsão, em 1759, da Companhia de Jesus de
todo o Reino e seus domínios, por meio da ordem contida no Alvará
de 28 de junho de 1759, pelo qual foram extintas, de modo definitivo,
todas as escolas dos Jesuítas. As práticas pombalinas reduziram
drasticamente as atividades dos religiosos, importante mencionar
dos próprios Jesuítas. Sua gana pela modernização do Reino não
era consentânea à manutenção dos Jesuítas na administração da
coisa pública, dado o seu caráter diverso das pretensões de Pombal,
de conotação modernizadora e voltada à exclusão de conceitos,
preceitos e modos obscuros de se concretizar as ações imperiais, já
que modernizar era preciso.
Na conjuntura pombalina, os Jesuítas foram totalmente
proscritos, a metodologia jesuítica passou a ser considerada
reacionária e sem ligação com o contexto vivenciado no século
XVIII, sendo que em
[...] 6 de novembro de 1772 o Marquês de Pombal
promulgaria uma lei que estatizaria os estudos menores
e criaria escolas régias de ler, escrever e contar em todo
Reino. A frequência passaria a ser gratuita e os mestres se
tornariam funcionários pagos pelo Erário Régio.
Em Portugal, e, consequentemente, no Brasil, as ideias
iluministas aplicadas à educação, empreendidas pelo
Marquês do Pombal, podem ser consideradas tímidas, pois
o caráter científico permaneceria submetido à tradição
cultural da imitação, memorização e erudição literária.
Apesar disso, pode-se falar de um avanço no ensino público,
pois esse passou a fazer o que talvez tenha sido a sua maior
conquista, formar uma burocracia administrativa mais
moderna e eficiente (FREIRE, 2009, p. 187).
Apesar da expulsão dos Jesuítas e da implantação de
um projeto educacional e linguístico planejado nas reformas

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pombalinas, as alterações pensadas no sentido de empreender “[...]


uma escola pública, obrigatória, laica, gratuita e de boa qualidade
para todas as classes sociais” (FREIRE, 2009, p. 188) não se
mostrou concretizada.
Do ponto de vista pedagógico, a memorização ainda seria
muito utilizada como meio e como um objetivo em si mesmo,
finalidade última dos processos de ensino-aprendizagem.
O espírito de crítica, que deveria estar na base da educação
para a “cidadania”, que deveria consubstanciar e apoiar a
apropriação de concepções relativas aos direitos e deveres
dos cidadãos, e da emancipação humana, ainda estaria por
se conquistar (FREIRE, 2009, p. 188, aspas do autor).
Observa-se que a estratégia pombalina para a política de
língua não estava em consonância com o contexto praticado
pelos missionários Jesuítas, pois sua expulsão e a implantação do
Diretório Pombalino comprovam a insatisfação da Coroa com as
estratégias adotadas na ocasião. A adoção das normas pombalinas
fora de imposição severa de uma cultura, que até o século XVIII,
passados mais de duzentos anos, ainda não estava consolidada no
território colonial.

7.  C ONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho, foi possível verificar as políticas de


língua implementadas no Brasil por ocasião da Colônia a partir do
século XVI, a vinda dos missionários Jesuítas, suas estratégias para
inclusão das populações no uso do português como língua oficial,
porém permeadas pelo uso da língua geral. Posteriormente, o projeto
pombalino e o Diretório Pombalino consolidaram uma estratégia
mais impositiva e intervencionista, marcada pela expulsão dos
Jesuítas do território brasileiro e de Portugal.
Como visto, a língua como meio de comunicação oficial de
uma nação é sinal de sua expressão cultural e política, já que toda
a sua estrutura nacional foi estabelecida por meio de seu código
linguístico e a manutenção dessa codificação é sinônimo de poder e
de coesão de sua capacidade de domínio, como ocorreu com várias
línguas e nações. A consolidação da língua portuguesa no Brasil é

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um exemplo bem-sucedido das políticas de língua, apesar de todas


as dificuldades encontradas pelos missionários Jesuítas e pela
própria Coroa portuguesa em razão da enorme diversidade cultural
aqui existente desde o século XVI. Aliás, o multiculturalismo é uma
concretude brasileira até os dias atuais, porém a língua portuguesa
é fator de unificação e facilitação da disseminação da educação, da
cultura e do desenvolvimento em um país de dimensões continentais.
O Ratio Studiorum como método formal de ensino utilizado
pelos Jesuítas, desenvolvido para ser utilizado em todos os lugares,
seja em Portugal ou nas colônias, marcou fundamentalmente
a metodologia educacional e a política de língua e certamente
contribuiu para a formação do sistema educacional brasileiro.
Apesar de todas as dificuldades presentes durante o período
imperial e colonialista, a política de língua de Portugal reforçou
a hegemonia do português como língua nacional, atualmente
engajando todos os países de matriz linguística lusófona numa
mesma direção, o que, em momento anterior, talvez não fosse
possível.
A unicidade linguística obtida com muito esforço e
tempo tornou a língua portuguesa um símbolo de importância,
engrandecimento e união das comunidades de língua portuguesa
por vários países. Os resultados da política de língua como
preservação e desenvolvimento do português na atualidade renova
a sua importância no cenário mundial, como uma das seis línguas
mais faladas globalmente.
De acordo com o Plano de Ação de Brasília para a Promoção,
a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa, o português é
utilizado como língua oficial em trabalho e documentação em mais
de duas dezenas de organismos multilaterais ou regionais. Na VII
Cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP
(Lisboa, 25 de julho de 2008), os Chefes de Estado e de Governo
reiteraram a importância da atuação conjunta no processo de efetiva
mundialização da língua portuguesa e, nesse contexto, sublinharam
o apoio à introdução do português em organizações internacionais,
bem como a sua utilização efetiva naquelas em que o português

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já constitui língua oficial ou de trabalho, o que somente enfatiza a


importância do português no cenário atual global.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, A. E. L. O Diretório Pombalino em Pernambuco. 2004. 131 f.


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ISSN 2237-2318 63

Esperança Garcia:
uma presença feminina no Direito

Amanda Cristina Martins RAIZ1


Joyci Cristiany Arantes de Souza CABRINI2

Resumo: Esperança Garcia, escrava, negra nascida na década de 1750, teve seu
reconhecimento como a primeira advogada piauiense no ano de 2017 pela Ordem dos
Advogados do Brasil, subseção do Piauí. Esse acontecimento deve-se ao fato de ela
ter escrito uma carta ao então governador da Capitania, na qual relatou situações de
violência que ela, seus filhos e outras mulheres escravas sofriam. Assim, solicitava que
providências fossem tomadas, consagrando ali uma conclamação contra as dores que
membros de sua comunidade sofriam nas mãos de homens opressores. Nossa atenção se
debruça justamente neste ponto: na época, as mulheres tinham pouquíssimo ou nenhum
acesso à leitura e à escrita, por serem consideradas figuras subservientes aos seres do
sexo masculino. Dessa forma, Esperança Garcia simboliza uma figura antagônica para
a época, visto que seu ato configura uma antítese do que se esperava dos seres do sexo
feminino, ao escrever uma carta, o que nos denota evidências de alfabetização, algo
incomum para uma mulher escrava, também a endereçou ao governador da Capitania, o
que seria considerado uma afronta aos costumes e valores da época. Como ponto fulcral,
analisamos como essa carta foi escrita, os traços que comprovam sua alfabetização precária
e como tal ato fez dela a primeira advogada piauiense somente séculos após ter feito
isso. Tendo por base uma metodologia histórico-comparativa, buscamos relatos que nos
permitiram compreender a condição feminina na época, além de verificar similaridades
da carta com a estrutura composicional de um Habeas Corpus. Além disso, analisamos
as relações desse ato a aspectos do historicismo jurídico, diante dos princípios do direito
consuetudinário e da comparação feita por essa escola com o direito à linguagem, ambos
considerados fenômenos culturais que são frutos da evolução histórica do povo. Valemo-
nos do pensamento de Savigny, ao sustentar que cada povo tem seu próprio Direito,
que se fundamenta em elementos culturais, tais como a língua, a religião, os costumes
etc., sendo que esse Direito não é considerado algo imutável, pois se desenvolve com
aquele povo, ou seja, nasce, cresce e morre quando perde sua personalidade. Diante
disso, trazemos à baila o seguinte preceito: Esperança Garcia teve direitos cerceados,
expressou-os por meio da língua e foi seu texto escrito que permitiu tornar-se um símbolo
feminino no meio jurídico somente séculos após sua morte.

Palavras-chave: Esperança Garcia. Primeira Advogada do Piauí. Símbolo feminino.


Meio jurídico.
1
Amanda Cristina Martins Raiz. Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Mestra em Linguística pela Universidade de
Franca (UNIFRAN). Licenciada em Letras – Português/Inglês pela mesma instituição. Bacharel em
Direito pela Faculdade de Direito de Franca. E-mail: amandaraiz@claretiano.edu.br.
2
Joyci Cristiany Arantes de Souza Cabrini. Bacharelanda do curso de Direito do Claretiano – Centro
Universitário. E-mail: jcascabrinil@gmail.com.

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Esperança Garcia: a female presence in Law

Amanda Cristina Martins RAIZ


Joyci Cristiany Arantes de Souza CABRINI

Abstract: Esperança Garcia, a black slave woman who was born in 1750, was
recognized as the first woman lawyer of Piauí in 2017 by the Brazilian Bar Association,
subsection of Piauí. This event is due to the fact that she wrote a letter to the governor
of the “Capitania”, in which she related your children, other slave women and she were
suffering violent situation. Thus she requested the government’s help to take measures.
Her attitude confirms a prompting to her communities’ member pains who suffered in
opressives men’s hands. We are concerned at this point of view: at that time, women had
little or no access to listening and to writing because they were considered figures who
must serve the male gender. Therefore, Esperança Garcia denotes an antagonistic figure
to that age, as long as her act configures an antithesis of what was expected of female
gender. When she wrote that letter, which denote to us she was literate, something unusual
to a slave woman, she also adressed it to the governor of the Captania, what would be
considered an affront to the costumes and values of this age. As a focal point, we analyze
how this letter was written, the features that proves her poor literacy and how that act
makes her the first woman lawyer of the Piaui only many centuries later than she had
written it. Based on a comparative historical methodology, we search for relates which
allowed us to comprehend the female condition at that age, besides we verify similarities
of the letter with the compositional structure of Habeas Corpus. Not only this, we also
analyze the relations of this act with juridic historicism aspects before the common law
principles and the comparison this school does to the right to langage, both considered
cultural phenomena which are the results of the historic evolution of that people’s age.
We draw on Savigny’s train of thought, when he sustain that each people have their own
Law, which are based on cultural elements as language, religion, costumes, etc., so that
this right is not considered something unchangeable thus it is developed as this people,
in other words, it is born, it grows up and it dies when the person loses his personality.
In view of this, we discuss this precept: Esperança Garcia right was curtailed but she
expressed this by using the language and it was her written text that allowed her to become
a female symbol in the legal community only centuries after she died.

Keywords: Esperança Garcia. First Woman Lawyer of Piaui. Female Symbol. Legal
Community.

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1.  QUEM FOI ESPERANÇA GARCIA

Para uma discussão profícua, urge, inicialmente, traçarmos


breves considerações sobre a figura de Esperança Garcia, nascida
na década de 1750 e que viveu na região de Oeiras, na fazenda de
Algodões, situada a mais ou menos 300 km de Teresina, no estado
do Piauí. A região da propriedade e de outras dezenas de estâncias
pertencia à inspeção de Nazaré, local onde hoje se situa o município de
Nazaré do Piauí. A propriedade era uma das fazendas confiscadas dos
jesuítas ao Marquês de Pombal.
Ali Esperança Garcia era uma das escravas que, além de
desempenhar tarefas braçais, sofria maus tratos nas mãos do capitão
Antonio Vieira de Couto, administrador das fazendas de gado da Coroa
de Portugal no Piauí. Por meio de um ato audacioso, nossa personagem
denunciou como os negros, especialmente as mulheres negras,
sofriam nas mãos do então capitão. A partir disso, ela foi considerada
a provável autora do primeiro Habeas Corpus registrado no Brasil.
Relatos históricos averiguados por Luiz Mott (2010) demonstram que
essa figura feminina escreveu essa carta e a endereçou ao governador
do Piauí em 1770.
Fruto de uma pesquisa de dois anos realizada pela Comissão
Estadual da Verdade e da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), subseção do Piauí, foi elaborado um dossiê de 149
páginas com análise do contexto histórico e da natureza jurídica da
carta de Esperança Garcia. No dossiê, há destaque para o fato de que,
mesmo que na época o Direito não fosse formalmente constituído
como na Constituição Federal de 1988, a carta tem natureza jurídica,
dado que adota um caráter de petição. Moura (2004) acrescenta que a
carta representa uma “inusitada reclamação”, visto que se trata de uma
solicitação de uma escrava à principal autoridade do Piauí colonial
setecentista.
Séculos depois, Esperança Garcia foi reconhecida, em 2017,
como a primeira advogada do estado pela seccional piauiense da OAB.
Diante disso, intentamos analisar como a carta dá ensejo a um
importante fato jurídico e faz de Esperança Garcia um ser notório,
que marca a presença do feminino no meio jurídico. Além disso,

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verificamos também o fato de, na época, as mulheres terem pouco


ou nenhum acesso à leitura e à escrita, por serem consideradas
figuras subservientes aos seres do sexo masculino. Nesse sentido,
refletimos como Esperança Garcia simbolizou uma figura
antagônica para a época, haja vista que seu ato configura uma
antítese ao que se esperava dos seres do sexo feminino.
Averiguamos na carta evidências de alfabetização de
Esperança Garcia, algo tido como incomum para uma mulher
escrava. Além disso, analisamos como tal ato denota coragem, ao
endereçar essa carta ao governador da Capitania, o que poderia ser
considerado uma afronta aos costumes e valores da época.
Vale ressaltar que nossa análise se ateve a observar como a
carta foi escrita, os traços que comprovam sua alfabetização, mesmo
que precária, e como tal ato fez dela a primeira advogada piauiense
somente séculos após ter feito isso. Nesse sentido, buscamos relatos
que não só nos permitiram compreender a condição feminina na
época escravagista, como também verificamos as similaridades
entre a carta e a estrutura composicional de um Habeas Corpus.

2.  A CARTA DE ESPERANÇA GARCIA: ASPECTOS


ANALÍTICO-METODOLÓGICOS

Suplantamos nossa análise no método histórico-comparativo,


que compreende a História como um instrumento de análise
comparativa. Para Durkheim (1995), esse método consiste em um
modo de demonstrar que há relação lógica entre dois fatos, isto é, que
há entre eles uma relação de causalidade. Classicamente esse método
se pauta em três processos essenciais: da concordância, das diferenças
e das variações concomitantes, sendo este último considerado o mais
importante deles. Além disso, processa-se em três formas: 1) fatos
que pertencem a uma única sociedade; 2) fatos referentes a várias
sociedades do mesmo tipo; 3) fatos que provêm de vários tipos de
sociedade.
Não fosse isso o bastante, Durkheim (1995) ainda considera
esse método como sociológico por excelência, ao estabelecer
ligações causais, de modo que a única maneira de demonstrar que um

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fenômeno é causa de outro é refletir os casos em que os fenômenos


estão simultaneamente presentes e, por conseguinte, averiguar se um
depende do outro. Nesse sentido, o método comparativo, a despeito
de críticas a ele tecidas, pode ser considerado uma das formas de
comprovar hipóteses.
No tocante, Dias (2005, p. 185) ressalta que o método
comparativo é utilizado
[...] na busca das semelhanças; pela indução chega-se ao
geral – o geral é o que é comum, o que se repete; produz-se a
categoria geral por generalização. Se, por esse procedimento,
constroem-se os conceitos científicos; se, por esse
procedimento, definem-se os “fenômenos em geral”; então,
por esse procedimento, retém-se o essencial, o fundamental.
Além disso, a análise procedida também teve cunho
documental; conforme Ludke e André (1986) esclarecem, trata-
se de uma técnica importante na pesquisa qualitativa, tal qual a
nossa, pois complementa informações obtidas por outras técnicas,
ao desvelar, por exemplo, aspectos novos de um tema ou de um
problema. Muitas vezes, os documentos são fontes únicas que
permitem visualizar registros de princípios, objetivos e metas de
um objeto em análise, além de revelarem concepções explícitas e
subjacentes de certos objetos de pesquisa.
Vale ressaltar aqui a concepção de documento, ou seja, a base
de conhecimento determinado materialmente e passível de utilização
para consulta, estudo ou prova. Nossa pesquisa foi documental, a
partir do momento em que foi realizada por meio de verificação
de registro da carta de Esperança Garcia, importante documento
retrospectivo que passou por verificação em pesquisa anteriormente,
feita pelo historiador Luiz Mott, conforme já mencionamos, e pela
Comissão Estadual da Verdade e da Escravidão Negra da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB).
A cópia desse documento está disponível no site intitulado
Esperança Garcia, destinado à veiculação de sua história e memória.
Nesse sentido, nossa pesquisa surgiu de estudos relativos à
Linguística Jurídica, no momento em que cursamos a disciplina
Linguagem Jurídica e Dialógica. Ao buscar informações sobre

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registros antigos de uso do vocabulário jurídico no Brasil, deparamo-


nos com a imagem da carta, o que nos motivou a verificar do que se
tratava e de quem era sua autoria.
O corpo do trabalho começou a ganhar formato quando
ingressamos no Grupo de pesquisas em Direito, Desenvolvimento
e Justiça (GEDED) do curso de Direito do Claretiano – Centro
Universitário de Batatais, em meados de março de 2021. As reuniões
periódicas feitas por esse grupo serviram-nos de base para uma
iniciação científica, sendo que as leituras e discussões procedidas,
ainda que não relativas diretamente ao tema deste presente trabalho,
foram cruciais para que se desenvolvesse nosso perfil de pesquisador.
No primeiro semestre desse ano, procedemos leituras e fizemos
buscas de informações em sites e artigos disponíveis na internet
sobre Esperança Garcia e sua carta, além de procedermos também
a aquisição de conhecimento teórico que suplantasse nossa análise.
Assim, no segundo semestre, tivemos a oportunidade de
apresentar nosso trabalho no Encontro Nacional Claretiano de
Iniciação Científica, que ocorreu em outubro de 2021.
Diante disso, pudemos analisar como a carta foi escrita e
verificar se contém traços que comprovam a alfabetização precária
de sua autora. Buscamos, também, examinar a presença de relatos
que possibilitem compreender a condição feminina da época e as
similaridades da carta com a estrutura composicional de um Habeas
Corpus.
Foi por meio desses aparatos teórico-metodológicos que
também pudemos verificar relações desse ato com o historicismo
jurídico, diante de princípios do direito consuetudinário, e da
comparação que essa escola faz entre este e o direito à linguagem,
ambos considerados fenômenos culturais que são frutos da evolução
histórica do povo.

3.  A CARTA DE ESPERANÇA GARCIA

Segundo informações contidas no site Esperança Garcia, a


carta que é o objeto de análise de nossa pesquisa foi encontrada

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pelo historiador Luiz Mott em arquivo público do Piauí, ao realizar


sua pesquisa de Mestrado em 1979.
O texto foi manuscrito em uma única página e acredita-
se tratar-se do documento mais antigo de reivindicação de uma
pessoa em situação de escravidão a uma autoridade, e que pode ser
visualizado a seguir (Figura 1).
Figura 1. A carta de Esperança Garcia.

Fonte: foto de Paulo Gutemberg. (Esperança Garcia, Org, [s.d], [n.d.])

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A seguir, apresentamos a transcrição fidedigna de seu texto,


que está disponível no site Esperança Garcia:
“Eu Sou hua escrava de V.S administração do Cap.am Antoº
Vieira de Couto, cazada. Desde que o Cap.am pª Lá foi administrar,
q. me tirou da Fazdª dos algodois, onde vevia co meu marido, para
ser cozinheira da sua caza, onde nella passo mto mal.
A primeira hé q. há grandes trovoadas de pancadas enhum
Filho meu sendo huã criança q lhe fez estrair sangue pella boca, em
min não poço esplicar q Sou hu colcham de pancadas, tanto q cahy
huã vez do Sobrado abacho peiada; por mezericordia de Ds esCapei.
A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres
annos. E huã criança minha e duas mais por Batizar.
Pello ã Peço a V.S pello amor de Ds e do Seu Valim ponha aos
olhos em mim ordinando digo mandar a Porcurador que mande p.
a Fazda aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e Batizar
minha Filha
De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia” (Esperança Garcia, Org,
[s.d], [n.d.])
Em seguida, apresentamos a transcrição de seu texto à língua
vernácula atual, também disponível no mesmo site:
“Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio
Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que
me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido,
para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal.
A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um
filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca;
em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto
que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus
escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a
três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar.
Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento,
ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para
a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar
minha filha”.

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4.  PELA CARTA, UMA PRESENÇA FEMININA NO


DIREITO

Ao analisarmos a caligrafia de Esperança Garcia em sua


carta, percebe-se, pelo documento, que foi alfabetizada, pois teve
contato com a escrita, ainda que de modo precário. Contempla-
se essa ideia pela presença de erros gráficos (“hua”/“huã” em vez
de “uma”; “vevia”, em vez de “vivia”; “alogodois”, em vez de
algodões; “min”, em vez de “mim”; “poço”, em vez de “posso”).
Em comparação com um documento da época redigido por
padres jesuítas, verifica-se, pelo formato de sua letra, que Esperança
Garcia não teve possibilidade de treino, tal como pessoas brancas
alfabetizadas dessa época puderam ter. Isso é facilmente visível na
imagem a seguir (Figura 2), que denota zelo e esmero na disposição
manuscrita. Isso, de certo modo, pode comprovar que o acesso de
Esperança Garcia à linguagem foi inconsistente.
Figura 2. Texto manuscrito por padre jesuíta datado de entre 1730
e 1740.

Fonte: documento disponível em obra manuscrita e em exposição na Biblioteca


da PUCRS. (Portal das Missões, [s.d], [n.d.])

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Analisamos também a presença de relatos que permitem


compreender a condição feminina da época.
Em sua carta, Esperança Garcia relata que era casada (“aonde
vivia com meu marido”). No que concerne ao casamento naquela
época, foi estabelecido pela Igreja Católica, após o Concílio de
Trento (1545-1563), que o matrimônio religioso era o único passível
de reconhecimento e se tratava do contrato entre duas pessoas,
de modo que o casamento católico tinha caráter sacramental,
monogâmico, indissolúvel e heterossexual (GHIRARDI, 2004).
Com a colonização, os europeus trouxeram seus costumes e
sua cultura. Nesse sentido, Miguel Reale (1993, p. 25, aspas do
autor) adverte que:
A cultura existe exatamente porque o homem, em busca da
realização de fins que lhe são próprios, altera aquilo que
lhe é “dado”, alterando-se a si próprio. O termo técnico
“cultura”, embora distinto do usual, guarda o mesmo
sentido ético, o que compreenderemos melhor lembrando
que a cultura se desdobra em diversos “ciclos culturais”
ou distintos “estágios históricos”, cada um dos quais
corresponde a uma civilização.
Desse modo, nota-se que o casamento sempre teve grande
influência na vida das pessoas, tanto para interesses sociais e
políticos, quanto para a Igreja, a fim de implantar seus princípios
teológicos cristãos. Quanto a isso, Pimentel (2005, p. 20), em seu
artigo sobre o casamento no Brasil Colonial, aduz que:
[...] nas áreas coloniais, o casamento teve papel fundamental.
No Brasil, foi um instrumento de aquietação da população
e de preservação da estrutura social portuguesa, assim
como de implantação dos princípios cristãos entre os
colonos.
Sendo assim, os senhores de engenho verificaram que os
escravos que constituíam família eram mais obedientes e exerciam
melhor suas funções laborais. Nesse sentido, verifica-se que, na
época:
[...] a maioria dos senhores estimulava o casamento entre
seus escravizados no sentido de aumentar a mão de obra
na lavoura e evitar nas partilhas a separação das famílias
constituídas (BATTISTONI FILHO, 2021, n. p.).

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Ainda mais, os fazendeiros da época acreditavam que o


casamento dos escravos era a melhor maneira de os prender à
fazenda, caracterizando, assim, uma forte garantia de sua boa
conduta.
Ainda que houvesse dificuldades para a concretização do
casamento entre escravos e fosse necessário o consentimento de
seu amo, Silva (1984, p. 140) afirma que:
[...] a Igreja defendia o direito do escravo de casar e a
usufruir de uma vida conjugal normal, como se não
estivesse em cativeiro, mas ao mesmo tempo, tinha o
cuidado de explicitar que o casamento nada tinha a ver
com alforria.
Além disso, a autora (SILVA, 1984) nos esclarece que a Igreja
notificava que a vontade do senhor não era motivo de impedimento
da celebração, bem como os cônjuges não poderiam ser vendidos
isoladamente, separando-os conforme a conveniência do senhor.
Mesmo assim, as normas da Igreja não eram totalmente respeitadas
pelos senhores de escravos.
Notamos na carta que Esperança Garcia era uma mulher
casada e que teve seu direito ferido, uma vez que a separaram
fisicamente de seu esposo. Pela carta, expressa por meio da
linguagem escrita, ela solicitou que fossem cumpridos os direitos
que ela possuía, conforme expusemos. Dessa forma, isso comprova
que ela tinha conhecimento de seus direitos, e caracteriza também
sua alfabetização.
No tocante às figuras femininas da época, a história nos
demonstra que elas eram peças fundamentais no cenário colonial
brasileiro, ao desempenharem determinadas funções sociais,
mas que viviam sob regras rígidas que lhes eram impostas. Tais
determinações intentavam controlar os males que as mulheres
disseminariam por todo o território. O discurso ideológico da Igreja
Católica e o atestado da medicina eram duas formas de controle
social feminino na época, conforme nos orienta Priore (1993).
De igual modo, a autora (PRIORE, 1993) expõe que as
mulheres recebiam orientações para que se casassem, constituíssem

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famílias, fossem mães e tomassem como exemplo Nossa Senhora,


mãe de Jesus Cristo.
Percebe-se que a ideologia predominante era a de submissão
da mulher ao homem, o que demarca uma sociedade patriarcal.
Isso nos permite afirmar que, ao escrever a carta, Esperança Garcia
executa um ato de coragem ao endereçá-la ao governador da
Capitania, o que caracterizaria uma afronta aos costumes e valores
da época.
Quando os escravos chegaram ao Brasil, entre meados do
século XVI e século XVII, o cenário também foi caracterizado
pela presença da mulher negra e escrava. Os africanos que aqui
adentravam foram destinados às fazendas, para o trabalho escravo.
Ali havia a Casa Grande, local onde o senhor do engenho residia
com sua esposa e filhos, uma edificação aconchegante, com grande
número de quartos. Já os escravos foram depositados nas senzalas,
sem qualquer tipo de conforto ou quaisquer providências dignas de
habitação, o que reforçava a visão do negro como inferior, um ser
sem alma (SILVA; CASTILHO, 2014).
As mulheres negras e escravas trabalhavam na cozinha da
Casa Grande, e o mesmo tratamento severo dado aos homens
era destinado a elas, pois, mesmo grávidas ou em período de
amamentação, não tinham o trabalho diminuído. Nas fazendas,
as escravas estavam submetidas a todo o tipo de sorte, uma vez
que também sofriam abusos sexuais de seus senhores, capatazes e
feitores. Por isso, viviam em condições subalternas e em constante
exploração física e sexual. Ao se tornarem mães, tinham que
conviver com o medo de perder o filho, que poderia ser vendido ou
assassinado (SILVA; CASTILHO, 2014).
Diante disso, confirmamos a veracidade do que Esperança
Garcia relata em sua carta, ao registrar que foi retirada da fazenda
onde vivia anteriormente e separada de seu marido, para ser
cozinheira da casa. No local, relata que ela e o filho foram alvos de
atos violentos.
Como demonstramos, eram essas as condições femininas da
época, em especial aquelas às quais eram submetidas as mulheres

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negras e escravas. Se a mulher da época era submissa ao homem, as


mulheres negras e escravas ocupavam posição bem mais inferior.
Diante dos relatos de violência registrados por Esperança
Garcia na carta e de seu pedido ao governador da Capitania,
verificamos similaridades nesse documento com a estrutura
composicional de um Habeas Corpus.
O termo “Habeas corpus” provém do latim e significa a
essência desse instituto que, literalmente, quer dizer “tome o
corpo”, ou seja, tome a pessoa presa e a apresente ao juiz, para que
seu julgamento seja procedido pelo por ele (MIRABETE, 2002, p.
709). Nesse sentido, Ferreira (1988, p. 6) acrescenta:
[...] ter corpo, ou tomar o corpo, é uma metáfora, que
significa a liberdade de ir e de vir, o poder de locomoção,
o uso dessa liberdade de locomoção livremente, salvo
restrições legais a todos impostas indistintamente.
Esse instituto legal está previsto no direito positivo brasileiro
ao ser preceituado pelo art. 647 do Código de Processo Penal
(CPP), bem como pelo art. 5º, inc. LXVIII da Constituição Federal
de 1988, cuja disposição é a seguinte:
[...] conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer
ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua
liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder
(BRASIL, 1988, [n. p.]).
Nesse diapasão, podemos concluir que tal instituto legal
se presta à salvaguarda da liberdade de todo ser humano que
sofre constrangimento ou que está na iminência de o sofrer. Seu
requerimento pode ser procedido por qualquer pessoa, inclusive em
favor de terceiros. Por conseguinte, constitui uma garantia de um
direito fundamental, com vistas a nos amparar para o impedimento
de qualquer injustiça cometida contra nossa liberdade.
Sua estrutura composicional está prevista no §1º do art. 654
do CPP, de modo que a redação desse instrumento deve conter:
a) o nome do paciente; b) o nome de quem exerce a violência,
coação ou sua ameaça; c) o tipo de constrangimento ou, em caso
de ameaça, as razões do temor; d) a assinatura do impetrante ou de
quem subscreve por ele, bem como suas respectivas residências.

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Vale ressaltar que o referido remédio constitucional pode


ser apresentado em documento digital, ou ser escrito à mão, em
qualquer pedaço de papel, pois o que importa é o pleito pelo direito
de ir e vir. Tal facilidade viabiliza o acesso à justiça e, de modo
algum, banaliza a ação.
Diante do exposto, encontramos na carta escrita por Esperança
Garcia o preceito elencado na Carta Magna e no art. 647 do CPP,
além de todos os requisitos previstos no art. 654 do mesmo Código,
o que comprova o documento ter de fato a natureza de um Habeas
Corpus.
Por fim, discutimos as relações entre esse ato e o historicismo
jurídico, no que tange aos princípios do direito consuetudinário,
e à comparação que essa escola procede entre este e o direito à
linguagem, ao considerá-lo como fenômeno cultural que é fruto da
evolução histórica de um povo.
O Direito Natural, ou Jusnaturalismo, concerne ao direito
inerente a todo ser humano, desde seu nascimento, e independente
do Estado ou de leis. Portanto, é considerado autônomo, universal,
imutável e atemporal. Baseia-se nos princípios humanos e na
moral. Atualmente, o Direito Natural é visto como um conjunto de
princípios considerados pelos legisladores no momento de criação
de novas leis, isto é, na elaboração do Direito Positivo.
Como direitos naturais, podemos destacar o direito à vida, à
igualdade e à liberdade, além do direito à linguagem.
Hans Kelsen (apud MATOS, 2006, p. 191) ressaltou que “[...]
as normas imutáveis da doutrina do direito natural apenas podem
ser as leis naturais”. Nesse sentido, pode-se definir o Direito Natural
como aquele estabelecido por algo que está em posição superior à
do homem, tal como a natureza ou Deus. Dito isso, verifica-se que
tal direito é imutável e dotado de eficácia universal.
Além disso, cabe frisar que nem sempre foi o Estado o
ente que determinou o direito, uma vez que o Direito Natural
não provém do domínio estatal. Norberto Bobbio (1995) discutiu
com propriedade o que se refere ao Direito Natural e ao Direito
Positivo, ao certificar que a lei natural resiste ainda que tenhamos

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a presença do Direito Positivo e da codificação. Em razão disso, é


indispensável a permanência dos dois direitos, pois, na ausência
do Direito Positivo, o magistrado pode se valer dos ditames da lei
natural.
Savigny, fundador da Escola Histórica, que é base do
pensamento do historicismo jurídico, critica o posicionamento do
Jusnaturalismo, dado que os historicistas interpretam o Direito a
partir do Direito Consuetudinário que é, para eles, a manifestação
jurídica genuína, pois emana do povo (GONZAGA, 2017).
Nesse sentido, os historicistas aduzem que cada povo tem seu
próprio Direito, tendo por base elementos culturais como a religião,
os costumes, a língua etc. Tal Direito não é algo imutável, mas sim
algo que se desenvolve com aquele povo, ou seja, nasce, cresce e
morre quando perde sua personalidade (GONZAGA, 2017).
Contudo, há de se convir que ambos os posicionamentos
tratam de Direitos que são inerentes ao ser humano, ainda que não
positivados.
Na carta de Esperança Garcia, percebemos que as violações
sofridas concernem a direitos considerados naturais, tais como a vida,
a liberdade e igualdade. Sua vida corria risco, pois, em condições
escravas, precisava se sujeitar aos ditames de seu senhorio. Sua
liberdade foi violada, ao ter que se submeter às vontades desse
mesmo senhorio, não podendo se locomover de onde estava para
onde queria ir, isto é, ao encontro de seu marido que havia ficado
na fazenda em que ela estava anteriormente. Sua igualdade também
não foi assegurada, pois foi mantida em condições sub-humanas de
maus tratos.
Destacamos o seguinte trecho da carta:
Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos
em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande
para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu
marido e batizar minha filha (ESPERANÇA, 2019a, [n. p.]).
Nesse momento, vemos que os direitos naturais violados
foram o ensejo para que essa mulher negra e escrava desse voz
a seu pedido ao governador da Capitania, ao exercer também um

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de seus direitos naturais – o direito à linguagem, pois a linguagem


também é um direito natural do ser humano.
Desse modo, vale mencionar a discussão de que somente
se conhece algo uma vez que o ser humano o constrói pela
linguagem. Então, a sociedade é o sistema mais abrangente em que
a comunicação se desenvolve, e não é possível existir socialmente
sem a linguagem, isto é, sem a comunicação. Para Gregório Robles
Morchon (1998, p. 65), considera-se a sociedade um sistema de
comunicação entre seus membros, e a linguagem tem presença
inarredável nesse processo de comunicação, e esta é o elemento
integrante do sistema social. Por isso, não há sociedade sem
linguagem.
Em face do exposto, é notório que a carta de Esperança
Garcia expõe o cerceamento de seus direitos, e, ao expressar isso
por meio da língua, foi seu texto escrito que permitiu a ela se tornar
um símbolo feminino no meio jurídico somente séculos após sua
morte.

5.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa discussão permitiu demonstrar a importância da carta


de Esperança Garcia, que reside no fato de, pelas vias do Direito,
simbolizar a reivindicação como membro da comunidade política
colonial. Tendo em vista que a população escravizada tinha
estratégias diferentes de resistência e de luta contra a escravidão,
tais como fugas e formação de quilombos, pode-se afirmar
que Esperança Garcia adotou um procedimento diferente, mas
perspicaz e típico de súditos do rei, quando solicitou em sua carta o
cumprimento de normas e de costumes.
Outro fator importante de sua carta corresponde à percepção
de que, já naquela época, os pleitos deveriam constar no mundo
burocrático da escrita, o que nos permitiu verificar que o documento
tem a estrutura composicional e atende aos requisitos legais do que
conhecemos hoje como Habeas Corpus.

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Em conclusão, só nos resta afirmar que, se o esperado após


sua morte seria a perda de sua personalidade, todavia é justamente
após ela que Esperança Garcia conseguiu adquiri-la, pois foi pelo
uso da linguagem em uma carta que ela, uma mulher negra e
escrava do século XVIII, pôde ser considerada a primeira advogada
do estado do Piauí.

REFERÊNCIAS
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Criminalização das drogas no Brasil:


validação da Lei 11.343/2006
sob o olhar de Norberto Bobbio

Felipe GÓES1
José Rodrigues ARIMATÉA2

Resumo: O atual ordenamento jurídico que versa sobre a proibição do porte e


da venda de entorpecentes no Brasil demonstra que a moral brasileira sobre essa
matéria é de reprovação. Contudo, tendo em vista a constante mudança pela qual
passam todas as sociedades, são necessários um esforço contínuo de revisão das
normas jurídicas e a consequente avaliação de se estas ainda representam, de
forma adequada, os anseios da sociedade à qual ela é aplicada. Para tal, faz-se
necessário utilizar um correto rito metodológico de análise. Este trabalho visa
utilizar a teoria de valoração de normas jurídicas cunhada por Norberto Bobbio,
para, a partir da análise da validade, da justiça e da eficácia da Lei 11.343/2006
(Lei de Drogas), desenvolver um juízo acerca da supracitada lei. A partir da
análise de dados de segurança pública, do rito jurídico de criação da Lei e de
uma revisão bibliográfica acerca da justiça, será concluído que a Lei de Drogas é
justa e válida, contudo não é eficaz.

Palavras-chave: Lei de Drogas. Norberto Bobbio. Brasil.

1
Felipe Góes. Bacharelando em Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário. E-mail: felipe06goes@
gmail.com.
2
José Rodrigues Arimatéa. Mestre em Direito Público pela Universidade de Franca (UNIFRAN).
Bacharel em Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário. Bacharel em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC). Docente do Claretiano – Centro Universitário. E-mail:
josearimatea@claretiano.edu.br.

Revista Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 12, n. 2, p. 81-98, jul./dez. 2022


82 ISSN 2237-2318

Drugs criminalization in Brazil: validation of


the Act 11.343/2006 by Norberto Bobbio

Felipe GÓES
José Rodrigues ARIMATÉA

Abstract: The actual brazilian legal system that deals with the prohibition of
possessing and selling narcotics shows that the brazilian morality about this
matter is one of disapproval. However, in view of the constant changes within
the societies, a continuous effort for the legal norms revision and consequent
assessment if they still adequately represent the society’s aspirations, it is
necessary to use a correct analysis methodological rite. Therefore, this paper aims
to use the legal norms valuation theory coined by Norberto Bobbio, which, based
on the analysis of the validity, justice and effectiveness of the act 11.343/2006
(The Drug Law), it will be developed a judgment about the aforementioned act.
Departing from the public security data analysis, the legal rite of acts creation
and a bibliographic revision on justice, it will be concluded that the Drug Law is
fair and valid, however, it is not effective.

Keywords: Drug Law. Norberto Bobbio. Brazil.

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1.  INTRODUÇÃO

Reale (1999, p. 10) assevera que, “[...] enquanto o jurista


constrói a sua ciência partindo de certos pressupostos [...], o
filósofo do direito converte em problema o que para o jurista vale
como resposta ou ponto assente e imperativo”. Alinhado a esse
pensamento, Bobbio (2016, p. 26) afirma que:
Se nos distanciarmos por um momento do homem singular
e considerarmos a sociedade, ou melhor, as sociedades dos
homens; se deixarmos de nos referir à vida do indivíduo e
contemplarmos aquela vida complexa, tumultuada e sem
interrupção das sociedades humanas, que é a história, o
fenômeno da normatividade nos aparecerá de modo não
menos impressionante e ainda mais merecedor da nossa
reflexão.
Os professores Eduardo Bittar e Guilherme de Almeida, em
seu livro Curso de Filosofia do Direito, iniciam o capítulo 32,
intitulado “Direito e Moral: Normas Jurídicas e Normas Morais”,
dizendo que “as regras jurídicas não estão isoladas na constituição do
espaço do dever-ser3 social” (BITTAR; ALMEIDA, 2015, p. 588).
Logo, tendendo o indivíduo a realizar aquilo que lhe parece o seu
bem, em harmonia com os demais, o homem se revela aos outros e
a si próprio (REALE, 1999). Contudo, sob a óptica do subjetivismo
axiológico4, percebe-se a problemática na consideração dos valores
ao longo da análise da norma jurídica, uma vez que, de acordo com
Kelsen (2009, p. 73):
Com efeito, quando se não pressupõe qualquer a priori
como dado, isto é, quando se não pressupõe qualquer
valor moral absoluto, não se tem qualquer possibilidade
de determinar o que é que tem de ser havido, em todas as
circunstâncias, por bom e mau, justo e injusto.

3
Afirmam Bittar e Silveira (2015, p. 433) que “as categorias do ser (sein) e do dever-ser (sollen) são os
polos com os quais lida Hans Kelsen para distinguir realidade e Direito, que caminham em flagrante
dissintonia em sua teoria”.
4
De acordo com Adeodato (2019, p. 205), a respeito do subjetivismo axiológico, “as coisas não são
em si valiosas e todo o valor se origina de uma valoração prévia, a qual consiste em uma concessão
de dignidade e hierarquia que o sujeito faz às coisas segundo o prazer ou desprazer que lhe causam”.

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84 ISSN 2237-2318

A Lei nº 11.343, popularmente conhecida como Lei de Drogas,


está em vigência no Brasil desde 2006. A norma foi sancionada
com os objetivos de:
[...] instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
Drogas (SISNAD); prescrever medidas para prevenção do
uso indevido, atenção e reinserção social de usuários [...] e
definir crimes (BRASIL, 2006, [n. p.]).
Estando a Lei nº 11.343 em consonância com outras normas
que também versam sobre drogas, o ordenamento jurídico-penal
brasileiro caminha em direção a formas mais conservadoras de lidar
com a complexa problemática do uso de substâncias psicoativas
(VERÍSSIMO, 2010). Contudo, tendo em vista a realidade da
superlotação carcerária brasileira (BINATI, 2018; GOUVEA,
2021), o fato de o Brasil apresentar um elevado valor de óbitos em
operações policiais (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA
PÚBLICA, 2021) e o constante aumento do número de drogas
apreendidas em operações policiais (BRASIL, 2021), há espaço
para a análise de quão justa é a Lei de Drogas.
De acordo com Kelsen (2009, p. 11-12):
Como a vigência da norma pertence à ordem do dever-ser,
e não à ordem do ser, deve também distinguir-se a vigência
da norma da sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser
efetivamente aplicada e observada, da circunferência de
uma conduta humana conforme a norma se verificar na
ordem dos fatos. Dizer que uma norma vale (é vigente),
traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que
ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que entre
vigência e eficácia possa existir uma certa conexão.
Nota-se que Kelsen, como defensor da teoria pura do Direito,
correlaciona a validade de uma norma jurídica à sua correta
aplicação e aderência. Kelsen ainda afirma, em fala na qual fica
evidente o seu posicionamento neokantiano com relação à aplicação
lógica das normas jurídicas, que (2009, p. 228-229):
Um tal conflito de normas surge quando uma norma
determina uma certa conduta como devida e outra norma
determina também como devida uma outra conduta,
inconciliável com aquela. [...] Com efeito, os princípios
lógicos, e particularmente o princípio da não-contradição,

Revista Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 12, n. 2, p. 81-98, jul./dez. 2022


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são aplicáveis a afirmações que podem ser verdadeiras


ou falsas; [...] Uma norma, porém, não é verdadeira nem
falsa, mas válida ou não válida. [...] Por isso, os princípios
lógicos em geral e o princípio da não-contradição em
especial podem ser aplicados às proposições jurídicas que
descrevem normas de Direito e, assim, indiretamente,
também podem ser aplicados às normas jurídicas.
Em contraste com a visão kelseniana, Reale (1999, p. 289-
290) assevera que:
Se há, todavia, jusfilósofos que optam pelo fato como
horizonte da normatividade jurídica, outros há que
entendem ser esta logicamente plena, resolvendo-se a sua
validade no seio da ordem normativa mesma, em função
de uma norma fundamental5 que, transcendentalmente,
condiciona todo o sistema. [...] Não faltam, porém,
filósofos do Direito, e não se pode dizer que sejam em
menor número, para os quais a Filosofia do Direito é
incompatível com toda e qualquer espécie de reducionismo.
[...] Inclino-me no sentido da compreensão do Direito em
toda a sua integralidade, tanto assim que a defino como
sendo o estudo crítico-sistêmico dos pressupostos lógicos,
axiológicos e históricos da experiência jurídica.
Na esteira do pensamento de Reale, assevera Bobbio (2016,
p. 52-53) que:
A tripartição das funções do direito (ontológica, deontológica
e fenomenológica) também foi descrita por Eduardo Garcia
Maynez, Julius Stone e Alfred Von Verdross. Maynez
(1948) referiu-se ao direito como a) o direito formalmente
válido; b) o direito intrinsecamente válido; e c) o direito
positivo ou eficaz. Julius Stone (1946) separou o direito
em a) jurisprudência analítica; b) jurisprudência crítica;
e c) jurisprudência sociológica. Finalmente, Alfred Von
Verdross (1950), que seguiu orientação jusnaturalista,
classificou o direito segundo seu valor ideal (justo), seu
valor formal (válido) e sua realização prática (eficaz).
Dessa forma, sob uma ótica que interpreta o direito como
espírito objetivo6, Bobbio (2016), ao afirmar que lei em desacordo
5
Miguel Reale se refere a Hans Kelsen e sua Teoria da Norma Fundamental.
6
Adeodato (2019, p. 213-214) assevera que “o direito positivo realiza a justiça na medida em que
corresponde à intuição dos valores levada a efeito pela comunidade como um todo, configurando o que
Hartmann denominou direito (espírito) objetivo”.

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com a justiça non est lex sed corrupto legis7, está em consonância
com outros autores que enxergam, na Teoria Tridimensional do
Direito – a qual admite uma acepção específica da palavra “justiça”8
–, a existência de três elementos: o fato, a norma e, finalmente, o
valor (RADBRUCH, 2010; BOBBIO, 2016; REALE, 1999). Da
mesma forma, Reale (1999, p. 302, destaque do autor) assevera que:
A realidade jurídica, como veremos, não pertence à
esfera dos objetos reais, nem à esfera ou ao âmbito dos
objetos psíquicos, pois lhe corresponde uma estrutura
própria: a dos objetos culturais e, mais propriamente, a
dos objetos culturais9 tridimensionais, por implicarem
sempre elementos de fato ordenados valorativamente em
um processo normativo.
De acordo com Bobbio (2016, p. 45):
[...] toda norma jurídica pode ser submetida a três valorações
distintas, sendo essas valorações independentes entre
si. De fato, frente a qualquer norma jurídica, podemos
colocar uma tríplice ordem de problemas: a) se ela é justa
ou injusta; b) se ela é válida ou inválida; c) se ela é eficaz ou
ineficaz. Trata-se dos três problemas distintos: da justiça,
da validade e da eficácia.
Por justiça, entende-se a virtude moral que rege o ser espiritual
no combate ao egoísmo biológico, orgânico, herdado pelo indivíduo
(ADEODATO, 2019). Reale (1999, p. 272) afirma que “[...] o valor
próprio do direito é a justiça [...] sendo ela a expressão unitária
e integrante dos valores10 todos de convivência e o pressuposto
de toda ordem jurídica”. Em consonância com o raciocínio, mas
paralelamente expondo a complexidade de uma acepção correta de
justiça, Hartmann (1949, p. 420 apud ADEODATO, 2019, p. 211-
212) assevera que:
7
Não é lei, mas corrupção da lei.
8
Ao invés de interpretar o vocábulo “justiça” no sentido subjetivo aristotélico (isto é, como um
indicativo da vontade ou da virtude de um homem), para a Teoria Tridimensional do Direito, a palavra
justiça é utilizada em sua acepção objetiva, relacionada à ordem social justa que os atos de justiça
projetam ou constituem (REALE, 1999).
9
“A análise do sistema normativo de determinada sociedade em determinado momento permite a
caracterização de sua cultura” (BOBBIO, 2016, p. 26).
10
Bobbio(2019. p. 46), ao afirmar que “[...] o problema da justiça é o problema da correspondência,
ou não, da norma aos valores últimos que inspiram determinado ordenamento jurídico”, parece estar
aderido à linha de raciocínio do parágrafo.

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A justiça não é o direito objetivo nem tampouco o direito


ideal. Na melhor das hipóteses, este último é o objeto
das intenções do homem justo. Mas o uso comum da
linguagem favorece o equívoco. Em um sentido amplo,
“justa” pode ser uma lei, uma disposição, determinada
ordem, na medida em que correspondem à ideia do
direito. Mas, neste sentido, a palavra “justa” não significa
um valor moral da pessoa. A pessoa aqui não é de modo
algum o portador do valor; o valor, muito embora a ação
humana possa inicialmente tê-lo realizado, é unicamente
valor de um objeto, valor de uma situação, um bem para
a pessoa. Neste sentido, todo direito, efetivo ou ideal, é
valioso. Em outro sentido, porém, “justo” é o indivíduo
que faz o certo ou tem a intenção de fazê-lo e que vê e trata
os semelhantes – seja em disposição ou em conduta efetiva
– à luz da igualdade requerida. Aqui a “justiça” é um valor
de ação da pessoa, é um valor moral.
Enquanto o problema da justiça se resolve com um juízo
de valor, o problema da validade se resolve com um juízo de fato
(BOBBIO, 2016). De acordo com Bittar e Almeida (2015, p. 434):
O conceito-chave da teoria da norma jurídica é o conceito
de validade. [...] A validade consiste na existência da
norma jurídica, ou seja, em sua entrada regular dentro
de um sistema jurídico, observando-se a forma, o rito, o
momento, o modo, a hierarquia, a estrutura, a lógica de
produção normativa prevista em dado ordenamento. [...]
A validade não submete a norma ao juízo do certo ou do
errado11, mas ao juízo jurídico, propriamente dito, ou seja,
ao juízo da existência ou não (pertinência a um sistema
formal) para determinado ordenamento jurídico.
De acordo com Reale (1999, p. 597, aspas do autor), que usa
o termo “vigência” para tratar da validade de normas jurídicas:
Numa concepção puramente normativista, o problema
da vigência confunde-se com o dos requisitos formais
indispensáveis a que uma regra de direito adquira ou perca
vigor, [...] pondo-se, quando muito, a questão suscitada
por Kelsen da referibilidade da “vigência empírica” do
sistema positivo à “validade transcendental” da norma
fundamental hipotética.

11
Nesse ponto, Bittar e Almeida ressaltam a visão kelseniana acerca do caráter lógico da linguagem
jurídica.

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Bobbio (2016, p. 47) assevera que:


Há normas que são seguidas universalmente de modo
espontâneo (sendo as mais eficazes), outras que são
seguidas na generalidade dos casos somente quando
estão providas de coação; outras, ainda, que não são
seguidas apesar da coação, e outras, enfim, que são
violadas sem nem sequer seja aplicada coação (sendo as
menos eficazes).
Reale (1999, p. 462-463) afirma que a:
[...] eficácia do Direito significa que os homens realmente
se conduzem de acordo com as normas ou que ditas normas
são realmente aplicadas e cumpridas.
Ainda a respeito da eficácia das normas jurídicas, Kelsen
(2009, p. 202) e Bittar e Almeida (2015, p. 648) registram que:
A eficácia é uma qualidade da norma que se refere à
possibilidade de produção concreta de efeitos, porque
estão presentes as condições fáticas exigíveis para sua
observância, espontânea ou imposta, ou para a satisfação
dos objetivos visados (efetividade ou eficácia social) ou
porque estão presentes as condições técnico-normativas
exigíveis para sua aplicação (eficácia técnica).
Bobbio (2016, p. 48) afirma que:
A investigação para averiguar a eficácia ou ineficácia
de uma norma é de caráter histórico-sociológico, volta-
se para o estudo do comportamento dos membros de
um determinado grupo social e diferencia-se seja da
investigação tipicamente filosófica em torno da justiça,
seja da tipicamente jurídica em torno da validade.
Este estudo objetiva analisar a Lei de Drogas sob o aspecto
de valoração de normas jurídicas cunhado por Norberto Bobbio,
visando avaliar se, sob a ótica do jusfilósofo italiano, a Lei de
Drogas é justa, eficaz e válida.

2.  METODOLOGIA

Como fonte dos dados quantitativos, serão utilizados o


Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a partir da publicação do

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Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em sua edição de 2021


– a qual compilou e analisou os dados do biênio 2019-2020 –, e
o Ministério da Justiça e Segurança Pública.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública reúne dados
relacionados à segurança pública originados das Secretarias de
Segurança Pública dos estados da federação brasileira. Dentre os
dados disponibilizados pelo Fórum, foram analisadas as seguintes
variáveis: a) evolução da quantidade de mortes por intervenções
policiais; b) razão entre a quantidade de civis mortos e policiais
mortos em intervenções policiais; e c) evolução da quantidade
de drogas apreendidas pelas forças policiais.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública instituiu,
em 2019, o Programa Nacional de Segurança nas Fronteiras e
Divisas (Vigia), o qual está presente em 15 estados da federação
e atua em três eixos: operações, capacitações e aquisições de
equipamentos e sistemas (BRASIL, 2021). Ao completar dois
anos de existência, o Ministério da Justiça e Segurança Pública
publicou um compilado de dados os quais relacionaram a
evolução do número de apreensões de drogas, armas e objetos
relacionados a crimes, bem como o número de prisões efetuadas
e operações realizadas.
Esses dados possibilitarão a análise do parâmetro eficácia
da Lei de Drogas. Posteriormente, serão avaliados a autoria e o
rito jurídico do sancionamento da Lei de Drogas, possibilitando
a análise do parâmetro de validade dela. Finalmente, com base
na literatura citada, será analisado o parâmetro justiça da Lei de
Drogas. Frente tais análises, averigua-se se ela é justa, eficaz e
válida sob a ótica de Norberto Bobbio.
Este estudo é considerado uma pesquisa descritiva, tendo
em vista a realização de análise documental e a tentativa de
descrever determinada realidade (GERHARDT; SILVEIRA,
2009).

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3.  RESULTADOS

A Figura I mostra, discriminados por estado da federação,


os dados que representam a relação entre o número de mortes
decorrentes de intervenção policial e o número de policiais vítimas
de CVLI (Crimes Violentos Letais Intencionais) referente aos anos
de 2019 e 2020. A mesma Figura mostra a média nacional desses
dados para ambos os anos de análise.
Figura 1. Relação entre o número de mortes decorrentes de inter-
venção policial e o número de policiais vítimas de CVLI.

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021).

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Por CVLI, entendem-se os crimes de homicídio doloso,


roubo com consequência de morte e lesão corporal seguida de
morte (FERREIRA et al., 2021).
A Figura 2 mostra a evolução do número absoluto de mortes
ocorridas na ocasião de operações policiais desde o ano 2013.
Figura 2. Mortes ocorridas em intervenções policiais entre os anos
de 2013 e 2020.

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021).

A Figura 3 mostra alguns indicadores que representam o


resultado de dois anos de operação do Programa Vigia, o qual
foi apresentado formalmente por integrantes do Ministério da
Justiça e Segurança Pública no ano de 2021. O Vigia segue as
diretrizes do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), com
foco na atuação integrada, coordenada, conjunta e sistêmica entre
as instituições (BRASIL, 2021). Os indicadores representam o
número de objetos oriundos de crimes, drogas e armas apreendidas,
bem como o número de pessoas presas e operações realizadas. É
possível também perceber o percentual de evolução dos mesmos
indicadores desde o início do Programa.

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Figura 3. Indicadores provenientes das operações do Programa Vi-


gia entre os anos de 2019 e 2021.

Fonte: Ministério da Justiça e Segurança Pública (BRASIL, 2021).

4.  DISCUSSÃO

A partir da análise dos dados da Figura I, percebe-se, antes de


tudo, uma grande disparidade entre os dados de CVLI dos estados.
Em relação ao ano de 2019, enquanto o estado de Pernambuco
apresentou uma relação de 8,1 civis mortos para cada policial
morto, o estado do Paraná apresentou uma relação de 288 (mais
de 3.500% superior). Referente ao ano de 2020, enquanto o estado
de Rondônia apresentou uma relação de 5,0 civis mortos para cada
policial morto, o estado de Goiás apresentou uma relação de 210,3
(4.206% superior). Percebe-se também que a média brasileira
diminuiu entre os anos de 2019 e 2020, caindo de 36,9 para 33,1
(11% inferior) e que alguns estados da federação não apresentaram
os dados.
Na tentativa de qualificar quão elevados são os dados obtidos
quando relacionados aos valores esperados, Loche (2010) afirma
que o Federal Bureau of Investigation (FBI) indica a proporção

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de 12 civis mortos para cada policial morto. Já Chevigny (1990),


afirma que “[...] quando essa proporção é maior do que 15,
então a polícia está abusando do uso da força policial” (FÓRUM
BRASILEIRO DA SEGURANÇA PÚBLICA, 2021, [n.p.]), de
modo a sugerir que a força policial pode estar sendo empregada
com propósitos diferentes da proteção à vida (CHEVIGNY, 1990).
Portanto, percebe-se que o valor médio brasileiro atual (33,1),
apesar de apresentar redução quando comparado ao valor anterior,
supera os valores indicados pela literatura em, ao menos, 100%.
Ao analisar a Figura II, percebe-se claramente que o número
de pessoas mortas em intervenções policiais não apresenta declínio
em qualquer período desde 2013. Embora a taxa atual de crescimento
claramente seja menor do que entre os anos de 2013 e 2018, o valor
absoluto atual de óbitos (6.416 mortes) é o maior valor registrado
de Morte em Decorrência de Intervenção Policial (MDIP) desde
que o indicador passou a ser monitorado (FÓRUM BRASILEIRO
DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021).
As informações presentes na Figura III possibilitam perceber
que todos os indicadores relacionados, dentre os quais estão a
quantidade de drogas apreendidas e o número de prisões realizadas
em operações do Programa Vigia, apresentaram aumento expressivo
quando comparados os períodos de 2019-2020 e 2020-2021. Muito
embora tais indicadores não possibilitem, por si só, a análise isolada
e a correlação entre o indicador “drogas” e os demais, fica claro
o aumento de apreensão de drogas por operações do programa,
permitindo interpretar que nem o ordenamento jurídico, nem a
existência de Programas que visam à repressão aos crimes típicos
de fronteira, propiciam a redução destes. Sobre normas válidas e
ineficazes, Bobbio (2016, p. 49) assevera que:
O caso mais clamoroso é sempre o das leis de proibição de
bebidas alcoólicas nos Estados Unidos da América, que
vigoraram durante vinte anos entre as duas guerras. Afirma-
se que o consumo de bebidas alcoólicas durante o regime
proibicionista não era inferior ao consumo do período
imediatamente sucessivo, quando a proibição foi abolida.
Certamente se tratava de leis “válidas”, no sentido de que
emanadas dos órgãos que tinham competência para tanto,
mas não eram eficazes. Sem ir tão longe, muitos artigos

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da Constituição italiana não foram até hoje aplicados. O


que significa a tão frequente deplorável desaplicação da
Constituição? Significa que nos encontramos frente a
normas jurídicas que, embora válidas, isto é, existentes
enquanto normas, não são eficazes.
Portanto, a análise dos dados realizada neste estudo permite
concluir que a Lei de Drogas é ineficaz, uma vez que os crimes
relacionados ao tráfico de entorpecentes, a quantidade de prisões
efetuadas, a quantidade de drogas apreendidas e o número de óbitos
ocasionados pelo combate ao tráfico de drogas apresentam um
crescimento constante.
Relacionado ao processo de construção da norma jurídica, a
Lei nº 11.343, sancionada em 23 de agosto de 2006, foi decretada
pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então Presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar de não ser a primeira
norma jurídica brasileira a tratar de entorpecentes, a lei supracitada
atualizou e substituiu antigos instrumentos, atualizando a estratégia
nacional contra o tráfico de entorpecentes. Desde então, não houve
qualquer norma mais moderna que ab-rogasse a Lei de Drogas, bem
como não foi sancionada qualquer norma que entrasse em conflito
com a lei supracitada12.
Portanto, não tendo a Lei de Drogas sido ab-rogada por norma
alternativa, nem entrado em conflito com outras normas brasileiras,
e tendo sido editada, decretada e sancionada seguindo o devido rito
legal, conclui-se que a Lei de Drogas é válida.
Finalmente, com relação ao aspecto de justiça, Bobbio (2016,
p. 46) assevera que:
[...] Não tocamos aqui na questão se existe um ideal de
bem comum idêntico para todos os tempos e para todos
os lugares. Para nós, basta constar que todo ordenamento
jurídico persegue certos fins, e convir sobre o fato de
que esses fins representam os valores a cuja realização
o legislador, mais ou menos conscientemente, mais ou
menos adequadamente, dirige sua própria obra. [...] O
12
No entanto, há no Brasil, na data de produção deste trabalho, normas que permitem a compra de
determinadas substâncias que podem ser caracterizadas como entorpecentes. Contudo, tais normas
preveem a aplicação dessas substâncias em procedimentos terapêuticos cujo uso da substância esteja
devidamente comprovado, por exemplo, o canabidiol, que é derivado da Cannabis.

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problema sobre se uma norma é justa ou não é um aspecto


do contraste entre mundo ideal e mundo real, entre o
que deve ser e o que é: norma justa é aquela que deve
ser; norma injusta é aquela que não deveria ser. [...] Por
isso, o problema da justiça é denominado comumente de
problema deontológico do direito.
Percebe-se que, mesmo dada a dificuldade histórica de
apropriada e seguramente conceituar o que vem a ser justiça,
Norberto Bobbio adere o seu conceito ao que persegue o
ordenamento jurídico específico do local analisado. Nesse sentido,
tendo em vista que os entorpecentes são proibidos no Brasil desde o
fim do século XIX, a partir do texto do Código Republicano de 1890,
que proibia “substâncias venenosas” (CARVALHO, 1996, p. 24) e,
posteriormente, com o ingresso do Brasil no Modelo Internacional
de Controle às Drogas, em 1938, surge um novo modelo de
proibição de drogas no Brasil (SILVA, 2012). Portanto, dado o fato
de que Bobbio adere a acepção de justiça à compreensão embasada
no ordenamento jurídico de determinada matéria, percebe-se um
ordenamento jurídico, de mais de um século de existência, contrário
ao uso indiscriminado de entorpecentes. Logo, a Lei de Drogas,
sendo parte consonante desse ordenamento jurídico, é considerada
justa.

5.  CONCLUSÃO

O jusfilósofo Norberto Bobbio é tido como uma das figuras


mais proeminentes do saber jurídico, tendo colaborado para o
debate de diversos temas, tanto da área do Direito quanto da área da
Filosofia. Em seu livro intitulado Teoria da Norma Jurídica, Bobbio
defende a teoria dos três critérios de valoração de normas jurídicas,
a qual visa observar quão eficaz, justa e válida é determinada norma.
Este estudo procurou fazer uso dessa teoria para avaliar se a
Lei nº 11.343/2006 atende aos três critérios definidos por Bobbio.
A conclusão é que a Lei de Drogas é justa e válida, contudo não é
eficaz.
A análise realizada neste estudo foi delimitada à Lei de
Drogas, sendo ela representante de todo o ordenamento jurídico que

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versa sobre a matéria em questão. Para futuros trabalhos correlatos,


recomenda-se uma análise mais específica dos dados quantitativos
relacionados e uma análise que abranja um maior número de
normas, não ficando apenas aderida a análise a uma determinada
norma específica.

REFERÊNCIAS

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ISSN 2237-2318 99

A imposição do Código Penal de 1890 e as


tendências penais no início da República

Paulo Henrique Miotto DONADELI1

Resumo: O presente estudo tem como objetivo fazer uma reflexão sobre
a criação e imposição do Código Penal de 1890, no período de transição do
Governo Provisório da República, discutindo os reais interesses de colocar em
vigor às pressas uma lei complexa, por meio de um Decreto Executivo, sem
o devido debate público e sem a participação do Poder Legislativo, focando a
questão sobre a decisão de sua antecipação antes mesmo da promulgação da
Constituição Republicana de 1891. É preciso verificar como essa legislação penal
tratou as tendências penais do final do século XIX, compreendendo seus avanços
e retrocessos para a época. O trabalho utiliza obras bibliográficas e documentais,
da época dos fatos e dos tempos atuais da Historiografia, para estabelecer uma
narrativa de que o Código serviu a interesses das classes econômicas que estavam
no poder e, sem se preocupar muito com as correntes penais, valorizou o controle
social e a garantia da ordem. É importante a leitura de documentos como a Ata
da Sessão do Governo Provisório da República de 04 de dezembro de 1989, bem
como dos Registros da Assembleia Nacional Constituinte, para compreender os
movimentos políticos e jurídicos em torno dessa lei.

Palavras-chave: Código Penal de 1890. Antecipação da Vigência. Governo


Provisório da República. Assembleia Nacional Constituinte. Escolas Penais.

1
Paulo Henrique Miotto Donadeli. Pós-doutor em Direito pela Universidade de São Paulo – USP,
campus Ribeirão Preto. Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus
Franca. Mestre em Direito pela Universidade de Franca (UNIFRAN). Docente do curso de Direito do
Claretiano – Centro Universitário de Batatais. E-mail: paulodonadeli@claretiano.edu.br

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The imposition of the Penal Code of 1890 and


the penal tendencies in the beginning of the
Republic

Paulo Henrique Miotto DONADELI

Abstract: The present study aims to reflect on the creation and imposition of the
Penal Code of 1890, in the transition period of the Provisional Government of
the Republic, discussing the real interests of quickly putting into force a complex
law, through an Executive Decree, without due public debate and without the
participation of the Legislative Power, focusing on the question of the decision
of its anticipation even before the promulgation of the Republican Constitution
of 1891. It is necessary to verify how this penal legislation dealt with the penal
tendencies of the end of the nineteenth century, understanding its advances and
setbacks for the time. The work uses bibliographical and documentary works,
from the time of the facts and the current times of historiography, to establish
a narrative that the Code served the interests of the economic classes that were
in power and without worrying too much about penal chains, it valued control
society and the guarantee of order. It is important to read documents such as
the Minutes of the Session of the Provisional Government of the Republic of
December 4, 1989, as well as the Records of the National Constituent Assembly,
to understand the political and legal movements around this law.

Keywords: Penal Code of 1890. Anticipation of Validity. Provisional Government


of the Republic. National Constituent Assembly. Penal Schools.

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1.  INTRODUÇÃO

O Estado Republicano, recém-instituído, estabeleceu seu


estatuto jurídico penal, por meio da imposição do Código Penal
de 1890, Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, pelo Marechal
Deodoro, presidente do Conselho de Ministros do Governo
Provisório da República. O Código Penal de 1890 foi promulgado
antes mesmo da Carta Constitucional Republicana, denunciando
uma afronta ao princípio básico do constitucionalismo moderno,
segundo o qual a Constituição deve ser a lei primeira, da qual todas
as outras são oriundas.
A pressa em impor um novo Código Penal à recente República,
antecipando sua vigência, revela mais uma necessidade de coibir
práticas contrárias aos interesses políticos, do que organizar a
estrutura jurídica institucional, podendo ser interpretado como uma
evidência histórica de que havia uma preocupação em realizar o
controle social (DONADELI, 2016).
O Direito é um processo dinâmico, que deve ser analisado e
compreendido no bojo de conflitos e tensões sociais (WOLKMER,
2002). Nos momentos de transições políticas, exige-se do Direito
uma postura adequada para responder as demandas que surgem.
O Direito cumpre “[...] nos momentos de mudança, um papel
legitimador do status quo, um papel restaurador e reacionário, ou
ainda um papel legitimador no novo regime” (LOPES, 2014, p. 3).
É nos períodos de desequilíbrios políticos e institucionais
que se requer maior vigilância do Estado, por meio de suas forças
policiais e judiciárias, bem como de uma legislação mais enérgica
e ideologicamente alinhada aos valores que se busca preservar. O
Direito Penal está correlacionado ao pensamento ideológico do
Estado, aos seus interesses econômicos e às expectativas da classe
dominante, para garantia do poder. Não é por acaso que, em todos
os momentos de mudança política, se privilegia a legislação penal.
Após a independência, nosso primeiro Código foi o Criminal de
1830. Da mesma forma, proclamada a República, nossa primeira
grande alteração legislativa foi a imposição do Código Penal de
1890 (DONADELI, 2016).

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O presente artigo busca discutir as tendências do Direito


Penal no tumultuado período de passagem da Monarquia à
República, momento complexo marcado por uma ruptura jurídica
institucional, pela efervescência de novas ideias, por crises e pelas
instabilidades políticas. A grande questão é refletir sobre a criação
do Código Penal de 1890, a antecipação de sua vigência, a reação
da Assembleia Nacional Constituinte a sua imposição via Decreto
e os interesses que estão por trás da criação dessa lei. Por meio
da pesquisa descritiva bibliográfica e do procedimento histórico,
o trabalho propõe entender a pressa em colocar em vigor uma
lei tão complexa e importante socialmente e os interesses que a
sua promulgação servia, mostrando que essa pressa resultou na
elaboração de um Código com contradições e desatualizado em
relação ao pensamento jurídico penal presente nas principais
legislações mundiais.

2.  O CÓDIGO PENAL DE 1890 E A NOVA ORDEM RE-


PUBLICANA

O Governo Provisório da República se mostrou autoritário


em diversos momentos, como: as duras medidas tomadas contra o
motim de algumas tropas no Rio de Janeiro, em 18 de dezembro de
1889, coibindo qualquer tipo de conspirações contra o novo regime;
a enérgica reação à recusa do Imperador em aceitar a quantia em
dinheiro oferecida para a manutenção da família imperial, sendo
esse fato interpretado como uma ação de rejeição e resistência à
República, o que implicou o banimento do Imperador; a edição
do Decreto nº 85 A, de 23 de dezembro de 1889, que criou uma
Comissão Militar para julgamento dos crimes de conspiração contra
a República, aplicando as penas militares de sedição; a edição do
Decreto nº 7, de 20 de novembro de 1889, que dissolvia e extinguia as
assembleias provinciais e fixava provisoriamente as atribuições dos
governadores dos Estados; o afastamento de detentores de cargos
vitalícios ligados ao antigo regime e a constante vigilância mantida
contra políticos e intelectuais; as perseguições contra a imprensa e
o combate a qualquer tipo de propaganda negativa ou contrária ao
governo; o empastelamento de jornais e as prisões ilegais; as várias

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tentativas de reforma da legislação brasileira de imprensa, buscando


estabelecer mecanismos de controle do discurso; as decretações de
estado de sítio; entre outras medidas repressivas (JANOTTI, 1986).
A preocupação imediata que permeou o Governo Provisório
foi a manutenção da ordem pública. O militarismo impôs a
República pelo uso da força e manteve o regime pela coação, pois
a “República se fez pela espada” e transformou as Foças Armadas
em um soberano (HAHNER, 1975, p. 106). Os militares à frente
do Governo Provisório “[...] passam a representar seu papel como
dotado de missão de realizar com pureza a verdadeira república”
(LESSA, 1988, p. 57). O Governo Provisório entendia que medidas
rigorosas que limitavam direitos individuais eram justificadas para
preservar os interesses superiores da pátria.
O Código Penal de 1890 precisa ser compreendido dentro dessa
estrutura autoritária e repressora no período inicial da República,
como um instrumento legitimador de um projeto de poder. Foi
decretado com o fim de criar mecanismos de administração da
ordem, representando todos os conservadorismos sociais da época
(DONADELI, 2016).
O Ministro da Justiça Campos Salles, por reconhecer a
necessidade da reforma da legislação penal, perante a implantação
das novas instituições políticas republicanas, determinou a
elaboração do Código Penal. Para a missão de organizar o projeto,
foi convidado o Conselheiro Baptista Pereira, que, ao aceitar a
incumbência, assumiu uma condição: “[...] da apresentação urgente
do trabalho, para que o novo código pudesse ser promulgado antes
da reunião do Congresso, que se avizinhava” (SIQUEIRA, 1921,
p. 11). É importante observar que o Conselheiro Batista já estava
incumbindo, desde o último ano do Império, de fazer uma reforma
no Código Criminal, mostrando que já existia uma preocupação em
adequá-lo (PIERANGELI, 2001).
A pressa na elaboração é entendida como uma necessidade
do novo regime ter sua lei penal coadunada com seus valores e
interesses. Não era possível, em plena vigência da República,
continuar aplicando o Código Criminal de 1824, que era uma
representação da Monarquia. O trabalho foi realizado em pouco

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mais de três meses e, após finalizado, foi examinado por uma


comissão nomeada pelo ministro da Justiça, sob a sua presidência,
iniciando seus trabalhos, com assistência do autor do projeto, em
29 de setembro de 1890. Faziam parte dessa comissão os Drs. José
Júlio de Albuquerque Barros (Barão de Sobral), Francisco de Paula
Belfort Duarte e Luiz Antônio dos Santos Werneck. Após a análise
da comissão, o projeto foi adotado na sua quase totalidade, com
poucas alterações e algumas emendas de mera redação (SIQUEIRA,
1921).
O Código Penal estava dividido em 4 Livros: o Livro I,
formado pelos primeiros 86 artigos, tratava “Dos crimes e das
penas”, e, por sua vez, ditava normas gerais sobre aplicação e
efeitos da lei penal, conceito e estrutura do crime, responsabilidade
criminal, causas de justificação de crimes, espécies de penas,
circunstância agravantes e atenuantes das penas, execução penal e
extinção da punibilidade. O Livro II trazia os “crimes em espécie”,
formado por 13 Títulos, divididos em capítulos e sessões, seguidos
pelo Livro III, que prescrevia as “Contravenções em espécie”. O
Código Penal de 1890 fez a opção técnica pela bipartidarização, ou
seja:
[...] existem crimes e contravenções, ao contrário do
Código Francês, por exemplo, com sua tripartidarização,
no qual há o crime, a contravenção e o delito (CANCELLI,
2001, p. 38).
A classificação e o posicionamento dos tipos penais dentro
do Código revelam os valores jurídicos que o legislador adotou.
Por muito tempo vigorou a divisão, estabelecida pelo Direito
Romano, entre crimes públicos e privados. Há codificações, por
influência do direito canônico, que deram preferência aos crimes
praticados contra os valores religiosos, bem como existem Códigos
que simplificaram a previsão tipológica pela ordem alfabética. No
século XVIII, as codificações modernas adotaram como sistema
de classificação a gravidade do crime e a natureza do bem jurídico
fundamental tutelado pela norma penal (MIRABETE, 2011).
O Código Penal de 1890 iniciou a descrição típica pelos
crimes contra o Estado, mostrando que o maior valor de uma
sociedade era preservar suas instituições políticas, seu Direito e,

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fundamentalmente, a ordem e paz pública. O seu Livro II trouxe


como título inicial “Dos crimes contra a existência política da
República”, que estava dividido nos seguintes capítulos: dos
crimes contra a independência, integridade e dignidade da pátria;
dos crimes contra a constituição da república e forma de seu
governo; dos crimes contra o livre exercício dos poderes políticos.
O segundo título tratou “Dos crimes contra a segurança interna da
República”: conspiração; sedição e ajuntamento ilícito; resistência;
tirada ou fugida de presos do poder da justiça e arrombamento das
cadeias; desacato; e desobediência às autoridades. Na sequência
do Código, os crimes tipificados continuavam privilegiando
a ordem dos interesses do Estado (crimes contra a boa ordem e
administração pública; crimes contra a fé pública; crimes contra a
fazenda pública), para depois tratar dos crimes contra a família e só,
por último, dos crimes contra a segurança da pessoa e vida, contra
a honra e a boa fama e a propriedade pública e particular. A ordem
da classificação dos crimes no Código Penal se preocupava com a
repressão às condutas atentatórias ao novo regime (DONADELI,
2016).
A redação original do Código Penal Republicano, Decreto nº
847, de 11 de outubro de 1890, em seu Artigo 411, estabelecia: “Este
codigo começará a ser executado em todo o território da República
seis mezes depois de sua publicação na Capital Federal” (BRASIL,
1890, p. 77). Os seis meses mencionados eram o prazo necessário
para que a sociedade tomasse conhecimento da nova lei, podendo
melhor adaptar-se às novas disposições legais. Mas, pouco tempo
depois da sua promulgação, foi expedido o Decreto nº 1127, de
6 de dezembro de 1890, que alterava a data de entrada em vigor
do Código Penal Brasileiro, antecipando a sua vigência. Dessa
forma, o referido Decreto previu prazos escalonados de entrada em
vigência do novo Código Penal:
1.° No Districto Federal em 20 deste mez;
2.° Em todos os Estados do litoral desde o Rio Grande do
Sul até o Pará e Minas Geraes, no dia 1 de fevereiro de
1891;
3.° Nos Estados do Amazonas, Goyas e Matto Grosso em
1 de março de 1891 (BRASIL, 1890, p. 77).

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O decreto de antecipação da vigência justificava que o Código


Penal, decretado em 11 de outubro de 1890, precisava entrar em
vigor porque representava a consolidação de uma lei penal de acordo
com os princípios mais adiantados da ciência, suprindo lacunas da
legislação criminal anterior (Código Criminal do Império de 1830)
e representava o desejo da sociedade, estabelecendo penas mais
brandas e proporcionais à culpa, bem como um regime penitenciário
mais adaptado à emenda e correção dos delinquentes. Por esses
motivos, o Governo Provisório da República entendia que:
[...] o longo prazo unico, fixado no art. 411, para o começo
da execução em todo o territorio da República, priva ainda
por muitos mezes os logares mais proximos, em que a
lei já é assaz conhecida, dos benefícios della resultantes
(BRASIL, 1890. p. 3991-3992).
A Ata da Sessão do Governo Provisório, de 04 de dezembro
de 1890, revela os reais motivos da antecipação da entrada em
vigência do novo Código Penal, qual seja, suprir a lacuna da lei
penal em relação ao crime de imprensa, evitando que ofensas
livremente fossem feitas ao Governo, principalmente a seus
membros, sem que ficassem impunes seus autores. O Governo
Provisório vinha incomodado com a ação de jornalistas criticando
sua atuação, mas não podia criminalizar essas condutas e
responsabilizar criminalmente esses autores, pois não havia uma
legislação específica sobre a questão. E o Código Penal, que tratava
dos crimes de imprensa, não poderia valer, pois ainda não estava
vigente (ABRANCHES, 1907).
O Código Penal, quanto à imprensa, apresentava uma nova
modalidade na apuração dos responsáveis: era o sistema
de solidariedade criminal, em substituição ao sistema de
responsabilidade sucessiva do Código do Império. Desde
modo, a nova legislação determinava que nos crimes
de abuso de liberdade de comunicação do pensamento,
seriam solidariamente responsáveis o autor, o dono da
tipografia, litografia ou do jornal e o editor; também era
considerado responsável o vendedor ou distribuidor de
impressos ou gravuras, quando não constasse quem era
o dono do estabelecimento de impressão ou esse fosse
residente em país estrangeiro. Segundo o Código, nesses
crimes não se dava cumplicidade e a ação criminal

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respectiva poderia ser intentada contra qualquer dos


responsáveis solidários, a arbítrio do queixoso; e garantia
que no julgamento destes crimes os escritos não seriam
interpretados por frases soltas, transpostas ou deslocadas.
A nova legislação buscava punir os crimes contra a
existência política e a segurança interna da República e
contra os direitos autorais, coibia também a calúnia e a
injúria e previa as formas do uso ilegal da arte tipográfica,
prevendo as respectivas punições às práticas criminosas
(ALVES, 2000, p. 32).
Dessa forma, resolveu-se adiantar a entrada em vigor do
novo Código, que tipificava os crimes de imprensa, evitando que
ofensas ao governo ficassem impunes. Dias depois dessa reunião,
foi expedido o Decreto nº 1127, de 6 de dezembro de 1890, que
marcava novos prazos para a execução o Código Penal Brasileiro
(DONADELI, 2016).
Além dos inúmeros problemas de imperfeições jurídicas e
pelo exagerado formalismo apontado e criticado pelos juristas da
época, que afirmavam ser o Código Penal uma errônea transposição
do Código Italiano, os princípios que informaram o sistema penal
no início da República não estavam, de forma alguma, orientados
pelos novos princípios jurídicos que vinham sendo discutidos no
Brasil e no exterior (DONADELI, 2016). Em termos de estrutura
normativa e coerência teórica, é bem inferior se comparado ao
Código Criminal do Império. Tinha inúmeras falhas e carecia de
uma sistematização adequada, o que colocou “[...] o legislador
republicano em posição vexatória, tal a soma de erros absurdos que
encerra, entremeados de disposições adiantadas, cujo alcance não
soube ou não pode medir” (BUENO, 2008, p. 151).
Mas, é importante lembrar que:
[...] alguns institutos de notável importância, de que na
legislação imperial não havia previsão, foram estabelecidos
pelo código republicano, como, verbi gratia, a prescrição
da ação e da condenação e a reabilitação penal (BUENO,
2008, p. 151).
Uma das maiores vantagens do Código Penal de 1890 foi a
abolição da pena de morte e a instalação do regime penitenciário
correcional, com um abrandamento do rigor das penas, não

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admitindo penas infamantes e restringindo as penas privativas de


liberdade individual pelo prazo máximo de 30 anos, vedando com
isso as penas de caráter perpétuo, o que representou um avanço
para a legislação penal da época (MIRABETE, 2011).

3.  O CODIGO PENAL DE 1890 E A ASSEMBLEIA


NACIONAL CONSTITUINTE

A Assembleia Nacional Constituinte foi instalada em 15 de


novembro de 1890, no edifício destinado ao Congresso Nacional,
que, desde a Proclamação da República, estava suspenso, por força
normativa do Decreto nº 1 do Governo Provisório.
Em relação ao Código Penal de 1890, poucos debates foram
encontrados na documentação dos Anais da Assembleia Nacional
Constituinte. Não se pode afirmar que os constituintes entendiam
irrelevante essa matéria, mas, em razão do período curto de atuação
e da necessidade de se votar logo o Projeto de Constituição e
dar ao país o retorno à legalidade constitucional, outros debates
importantes ficaram em segundo plano (DONADELI, 2016).
Analisando os Anais da Assembleia Nacional Constituinte
Republicana, verificou-se o pronunciamento do Senador da
República e Constituinte Sr. Tavares Bastos, na Sessão de 13 de
dezembro de 1890, presidida por Prudente de Moraes, fazendo um
alerta sobre revogação do Código Criminal de 1830 e a decretação
de um novo Código Penal. Em seu pronunciamento, o constituinte
chama a atenção para publicação do Decreto de 6 de dezembro, o
qual fixava novos prazos para entrada em vigor do Código Penal.
O constituinte defendeu que não havia necessidade da criação de
um novo Código; apenas bastaria a reforma do Código em vigor
para adequar a legislação vigente às novas realidades sociais do
momento.
Sabe V. Ex., Sr. Presidente, que tínhamos um código
criminal que era um monumento de sabedoria (Apoiados e
apartes), um código criminal que era como tal considerado
por todos os criminalistas, tanto nacionaes como
estrangeiros. É verdade que nelle havia disposições que
não estavam muito de acôrdo com o progresso que tenha

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feito a jurisprudência criminal: pois estes inconvenientes


de algum modo dêsapareceram, graças ao Ministro da
Justiça que substituiu as penas de morte e a de galés
por outras mais brandas, de maneira que com alguns
pequenos retoques mais, esse Código poderia honrar
a nossa legislação, como poderia honrar a legislação
de todos os povos cultos (ASSENBLÉIA NACIONAL
CONSTITUINTE, 1924 [n. p.]).
O que realmente preocupava o constituinte era a pressa
do Governo Provisório em realizar a substituição da legislação
imperial por um novo Código:
Nestas circunstâncias, Sr. Presidente, não havia
necessidade de que o Sr. Ministro da Justiça encomendasse
um novo código para nos reger e apressasse tanto a sua
execução. Mas o que aconteceu? Com a pressa que teve
o Sr. Ministro de pôr em execução o Código, levantou-
se o maior clamor em todas as classes da sociedade (Não
apoiados, apoiados e apartes). A imprensa já se manifestou
contra muita das suas disposições (ASSENBLÉIA
NACIONAL CONSTITUINTE, 1924 [n. p.]).
O parlamentar ainda ressaltou um episódio ocorrido
envolvendo o Código Penal, referindo a necessidade que houve de
reformular dois artigos antes mesmo que entrasse em vigor, o que
comprovava que o Código foi feito sem grandes discussões, sem um
debate público consistente, o que gerava imprecisões e desacordos
com os sentimentos da sociedade.
Há bem poucos dias essa capital presenciou o triste
espetáculo de greve dos carroceiros e boleeiros
(Interrupções e apartes. O Sr. Presidente tange a campanhia,
reclamando silêncio). Há bem poucos dias o Sr. Ministro
da Justiça recebeu uma comissão dos operários que lhe foi
pedir a reforma dos arts. 204 e 206 do Código Crimial,
e, para tranquilizá-los, S. Ex. viu-se obrigado a publicar
uma interpretação que não pode satisfazer a ninguem, por
ser improcedente. É improcedente porque não se deduz
da lettra dos artigos, cuja revogação se pedia. Além disso,
não é a interpretaçao authentica, porque o Sr. Ministro
não tem o poder de interpretar leis e sua interpretação
não obriga o Poder Judiciário. Ora, o Sr. Ministro recebeu
uma comissão das classes operárias, pedindo a reforma
dos citados artigos, e consta que outras manifestações

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estão latentes; o desgosto é profundo (ASSENBLÉIA


NACIONAL CONSTITUINTE, 1924 [n. p.]).
O constituinte também mencionou o desconhecimnento da
população sobre o Código, que, segundo ele, era uma das principais
leis do nosso país, abaixo somente da Constituição.
Sendo assim, Sr. Presidente, que necessidade se havia de
por em execução um código que até nem é conhecido por
todos nós? Afianço a V. Ex. que me dei ao trabalho de ir
à Imprensa Nacional comprar o Diário Official em que foi
publicado o Código, e não o encontrei, porque me disseram
que a edição se tinha esgottado. Às vezes, Sr. Presidente,
pergunto qual a razão que predominou no espírito do Sr.
Ministro da Justiça para mandar pôr em execução um
Codigo que tem suscitado tanto clamor da sociedade.
Qua a razão para apressar a execução de uma lei, que nós
ainda não conhecemos? (ASSENBLÉIA NACIONAL
CONSTITUINTE, 1924 [n. p.]).
Indignado e contrário à entrada em vigor do novo Código
Penal, o constituinte pediu a intervenção do Marechal Deodoro
para revogar o decreto de antecipação, que acreditava não ser do
conhecimento do chefe do Governo (ASSENBLÉIA NACIONAL
CONSTITUINTE, 1924). Mas, na verdade, é evidente pela Ata da
Sessão do dia 04 de dezembro de 1890, que o chefe do Governo
apoiava a entrada antecipada do novo Código Penal, até mesmo
para impor medidas punitivas e repressoras aos opositores do
regime que agiam pela imprensa (ABRANCHES, 1907 [n. p.]).
Após seu discurso, o parlamentar apresentou em sessão
uma moção, submetendo-a à aprovação do Congresso, pedindo
que seus colegas congressistas lhe dessem razão, afirmando que
o Decreto de Execução era um ato de ilegalidade do Ministro da
Justiça: “Sim, senhores, repito: isto é um acto da maior prepotenda”
(ASSENBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1924). Estabelecia
o texto da moção:
O Congresso Nacional, considerando altamente
inconveniente a execução do novo Codigo Penal, a
começar ja desde o dia 20 do corrente, nesta Capital, como
determina o Decreto de 6 do mesmo mez, não obstante
as duvidas e graves reclamações suscitadas, quando estas

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e a importancia do mesmo Codigo reclamariam a revisão


e estudo das duas camaras proximas a funccionarem em
sessão ordinaria; Considerando ilIegaes as nomeações
feitas para, o Supremo TribunaI Federal, Côrte de
Appellação, Tribunal Civil e Criminal e pretores, antes
de ser approvada a Constituição da Republica e, por
conseguínte, antes de saber-se qual a organização judiciaria
que ellaa optará, passa á ordem do dia. Rio de Janeiro, 13
de dezembro de 1890 – Cassiano Candido Tavares Bastos
(ASSENBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1924).
Mesmo com essa Moção aprovada, o Código Penal entrou
em vigor na data prevista pelo Decreto nº 1127, de 6 de dezembro
de 1890, o que reforçava a força autoritária do governo, que não
considerou os apelos dos congressistas.
Não se encontrou na documentação dos Anais de Assembleia
Nacional Constituinte nenhum registro de questionamento a cerca
da legalidade do Código Penal de 1890, no que se refere a sua
promulgação por meio de Decreto do Governo Provisório, e não
por meio de lei devidamente votada e aprovada pelo Congresso
Nacional. A Assembleia Nacional Constituinte viveu um conflito de
identidade, pois o Governo Provisório concentrava, em suas mãos,
todos os poderes executivos e legislativos (SILVEIRA, 1978).

4.  O CÓDIGO PENAL 1890 E AS ESCOLAS PENAIS DA


VIRADA DO SÉCULO XIX

É entendimento dos historiadores do direito que o novo


diploma penal da República nasceu velho, pois reproduziu os
padrões clássicos, sem incorporar as novidades, como as medidas
de segurança e outros institutos positivistas que vinham ganhando
força no debate jurídico do final do século XIX.
O direito penal republicano fez à imagem clássica, quando
já havia uma demanda latente por aquela que seria uma
corrente predominantemente e de longa duração no
Brasil: o positivismo criminal, especialmente de cunho
sociológico (LOPES; QUEIROZ; ACCA, 2013, p. 416).
A Escola Clássica teve início na segunda metade do século
XVIII e seu maior expoente nesse período jurídico foi Francisco

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Carrara, que pensava o crime como o resultante de duas forças, a


física, que é o movimento corpóreo e o dano do crime, e a moral,
que era a vontade livre e consciente do criminoso. O aspecto que
mais caracteriza essa Escola era a concepção do princípio do livre-
arbítrio, que via o homem como ser livre e racional, capaz de tomar
decisões baseadas em vantagens e inconvenientes que sua ação irá
lhe gerar, atuando ou não segundo prevaleçam as primeiras ou os
últimos. O crime era considerado simplesmente como a infração
da lei do Estado, uma conduta humana que fere a lei criada para
tutelar os cidadãos, caracterizando um ato politicamente danoso.
Nesse contexto, o crime era um ente jurídico e a pena era utilizada
apenas com efeito retributivo, no sentido de castigar o sujeito pela
prática do crime (MIRABETE, 2011).
A Escola Positiva, fruto do movimento naturalista, pregava a
supremacia da investigação experimental em oposição à indagação
racional, marcando uma grande ruptura ao impor a ideia de um
determinismo biológico e social, sendo suas postulações construídas
com base nas teses evolucionistas da biologia, apresentando as
manifestações primitivas do homem como elemento central para
desvendar a natureza criminosa.
Fortemente influenciados por Darwin, os cientistas do
século XIX estudam ainda a fisionomia dos criminosos e
as relações entre crime e loucura. Esse é, por assim dizer,
o caminho que precedeu o advento da Escola Positiva de
Direito e o da Antropologia Criminal, criada no mesmo
século XIX. Com elas, o tempo se organizará ou pensará
se organizar numa sociedade composta dos eixos da
criminalidade ou da não-criminalidade (CANCELLI,
2001, p. 28-29).
As ideias criminológicas iniciaram-se com os estudos do
médico italiano Lombroso, em 1976, com a publicação da obra O
homem delinquente. Sua teoria ficou conhecida fundamentalmente
pela criação da figura do criminoso nato. Ao defender o determinismo
biológico e social, pregava que os homens seriam impulsionados
sem resistência a praticar suas ações, diferenciando criminosos e
não criminosos por questões bioantropológicas. Portanto, voltava
seu foco ao estudo do indivíduo e de seu comportamento, dividindo
os homens em vários tipos, com cada um revelando uma tendência

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inata, total, parcial ou mínima, para o cometimento de ações


criminosas (MAÍLLO; PRADO, 2013).
Essas novas posições entendiam que “[...] o crime não poderia
mais ser explicado sem o estudo de fatores naturalísticos que
compelem o agente a praticar a conduta, ou abster-se de fazê-lo”
(ARAUJO, 1901, [n.p.]). As novas conotações teóricas trazidas pela
Escola Positiva abandonaram a visão sobre o delito, cultivada pela
Escola Clássica, em favor de uma visão sobre o criminoso. Passou-
se a defender o crime como uma manifestação da personalidade
humana, levando em consideração na gênese do crime não somente
o caráter individual do criminoso, mas a convicção de seu caráter
sociológico, as causas climáticas, as influências da cidade, da
imprensa, da densidade demográfica, da imigração e da emigração,
o álcool, o pauperismo. A Escola Positiva negava terminantemente o
livre-arbítrio, buscava fundamento da pena na defesa social e acusa
a Escola Clássica de estar esgotada, não conseguindo introduzir
ideias e nem soluções novas.
Os positivistas atacaram os clássicos acusando-os de
serem incapazes de controlar o aumento da criminalidade
que se observava na época. A mera imposição de sanções
e a prevenção policial, mais em concreto, não pareciam
suficientes para controlar uma delinqüência que parecia
influenciada por muitos outros fatores. Em face disso,
declarou-se que os sistemas penais clássicos eram inúteis
tanto para a prevenção do delito como para a correção do
delinqüente (MAÍLLO; PRADO, 2013, p. 96).
A Escola Positiva, baseada no princípio da neutralidade de
Comte, encontrou no Brasil terreno fértil para sua disseminação e seu
aprofundamento. A adoção do positivismo criminológico no Brasil
colaborou para justificar a permanência de práticas autoritárias de
persecução penal no novo contexto social, econômico e político. O
positivismo criminológico foi implantado numa sociedade dividida
por classes, marcada pelo controle social, servindo de base filosófica
para a legitimação do mecanismo punitivo da República, tentando
naturalizar as desigualdades e resguardar a hierarquia social,
herança dos tempos coloniais, e ajudando a construir os estigmas
das classes perigosas (SOUZA, 2007). Assim, ocultou a dominação
política, econômica, ideológica e cultural da classe burguesa sobre

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as classes desfavorecidas economicamente, legitimando os atos


repressivos do Estado (LOLA, 2005). O discurso da criminologia,
nesse cenário de transformações, teve um papel mais utilitário
politicamente do que cientificamente, desempenhando mais um
papel destinado ao poder, no qual o foco não é a compreensão dos
seres humanos envolvidos, mas o controle deles por meio do ato de
conhecê-los (FOUCAULT, 1981, p. 138).
Com o advento do Código Penal de 1890, ocorre a diminuição
da influência da Escola Clássica no Direito Penal Brasileiro, mas o
Código continuou ainda com uma inspiração clássica, apresentando,
em sua formulação, muitos dos princípios fundantes dessa Escola.
Provavelmente pela presença incompatível de ambas as
visões é que o Código Penal tenha se transformado em
um documento tão cheio de imperfeições jurídicas, falhas
técnicas, omissões (CANCELLI, 2001, p. 31-32).
Dizia-se também que o Código, assim como o de 1830,
era fiel ao classicismo e, portanto, desconhecia o princípio
exclusivo da periculosidade e, em conseqüência, as
medidas de segurança de ordem social. Aliás, esse era
o debate que estava em voga e que determinava novos
tipos de práticas judiciárias. O ponto de partida da crítica
era o de que a Escola Clássica de Direito, na medida em
que radicalizava o princípio liberal do livre-arbítrio,
se preocupava, única e exclusivamente, com o delito,
transformando, por conseguinte, os crimes em entidades
jurídicas despossuídas da ação do sujeito [...] O processo
judiciário estaria voltado, por isso, para o castigo, na medida
em que a decisão de infligir a lei se encontrava assentada
na livre decisão do indivíduo sobre a transgressão. Seria
justamente por isso que a individualização da pena não
encontrava terreno fértil no Código Criminal brasileiro.
[...] Assim, é que, além do Código Penal, o funcionamento
do Judiciário refletiria bem o sentido que a Escola Clássica
pretendia dar ao Direito no Brasil (CANCELLI, 2001, p.
232-233).
Na análise de Galdino Siqueira (1921), o Código de 1890
manteve, em geral, os fundamentos históricos do direito penal
brasileiro, como estavam corporificados no anterior código, trazendo
para seu bojo inovações colhidas do direito penal estrangeiro,
muito embora em forma nem sempre perfeita, pois utilizou, às

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vezes, de fontes não recomendadas. Alega que faltou um método


científico e uma técnica rigorosa, não foi adequado na distribuição
e coordenação geral das figuras delituosas e apresentou-se lacunoso
em muitos pontos, que já eram presentes e consolidados no direito
de povos cultos.
Essas contradições jurídicas, desde logo, geraram inúmeras
críticas ao Código
[...] por parte de setores das elites republicanas, que já
assimilavam os novos discursos criminológicos e referentes
às práticas penais que emergiam em outros contextos
sociais e políticos (SOUZA; SALLA; ALVAREZ, 2003
apud DONADELI, 2016, p. 99).
A disseminação das ideias da Criminologia, mesmo não
representando o eixo central do Código Penal de 1890, influenciou
não só autores e doutrinadores do direito, mas também as políticas
públicas do Estado voltadas a segurança, bem como o funcionamento
de instituições como a polícia, as prisões, os manicômios e outras
instituições de internação.
Várias foram as tentativas de reforma do Código Penal de
1890 durante a Primeira República. No entanto, mesmo em face
de tantas críticas realizadas contra ele, todas foram infrutíferas e
não conseguiram concretizar um novo Diploma Penal para o país.
Acredita-se que as discussões para um novo Código Penal não
foram adiante por vários fatores, entre eles, o fato do Congresso
preferir outras exigências da tarefa legislativa, inclusive a do Código
Civil, que era, para o momento, obra mais urgente, em razão do
país ainda usar normas das ordenações do reino, depois de mais
de meio século de independência. Em compensação, a Primeira
República foi invadida por inúmeras leis penais extravagantes. O
Código se manteve vigente, graças a essas leis penais paliativas,
que acabaram impedindo sua rápida revogação (BUENO, 2008).
Contudo, essa quantidade excessiva de legislação penal acabou por
gerar uma confusão na aplicação da lei pelos operadores do direito.
As diversas tentativas de reformas, mais do que uma
necessidade de restruturação técnica da legislação penal, revelam
uma tensão que vai caracterizar os anos iniciais da República, entre

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a vontade de construir uma sociedade organizada jurídicamente e


politica nos moldes do progresso trilhado pelas nações civilizadas
do mundo, e a realidade histórica e social do contexto nacional,
que se colocava como empecilho a essa constituição, na visão das
elites republicanas. “O desafio era como institucionalizar os ideais
de igualdade em termos jurídico-penais frente às desigualdades
percebidas como constitutivas da sociedade” (SOUZA; SALLA;
ALVAREZ, 2003 apud DONADELI, 2016, p. 108).
Somente em 1940, durante o Estado Novo, foi aprovado por
Decreto um novo Código Penal, projeto apresentado por Alcântara
Machado, que passou a vigorar em 1942, revogando o Código
Republicano de 1890.

5.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

O novo regime foi marcado pelo desafio de construir uma nova


ordem pública em meio ao peso de uma tradição moldada durante
décadas pelo Império. A transição não foi tão pacífica e cordial
como parece, mas sim um período caracterizado por instabilidades
e incoerências, fruto da falta de um projeto unificador e de uma
cultura política republicana enraizada na sociedade brasileira. O
clima de instabilidade que a República vivenciou desde o seu início
se deu em razão da forma como ela foi imposta ao país, fruto da
dificuldade de acomodação de interesses divergentes que passaram
a compor o cenário político institucional (ALONSO, 2002). Em
vez de enfrentar os grandes desafios que a modernidade exigia e
que era a grande bandeira do movimento republicano na construção
da cidadania, a preocupação dos grupos políticos que ascenderam
ao poder com o novo regime era a “[...] prioridade da ordem
(afastando) o perigo da ‘res publica’ que rondava as ante salas do
poder” (PENNA, 1997, p. 38).
Não é possível enxergar o Direito Penal como um simples
conjunto de normas de pacificação social, por meio da tutela de
bens jurídicos fundamentais; é preciso entendê-lo como um forte
instrumento de controle social, utilizado pela elite dominante
para a garantia da manutenção de poder, e que, em momentos de

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transição política, colabora na construção de uma nova ordem


social e política. A criação do Código Penal de 1890 pelo Governo
Provisório da República e a antecipação de sua vigência, antes
mesmo da promulgação da nova Constituição Republicana, diante
de um cenário de instabilidade política, especialmente em razão da
falta de uma cultura republicana instalada na consciência do povo
brasileiro, representaram a prova crucial de que o Direito Penal foi
um dos recursos legais para impor a ideia republicana e sustentar
o novo regime, que carecia de apoio popular, de consistência
ideológica e até mesmo de uniformidade de interesses no tocante
aos líderes do movimento que fez a República (DONADELI, 2014).
O Direito Penal no início da República não foi apenas um
movimento ingênuo de transição de teorias do Direito Penal Clássico
para o Direito Penal Criminológico; seu estudo é revelador dos
interesses de um regime político que se vale do poder punitivo para
realizar o controle social. Ao longo da História do Brasil – e no início
da República não foi diferente –, há uma tendência autoritária no
âmbito do Direito Penal, tanto no plano legal como no institucional,
concretizada por meio das ações da polícia e do sistema prisional.
A promulgação antecipada do Código Penal, como está relatada na
Ata da Sessão do Governo Provisório de 4 de dezembro de 1890, é a
prova clara e inequívoca de que essa codificação legal foi feita para
colaborar no processo de disciplinar as relações sociais e garantir a
aceitação do novo regime pelo discurso da legalidade do Estado de
Direito (DONADELI, 2016).

REFERÊNCIAS

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protocollos das sessões secretas do Conselho de Ministros desde a proclamação
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ISSN 2237-2318 121

A garantia fundamental ao uso moderado


dos meios necessários para defender direito
próprio ou de terceiro em face de injusta
agressão, atual ou iminente, com fulcro na
constitucionalização do Direito Penal

Fabricio de Araujo Costa de Moura DIAS1

Resumo: A violência é fenômeno global que aflige o homem. O Estado é


incapaz de garantir totalmente a segurança, é humanamente impossível. A
pesquisa aqui proposta ganha contorno relevante a partir da demonstração da
legitimidade para defender-se e defender terceiro em face de agressão, atual
ou iminente, natural dos seres vivos, a ponto de movimentar o Estado com o
intuito de garantir legalmente tal prerrogativa, por meio da positivação do ato
de defender-se e defender terceiro em face de agressão, atual ou iminente, em
sede de legislação infraconstitucional. A modalidade de pesquisa é a revisão
bibliográfica. A fundamentação é a análise de legislação, reportagens, artigos
científicos e livros. Da análise do material bibliográfico restou confirmado que
a legislação internacional e a Constituição Federal, com base na legitimidade
do ato de defender, naturalmente inerente aos seres vivos e à dignidade dos
seres humanos, estabelecem a garantia fundamental ao uso moderado dos meios
necessários para defender direito próprio ou de terceiro em face de injusta
agressão, atual ou iminente. E, a partir do Neoconstitucionalismo e do Pós-
positivismo, movimentos que desencadearam a Constitucionalização de todo
um ordenamento jurídico, tal garantia é assegurada no âmbito do Direito Penal
por meio de sua constitucionalização, independentemente da existência ou não
de norma que tutele a legítima defesa em sede infraconstitucional. Por meio da
garantia em questão, o conceito da dignidade da pessoa humana fica cada vez
mais tangível no mundo real.

Palavras-chave: Legítima Defesa. Constitucionalização. Direito Penal.

1
Fabricio de Araujo Costa de Moura Dias. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Unieuro.
E-mail: fabriciocosta.advogado@gmail.com.

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122 ISSN 2237-2318

The fundamental guarantee for the moderate


use of the means necessary to defend one’s
own or third party’s rights in the face of unfair
aggression, current or imminent, with a focus
on the constitutionalization of criminal law

Fabricio de Araujo Costa de Moura DIAS

Abstract: Violence is a global phenomenon that afflicts man. The State is


unable to fully guarantee security, it is humanly impossible. The research
proposed here gains a relevant outline from the demonstration of Legitimacy
to defend and defend other in the face of aggression, current or imminent,
natural to living beings, to the point of moving the State in order to legally
guarantee such prerogative, for by means of positivizing the act of defending
oneself and defending other in the face of aggression, current or imminent,
under infraconstitutional legislation. The research modality is the bibliographic
review. The rationale is the analysis of legislation, reports, scientific articles and
books. From the analysis of the bibliographic material, it was confirmed that
international legislation and the Federal Constitution based on the legitimacy
of the act of defending, naturally inherent to living beings, to the dignity of
human beings, establish the fundamental guarantee for the moderate use of
the means necessary to defend their own right or of a third party in the face of
unfair aggression, current or imminent, and from Neoconstitutionalism and Post-
Positivism, movements that triggered the Constitutionalization of an entire legal
system, this guarantee is ensured within the scope of Criminal Law through its
constitutionalization, regardless of the existence or not of a rule that protects the
legitimate defense in infraconstitutional headquarters. Through the guarantee in
question, the concept of human dignity becomes more and more tangible in the
real world.

Keywords: Self Defense. Constitutionalization. Criminal Law.

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1.  INTRODUÇÃO

A violência é triste realidade intrínseca ao meio dos homens.


Não é diferente no Brasil e a cada ano a população experimenta
desagradável aumento desse fenômeno. Apesar dos esforços, o
Estado é incapaz de garantir a segurança de todos a todo instante;
no Brasil e no resto do mundo, é humanamente impossível garantir
isenção total a todos a todo instante em face de injusta agressão.
A pesquisa aqui proposta ganha contorno relevante a partir
do tópico “Legitimidade para defender-se e defender terceiro em
face de agressão, atual ou iminente” para mostrar a legitimidade em
defender direito próprio ou de terceiro em face de injusta agressão
atual ou iminente, natural dos seres vivos, dentro dos limites da
moderação.
Trata o tópico “Positivação: da legitimidade para defender-
se e defender terceiro em face de agressão, atual ou iminente,
para o direito de repelir injusta agressão, atual ou iminente, a
direito próprio ou de outrem usando moderadamente dos meios
necessários” da previsão do instituto da Legítima Defesa em sede
de legislação infraconstitucional, Código Penal, a fim de atender,
dentro de normatização, a legitimação supracitada.
Adiante, no tópico “Constitucionalização: do direito de
repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou
de outrem usando moderadamente os meios necessários para a
garantia fundamental ao uso moderado dos meios necessários para
defender direito próprio ou de terceiro em face de injusta agressão,
atual ou iminente, tutelada pelo Constitucionalismo global e pela
Constituição Federal”, será demonstrada que a legitimidade tratada
no subtópico “Legitimidade para defender-se e defender terceiro em
face de agressão, atual ou iminente” está incorporada à Constituição
Federal como garantia fundamental do ser humano.
Por fim, no tópico “Constitucionalização do Direito Penal
– efeitos do Neoconstitucionalismo e do Pós-positivismo: a
garantia fundamental ao uso moderado dos meios necessários
para defender direito próprio ou de terceiro em face de injusta
agressão, atual ou iminente, com fulcro na constitucionalização

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do Direito Penal”, restará demonstrado que subsistiria o instituto


da Legítima Defesa, mesmo se não houvesse previsão no Código
Penal ante a constitucionalização do Direito Penal, consoante o
Neoconstitucionalismo e o Pós-positivismo.
A modalidade de pequisa utilizada neste trabalho é a revisão
bibliográfica. O artigo científico está fundamentado na análise
da legislação brasileira e internacional, de reportagens e artigos
científicos disponibilizados na internet e de livros que versam
acerca do alto índice de violência no Brasil, da incapacidade do
Estado de garantir segurança, do Código Penal, da Constituição
Federal, dos dispositivos internacionais que tratam de legislação de
Direitos Humanos aplicados ao instituto da Legítima Defesa.
A contextualização dos reflexos do aumento da violência no
Brasil pode ser verificada em Nações Unidas (2018) e na reportagem
de Pauluze (2020).
O estudo do instituto da Legítima Defesa no âmbito da
doutrina é realizado por meio da obra de Azevedo e Salim (2018),
em consonância com a visão sobre o instituto no decorrer de 20
anos, construída por meio dos artigos científicos de Daher (1999),
Calhau (2002), Belina Filho (2006), Dallari (2018) e Ramos (2019).
A identificação da garantia fundamental ao uso moderado dos
meios necessários para defender direito próprio ou de terceiro em
face de injusta agressão, atual ou iminente, dentro da Constituição
Federal, é proporcionada pelos estudos da Lei Maior, com base nos
livros sobre Direito Constitucional de Bernardes e Ferreira (2015a;
2015b) e Lenza (2012), em conformidade com o artigo científico de
Kinsel (2017), que trata do porte de arma de fogo para os advogados
como direito e garantia fundamental.
Por fim, no que tange ao Pós-positivismo e à
Constitucionalização do Direito Penal, serviram como base as
obras sobre Direito Constitucional de Bernardes e Ferreira (2015a;
2015b) e Lenza (2012), em consonância com o artigo científico
de Fernandes e Bicalho (2011). A fim de adentrar mais fundo na
correlação entre o Direito Penal e o Direito Constitucional, a tese
de Balico (2008), e os artigos científicos de Barbosa (2010) e Abreu
e Santos (2013) foram as escolhas que completam este trabalho.

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A partir da análise do material bibliográfico levantado,


evidenciar-se-á que a Lei Maior garante o uso moderado dos meios
necessários para defender direito próprio ou de terceiro em face de
injusta agressão atual ou iminente, assegurado independentemente
de codificação infraconstitucional por meio da constitucionalização
do Direito.

2.  M ETODOLOGIA

Haja vista a utilização da modalidade de pequisa por revisão


bibliográfica, o presente trabalho é baseado na análise da legislação
brasileira, de reportagens e artigos científicos disponibilizados na
internet e de livros que versam sobre o alto índice de violência no
Brasil, a incapacidade do Estado em garantir segurança, o Código
Penal, a Constituição Federal e, especialmente, o instituto da
Legítima Defesa.
A partir da análise do material bibliográfico levantado,
evidenciar-se-á que a Lei Maior garante o uso moderado dos meios
necessários para defender direito próprio ou de terceiro em face de
injusta agressão atual ou iminente, assegurado independentemente
de codificação infraconstitucional por meio da constitucionalização
do Direito.

3.  R ESULTADOS

A partir da análise de todo material compilado para a


realização deste trabalho, chegou-se aos seguintes resultados:
1)  A legitimidade para defender-se e defender terceiro em
face de agressão, atual ou iminente, é inerente ao ser
humano, anterior à lei, portanto um Direito Natural.
2)  A fim de conferir maior segurança jurídica ao homem,
foi necessário providenciar a positivação da legitimidade
para defender-se e defender terceiro em face de agressão,
atual ou iminente. Tornou-se direito repelir injusta
agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de outrem

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usando moderadamente os meios necessários, previsto na


legislação infraconstitucional.
3)  A partir da Constitucionalização, o direito de repelir injusta
agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de outrem
usando moderadamente os meios necessários passou a ser
garantia fundamental, tutelada pelo constitucionalismo
global e pela Constituição Federal em respeito à proteção
dispensada aos Direitos Fundamentais.
4)  Por fim, baseado no Neoconstitucionalismo e no Pós-
positivismo, a partir do fenômeno da Constitucionalização
do Direito Penal, a garantia fundamental ao uso moderado
dos meios necessários para defender direito próprio ou de
terceiro em face de injusta agressão, atual ou iminente,
é preservada mesmo que seja revogado da legislação
infraconstitucional (Código Penal) o instituto da Legítima
Defesa.

4.  DISCUSSÃO

Legitimidade para defender-se e defender terceiro em face de


agressão, atual ou iminente

As diversas facetas da violência, como escravidão, guerra,


genocídio, estupro, homicídio, latrocínio, são fenômeno globais
que afligem o ser humano, onde estiver, desde os mais remotos
registros históricos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (2018 apud
NAÇÕES UNIDAS, 2018), em 2018, o Brasil ocupava a 7ª
colocação no ranking de países das Américas com maior taxa de
homicídios a cada 100.000 (cem mil) habitantes (31,3 mortes para
cada 100 mil habitantes). A notícia informa, ainda, que, em relação
aos anos de 2015 e 2016, o Brasil subiu 02 (duas) posições no
ranking, ou seja, houve um aumento dos casos de homicídio no
país. Consoante os dados disponibilizados no relatório citado na
reportagem, é possível verificar que o Brasil ocupa a 9ª colocação

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de país com a maior taxa de homicídios a cada 100.000 (cem mil)


habitantes no mundo, em outras palavras, 9º (nono) país com maior
taxa de homicídio a cada 100.000 (cem mil) habitantes, dentre os
194 (cento e noventa e quatro) países membros da Organização
Mundial de Saúde.
Talvez o número 31,3 que corresponde às pessoas
assassinadas no Brasil para cada 100.000 habitantes pareça
ínfimo, no entanto, ao considerarmos o número correspondente
à população no Brasil – que, conforme a Resolução nº 2, de 28
de agosto de 2018, da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística – IBGE (2018), chegava, em 2018, a 208.494.900
(estimativa) residentes –, o número de assassinatos no Brasil em
2018 aumenta consideravelmente. Utilizando a regra de três simples
da Matemática e considerando 31,3 pessoas assassinadas para cada
100.000 habitantes, teremos que, para 208.494.900 habitantes, o
resultado é a cifra aterrorizante de 65.258,90 pessoas assassinadas
no Brasil em 2018.
O resultado apresentado no parágrafo anterior é um cálculo
matemático baseado em dados de fonte idônea, a fim de buscar
expandir e estimar o número de assassinatos no Brasil segundo o
número estimado oficialmente pelo IBGE em 2018. Apesar de ser
uma estimativa, o cálculo serve ao propósito de apenas alertar que
os dados colhidos pela Organização Mundial de Saúde em 2018 são
de fato preocupantes.
De qualquer sorte, independentemente da opinião de quem
analisa os dados, fato é que, a todo instante, os veículos de
comunicação bombardeiam o brasileiro com notícias das mais
variadas atrocidades que o ser humano é capaz de fazer a outro –
por exemplo, segundo apurou o veículo Folha de S. Paulo (2020),
com base no Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada – Ipea, a cada 2 (duas) horas, uma mulher era assassinada
em 2018.
O Estado não é capaz de implementar política de Segurança
Pública eficiente que consiga estancar as costumeiras violações
aos bens jurídicos resguardados pelo ordenamento jurídico pátrio,
principalmente aqueles resguardados pelo Direito Penal, que “são

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os mais relevantes para a sociedade (vida, liberdade, patrimônio,


meio ambiente, etc.) [...]” (AZEVEDO; SALIM, 2018, p. 51).
Mesmo que o Brasil, enquanto Estado, impelisse esforço
titânico, de modo a reduzir drasticamente os índices de violência e
de criminalidade não imbuída de violência ao nível de países que
figuram nas últimas colocações da estatística pertinente à taxa de
homicídio a cada 100.000 habitantes da OMS (como Japão, Suíça e
Canadá), ainda assim, bem como tais países, o Brasil seria incapaz
de garantir a incolumidade dos bens jurídicos mais quistos das
pessoas humanas e da sociedade dentro de sua atuação institucional,
pois é humanamente impossível resguardar a proteção de tudo e de
todos a todo momento contra injusta agressão.
Fatídico e simples: não há número suficiente de agentes de
segurança pública, 24 (vinte e quatro) horas por dia, 7 (sete) dias
por semana, dentro do território brasileiro e fora dele, para proteger
100% dos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal pátrio.
Cícero (BELINA FILHO, 2006, [n.p.]), em reflexão sobre
legitimação da defesa dentro do espectro da autotutela, dispõe que
a defesa frente à agressão é lei antes mesmo de ser lei, é inerente
à natureza, ao instinto, floresceu junto ao nascimento do próprio
homem. Veja-se:
Cícero, o grande orador, na oração em favor de Milone,
expôs com maestria acerca da legítima defesa:
É uma lei sagrada, juízes, lei não escrita mas que nasceu
com o homem, lei anterior aos legistas, à tradição, aos
livros, e que a natureza nos oferece gravada no seu código
imortal, de onde nós a temos tirado, de onde nós a temos
extraído, lei menos estudada que sentida: - num perigo
iminente, preparado pela astúcia ou pela violência, sob o
punhal da cupidez ou do ódio, todo meio de salvação é
legítimo.
Para Ramos (2019), a legítima defesa é um direito natural do
homem para preservar a própria vida.
Diante do cenário da (In)Segurança Pública e considerando a
defesa natural inerente aos seres vivos – consequentemente, natural

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aos seres humanos –, é legítima a pretensão do homem a defender-


se e a defender terceiro em face de agressão atual ou iminente.

Positivação: da legitimidade para defender-se e defender


terceiro em face de agressão, atual ou iminente, para o direito
de repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio
ou de outrem usando moderadamente dos meios necessários

Sob o manto do Estado, a regra é que ninguém pode fazer


valer o seu direito ou satisfazer pretensão, mesmo legítima, pela
força, art. 345, caput, do Código Penal (BRASIL, 1940).
[...] todavia, nem sempre as pessoas podem recorrer
ao Estado para a proteção de seu direito, sendo então,
nesses casos, permitida a autotutela. A legítima defesa se
enquadra nessa situação (CALHAU, 2002, [n.p.]).
Não há direito absoluto, nem mesmo o direito à vida:
[...] ninguém é obrigado a abrir mão da própria vida para
que outra sobreviva. Há situações em que a vida pode ser
eliminada para garantir a continuidade de outra vida, é
o que ocorre, por exemplo, em casos de legítima defesa
(RAMOS, 2019, [n.p.])
É impossível juridicamente desapossar o cidadão dos
meios para o exercício da autodefesa, pois a Segurança Pública
é inevitavelmente limitada, consoante Dallari (2018). Surge o
instituto da Legítima Defesa.
A Legítima Defesa apareceu explicitamente na legislação
infraconstitucional vigente no art. 21, caput, da versão original do
atual Código Penal, em 1º de janeiro de 1942 (anterior à Constituição
Federal, que data de 1988). Entendia-se em legítima defesa,
conforme o referido dispositivo, quem, usando moderadamente
dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a
direito seu ou de outrem.
Hoje a Legítima Defesa está prevista no caput do art. 25 do
mesmo Código Penal e preserva a redação original.

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Da leitura do dispositivo é possível extrair essencialmente


2 (dois) requisitos objetivos para configuração: conduta humana
agressiva e resposta humana à agressão.
A Agressão é a centelha do processo de Legítima Defesa.
Segundo Azevedo e Salim (2018, p. 300), é a conduta humana que
expõe a perigo ou lesa direitos, comissiva ou omissiva. Ressalta-se
que a Agressão não é tipo aberto de agressão. No que diz respeito
ao instituto da Legítima Defesa, a agressão deve ser antijurídica
para que seja autorizado contra-ataque lícito. Quanto ao tempo da
agressão, ela pode ser atual, que se encontra presente, ou iminente,
que está prestes a ocorrer (AZEVEDO; SALIM, 2018, p. 302).
A partir da injusta agressão humana, atual ou iminente, a
direito próprio ou de outrem (terceiro), é possível, dentro dos
limites da moderação (que menor dano causará ao agressor), repeli-
la (contra-atacar) por meio necessário que esteja à disposição do
agredido (AZEVEDO; SALIM, 2018, p. 303).
O art. 23, II, do Código Penal dispõe que, caso o agente (ser
humano) pratique fato tipicamente previsto como crime, mas em
legítima defesa, não haverá crime.
A ótica de Daher (1999) dá contornos ao exercício do direito
à Legítima Defesa e ressalta que o diploma no qual o instituto está
inserido exclui a ilicitude da conduta humana de defender-se dentro
dos limites instituídos no art. 25, caput:
Assim, posso defender meu patrimônio, minha honra,
minha vida, sempre que forem indevidamente ameaçados
por quem quer que seja. Este direito está assegurado por
lei, no mesmo diploma em que são tipificadas outras
condutas consideradas como crime, ou seja, no Código
Penal. Neste diploma, está prevista a exclusão de ilicitude
da conduta humana, quando o agente se defende: “não há
crime quando o agente pratica o fato: em legítima defesa”
(DAHER, 1999, [n.p.]).
Afirma Bruno (1959 apud CALHAU, 2002, [n.p.]):
Quem defende, seja embora violentamente, o bem próprio
ou alheio injustificadamente atacado, não só atua dentro
da ordem jurídica, mas em defesa dessa mesma ordem.
Atua segundo a vontade do Direito.

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Diante disso, o ato defensivo, por ser legítimo, exclui a


hipótese de crime.

Constitucionalização: do direito de repelir injusta agressão,


atual ou iminente, a direito próprio ou de outrem usando mo-
deradamente os meios necessários para a garantia fundamental
ao uso moderado dos meios necessários para defender direito
próprio ou de terceiro em face de injusta agressão, atual ou imi-
nente, tutelada pelo Constitucionalismo global e pela Constitui-
ção Federal

É comum, dentro das lições de Direito Constitucional, antes


mesmo de adentrar na temática Constituição, o estudo da Teoria
Geral do Estado. Por sua vez, dentro do estudo da Teoria Geral
do Estado, alguns conceitos básicos são apresentados. Para este
trabalho, principalmente para este tópico, a apresentação dos
conceitos de nação e Estado é essencial.
Com base na lição de Bernardes e Ferreira (2015a), nação é
a comunidade de seres humanos que se caracteriza por sentimentos
relativamente invariáveis, ou seja, dentre os seres humanos de um
determinado local, há vínculos comuns que são caracterizados por
questões subjetivas pertinentes a diversas origens, por exemplo,
raça, religião, cultura, ideário, objetivos. O Estado está atrelado à
nação, pois é a organização jurídica dos seres humanos pertencentes
à nação. A entidade político-social, que é o Estado, é criada para
alcançar os objetivos da nação.
Pelo exposto no parágrafo anterior, é possível visualizar a
anterioridade da nação em relação ao Estado. O Poder Constituinte
surge naturalmente da nação, do povo, constituído por seres
humanos, por meio do Estado. É, portanto, “[...] a manifestação
soberana da vontade política de um povo, social e juridicamente
organizado” (MORAES, 1998 apud BERNARDES; FERREIRA,
2015a, p. 96).
O Estado inaugura ordenamento jurídico para alcançar
os objetivos do povo e para autossujeitar-se. O alicerce que dá

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fundamento jurídico e validade ao Poder Constituinte originário é o


Direito Natural, conforme Bernardes e Ferreira (2015a).
De acordo com Barbosa (2010), a positivação do Direito Natural
por meio da Constituição (Direito Positivo) é o modo ideal jurídico
de realização do Direito Natural, pois a partir do Direito Positivo
surgem instrumentos coercitivos que possibilitam a concretização do
cumprimento ou exercício do primeiro sob tutela do Estado.
Defender-se e defender terceiro em face de agressão, atual ou
iminente, conforme restou demonstrado nos demais tópicos deste
trabalho, é um Direito Natural inerente ao ser humano.
Em 10 de dezembro de 1948, por meio de Assembleia Geral,
a Organização das Nações Unidas – ONU adotou e proclamou a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os Estados-Membros,
em cooperação com as Nações Unidas, se comprometeram a
promover o respeito universal aos direitos e liberdades humanas
fundamentais e a observância desses direitos e liberdades, consoante
o preâmbulo da Declaração.
De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
todo ser humano tem direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal
(Artigo III), à igualdade (Artigo VII), à propriedade (Artigo XVII),
dentre outros que são fundamentais. No entanto, o exercício de
tais direitos encontra, conforme o disposto no Artigo XXIX, 2, da
Declaração, limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o
fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e
liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da
ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
Em 22 de novembro de 1969, foi subscrita a Convenção
Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)
no âmbito da Organização dos Estados Americanos – OEA, tratado
internacional que trata da consolidação, no continente americano, de
regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito
dos direitos humanos essenciais.
Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a respeitar
os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e
pleno exercício a todos os seres humanos que estejam sujeitos à sua
jurisdição, conforme Artigo 1º.

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Segundo a Convenção, toda pessoa (ser humano) tem direito


à vida (Artigo 4º), à integridade pessoal (Artigo 5º), à liberdade
(Artigos 7º, 12, 13 e 22), à segurança pessoal (Artigo 7º), ao
respeito da honra e ao reconhecimento da dignidade (Artigo 11),
à propriedade (Artigo 21) e demais direitos fundamentais. No
entanto, o exercício de tais direitos encontra limitação, conforme
o disposto no Artigo 32, 2, que dispõe que os direitos de cada
pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de
todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade
democrática.
O Brasil é membro fundador da ONU e um dos membros
da OEA que aderiu ao Pacto de San José da Costa Rica. O Brasil
Estado, reflexo do seu povo, partilha do mesmo reconhecimento,
proteção e limitação inerentes aos Direitos Fundamentais do ser
humano tutelados pelas citadas organizações.
A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), fruto dos
desejos, do ideário, da luta, dos feitios da nação brasileira, formada
obviamente por seres humanos, prevê meios para de fato garantir
o exercício dos Direito Fundamentais, bem para como preservá-
los e limitá-los, em concordância com os instrumentos legais
internacionais supracitados.
Da análise dos parágrafos 2º, 3º e 4º do art. 5º da Constituição
Federal2, conclui-se que há forte carga do constitucionalismo global
no seio da Carta Magna, já que busca “[...] unificar e consagrar
juridicamente os ideais humanos conforme [...] o fortalecimento do
sistema jurídico-político internacional”, a fim de elevar a “dignidade
2
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
§2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte.
§3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.
§4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado
adesão.

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da pessoa humana a pressuposto não limitável até mesmo pela


Constituição” (BERNARDES; FERREIRA, 2015a, p. 60).
A garantia à inviolabilidade dos direitos fundamentais
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade e
outros, inerentes ao ser humano, está insculpida no art. 5º, caput, da
Constituição Federal.
É certo que o gozo de direito não é absoluto. Não é diferente
em relação aos direitos fundamentais dos seres humanos. Os Artigos
XXIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 32, da
Convenção Americana de Direito Humanos, dispõem, basicamente,
que o ser humano tem deveres para com a totalidade (família,
comunidade e humanidade) e o exercício de tais direitos é limitado
pelo exercício dos direitos de outrem dentro de uma harmonia exigida
pelo bem comum e pela segurança de todos.
Diante de tal premissa, na lição de Dimoulis e Martins (2008
apud LENZA, 2012, p. 969), trata-se dos Deveres Fundamentais
classificados como implícitos, aqueles deveres (ação ou omissão) que
correspondem à contrapartida aos direitos explicitamente declarados,
porquanto o exercício de direito por alguém implica o respectivo
dever de respeito por parte dos demais.
Para ilustrar a correspondência entre direito fundamental e
dever fundamental, a título de exemplo, pode-se optar pelo direito
à vida. Dentre as diversas conexões a ele atinentes – como o direito
à vida digna, à integridade física-corporal e à integridade moral
(SILVA, 1998, apud BERNARDES; FERREIRA, 2015b, p. 36) –, o
direito à existência é o início de tudo, é a partir do existir que tudo se
desenvolve. Todo ser humano tem direito de existir, ninguém pode ser
privado de sua vida arbitrariamente e todo ser humano tem o direito
de ter sua vida respeitada (Artigo 4, 1, da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos). O dever fundamental atrelado ao direito
tratado, portanto, é o de não extinguir a vida de outrem.
Caso haja descumprimento de dever fundamental e qualquer
tipo de agressão, atual ou iminente, a direito fundamental, surge
da própria garantia ao exercício do direito fundamental ameaçado
ou violado em si o direito a defendê-lo, pelos meios necessários
disponíveis, dentro dos limites da moderação, para que não se agrida

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mais do que necessário os direitos do ofensor, a fim de preservar,


ainda assim, o equilíbrio entre direitos e deveres dentro do sistema
jurídico.
O contra-ataque suficiente para repelir com eficiência
agressão injusta é, portanto, incialmente justo, desde que não haja
excessos, pois, caso se incorra em excesso, o contra-ataque outrora
justo se torna injusto e o agressor original passa a ter garantia a
repelir o contra-ataque.
Segundo Kinsel (2017, [n. p.]):
O direito à vida, portanto, é inquestionável, e por óbvio
abrange o direito à defesa da vida, tanto que o ser humano
sempre reconheceu na legítima defesa um ato lícito,
excludente de ilicitude ou aceito jurídica e socialmente.
A Constituição Federal de 1988 prevê regras, direitos,
princípios e garantias que, em perfeita sinergia, garantem o uso
moderado dos meios necessários para defensa de direito próprio ou
de terceiro em face de injusta agressão, atual ou iminente.

Constitucionalização do Direito Penal – efeitos do Neoconstitu-


cionalismo e do Pós-positivismo: a garantia fundamental ao uso
moderado dos meios necessários para defender direito próprio
ou de terceiro em face de injusta agressão, atual ou iminente,
com fulcro na constitucionalização do Direito Penal

Segundo Bernardes e Ferreira (2015a), a principal


característica de um aparelho jurídico que advém do ponto de vista
Neoconstitucionalista é a existência de constituição cujo modelo
normativo axiológico se caracteriza pela ampla importância dada
aos princípios e regras, assim como pela previsão de vasto rol de
direitos fundamentais não exaustivo, cuja ideologia primária é a
afirmação e garantia eficaz dos direitos fundamentais. Busca-se,
porquanto:
[...] a eficácia da Constituição, deixando o texto de ter um
caráter meramente retórico e passando a ser mais efetivo,
especialmente diante das expectativas de concretização
dos direitos fundamentais (LENZA, 2012, p. 62).

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Com base em Atienza (2004, p. 309) e Vale (2009, p. 31),


Fernandes e Bicalho (2011, p. 113) afirmam:
O neoconstitucionalismo combina aspectos do positivismo,
do jusnaturalismo e do realismo jurídico em uma só
corrente. É, pois, uma posição eclética que tenta conciliar
as duas correntes antagônicas anteriores.
O efeito causado pelo Neoconstitucionalismo na legislação
infraconstitucional é a sua constitucionalização – em outras
palavras, é:
[...] a expansão da jurisdição constitucional e o
desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação
constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou
um processo extenso e profundo de constitucionalização
do Direito (BARROSO, 2005 apud BERNARDES;
FERREIRA, 2015a, p. 62).
De acordo com o conceito e as características do
Neoconstitucionalismo, considerando ainda o Constitucionalismo
global aplicado à Constituição Federal tratado no tópico anterior,
a Carta Magna é norma jurídica superior e imperativa que ocupa
o centro do sistema jurídico pátrio. Tudo deve ser interpretado a
partir da Constituição, tudo deve estar consonante à forma prescrita
na Constituição e tudo deve obediência aos valores intrínsecos a
suas normas (princípios e regras), de acordo com Lenza (2012). Em
outros termos, conforme Abreu e Santos (2013), a Constituição, por
meio de sua normatividade, é o organismo protagonista supremo do
aparelho jurídico supremo de concretização do Estado Democrático
e estrutura delimitadora do campo de atuação do legislador, pois
este está vinculado às normas daquela.
Surge, particularmente em relação à estrutura delimitadora do
campo de atuação do legislador, com base em Marmelstein (2008
apud FERNANDES; BICALHO, 2011), o Pós-positivismo, a fim
de restringir a atuação do legislador que, mesmo representando o
povo dentro de uma democracia, pode ser malévolo, caso não haja
limitação e diretriz jurídica (Constituição) baseadas em intenso teor
humanitário, o que embasa as ideias neoconstitucionalistas.
Para Fernandes e Bicalho (2011), as restrições provenientes
do Positivismo impediram o Direito de suprir as demandas de forma

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lógica para a problemática jurídica contemporânea, especialmente


as mais complicadas:
A sociedade exigiu a compatibilização da segurança
jurídica (ponto forte do positivismo jurídico) com a justiça
(ponto de busca incessante do pós-positivismo, sem o
esquecimento daquela) (FERNANDES; BICALHO, 2011,
p. 129).
A relação entre o Direito Penal e a Constituição Federal está
dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Neoconstitucionalismo
e pelo Pós-positivismo, especialmente em relação ao Garantismo
penal que, segundo Ferrajoli (2006 apud AZEVEDO; SALIM,
2018), é o limite imposto ao poder punitivo estatal pelas garantias
provenientes dos direitos fundamentais.
Assim, conforme Balico (2008), a reprimenda criminal,
sanção penal, qualquer medida repressiva tomada pelo Estado para
cercear a liberdade do ser humano, deve ser aplicada apenas dentro
da estrita necessidade, pois:
[...] a Constituição tem na pessoa e nos seus direitos
fundamentais o seu centro gravitacional e, portanto,
estes valores constitucionalizados formam os elementos
axiológicos, de natureza ético-jurídica que conferem
fundamento, unidade e legitimidade ao conjunto da ordem
jurídico-política, em determinada sociedade politicamente
organizada (BALICO, 2008, p. 51).
Na mesma linha, Abreu e Santos (2013, [n.p.]) afirmam:
A partir da força normativa dos princípios, da expansão
da jurisdição constitucional, de uma nova interpretação
Constitucional (balizada no pós-positivismo e na técnica
da ponderação), o neoconstitucionalismo impõe-se como
um modelo de Direito a ser obedecido.
A Constitucionalização do Direito Penal em si o torna
garantista, pois a Constituição Federal é a garantia máxima dos
direitos e deveres. A “[...] Constitucionalização é que permite
a concretização do Direito Penal como garantia e proteção dos
direitos fundamentais [...]” (ABREU; SANTOS, 2013, [n.p.]).
Diante do exposto, ressaltando ainda o desfecho do tópico
anterior, 4. 3, caso haja descumprimento de dever fundamental

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de respeito à não agressão, atual ou iminente, de direito alheio,


surge, a partir do garantismo constitucional (conquista do
Neoconstitucionalismo e do Pós-positivismo), o direito a defendê-
lo, a fim de preservá-lo, pelos meios necessários disponíveis,
dentro dos limites da moderação, para que não agrida mais do que
necessário os direitos do ofensor, a fim de que seja preservado o
equilíbrio entre direitos e deveres dentro do sistema jurídico.
Não há que se falar em crime e necessariamente em
cerceamento de direito, por meio de sanção penal, de pessoa
humana que age a fim de preservar direito por meio de ação ou
omissão defensiva quando é consciente de que a agressão que sofre,
ou está prestes a sofrer, é injusta.
Mesmo que seja revogado da legislação infraconstitucional
(Código Penal) o instituto da Legítima Defesa, seu exercício é
preservado por meio da Garantia Fundamental ao uso moderado
dos meios necessários para defender direito próprio ou de terceiro
em face de injusta agressão, atual ou iminente, com fulcro na
Constitucionalização do Direito Penal.

5.  C ONSIDERAÇÕES FINAIS

Defender é algo inerente aos seres vivos, defender a si e


defender outrem é inerente ao ser humano, é legítimo, é natural.
Por meio da positivação do Direito, o homem buscou registrá-
lo para assegurá-lo, e por meio do Estado e da Constituição buscou
meios eficientes e coercitivos de exercê-lo.
No entanto, o Estado não é capaz de garantir a plenitude do
exercício dos direitos, tampouco sua defesa, já que não é onisciente,
tampouco onipresente.
Considerando tal premissa, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, os tratados internacionais que versam sobre
Direitos Humanos (por exemplo, o Pacto de San José da Costa Rica,
do qual o Brasil é signatário), e a Constituição Federal estabelecem
garantia fundamental ao uso moderado dos meios necessários para

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defender direito próprio ou de terceiro em face de injusta agressão,


atual ou iminente, com base na dignidade da pessoa humana.
E, por fim, a partir do Neoconstitucionalismo e do Pós-
positivismo que desencadeiam a Constitucionalização de todo um
ordenamento jurídico, tal garantia é assegurada no âmbito do Direito
Penal por meio de sua constitucionalização, independentemente da
existência ou não de norma que tutele a legítima defesa no codex
criminal.
Diante do exposto, o conceito de dignidade da pessoa humana,
por meio da garantia em questão, fica cada vez mais tangível no
mundo real, concreto.

REFERÊNCIAS

ABREU, A. C. S.; SANTOS, D. R. S. Constitucionalização do Direito Penal X


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BALICO, V. O Direito Criminal Pós-Positivista e o devido processo penal


constitucional. Tese (Doutorado em Direito Processual Penal) – Pontifícia
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ISSN 2237-2318 143

O princípio da identidade física do juiz na


seara processual penal

Caio Gutierres SIGUINOLFI1


Iago Gutierres SIGUINOLFI2

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo discorrer sobre a vinculação do


magistrado nas demandas das searas Processual Civil e Processual Penal. Para
sua elaboração, foi utilizada, como metodologia, a revisão bibliográfica de
boletins do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, do Código de Processo
Penal comentado e de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior
Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do São Paulo. Analisou-se a aplicação
do princípio da identidade física do juiz no ordenamento jurídico brasileiro,
especialmente, no Código de Processo Penal. Verificou-se, ainda, as circunstâncias
que resultam na violação do referido princípio e, consequentemente, na nulidade
do caso julgado. Concluiu-se que o princípio da identidade física do juiz possui
uma vital importância para o Direito Processual Penal, pois a matéria penal
atinge, diretamente, a liberdade do indivíduo, e a vinculação do magistrado no
processo contribui para o devido processo legal e para a celeridade processual.

Palavras-chave: Princípio. Identidade. Física. Juiz. Processo.

1
Caio Gutierres Siguinolfi. Bacharelando em Direito pelo Claretiano – Centro Universitário. E-mail:
csiguinolfi@gmail.com.
2
Iago Gutierres Siguinolfi. Bacharelando em Direito pelo Claretiano – Centro Universitário. E-mail:
iago_siguinolfi@hotmail.com.

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144 ISSN 2237-2318

The principle of the judge’s physical identity


in the criminal procedural field

Caio Gutierres SIGUINOLFI


Iago Gutierres SIGUINOLFI

Abstract: The present work aims to discuss the binding of the magistrate in
the demands of the Civil Procedural and Criminal Procedural fields. For its
elaboration, a bibliographic review of bulletins from the Brazilian Institute of
Criminal Sciences, the commented Criminal Procedure Code and jurisprudence
of the Federal Supreme Court, the Superior Court of Justice and the Court of
Justice of São Paulo was used as a methodology. The application of the principle
of the judge’s physical identity in the Brazilian legal system was analyzed,
especially in the Criminal Procedure Code. It was also verified the circumstances
that result in the violation of that principle and, consequently, in the nullity of the
res judicata. It was concluded that the principle of the judge’s physical identity is
of vital importance for Criminal Procedural Law, since criminal matters directly
affect the individual’s freedom, and the magistrate’s involvement in the process
contributes to due process of law and to the procedural speed.

Keywords: Principle. Identify. Physical. Judge. Process.

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1.  INTRODUÇÃO

Este artigo trata da atuação do princípio da identidade física


do juiz em dois âmbitos do Direito brasileiro, o processual civil
e o processual penal, sendo que, no primeiro, foram analisadas,
também, as distinções entre a vinculação do magistrado no Código
de Processo Civil de 1973 (revogado) e no Novo Código de
Processo Civil, de 2015.
A produção do exposto trabalho se deu mediante a revisão
bibliográfica de boletins do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais, do Código de Processo Penal comentado e de
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal
de Justiça e do Tribunal de Justiça do São Paulo.
Não se pretende esgotar o assunto, e o objetivo deste estudo
é esclarecer a aplicação do princípio aludido, bem como evidenciar
as exceções previstas no ordenamento jurídico pátrio, de modo que
sejam identificadas as situações que o violam. Mostra-se como
justificativa deste estudo a importância de conhecer um princípio
que está intimamente ligado à realização de audiências.

2.  DESENVOLVIMENTO

O princípio da identidade física do juiz vincula ao magistrado


que presidir a instrução do processo o compromisso de prolatar a
sentença do caso concreto. Tal princípio é corolário dos princípios
da oralidade e da imediatidade, os quais garantem a concentração
dos atos processuais em uma audiência una, na qual há o contato
direto do juiz com as provas orais, periciais e documentais.
A origem da identidade física do juiz se deu também por meio
do princípio do juiz natural, diretriz responsável por determinar
o juízo competente antes da ocorrência de um ato ilícito, o que
impede a formação de tribunais de exceção. Não se deve confundir
o princípio do juiz natural com o da identidade física do juiz,
visto que o primeiro se refere aos limites da jurisdição enquanto o
segundo está relacionado ao julgador.

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146 ISSN 2237-2318

A principal finalidade da vinculação do juiz ao processo é


buscar a verdade real por meio de julgamentos mais equânimes para
as partes, especialmente para o acusado, pois o magistrado pode,
durante a audiência de instrução, analisar as provas apresentadas,
detectar possíveis incoerências e, assim, proferir a sentença com
maior convicção.

O princípio da identidade física do juiz na seara processual civil

Nas últimas décadas, o volume de processos inseridos em


face do Poder Judiciário tem se elevado cada vez mais e o total de
magistrados não se mostrou suficiente para atender às demandas. O
princípio da identidade física do juiz – previsto, expressamente, no
artigo 132 da Lei nº 5.869 (BRASIL, 1973) – não é absoluto, pois
expõe exceções que permitem a possibilidade de uma substituição
do julgador.
A Lei nº 8.637 (BRASIL, 1993) flexibilizou o artigo 132 do
Código de Processo Civil de 1973, ao ampliar o rol de exceções
que ocasionou o andamento de processos judiciais, anteriormente
inertes devido à ausência do juiz titular. Esse fato proporcionou
maior celeridade processual e lastro jurídico, uma vez que o juiz
substituto usufrui de autonomia para solicitar a repetição das provas.
Art. 132. O juiz, titular ou substituto, que concluir a
audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado,
licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou
aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor.
Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que proferir
a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir
as provas já produzidas (BRASIL, 1973, [n. p.]).
Ao contrário do Código de Processo Civil revogado, a Lei
nº 13.105 (BRASIL, 2015) não se fundamenta no princípio da
oralidade e, portanto, deixou de apresentar o princípio da identidade
física do juiz em seu texto. Ainda assim, esse princípio subsiste de
forma implícita no Novo Código de Processo Civil, pois se entende
que o juiz que acompanhar a audiência de instrução e julgamento é
o mais capaz para proferir a sentença.

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ISSN 2237-2318 147

O princípio da identidade física do juiz na seara processual


penal

A omissão do Decreto-Lei nº 3.869 (BRASIL, 1941) referente


ao princípio da identidade física do juiz desagradou parte da doutrina
em razão da importância deste para a seara Processual Penal, a qual
contempla direitos naturais. Esse descontentamento impulsionou,
na Lei nº 11.719 (BRASIL, 2008), a criação do § 2º do artigo 399,
que traz o seguinte texto: “O juiz que presidiu a instrução deverá
proferir a sentença” (BRASIL, 1941, [n. p.]).
O dispositivo, no entanto, não possui caráter permanente e,
graças ao rol de exceções estabelecido pelo artigo 132 do Código
de Processo Civil de 1973, é admitida a mitigação do princípio
da identidade física do juiz. Ainda que a Lei nº 5.869 (BRASIL,
1973) tenha sido expurgada do ordenamento jurídico, o artigo 3º
do Código de Processo Penal autoriza a aplicação analógica do
artigo revogado, combinado com o § 2º do artigo 399 do Código de
Processo Penal.
Embora a redação do § 2º do artigo 399 da Lei nº 3.869
(BRASIL, 1941) seja direta, a vinculação do juiz no processo
penal, segundo Roisin (2009), pode manifestar seis entendimentos
diferentes. O primeiro deles, adotado pelo Código de Processo
Penal, comporta uma interpretação similar ao artigo 132 do Código
de Processo Civil de 1973, mesmo que o núcleo do verbo agora
seja “presidir”, pois se acredita que o magistrado que concluir a
instrução deverá julgar o caso concreto.
Essa perspectiva compreende a relevância da concentração
dos atos processuais em uma audiência una, na qual o juiz titular
deve prolatar a sentença logo após a apreciação das provas orais,
salvo nas circunstâncias enquadradas no rol de exceções do artigo
132 do Código de Processo Civil revogado.
O segundo entendimento contrapõe o anterior ao contestar
a soberania do vínculo jurídico estabelecido com o julgador que
concluir a instrução. Parte-se da premissa de que, se o núcleo do
verbo do § 2º do artigo 399 do Código de Processo Penal é “presidir”,
então qualquer magistrado que conduzir a instrução constituirá

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vínculo suficiente para julgar o caso concreto, independentemente


de se o contato do magistrado com o processo for mínimo.
É necessário esclarecer que tal ponto de vista evidencia um
significativo questionamento: como determinar o juiz competente
para resolver a lide penal dentre todos os julgadores que presidirem
a audiência de instrução? A redação do artigo 132 do Código de
Processo Civil de 1973 oferece, analogicamente, uma resposta para
o impasse, porém o juiz que concluir a instrução pode não ser o
mais habilitado para decidir o caso concreto.
Mesmo contrário à observância do Código de Processo Civil
revogado, o terceiro entendimento busca salvaguardar a celeridade
processual e o devido processo legal mediante o rol de exceções,
tanto nos casos de réu preso quanto para impedir a ocorrência de
prescrições.
Já o quarto entendimento não se distancia muito do
pensamento exposto anteriormente, exceto pela ressalva de que
a mitigação do princípio da identidade física do juiz é aplicada
somente aos cenários em que o acusado se encontra detido, dado
que existe a possibilidade de violação do princípio constitucional
da dignidade da pessoa humana.
Quanto ao quinto entendimento, trata-se da vinculação do
magistrado que colher a prova determinante para a resolução da
lide penal, ou seja, em ocasiões nas quais há dois ou mais juízes
competentes, o julgador responsável por proferir a sentença será
aquele que, no momento da audiência da instrução, avaliar as
provas (orais, documentais e periciais), assim como os requisitos
do artigo 59 do Código Penal para a dosimetria da pena.
Vale ressaltar que o magistrado, em concordância com as
partes do processo, pode alterar o prosseguimento da audiência
de instrução e julgamento, previsto no artigo 400 do Código de
Processo Penal, sob as condições de não se provocar prejuízos ao
réu e das oitivas das testemunhas de defesa não serem prova-chave
para a solução do caso concreto.
Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser
realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-
se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das

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testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta


ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código,
bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações
e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se,
em seguida, o acusado (BRASIL, 1941, [n. p.]).
O último entendimento enxerga a identidade física do juiz
como princípio absoluto, de modo que não admite o rol de exceções
previsto no artigo 132 do Código de Processo Civil revogado. Dessa
forma, o magistrado competente para prolatar a sentença é aquele
que conduzir todos os procedimentos expressos no § 2º do artigo
399 e no artigo 400, ambos do Código de Processo Penal.
O princípio da identidade física do juiz não é invocado nos
casos que envolvem a Lei nº 8.069 (BRASIL, 1990), pois, nos
atos infracionais equiparados a crimes, a audiência de instrução
transcorre de maneira fracionada, já que o Estatuto da Criança e do
Adolescente crê que a concentração dos atos processuais em uma
audiência una não oferece o melhor acolhimento para os jovens.
Nos crimes contra a vida, a coleta de provas que compõe a
audiência de instrução é abraçada pelo princípio da identidade física
do juiz, mas não há a vinculação desse magistrado ao julgamento
do caso (segunda fase), porque este será decidido pelo Tribunal do
Júri, o que afasta a chance de violação do princípio citado.

Violação do princípio da identidade física do juiz

A vinculação do magistrado no processo judicial não


comporta um caráter permanente. No entanto, tal princípio está
sujeito a vícios que podem ocasionar a sua nulidade, seja ela relativa
ou absoluta. Essa violação ocorre, principalmente, quando há um
notório prejuízo para o réu, como diz o princípio “pas de nullité
sans grief”, previsto no artigo 563 do Código de Processo Penal3.
O Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula 523,
considera que a ausência de defesa no processo criminal consiste
em nulidade absoluta, o que não se verifica nos casos em que o
3
“Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou
para a defesa.” (BRASIL, 1941, [n. p.]).

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acusado não é lesado pelas falhas da alegação da defesa. O Superior


Tribunal de Justiça adota a mesma análise.
A ofensa ao princípio da identidade física do juiz também
pode ser provocada quando não houver uma justificativa que
fundamente a substituição do juiz titular no decorrer da audiência
de instrução e julgamento. Esse esclarecimento deve estar alinhado
ao rol de exceções expresso no artigo 132 do Código de Processo
de Civil de 1973.
Todos esses exemplos de descumprimento do princípio da
identidade física do juiz criam brechas para inúmeros advogados
ajuizarem, em instâncias superiores, ações favoráveis aos seus
clientes, ainda que sem uma argumentação sólida, isto é, ações
movidas apenas pelo descontentamento com o resultado do
julgamento.
A colheita de depoimentos por meio de carta precatória ou
de videoconferência costuma ser alvo de pedidos de nulidade.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal valida tais recursos desde
que os depoimentos sejam vitais para a resolução do caso concreto
e que não haja a possibilidade das testemunhas ou do réu estarem
presentes na audiência de instrução e julgamento, como preveem os
artigos 2224 e 3535 do Código de Processo Penal.
Além disso, o § 2º do artigo 399 do Código de Processo
Penal não proíbe a colaboração entre juízes, uma vez que o Brasil
é um país continental e a maior parte da população carece de meios
financeiros para pagar os custos processuais. Perante o exposto, o
Agravo Regimental no Habeas Corpus 156.749 – São Paulo do
Supremo Tribunal Federal declarou:
A Terceira Seção desta Corte já consignou que “o princípio
da identidade física do juiz, introduzido no Processo Penal
pela Lei 11.719/1908 [sic] (art. 399, § 2º, do CPP), não é
absoluto e não impede a realização do interrogatório do réu
por meio de carta precatória [...] Isso porque a adoção de
tal princípio “não pode conduzir ao raciocínio simplista de
4
“Art. 222. A testemunha que morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do lugar de sua
residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória, com prazo razoável, intimadas as partes.”
(BRASIL, 1941, [n. p.]).
5
“Art. 353. Quando o réu estiver fora do território da jurisdição do juiz processante, será citado mediante
precatória.” (BRASIL, 1941, [n. p.]).

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dispensar totalmente e em todas as situações a colaboração


de outro juízo na realização de atos judiciais, inclusive
no interrogatório do acusado, sob pena de subverter a
finalidade da reforma do processo penal, criando entraves à
realização da Jurisdição Penal que somente interessam aos
que pretendem se furtar à aplicação da Lei (CC n. 99023/
PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNUES MAIA FILHO,
Terceira Seção, julgado em 10/6/2009, DJe 28/8/2009)” (CC
n. 142.095/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA
FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/8/2015,
DJe 8/9/2015) (BRASIL, 2018, p. 4-5).
É importante lembrar que a vinculação do magistrado no
processo criminal se deu pela Lei nº 11.719/08 e, conforme o
princípio “tempus regit actum”, não há retroatividade ao tempo
do delito, isto é, os atos processuais instaurados previamente ao
princípio da identidade física do juiz não serão objeto de violação
desse princípio.

3.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nota-se que o princípio da identidade física do juiz possui uma


vital importância para o Direito Processual Penal brasileiro, posto
que a matéria penal atinge diretamente a liberdade do indivíduo, o
que torna necessária a vinculação do magistrado no processo, cuja
audiência de instrução e julgamento deve, sempre, buscar a verdade
real de forma mais precisa e imparcial.
A natureza não absoluta desse princípio também assessora
o exercício do Poder Judiciário, à medida que o rol de exceções
legalmente autorizadas contribui para o devido processo legal e
para a celeridade processual, a ponto de suprimir a inércia da lide
penal mediante a substituição do juiz titular.
Portanto, percebe-se que a vinculação do julgador na seara do
Processo Penal estabelece o contato das provas com o magistrado
que irá proferir a sentença e, dessa forma, reduz os riscos de
prejudicar o réu, como também de ocorrer a violação do princípio
da identidade física do juiz e a nulidade do processo judicial.

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ISSN 2237-2318 155

Políticas ambientais e participação social: os


arranjos participativos sob a perspectiva de
efetividade

Luís Gustavo Santos LAZZARINI1

Resumo: O trabalho analisa os mecanismos participativos de gestão dos recursos


naturais previstos em políticas ambientais, sob a perspectiva da efetividade.
De fato, diversas políticas ambientais preveem a utilização de mecanismos
de participação da sociedade civil em órgãos colegiados, como os Comitês
de Bacias Hidrográficas. Porém, em que pese a previsão normativa, esses
modelos participativos em políticas ambientais podem apresentar desajustes
que dificultam a participação da sociedade, o que, por consequência, pode
comprometer o alcance de seus objetivos no que tange à governança sustentável
dos recursos ambientais. Por isso, é necessário compreender o funcionamento
dos mecanismos de participação social nas políticas ambientais e, além disso,
verificar os elementos jurídicos necessários para corrigir eventuais problemas e
reforçar os canais participativos. Dessa forma, pretende-se que a sociedade civil
tenha condições de participar de forma mais ativa para a gestão dos recursos
ambientais e para a sua utilização sustentável.

Palavras-chave: Políticas Ambientais. Participação Social. Efetividade.

1
Luís Gustavo Santos Lazzarini. Doutor e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
Professor do curso de Graduação em Direito do Claretiano – Centro Universitário (Rio Claro) e do
Centro Universitário Central Paulista (São Carlos). Advogado. E-mail: lgslazzarini@gmail.com.

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156 ISSN 2237-2318

Environmental policies and social


participation: the participatory mechanisms
and the effectiveness

Luís Gustavo Santos LAZZARINI

Abstract: The research analyzes the participatory mechanisms for the


management of natural resources foreseen for the implementation of
environmental policies. In fact, several environmental policies foresee the use
of civil society participation mechanisms in collegial bodies, such as water
resources policy, through the Watershed Committees. However, in spite of
the normative forecast, these participatory models in environmental policies
can present maladjustments that hinder the participation of the society which,
consequently, can compromise the reach of its objectives with respect to the
sustainable governance of environmental resources. Therefore, it’s necessary to
understand the mechanisms of social participation in environmental policies and,
in addition, to verify the legal elements necessary to correct any problems and
reinforce the participatory mechanisms. In this way, it´s intended that civil society
will be able to participate more actively in the management of environmental
resources and their sustainable use.

Keywords: Environmental Policies. Social Participation. Effectiveness.

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1.  I NTRODUÇÃO

Em que pese a existência de um significativo conjunto de


diplomas legais, desde leis federais, estaduais e municipais, até
as centenas de resoluções do Conama, os instrumentos de política
ambiental são cada vez mais questionados, principalmente por
serem instituídos de forma padronizada e uniforme dentro de uma
realidade social e econômica complexa e diversificada. Além disso,
também se discute o formato de concepção e execução das políticas
ambientais, que, muitas vezes, são impostas pelos órgãos públicos
e não contam com a participação da sociedade em seus processos
decisórios.
Dessa forma, é necessário que seja estimulado o emprego
de modelos participativos nos arranjos institucionais das políticas
ambientais. Nesse contexto, os objetivos e finalidades da política
passam a ser compartilhados com seus destinatários que, dentro de
um jogo de prioridades, podem apontar as estratégias e escolhas
mais necessárias e viáveis.
Algumas políticas ambientais já contam com instrumentos de
participação social dentro de seu desenho institucional, como é o
caso da Política Nacional de Recursos Hídricos – Lei nº. 9.433/1997
(BRASIL, 1997). Fundamentada nas premissas da gestão integrada,
descentralizada e participativa, essa política prevê espaços
participativos como órgãos colegiados (por exemplo, Conselhos
Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos e Comitês de Bacias
Hidrográficas) e organizações civis de recursos hídricos. Apesar
de existirem há aproximadamente vinte anos, é necessária uma
reformulação desses espaços participativos, visando ao aumento
de sua efetividade, no que tange à participação social dentro do
processo decisório.
Dessa forma, é importante o estímulo à adoção de
espaços participativos no desenho de políticas ambientais,
concomitantemente à utilização dos tradicionais instrumentos de
comando e controle, e econômicos. Além disso, torna-se necessário
calibrar os espaços participativos já previstos pela política

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158 ISSN 2237-2318

ambiental, para que permitam uma real e efetiva participação da


sociedade civil no que tange à gestão ambiental.
Neste trabalho, será brevemente apresentado o modelo
institucional de gestão de recursos hídricos sob uma perspectiva
crítica, tendo por base os Comitês de Bacias Hidrográficas, com
relação à sua efetividade em contextos de crise hídrica e de
dificuldades ao acesso da água.
Uma hipótese apontada ao longo deste trabalho é que
as políticas ambientais, formuladas e executadas com pouca
participação dos atores sociais diretamente envolvidos, podem ter
sua efetividade questionada por seu caráter meramente simbólico.
A utilização de estratégias de forma transparente e de fácil acesso
e que levem em consideração os agentes envolvidos e seu contexto
social e econômico pode tornar a política ambiental mais efetiva,
contribuindo, assim, para a utilização racional dos recursos
ambientais e a promoção de um meio ambiente sadio e equilibrado.
O estudo possui um alcance explicativo, ao procurar
pelo funcionamento dos mecanismos de participação social em
políticas ambientais, identificando possíveis déficits regulatórios
relacionados à participação nos órgãos colegiados e os motivos
que dificultam o aumento qualitativo da participação da sociedade,
além de propor soluções para torná-los mais efetivos e com maior
inclusão social. Para tanto, a construção do trabalho contou com
revisão bibliográfica sobre os temas da participação social na
construção e execução de políticas ambientais.

2.  A PARTICIPAÇÃO SOCIAL COMO INSTRUMENTO


DE POLÍTICA AMBIENTAL

O planejamento e a execução de políticas públicas em matéria


ambiental têm sua base na realidade fática de que a degradação
ambiental quantitativa e a exploração irracional dos recursos naturais
comprometem sua qualidade, estoque e acesso pela população.
Tradicionalmente os instrumentos da política ambiental são
classificados em duas estratégias para controlar, impor condutas

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e estimular comportamentos de seus destinatários. Trata-se da


utilização de medidas de regulação direta – os instrumentos de
comando e controle – e de medidas de regulação indireta – os
instrumentos econômicos.
Os instrumentos de comando e controle estabelecem normas,
regras, padrões, limites e procedimentos para garantir o respeito
e cumprimento dos objetivos da política ambiental. Por meio
desses instrumentos, são especificadas as condutas obrigatórias
e aquelas proibidas, com as respectivas sanções para o caso de
descumprimento, com viés preventivo ou repressivo.
Porém, apesar de serem os mecanismos mais adotados pela
política ambiental, algumas críticas podem ser apontadas aos
instrumentos de comando e controle. Por primeiro, o cumprimento
dos mecanismos de comando e controle demanda intensa
fiscalização do Poder Público, o que, por vezes, não é eficiente.
Além disso, esses instrumentos não incentivam ou premiam
aqueles que adotam medidas que ultrapassam os limites legais
de preservação. Outrossim, há um tratamento isonômico entre os
agentes que, dentro de um contexto de desigualdade econômico-
social, pode dificultar para alguns o respeito aos comandos legais.
Essas limitações dos instrumentos de comando e controle
justificaram as propostas de mecanismos alternativos para promover
maior efetividade à política ambiental, quais sejam, os instrumentos
econômicos. Em lugar da imposição de comportamentos
obrigatórios, passou-se a reclamar a criação de mecanismos que
incentivassem a adesão voluntária a práticas ambientalmente
eficientes, que fornecessem aos destinatários uma escolha para a
consecução dos seus objetivos.
O elemento essencial para a definição de instrumentos
econômicos é seu caráter indutor de comportamentos desejados
pela política ambiental, o que pode ocorrer por meio da imposição
de tributos e preços públicos, pela criação de incentivos e subsídios
e pela possibilidade de criar mercados em função da transação
sobre direitos de poluir ou créditos de não poluição.
Da mesma forma que os instrumentos de comando e controle,
os mecanismos econômicos também são passíveis de críticas. A

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160 ISSN 2237-2318

inadequação aos fins ambientais pretendidos é uma delas, pois a


lógica de mercado inata às transações entre partes pode colocar em
segundo plano as finalidades ambientais propostas pela política.
Outra crítica diz respeito à incapacidade de garantir resultados
equitativos nas relações entre grupos sociais, isto é, os instrumentos
econômicos podem ser pouco efetivos quanto aos objetivos de
equidade social e eficiência.
A política ambiental brasileira tem priorizado a utilização
dos instrumentos de comando e controle (WINDHAM-BELLORD,
2015). Com efeito, a PNMA apresenta diversos instrumentos
de natureza de comando e controle, tais como licenciamento
ambiental, padrões e zoneamento ambientais, avaliação de
impactos, responsabilidade civil por dano, dentre outros. Nesse
contexto, é possível enquadrar os instrumentos de comando e
controle da política ambiental brasileira em quatro categorias: a)
padrões ambientais de qualidade e emissão (Programa de Controle
de Qualidade do Ar – Pronar); b) controle do uso do solo (Áreas
de Preservação Permanente, Reserva Legal e zoneamento); c)
licenciamento ambiental (EIA/Rima); e d) penalidades (multas,
compensações etc.) (VARELA, 2012).
Contudo, a complexidade das questões ambientais faz com que
um instrumento de política isolado não seja suficiente para prevenir
e resolver os problemas. Nesse contexto, a discussão passou a ser
centralizada na possibilidade de utilização políticas que incluam
tanto instrumentos de comando e controle e econômicos, como
soluções negociadas e ampliação dos espaços de participação.
Em outras palavras, as estratégias de comando e controle
e as econômicas não se excluem e precisam ser utilizadas para o
planejamento e implementação de políticas ambientais. Porém,
é importante o emprego de mecanismos de participação social e
deliberação, tanto na esfera da gestão dos recursos ambientais,
como na do monitoramento e acompanhamento das políticas.
A utilização de mecanismos de participação e deliberação
em processos decisórios decorre da incorporação de modelos
deliberativos de democracia política. A participação social remete
ao fortalecimento e democratização da sociedade e do Estado,

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com a finalidade de promover uma influência mais acentuada da


sociedade civil sobre a gestão pública, para, assim, torná-la mais
legítima, transparente e eficiente.
Nas palavras de Calixto Salomão Filho (2012), o
desenvolvimento é um processo de autoconhecimento da sociedade.
Dessa forma, é importante que a sociedade, de forma organizada,
defina a concepção das instituições e os valores que mais podem se
adequar ao seu perfil.
Assim, a recuperação de figuras da democracia direta, a
participação cidadã na formulação de políticas e decisões estatais
e a possibilidade de deliberação pública constituem os conteúdos
evocados na noção de democracia participativa, como ferramenta
para trazer maior efetividade às políticas.
Esse processo decorre do surgimento de novos atores sociais,
como associações e ONGs, cada um atuante sobre uma demanda
social específica e que, para isso, reclamam a participação
em instâncias decisórias descentralizadas e que permitam a
participação da sociedade civil. As forças sociais passam a afirmar
suas identidades e interesses e, em função desse processo de
autoconhecimento, pleiteiam maior participação no universo do
discurso político.
A partir desse contexto, houve uma mudança na orientação do
Estado, que passou a criar mecanismos institucionais para estimular
a participação social em suas decisões, ao mesmo tempo em que
transmite algumas tarefas para outros agentes (JESSOP, 1999).
Nessa linha, o Estado passa a incorporar a ideia de governança, que
tem como essência a auto-organização dos agentes sob uma forma
heterárquica.
Isto é, tem-se a construção de um modelo de governança
fundamentado em novos paradigmas, com a entrada de novos
sujeitos sociais no espaço institucional de tomada de decisão política.
As prioridades da agenda política passam a ser compartilhadas com
aqueles que serão seus destinatários, que podem apontar as opções
mais necessárias e viáveis.

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Em matéria ambiental, a participação social está fundamentada


pelo princípio Décimo da Declaração do Rio de Janeiro (CETESB,
1992)2. Juntamente com o princípio da informação, forma o
princípio democrático, segundo o qual o Poder Público deve
facilitar e estimular a conscientização e a participação pública,
facilitando o acesso à informação a todos os interessados.
O princípio democrático assegura aos cidadãos o
direito de, na forma da lei ou regulamento, participar
das discussões para a elaboração das políticas públicas
ambientais e de obter informações dos órgãos públicos
sobre matéria referente à defesa do meio ambiente e de
empreendimentos utilizadores de recursos ambientais e
que tenham significativas repercussões sobre o ambiente
[...] (ANTUNES, 2013, p. 27).
De acordo com Jeroen Warner (2005), um fator importante
para a inclusão da participação na agenda da política pública é a
relevância da questão ambiental. Quando o desafio de gestão é
imediato e urgente (por exemplo, em situações de poluição, secas e
inundações), a pressão social pela participação é elevada e deve ser
considerada pelos gestores públicos.
Nessa linha, a participação social pode ocorrer em três
esferas: legislativa (por exemplo, por meio de plebiscito, referendo
e iniciativa popular), processual (ação civil pública, ação popular,
mandado de segurança coletivo, dentre outros mecanismos
processuais) e administrativa.
Para o presente trabalho, serão priorizados os mecanismos de
participação social na esfera administrativa, por meio dos quais
são disponibilizadas aos cidadãos oportunidades de participarem
em processos decisórios. É possível classificar esses mecanismos
em três modelos: o desenho participativo de baixo para cima, no
qual há livre entrada de qualquer cidadão no processo participativo
e as decisões são formuladas de baixo para cima (por exemplo, o
orçamento participativo); processo de partilha do poder, o qual se
configura pela constituição de instâncias decisórias compostas por
2
Princípio Décimo: “A melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação no
nível apropriado, de todos os cidadãos interessados” (CETESB, 1992, [n.p.]). Disponível em: https://
cetesb.sp.gov.br/proclima/wp-content/uploads/sites/36/2013/12/declaracao_rio_ma.pdf. Acesso em: 31
jul. 2022.

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representantes da sociedade civil e do Poder Público; e, por último,


o processo de ratificação pública, no qual os atores da sociedade
civil não participam diretamente do processo decisório, mas são
convidados para opinar sobre ele e ratificá-lo (AVRITZER, 2008).
No Direito Ambiental, é possível identificar alguns
exemplos de aplicação desses mecanismos de participação social.
As audiências públicas que ocorrem durante o procedimento de
licenciamento ambiental podem ser enquadradas como processo
de ratificação pública. Os Comitês de Bacias Hidrográficas, que
podem ser compostos por representantes dos usuários e da sociedade
civil e têm competência consultiva e deliberativa, são exemplo
de modelo de partilha do poder. Há, também, os Conselhos de
Unidades de Conservação, com formato deliberativo ou consultivo,
que são compostos de forma paritária por membros da sociedade
civil e de órgãos públicos. Por fim, o modelo institucional do
Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) também pode
ser considerado como de partilha de poder, pois é composto por
representantes da sociedade civil, sendo sua estrutura participativa
replicada nas esferas dos conselhos estaduais e municipais de meio
ambiente.

3. 
E XPERIÊNCIAS PARTICIPATIVAS RELACIONA-
DAS À GOVERNANÇA AMBIENTAL – OS COMITÊS
DE BACIAS HIDROGRÁFICAS

Os Comitês de Bacias Hidrográficas são órgãos com


função consultiva e deliberativa, vinculados ao Poder Público e
subordinados aos respectivos Conselhos de Recursos Hídricos
compostos por representantes dos usuários, Poder Público e da
sociedade civil organizada. Como afirma Maria Luiza Granziera
(2014), trata-se da instância mais importante de participação e
integração do planejamento e gestão da água, sob o enfoque das
bacias hidrográficas.
Inspirado no modelo francês de gestão de recursos hídricos,
o formato dos Comitês de Bacias Hidrográficas, ao prever a
participação social em espaços consultivos e deliberativos, busca

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164 ISSN 2237-2318

combater a tecnicidade dos órgãos de gestão hídrica, para levar em


consideração os interesses e necessidades da sociedade civil.
Dentre as competências dos Comitês de Bacias Hidrográficas,
sob a perspectiva da descentralização da gestão, podem ser
identificadas as seguintes: aprovação e acompanhamento da
execução do Plano de Recursos Hídricos da bacia; fixação de
mecanismos de cobrança pelo uso da água; e definição sobre a
aplicação dos recursos derivados da cobrança.
A Resolução do Conselho Nacional de Recursos Hídricos
nº. 5/2000, alterada pela Resolução nº. 24/2002, determina que
os representantes dos usuários sejam 40% do número total de
representantes do Comitê, que a somatória dos membros do Poder
Público não ultrapasse 40% e que os representantes da sociedade
civil sejam, no mínimo, 20%.
Isto é, além da representação do Estado, abre-se espaço para
novos atores sociais integrarem o sistema, que trazem consigo
valores que orientam a sua percepção sobre os recursos naturais,
levando a uma diversidade de ideias, interesses e pontos de vista
para o ambiente da gestão (JACOBI; CIBIM; SOUZA, 2015).
Porém, ainda que a lei estipule percentuais mínimos para
a composição destes órgãos colegiados, é possível constatar que
sua atuação pode ser pouca expressiva no que tange à governança
dos recursos hídricos, considerando o acesso equitativo à
água de qualidade. Além disso, há um contraditório na própria
regulamentação, que, ao mesmo tempo, prevê a participação da
sociedade civil e delega aos governos a atualização e disponibilização
das informações sobre o gerenciamento dos recursos hídricos.
Observa-se que, apesar dos avanços, a Lei Nacional nº.
9.433/1997 coloca em primeiro plano a importância do
corpo técnico-científico e do conhecimento produzido por
ele nas relações de força no interior dos espaços decisórios
da bacia, o que limita o envolvimento da comunidade nas
atividades dos Comitês. Assim, de fato, mantém o poder
decisório entre os que detêm o conhecimento técnico-
científico (JACOBI; CIBIM; LEÃO, 2015, p. 35).

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A dinâmica dos Comitês de Bacias Hidrográficas deveria


facilitar a integração entre sociedade civil, usuários dos recursos
hídricos e Poder Público, sob uma perspectiva de horizontalidade e
capacidade crítica no processo de tomada de decisão.
Entretanto, ocorre uma frágil capacidade de organização e
mobilização da sociedade civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas,
que pode ter seus interesses colocados em segundo plano, ao passo
que é priorizada a lógica econômica e tecnicista.
A crise hídrica que atingiu a Região Metropolitana entre 2013
e 2015 pode ser um exemplo claro, considerando a pouca atuação
da sociedade civil nesse órgão colegiado. Em contrapartida, as
iniciativas da sociedade civil em resposta às ações do Poder
Público, dentro do contexto de crise hídrica, partiram de coalizões
de diferentes instituições, como a Aliança pela Água. Essa
situação coloca em questionamento o papel dos Comitês de Bacias
Hidrográficas, à medida que podem ter questionada sua efetividade
no que tange à governança integrada dos recursos hídricos.

4. 
D ESAFIOS PARA EFETIVIDADE DOS MODELOS
PARTICIPATIVOS EM POLÍTICAS AMBIENTAIS

É fundamental o envolvimento da sociedade no planejamento


e na implementação da política ambiental, pois, para que consiga
cumprir seus objetivos, é primordial que seja conhecida e incorporada
por seus destinatários. Como resume Amartya Sen (2009), o meio
ambiente não é apenas uma questão de preservação passiva, mas
também de busca ativa, seja para a busca de oportunidades para
desenvolvimento humano, seja para a melhoria da qualidade dos
recursos ambientais.
Para tanto, é preciso inserir a sociedade no processo decisório,
para que, comprometida com atividades benéficas para o meio
ambiente, possa contribuir para a utilização racional e equilibrada
dos recursos naturais.

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Contudo, não basta apenas a existência formal de canais


participativos, pois se trata de um processo de autoconhecimento e
aquisição de informações pela sociedade.
Não basta assegurar legalmente à população o direito de
participar da gestão ambiental, estabelecendo-se conselhos,
audiências públicas, fóruns, procedimentos e práticas. Isto
implica em mudanças no sistema de prestação de contas
à sociedade pelos gestores públicos e privados, mudanças
culturais e de comportamento (JACOBI; CIBIM; SOUZA,
2015, p. 435).
Ou seja, para esse processo de autoconhecimento, também
é necessário disciplinar o funcionamento e a existência dos
centros decisórios de poder, no sentido de ampliar os espaços de
participação dentro de modelos de gestão policêntrica, para que os
objetivos da política ambiental sejam absorvidos e alcançados pela
sociedade. Soluções meramente compensatórias para os problemas
ambientais não resolvem as questões estruturais relacionadas
às suas causas, sendo necessárias soluções criativas baseadas na
lógica de participação e cooperação entre os agentes destinatários
da política.
A experiência da crise hídrica na Região Metropolitana
de São Paulo coloca em discussão o atual modelo de gestão
participativa, em especial no tocante aos recursos hídricos. De
fato, considerando que o canal institucional teve pouca atuação no
contexto da gestão da crise hídrica e, ao mesmo tempo, diante da
atuação mais significativa da sociedade civil por meio de espaços
pouco institucionalizados, vale a reflexão sobre se o atual modelo
participativo cumpre seu propósito – garantir uma gestão integrada,
descentralizada e participativa dos recursos hídricos.
Diante do cenário de incertezas, desconfiança e incapacidade
dos gestores públicos de dar respostas concretas à sociedade sobre
a crise hídrica, diversas iniciativas surgiram a partir da mobilização
independente da sociedade civil, protagonizadas por organizações
não governamentais e movimentos sociais (JACOBI; CIBIM;
LEÃO, 2015).
Ou seja, é possível verificar, como afirmam Sabatier et
al. (2005), que a tradicional abordagem política, baseada em

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mecanismos jurídico-institucionais criados sob a lógica top-down,


é pouco efetiva e torna a sociedade descontente.
Dessa forma, é importante que as políticas ambientais
adotem os canais participativos e, mais que isso, que sejam criadas
ferramentas para torná-los atrativos para o engajamento e a atuação
efetiva da sociedade civil dentro do processo decisório ambiental.
Cabe ao Estado, em seu papel regulador, criar o arranjo
institucional participativo para as políticas ambientais, no sentido
de viabilizar as condições para a efetividade dos canais de
participação da sociedade civil: identificar atores e instituições
sociais relevantes para o processo de tomada de decisão; criar
formas de integrá-los e articulá-los; definir o arranjo jurídico; e, por
fim, criar procedimentos e práticas internas sob uma perspectiva de
horizontalidade e heterarquia (JACOBI; CIBIM; SOUZA, 2015).
Um dos elementos fundamentais para a efetividade dos
espaços participativos em políticas ambientais é a relação de
confiança construída entre Poder Público, usuários e a sociedade
civil. Nesse tocante, Will Focht e Zev Trachtenberg (2005) destacam
que o aumento dos espaços participativos relaciona-se a uma crise
de confiança nos órgãos públicos e, em paralelo, à busca por maior
efetividade das políticas. Isto é, as políticas podem ser melhoradas
quando possuem estratégias de participação social em seu processo
de formulação e execução, pois aumentam a confiança nos
processos decisórios. Com efeito, a segurança de que os processos
decisórios também considerem as necessidades da sociedade é
importante para que os canais participativos possam atrair de forma
efetiva a sociedade, com a finalidade de buscar soluções às questões
complexas que envolvem a governança ambiental.
Para tanto, além de aumentar os espaços participativos nas
políticas ambientais, é necessário calibrar aqueles que já existem,
como os Comitês de Bacias Hidrográficas. Incluir ferramentas
de accountability e transparência nas informações pode corrigir
problemas ligados à falta de conhecimento técnico, que permeia em
grande parte as discussões nesses colegiados. Com mais informação
e conhecimento, a sociedade poderá participar de forma mais
autônoma com o Poder Público e os usuários.

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5.  C ONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho, inicialmente, procurou apresentar alguns


aspectos relacionados às estratégias utilizadas pela política
ambiental brasileira. Foram abordadas questões relativas ao formato
de regulação direta (os instrumentos de comando e controle) e os
instrumentos econômicos, isto é, mecanismos de regulação indireta
sobre os recursos ambientais que se valem da lógica econômica para
estimular a adoção de comportamentos ambientalmente desejáveis.
Longe da discussão sobre qual estratégia é a melhor para
regular o acesso e utilização dos recursos ambientais, passou-se à
discussão sobre a importância de adequar as políticas ambientais
no sentido de ampliar os espaços de participação social em todas as
suas fases. Partindo-se da premissa de que o desenvolvimento social
é um processo de autoconhecimento da sociedade, é importante
que canais participativos sejam cada vez mais institucionalizados e
efetivos no que tange à política ambiental.
A situação dos Comitês de Bacias Hidrográficas é
paradigmática para a discussão sobre os canais participativos
dentro de políticas ambientais. Ainda que a legislação disponha
sobre a obrigatoriedade da participação social nesses órgãos, há
poucos mecanismos institucionais para atrair a sociedade civil e,
além disso, para que tenha uma atuação independente e em situação
de igualdade com os demais membros.
Assim, destaca-se a necessidade que o Estado tem de
reformular seus processos decisórios e criar mecanismos que
garantam maior participação da sociedade. Mais do que isso,
é importante que os espaços participativos facilitem o acesso ao
conhecimento e garantam transparência nas informações para os
diferentes agentes sociais, evitando-se que sejam mera reprodução
de centros decisórios de poder. Possibilitar maior participação da
sociedade nos processos das políticas ambientais pode ser fator
importante para promover sua efetividade e maior legitimidade.

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ISSN 2237-2318 171

Urbanismo, meio ambiente e a perturbação do


sossego público

João Carlos BIANCO1

Resumo: O presente trabalho estuda o urbanismo moderno como ciência, arte e


técnica de organização do espaço urbano. Para tanto, focaliza o meio ambiente
urbano, especialmente a poluição sonora. É excerto de exposição mais abrangente
acerca das calçadas e da cessão do espaço de uso comum do povo que, desviados
de suas finalidades, têm sido apropriados pelos particulares como se propriedade
privada fossem.

Palavras-chave: Urbanismo. Poluição sonora. Direito fundamental. Crime


ambiental. Legitimidade.

1
João Carlos Bianco. Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP). Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Franca. Bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Franca. Bacharel em Teologia pelo Centro
de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto. Docente do Claretiano – Centro Universitário. E-mail:
joaobianco@claretiano.edu.br.

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172 ISSN 2237-2318

Urban planning, environment and public


nuisance

João Carlos BIANCO

Abstract: This paper studies modern urbanism as a science, art and technique for
the organization of urban space, focusing on the urban environment, especially
as to noise pollution. It is an excerpt from a more comprehensive exposition
on sidewalks and the cession of space for common use by the people, which,
diverted from their purpose, have been appropriated by private individuals as if
they were private property.

Keywords: Urbanism. Noise pollution. Fundamental right. Environmental crime


Legitimacy.

Revista Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 12, n. 2, p. 171-186, jul./dez. 2022


ISSN 2237-2318 173

1.  I NTRODUÇÃO

O urbanismo é uma ciência, uma técnica e uma arte, que


objetiva a organização do espaço urbano, a fim de que, por meio
de uma legislação, de um planejamento e da execução de obras
públicas, estabeleça o bem-estar da pessoa humana que habita a
cidade, porquanto nela vive, trabalha, circula, consome, desfruta
do lazer, busca a felicidade, enfim procura realizar os seus sonhos e
ideais, até mesmo os utópicos.
O meio ambiente, por sua vez, embora o seu conceito permita
que a doutrina construa um enfoque tridimensional em natural,
cultural e artificial, é de caráter unitário ou sistêmico. Se o meio
ambiente natural é integrado pelo solo e água, pela flora e fauna,
além do ar atmosférico; se o meio ambiente cultural compreende
as referências ou valores incomuns ligados à história e à tradição,
ao patrimônio arqueológico e artístico, é o meio ambiente artificial,
também rotulado construído, o que mais aproxima e dialoga com o
urbanismo, pois os núcleos urbanos e a sua expansão dimanam das
intervenções humanas na natureza em estado bruto.

A poluição sonora e o meio ambiente urbano

Entra em cena o citadino, o habitante das metrópoles, das


cidades grandes, médias e pequenas, com os benefícios da vida
urbana e também com as suas agruras.
Assinala a Constituição da República, no art. 225, que é direito
de todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à
sadia qualidade de vida. Convém meditar sobre a literalidade do
dispositivo:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e
à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988, [n.p.]).

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174 ISSN 2237-2318

Entre os elementos nocivos ao meio ambiente destaca-se a


poluição sonora, a desafiar décadas e até séculos pelo persistente
desrespeito aos direitos alheios.
Em seguida à Proclamação da Independência, D. Pedro I, em
cumprimento ao art. 167 da primeira Constituição Brasileira, editou
a Lei de 1º de outubro de 1824, criando as Câmaras Municipais,
e entre as suas atribuições impunha que deveria prover “[...] por
suas Posturas sobre as vozeiras nas ruas em horas de silêncio”
(ANTUNES, 2004, p. 60-61).
Já no distante ano de 1932, a pedido do Instituto dos
Advogados, José Manuel de Azevedo Marques apresentou projeto
de lei à Câmara Municipal de São Paulo, propondo combater os
barulhos evitáveis, e embasou a sua exposição de motivos em
pareceres, “[...] demonstrando, a não deixar dúvidas, os grandes
males dos ruídos à saúde física, intelectual e moral e à felicidade
humana”, especialmente ao transcrever lição do “Professor
Henrique Roxo, distinto médico-cientista”, que, entre outras
afirmações, avulta “[...] a influência do barulho na gênese das
doenças nervosas” (MARQUES, 1994).
Washington de Barros Monteiro ([s.d.], p. 396), mais
recentemente, tracejou a seguinte lição:
A poluição sonora provoca distúrbios no organismo,
diminuição do trabalho intelectual e cansaço físico.
Neutralizando o repouso, impede que recuperemos as
nossas forças e energias. Na defesa desse bem jurídico tão
necessário ao desenvolvimento de nossas atividades, tem
a jurisprudência proclamado que contra o mesmo atentam
as algazarras resultantes de bailes das vizinhanças, o
funcionamento de alto-falantes de maneira incômoda,
o barulho produzido por animais do vizinho, o ruído
noturno de oficinas instaladas nas zonas mistas, o ruído
incômodo de motores, no período noturno, para sucção de
água, a vibração produzida por indústrias, e até o badalar
dos sinos das igrejas, sem necessidade de culto.
Modelar o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais, 1ª Câmara, apelação 64.171, tendo como
relator o Desembargador Lúcio Urbano, julgado em 29 de maio de

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ISSN 2237-2318 175

1984, que, na observação do cotidiano relatado em publicações da


imprensa, enfatiza em extrato deveras esclarecedor:
Entre nós, César Cals de Oliveira Neto, em entrevista
concedida ao diário carioca O Globo, em 4.3.79, “destaca
o ruído como principal causa de problemas auditivos nas
grandes cidades, além de reduzir o nível de qualidade
de vida nas comunidades e contribuir para a perda de
produtividade [...]. Já o assessor para assuntos ambientais
da Secretaria de Ciências e Tecnologia de Minas Gerais,
Prof. Henrique Alves, membro da Comissão de Meio
Ambiente da Sociedade Mineira de Engenheiros,
confirmou recentemente que os ruídos, em algumas
regiões de Belo Horizonte, já atingiram níveis perigosos
para o ser humano, e que a surdez e o stress são os males
mais frequentemente causados pela poluição sonora
(Estado de Minas Gerais, 21.8.82). A propósito, pesquisas
divulgadas pela Agência de Proteção ao Meio Ambiente
da América do Norte, apontam que “Os estudos até agora
efetuados sugerem que os ruídos estressantes podem
provocar hipertensão arterial, lesões cardíacas, úlceras,
e, posteriormente, até maior susceptibilidade a infecções
e problemas de reprodução. Outros estudos indicaram
dificuldades de aprendizado, irritabilidade, fadiga,
eficiência reduzida no trabalho, aumento de acidentes e
erros, e conduta socialmente indesejável” (O ESTADO DE
SÃO PAULO, 1982, [n.p.]).
Há de se notar, as citações até aqui colacionadas pertencem
a um tempo que se foi. O mundo moderno acelerou os malefícios
da poluição sonora. Vivencia-se a alucinada ânsia do progresso
material a todo custo, falacioso na maioria das vezes, e que se
vale de artefatos sonoros sempre mais potentes na divulgação de
produtos, serviços, liquidações e outras tantas promoções, causando
inconcebível desconforto acústico. Os sons dos mais diversos
estabelecimentos comerciais se esgrimam nos centros urbanos.
Causa pasmo, até os famosos “trenzinhos de crianças”
são equipados com aparelhos sonoros em decibéis perniciosos à
saúde auditiva, como assim as festas infantis. Se os pais podem
ignorar, as autoridades têm o dever de conhecer a “disacusia”, que
é o molestamento do órgão auditivo submetido à elevada pressão
sonora, induzindo à surdez.

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176 ISSN 2237-2318

Na verdade, o trânsito já é um atentado ao silêncio pelo


inevitável ronco dos veículos motorizados. Agora, esses mesmos
veículos estão dotados de aparelhos sonoros que prejudicam a
segurança do próprio trânsito. Não se ouve o apito do guarda de
trânsito, que é um ato administrativo sonoro. Não permitem ouvir
a buzina de quem com eles reparte a via pública, muitas vezes
necessária para alertar situação de redobrada atenção, quando não
de potencial risco, tanto que a Resolução nº 204, de 20 de outubro
de 2006, do Contran, considera “que a utilização de equipamentos
com som em volume e frequência em níveis excessivos constitui
perigo para o trânsito” (BRASIL, 2006, [n.p.]). Não se olvidem os
escapamentos propositadamente envenenados, que potencializam
o barulho, especialmente entre motociclistas. Será que o som
alto prejudica menos a atenção do motorista que a tão combatida
conduta de falar ao celular? Aqui reside uma das muitas situações
em que impera a máxima: “no Brasil tem lei que pega e lei que
não pega”. É a prevaricação no sentido de não cumprimento de um
dever de ofício por má-fé ou improbidade.
De fato, o art. 228 do Código de Trânsito considera infração
grave, impondo a penalidade de multa e apreensão do veículo, com
medida administrativa de sua remoção para perícia, o uso indevido
de equipamento sonoro em volume ou frequência que não sejam
autorizados pelo Contran. E, no art. 229, completa que o uso de
aparelho de alarme ou que produza sons e ruídos que perturbem
o sossego público, em desacordo com as normas fixadas pelo
Contran, é infração média, com os mesmos consectários de multa,
apreensão e remoção.
Ademais, automotores particulares, dotados dos mesmos
equipamentos sonoros não homologados, prestam-se para
publicidade em geral. E os meios legais, rádios, televisão, jornais
e revistas veem-se privados de receita, pela concorrência desleal,
uma vez que essa atividade é desenvolvida na maioria das vezes
clandestinamente, embora à vista de todos, isso porque nem sequer
é expedida a licença municipal e procedido o recolhimento da taxa
correspondente, além de outras exigências legais.

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O som sem fronteiras penetra nos lares e ambientes de


trabalho, nos hospitais e escolas, impiedosamente. O art. 3º,
inc. I, última figura, da Constituição Federal que contempla o
princípio da solidariedade social é relegado, o art. 42, III, da Lei
das Contravenções Penais torna-se letra morta, juntamente com o
art. 54 da Lei do Meio Ambiente. O art. 1.277 do Código Civil,
que trata dos direitos de vizinhanças, por ser iniciativa individual,
repercute apenas entre as partes, sendo que as infelizes vítimas
sempre se deparam com a grave dificuldade de produzir prova,
mormente a técnica indevidamente exigida em reiteradas decisões.
É uma sequência de desrespeito às leis que arrefece o ânimo dos
cidadãos comuns e os conduz a suportar a inconveniência do
barulho, prejudicial ao seu sossego e à sua saúde.
Ao lado dessas constatações, joeirando a jurisprudência são
encontrados acórdãos modelares. Antecipação da tutela a fim de
proibir república de estudantes de promover badernas, algazarras,
festas, churrascos e outras comemorações ruidosas a qualquer
hora do dia ou da noite (TJSP, 26ª C. de Dir. Privado, AI nº
990.10.48274-1, rel. Des. Felipe Ferreira, j. 2.2.2011); antecipação
de tutela em virtude de poluição sonora provocada por excesso
de ruídos provenientes de ensaios musicais em residência (TJRS,
18ª C., AI nº 70003573029, rel. Des. Luiz Planella Villarinho, j.
7.3.2002); construção que se utiliza de bate-estacas, escavadeira
e caminhões, que incomodam os vizinhos de modo a provocar
barulho, poeira e chuvas de detritos (extinto 2º TACivSP, 12ª C.
Apc/Rev 634160-00/0, rel. Juiz Palma Bisson, j. 20.6.2002, RT
807/300); desassossego e desconforto pelas turbações acústicas
capazes de gerar prejuízos ensejadores de danos morais (extinto
2º TACivSP, 11ª Câm. Apc/Rev nº 836061-0/7, rel. Juiz Egídio
Giacoia, j. 23.8.2004, RT 830/259).
Essa progressiva escalada da poluição sonora mereceu
do legislador de 2002 legítima preocupação. O Código Civil de
Bevilaqua, no art. 554, emprega a expressão “uso nocivo”, já o de
Reale, no art. 1.277, prefere “uso anormal”. Nocivo é pernicioso,
prejudicial, que causa dano. Anormal é o que foge do ideal, do
arquétipo. Amplia, pois, o conceito ao prever interferências de
menor potencial ofensivo, pretensão que já vinha expendida na

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178 ISSN 2237-2318

doutrina. E é permitido ir mais longe, conforme oportuna resenha


da advogada Rosana Jane Magrini (1995, p. 20):
O silêncio nestes dias altamente estressantes em que
vivemos, deve ser compreendido como um direito do
cidadão. E sob este enfoque, haveria que se buscar não
só um Código de Silêncio com medidas repressivas
rigorosas. Mais que isso, é também preciso um programa
de educação da população no sentido de se formar uma
consciência mais sólida sobre a necessidade de respeitar
a tranquilidade alheia, seja no período noturno ou diurno,
seja em área residencial ou comercial.

2.  D ESENVOLVIMENTO

Nítido, por conseguinte, que a perturbação do sossego público


é afronta ao direito do cidadão, atinge a sua casa que, além de asilo
inviolável, deve assegurar-lhe o merecido descanso e a proteção de
sua saúde, em especial para que se refaçam as forças do trabalho,
para maioria a começar nas primeiras horas do amanhecer do dia
seguinte. De tão intensa e reiterada, essa perturbação deve ser
considerada em função do interesse público. É o entendimento do
Ministro do STF, Luiz Edson Fachin (2008, p. 53):
Por esse caminho que conjuga tutela e limite transita o
novo Código Civil. A garantia do direito ao sossego não
envolve apenas o campo do Direito Civil; a temática
alcança medidas diversas, sancionatória das condutas
que ofendem a paz e a tranquilidade da vizinhança. Com
efeito, é o direito ao sossego assunto de interesse público,
qualidade que lhe confere aptidão de incidência do poder
de polícia. Dúvida não há, desde a codificação anterior, do
alcance amplo na tutela jurídica ao sossego.2
Enfoque que remonta à vetusta lição de San Tiago Dantas
(1939, p. 43):
Se o mau uso da propriedade, no que toca ao sossego,
adquire um caráter de generalidade, de sorte que afeta mais
ao público, a uma fração do público, do que propriamente a

2
Nesse mesmo sentido, o estudo de Mário Helton Jorge, “Direito ao sossego”, em Paraná Judiciário,
páginas de 31 a 44.

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ISSN 2237-2318 179

uma pessoa, o caso cai, naturalmente, sob a ação do poder


de polícia.
É evidente, o sossego que a lei ampara é o relativo, o que
se pode exigir em determinadas condições, sem prejuízo das
atividades normais da vida em sociedade. O que conduz ao critério
da tolerância e da intolerância das imissões, daí decorre a amplitude
que a lei permite ao magistrado, à sua função criadora, que muitas
vezes independe de autorização de lei expressa, para que se submeta
aos princípios sugeridos pelo interesse coletivo. Permitem-se as
interferências ordinárias à vida moderna, porquanto inevitáveis e
inerentes ao próprio progresso que traz conforto, mas com energia
repugnam-se aquelas evitáveis, para que a vida nas cidades não se
torne, cada vez mais, verdadeiro atentado à saúde de seus habitantes
(DANTAS, 1939, p. 43, 90, 235 e seguintes).
Nesse aspecto são legitimados Defensoria Pública e
Ministério Público, como patenteia acórdão do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Norte, alteado em parecer da Procuradora de
Justiça Darci de Oliveira:
TJRN, 3ª Câm. Cív., ap. 2000.003425-8, rel. Juiz Kennedi
de Oliveira Braga convocado, j. 23.03.2006, RT 851/332.
Ementa Oficial: [...] A Promotoria de Justiça de Defesa
do Meio Ambiente é parte legítima para postular o
impedimento de realização de festa que restringe o acesso
a logradouros públicos, e que pode degradar o meio
ambiente pela produção de detritos e poluição sonora.
A existência de legislação sobre a produção de sons não
impede o requerimento, pelo Parquet, de proibição da
utilização de equipamentos musicais que emitam sons
com decibéis acima do permitido. Interesse processual
evidenciado. A intervenção do Judiciário pode correr não
só quando da existência efetiva do dano, mas também
quando de seu fundado receio [...].
Atenta-se para a expressão: “[...] pode ocorrer não só
quando da existência de dano, mas também quando de seu
fundado receio”, isto é, o Promotor de Justiça deve zelar pelo
sossego público independentemente de dano, bastando receio de
sua ocorrência. É o princípio da prevenção, evitar o ilícito antes que
se concretize.

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180 ISSN 2237-2318

Ilícito que é próprio da lavratura de flagrante, tanto que outro


acórdão proferido pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de
Minas Gerais, em ação civil pública impetrada pelo Ministério
Público, lucidamente dispensou a prova pericial pela robustez da
oral produzida:
TJMG, 5ª Câm. Civ., rel. Des. Mauro Soares de Freitas, j.
em 18.03.2010, RT 987/295.
Ementa Oficial: Ação Civil Pública. Obrigação de não fazer.
Poluição sonora. Imóvel destinado à locação para festas e
eventos. Prova técnica. Prescindibilidade. Hipótese em que
os depoimentos pessoais das testemunhas corroboraram as
alegações ministeriais, tornando desnecessária a medição
de ruídos provenientes do local. 1. Os ruídos urbanos
são, hoje, considerados fatores altamente prejudiciais à
população urbana, razão pela qual, além da disposição
genérica do Código Civil que permite ao proprietário
impedir que o vizinho perturbe o seu sossego (art. 1.277), o
Poder Público vem alargando, por normas regulamentares,
as exigências do silêncio, e os tribunais não têm negado
ação, quer aos particulares, à Municipalidade, quer ao
Ministério Público, para impedir os ruídos molestos aos
vizinhos, individualmente, ou à coletividade em geral.
2. Demonstrando a prova testemunhal que os distúrbios
noticiados nos autos se referem à realização de eventos
noturnos com níveis muito altos de emissão sonora, de
se confirmar a sentença que impôs a proibição no que
concerne aos eventos/festas, sendo prescindível, para
tanto, a realização de prova pericial.
Outro acórdão modelar não pode deixar de ser citado:
TJSP, ap. 64.055-5/7, 9ª Câm., j. o8.09.1999, rel. Des. Sidnei
Beneti, RT 774/230.
Ação Civil Pública – Poluição sonora – Degradação do
ambiente urbano causado pelo funcionamento irregular de
estabelecimentos comerciais, com perturbação do sossego
de determinada região – Legitimidade ad causam do
Ministério Público para promover a demanda – Interesses
que não podem ser classificados como individuais puros, eis
que se espraiam entre diversos titulares situados próximos
às fontes poluidoras, circunstância suficiente para que os
interesses se insiram na categoria de difusos, coletivos, ou,

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ao menos, individuais homogêneos – Inteligência do art.


1º, I e IV, da Lei 7.347/85.
Para Rogério Gesta Leal (2003, p. 148), a necessidade de
conciliar o desenvolvimento da cidade, a sua expansão demográfica
e a sua trajetória econômica a hábitos saudáveis de vida, preservando
o ambiente puro e agradável, é um dos desafios do momento
presente. O direito difuso ao sossego constitui um desses desafios,
como dispõe o Estatuto da Cidade ao propugnar por
[...] normas de ordem pública e interesse social que regulam
o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da
segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do
equilíbrio ecológico (BRASIL, 2001, [n.p.]).
Em suma, trata-se de direitos fundamentais, pois de proteção
à própria saúde física e mental do ser humano.
Esse atentado ao urbanismo saudável prospera
indiscriminadamente, tanto assim que, conforme noticiário da
grande imprensa, recentemente as Prefeituras de São Paulo, Taboão
da Serra, Caraguatatuba, Franca, entre outras, editaram leis para
combater o que o vulgo passou a chamar de “pancadão”. Nesse
mesmo sentido, recente é a legislação do Estado de São Paulo,
Lei Estadual nº 16.949, de 10 de dezembro de 2015, e Decreto nº
62.472, de 16 de fevereiro de 2017, que a regulamenta, mas parece
que a lei e o decreto caíram como letra morta.
Apesar de todo aparato legislativo, a grande imprensa trouxe,
em 29 de setembro de 2014 (Folha de São Paulo, caderno Ribeirão,
p. C1) a seguinte notícia: “Evento de Barretos quebra recorde de
maior tremor de som”.
É de estarrecer a perfídia dos promotores de espetáculo tão
condenável: “A ideia é mostrar aos que apreciam som, que é possível
fazer o chão tremer, mas em lugar apropriado, sem incomodar as
outras pessoas”. Pois bem, o evento foi realizado no recinto da
Festa do Peão, zona urbana, e executado, simultaneamente, por
600 veículos, “[...] criou o maior tremor de terra provocado por
aparelhos de som... o equivalente a um tremor causado por 400
quilos de explosivos”. O sismógrafo para medição foi colocado a
500 metros de distância. Como “sem incomodar outras pessoas”?

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Porém a perfídia vai além: “[...] um dos organizadores do evento,


disse que a intenção com o recorde foi chamar a atenção para o
som automotivo e reunir quem gosta de música”. Quem gosta de
música? Ora, essa! Música e som explosivo não guardam sinonímia.
Figurar no Guiness Book como o maior tremor de terra provocado
por aparelhos de som não enaltece, em nada, a atraente Barretos,
pois se trata de um crime ambiental (FOLHA DE SÃO PAULO,
2014, p. C1)
De efeito, não poucas vezes tal “crime ambiental” é animado
pelos veículos dotados de aparelhos sonoros de alta potência
que, em trânsito ou estacionados, transformam-se em intolerável
perturbação do sossego público, são os “vândalos do som”. Para
completar as citações de cidades que se sentem prejudicadas, em
18 de abril de 2014, a Revista Revide, editada em Ribeirão Preto,
estampou reportagem de capa, ouvindo médicos, psicólogo,
advogado, empresários da construção civil, todos unânimes
em preconizar a necessidade de combater o barulho excessivo,
demonstrando prejuízos à saúde e bem-estar do citadino. Não
difere o jornal A Cidade, da mesma cidade, que, em edição de 6
e 7 de agosto de 2017, estampa na primeira página a manchete:
“BARULHO”, com reportagem de quatro páginas inteiras, a qual
consigna “perturbação de sossego: problema crônico de Ribeirão”.

Crime ambiental e dano moral

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pioneiramente,


entendeu que a perturbação do sossego público é crime contra o
meio ambiente:
TJSP, ap. 990.09.322736-3, 4ª Câm. Criminal, j. 27.07.2010,
v.u., rel. Des. Luís Soares de Melo, RT 904/618.3
Ementa Oficial: Crime ambiental. Poluição (art. 54 da Lei
9.605/1998). Entidade que produz nível excessivo de ruídos
durante a realização de bailes em período noturno. Provas
seguras de autoria e materialidade. Palavras coerentes
e incriminatórias de testemunhas. Laudos periciais
constatando o excesso de barulho. Versão exculpatória
3
Em sentido contrário: RT 861/678.

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inverossímel. Desclassificação para a contravenção


prevista no art. 42, III, da LCP. Impossibilidade.
Condenação imperiosa. Responsabilização inevitável.
Apenamento criterioso. Apelo improvido.
A proposta de entender a poluição sonora como atentado aos
direitos da personalidade e ao meio ambiente difundiu-se, é mundial:
“Nos direitos da personalidade incluem os direitos ao repouso, ao
descanso, ao sono e ao sossego, bem como a um ambiente de vida
humana, sadio e ecologicamente equilibrado” decidiu o Tribunal de
Relação de Lisboa (2002, [n.p.]).
A Organização Mundial de Saúde adverte que cerca de 466
milhões de pessoas no mundo sofrem com problemas auditivos,
sendo 34 milhões de crianças. Há cinco anos, o número era de 360
milhões. A projeção de afetados para o ano de 2030 pode alcançar
os 630 milhões (SANTOS, 2018, p. 48).
Por último, assinala-se que a responsabilidade de apuração
dos ilícitos administrativo, civil e penal emanados da poluição
sonora é, primordialmente, da Polícia Judiciária, contudo aplica-se
também às Municipalidades, conforme entendimento exarado pelo
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 5ª Câmara Civil, em
acórdão de 24 de agosto de 2011:
Ap. Cível nº 70041121880, 5ª Câm. Cív., TJ/RS, rel. Des.
Romeu Marques Ribeiro Filho, j. 24.08.2011.
Apelação Cível nº 70041121880, rel. Des. Marques
Ribeiro Filho: “Apelação Cível. Responsabilidade civil.
Preliminar contrarrecursal. Ente Municipal. Legitimidade
passiva configurada. Dever de fiscalização e de adoção de
medidas a reduzir a poluição sonora. Imposição judicial.
Descumprimento. Omissão específica. Responsabilidade
objetiva. Indenização devida. Sentença modificada. O
Município tem legitimidade para responder aos termos
da ação, uma vez que tem o dever de empregar medidas
tendentes à redução da poluição sonora na cidade e,
sobretudo, tinha o dever imposto judicialmente, de
fiscalizar a área. Uma vez desatendida as determinações
impostas judicialmente, em ação cominatória e em
ação civil pública, o Município responde objetivamente
pelos prejuízos ocasionados aos autores, na conduta

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de moradores afetados por enorme poluição sonora.


Indenização devida...”.
Aresto que, em tema de responsabilidade civil, julgou como
dever jurídico do Município fiscalizar e adotar medidas preventivas
que evitem a poluição sonora. Assim porque o art. 30, inc. VIII,
da Carta Magna estabelece a competência municipal para “[...]
promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,
mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da
ocupação do solo urbano” (BRASIL, 1988, [n.p.]), e o art. 182
define que
[...] a política de desenvolvimento urbano, executada
pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes
gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir
o bem-estar de seus habitantes (BRASIL, 1988, [n.p.]).
É a ensinança de Toshio Mukai (2013, p. 115-116), ao
assegurar, com base no citado art. 30, da Lei Maior, que “[...]
cabe ao Município utilizar-se de sua competência constitucional
concorrente para legislar em matéria ambiental e urbanística”.

3.  C ONSIDERAÇÕES FINAIS

Cumpre descer do plano ideal para o real, basta de apenas


proclamar os direitos da cidadania, direitos sempre renovados e
cada vez mais extensos, sempre defendidos com argumentos muito
bem elaborados e suasórios; chegou o momento de implementá-los,
de garantir a sua efetiva proteção. Aqui o lídimo anseio social.
As cidades modernas padecem o malefício da poluição
sonora, consequência do progresso que traz nova realidade com
amplas conquistas, repercutindo positivamente na vida das pessoas.
Dentro desse ângulo, os ruídos, até certo limite, devem ser tolerados,
não há como afastá-los, e nem é conveniente, por trazer prejuízo às
atividades normais da vida em sociedade.
Todavia, o urbanismo moderno e o meio ambiente saudável
exigem que o desconforto sonoro evitável seja impedido pela

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pronta intervenção das autoridades competentes, por tornarem a


cidade atentado à saúde de seus habitantes.
E na urgência de estabelecer políticas públicas que se ajustem
ao cotidiano do cidadão, no resgate de sua cidadania, cumpre a via
preventiva por meio de campanha educativa. Se, no entanto, não
lograr êxito, o Poder Judiciário destina-se a coibir o ilícito que, no
caso, se triplica em penal, civil e administrativo.
Cabe às Polícias Civil e Militar levantar e investigar o
crime, ao Ministério Público, oferecer a denúncia da conduta
criminosa e propor ações coletivas de prevenção ao dano, mas
também ao Município, desempenhar sua competência conforme
disposição constitucional que lhe é conferida. Se assim não agir, a
Municipalidade passa a ser coautora do ilícito, como se depreende
da jurisprudência citada.
Por uma cidade mais humana.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris,


2004.

BRASIL. Ministério das Cidades. Conselho Nacional de Trânsito. Resolução nº


204, de 20 de outubro de 2006. Regulamenta o volume e a freqüência dos sons
produzidos por equipamentos utilizados em veículos e estabelece metodologia
para medição a ser adotada pelas autoridades de trânsito ou seus agentes, a que
se refere o art. 228 do Código de Trânsito Brasileiro – CTB. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, 10 nov. 2006. Disponível em: https://
www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/transito/conteudo-contran/resolucoes/
resolucao204_06.pdf. Acesso em: 15 jul. 2022.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos


Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 5 out. 1988. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso
em: 15 jul. 2022.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos


Jurídicos. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e
183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e
dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,

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Brasília, 11 jul. 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/


leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 15 jul. 2022.

DANTAS, F. C. S. T. O conflito de vizinhança e sua composição. Rio de Janeiro:


Borsoi, 1939.

FACHIN, L. E. Comentários ao Código Civil: direitos das coisas. São Paulo:


Saraiva, 2008. v. 15.

FOLHA DE SÃO PAULO. Caderno Ribeirão, p. C1. 29 de setembro de 2014.

LEAL, R. G. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do


espaço urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

MAGRINI, R. J. Poluição sonora e lei do silêncio. Revista Jurídica, Porto Alegre,


ano 43, nº 216, p. 20-23, 1995.

MARQUES, J. M. A. O sossego público em face do direito. Revista dos Tribunais,


v. 83, p. 3-18, 1994.

MONTEIRO, W. B. O uso nocivo da propriedade. Revista Forense, v. 249, p.


395-399, [s. d.].

MUKAI, T. Estatuto da cidade: anotações lei n. 10.257, de 10-7-2001. São


Paulo: Saraiva, 2013.

SANTOS, F. A. 900 milhões de pessoas podem ter surdez até 2050. Zuum,
Ribeirão Preto, ano 4, n. 62, ano 4, p. 48, jun. 2018.

TRIBUNAL DE RELAÇÃO DE LISBOA. Acórdãos TRL. 2002. Disponível em:


http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8fd0ce38fd7b
e3b780256c8400355a89?OpenDocument. Acesso em: 09 ago. 2022.

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Política Editorial / Editorial Policy


A Revista Linguagem Acadêmica é uma publicação
digital semestral do Claretiano – Centro Universitário, des­tinada à
divulgação científica dos cursos, bem como de pesquisas e projetos
co­munitários.
Tem como objetivo principal publicar trabalhos que possam
contribuir com o debate acerca de temas variados do ensino
acadêmico.
A Revista Linguagem Acadêmica destina-se à publicação de
trabalhos inéditos que apresentem resultados de pesquisa histórica
ou de investigação bibliográfica originais, visando agregar e
associar à produção escrita a produção fotográfica, vídeo ou áudio,
sendo submetidos no formato de: artigos, ensaios, relatos de caso,
resumos estendidos, traduções ou resenhas.
Serão considerados apenas os textos que não estejam sendo
submetidos a outra publicação.
As línguas aceitas para publicação são o português, o inglês
e o espanhol.

Análise dos trabalhos

A análise dos trabalhos é realizada da seguinte forma:


a)  Inicialmente, os editores avaliam o texto, que pode ser
desqualificado se não estiver de acordo com as normas da
ABNT, apresentar problemas na formatação ou tiver reda-
ção inadequada (problemas de coesão e coerência).
b)  Em uma segunda etapa, os textos selecionados serão en-
viados a dois membros do conselho editorial, que avaliarão
as suas qualidades de escrita e conteúdo. Dois pareceres
negativos desqualificam o trabalho e, havendo discordân-
cia, o parecer de um terceiro membro é solicitado.

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c)  Conflito de interesse: no caso da identificação de conflito


de interesse da parte dos revisores, o editor encaminhará o
manuscrito a outro revisor ad hoc.
d)  O autor será comunicado do recebimento do seu trabalho
no prazo de até 8 dias; e da avaliação do seu trabalho em
até 90 dias.
e)  O ato de envio de um original para a Revista Linguagem
Acadêmica implica, auto­maticamente, a cessão dos direi-
tos autorais a ele referentes, devendo esta ser consultada
em caso de republicação. A responsabilidade pelo con-
teúdo veiculado pelos textos é inteiramente dos autores,
isentando-se a Instituição de responder legalmente por
qualquer problema a eles vinculado. Ademais, a Revista
não se responsabilizará por textos já publicados em ou­tros
periódicos. A publicação de artigos não é remunerada.
f)  Cabe ao autor conseguir as devidas autorizações de uso
de imagens/fotogra­fias com direito autoral protegido, de
modo que estas sejam encaminhadas, quando necessário,
juntamente com o trabalho para a avaliação. Também é
do autor a responsabi­lidade jurídica sobre uso indevido de
imagens/fotografias.
g)  Pesquisas envolvendo seres vivos: o trabalho deve ser
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição
em que o trabalho foi realizado e cumprir os princípios
éticos contidos na resolução 196/96. Na parte “Metodo-
logia”, é preci­so constituir o último parágrafo com clara
afirmação desse cumprimento.

Publicação

A Revista Linguagem Acadêmica aceitará trabalhos para


publicação nas seguintes categorias:
1)  Artigo científico de professores, pesquisadores ou estu-
dantes: mínimo de 8 e máximo de 15 páginas.

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2)  Relatos de caso ou experiência: devem conter uma abor-


dagem crítica do even­to relatado; mínimo de 5 e máximo
de 8 páginas.
3)  Traduções de artigos e trabalhos em outro idioma, desde
que devidamente au­torizadas pelo autor original e com-
provadas por meio de documento oficial im­presso; míni-
mo de 8 e máximo de 15 páginas.
4)  Resumos estendidos de trabalhos apresentados em even-
tos científicos ou de te­ses e dissertações; mínimo de 5 e
máximo de 8 páginas.
5)  Ensaios: mínimo de 5 e máximo de 8 páginas.
6)  Resenhas: devem conter todos os dados da obra (edito-
ra, ano de publicação, cidade etc.) e estar acompanhadas
de imagem da capa da obra; mínimo de 5 e máximo de 8
páginas.

Submissão de trabalhos

1)  Os trabalhos deverão ser enviados:


a)  Em dois arquivos, via e-mail (attachment), em formato
“.doc” (Word for Windows). Em um dos arquivos, na pri-
meira página do trabalho, deverá constar apenas o título,
sem os nomes dos autores. O segundo arquivo deverá se-
guir o padrão descrito no item 2, incluindo os nomes dos
autores.
b)  Em caráter de revisão profissional.
c)  No máximo com 5 autores.
d)  Com Termo de Responsabilidade devidamente assinado,
escaneado de forma legível e enviado para o e-mail: <re-
vlinguagem@claretiano.edu.br>. Em caso de dois ou mais
autores é necessário que cada autor envie um Termo de
Responsabilidade.

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2)  O trabalho deve incluir:


a)  O título em língua portuguesa, em Times New Roman, cor-
po 16, negrito, inicial maiúscula, alinhado à esquerda, es-
paçamento entrelinhas de 1,5.
b)  O(s) nome(s) do(s) autor(es) em corpo 12, inicial maiús-
cula, espaçamento entrelinhas de 1,5, alinhado à direita
com o último sobrenome em letra maiúscula. Os dados de
sua(s) procedência(s) em nota de rodapé, corpo 8, inicial
maiúscula, espaçamento simples e justificado – a apre-
sentação acadêmica do(s) autor(es) com titulação na se-
quência da “maior” para a “menor”, filiação institucional,
e-mail e telefones para contato. Observação: os telefones
não serão disponibilizados ao público.
c)  A expressão “Resumo” em negrito seguida do respectivo
resumo em língua portugue­sa (entre 100 e 150 palavras),
normal, corpo 10, inicial maiúscula, espaçamento simples,
justificado. Sugere-se que, no resumo de artigos de pes-
quisa, seja especificada a orientação metodológica.
d)  A expressão “Palavras-chave” em negrito seguida de 3 até
5 palavras-chave em língua portuguesa, no singular, corpo
10, inicial maiúscula, espaçamento simples, justificado,
normal.
e)  Na lauda seguinte o título em língua inglesa, em Times
New Roman, corpo 16, negrito, inicial maiúscula, alinhado
à esquerda, espaçamento entrelinhas de 1,5.
f)  O(s) nome(s) do(s) autor(es) em corpo 12, inicial maiúscu-
la, espaçamento entrelinhas de 1,5, alinhado à direita com
o último sobrenome em letra maiúscula. Sem os dados de
sua(s) procedência(s).
g)  A expressão “Abstract” em negrito seguida do respecti-
vo resumo em língua inglesa (entre 100 e 150 palavras),
normal, corpo 10, inicial maiúscula, espaçamento simples,
justificado.

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h)  A expressão “Keywords” em negrito seguida de 3 até 5


palavras-chave em língua inglesa, no singular, corpo 10,
inicial maiúscula, espaçamento simples, justificado, nor-
mal.
i)  O conteúdo textual do trabalho.
j)  Os vídeos, as fotos ou áudios são opcionais. Todo o mate-
rial de mídia digital deve ser testado antes do envio e não
ultrapassar 5 minutos de exibição.

Formatação do trabalho

1)  Em Times New Roman, corpo 12, inicial maiúscula, justi-


ficado, parágrafo de 1 cm, espaçamento entrelinhas de 1,5.
2)  Para citações longas, usar corpo 10, entrelinhas simples,
recuo de 3 cm à esquerda, espaço antes e depois do texto.
Citações curtas, até 3 linhas, devem ser colocadas no in-
terior do texto e entre aspas, no mesmo tamanho de fonte
do texto (12).
3)  Tabelas, quadros, gráficos, ilustrações, fotos e anexos
devem vir no interior do texto com respectivas legendas.
Para anexos com textos já publicados, deve-se incluir re-
ferência bibliográfica.
4)  As referências no corpo do texto devem ser apresentadas
entre parênteses, com o nome do autor em letra maiúscula
seguido da data, separados por vírgula e espaço e contendo
o respectivo número da(s) página(s), quando for o caso.
Exemplo: (FERNANDES, 1994, p. 74). A norma utiliza-
da para a padronização das referências é a da ABNT em
vigência.
5)  As seções do texto devem ser numeradas, a começar de 1
(na introdução), corpo 12, negrito, digitadas em letra mai-
úscula, justificado, espaçamento entrelinhas de 1,5; sub-
títulos não devem ser numerados, digitados com inicial
maiúscula, corpo 12, negrito, justificado, espaçamento
entrelinhas de 1,5; subtópicos não devem ser numerados,

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digitados com inicial maiúscula, corpo 12, itálico, justifi-


cado, espaçamento entrelinhas de 1,5.
6)  As notas de rodapé devem estar numeradas e destinam-se
a explicações com­plementares, não devendo ser utilizadas
para referências bibliográficas. Formatadas em corpo 8,
inicial maiúscula, espaçamento simples, justificado.
7)  As referências bibliográficas devem vir em ordem alfabé-
tica no final do artigo, conforme a ABNT.
8)  As expressões estrangeiras devem vir em itálico.

Modelos de Referências Bibliográficas – Padrão ABNT

Livro no todo
PONTES, Benedito Rodrigues. Planejamento, recrutamento e seleção de
pessoal. 4. ed. São Paulo: LTr, 2005.

Capítulos de Livros
BUCII, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão.
In: KEHL, Maria Rita. O espetáculo como meio de subjetivação. São Paulo:
Boitempo, 2004. cap. 1, p. 42-62.

Livro em meio eletrônico


ASSIS, Joaquim Maria Machado de. A mão e a luva. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994. Dis­ponível em: <http://machado.mec.gov.br/imagens/stories/pdf/
romance/ marm02.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2011.

Periódico no todo
GESTÃO EMPRESARIAL: Revista Científica do Curso de Administração da
Unisul. Tubarão: Unisul, 2002.

Artigos em periódicos
SCHUELTER, Cibele Cristiane. Trabalho voluntário e extensão universitária.
Episteme, Tubarão, v. 9, n. 26/27, p. 217-236, mar./out. 2002.

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ISSN 2237-2318 193

Artigos de periódico em meio eletrônico


PIZZORNO, Ana Cláudia Philippi et al. Metodologia utilizada pela bibliote­
ca universitária da UNISUL para registro de dados bibliográficos, utilizando o
formato MARC 21. Revista ACB, Florianópolis, v. 12, n. 1, p. 143-158, jan./
jun. 2007. Disponível em: <http://www.acbsc.org.br/revista/ojs/viewarticle.
php?id=209&layout=abstract>. Acesso em: 14 dez. 2007.

Artigos de publicação relativos a eventos


PASCHOALE, C. Alice no país da geologia e o que ela encontrou lá. In:
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Anais... Rio de Janeiro, SBG, 1984. v. 11, p. 5242-5249.

Jornal
ALVES, Márcio Miranda. Venda da indústria cai pelo quarto mês. Diário Cata­
rinense, Florianópolis, 7 dez. 2005. Economia, p. 13-14.

Site
XAVIER, Anderson. Depressão: será que eu tenho? Disponível em: <http://
www.psicologiaaplicada.com.br/depressao-tristeza-desanimo.htm>. Acesso em:
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Verbete
TURQUESA. In: GRANDE enciclopédia barsa. São Paulo: Barsa Planeta
Internacional, 2005. p. 215.

Evento
CONGRESSO BRASILEIRO DE ENGENHARIA MECÂNICA, 14, 1997,
Bauru. Anais... Bauru: UNESP, 1997.

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