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Ao Margens, que tão bem nos acolheu mal disséssemos a quê vínhamos.
*
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
de Santa Catarina. Integrante do Núcleo MARGENS, Modos de Vida, Relações de
Gênero e Família. Estagiário-docente da disciplina “Estudos de Gênero e Psicologia”
do Programa de Graduação em Psicologia da UFSC.
Web: http://www.inventandopolvora.org/assisclimaco/
aquisição pelas mulheres da igualdade formal, o que implicava o
acesso pleno à educação, ao mercado de trabalho formal e ao voto.
Estes objetivos foram alcançados ao longo da primeira metade do
século XX em todos os países ocidentais.
No entanto, e como todos nós sabemos, a igualdade formal não
significou igualdade prática e isto levou que os feminismos entrassem
em um processo reflexivo e crítico sobre si mesmo, o que o
aproximou ainda mais da filosofia. De fato, coube a uma filósofa,
Simone de Beauvoir, a elaboração da primeira grande obra
acadêmica sobre a condição da mulher, O segundo sexo, lançado em
1949. Beauvoir, em diálogo com a filosofia existencialista de Sartre e
Merleau Ponty, afirma que não se nasce, mas que se torna mulher a
través de uma coerção por parte dos homens que procura assegurar
as mulheres como seu outro.
Esta proposta beauvoiriana ecoa desde então nos feminismos,
mas estes passam por um período de latência, ressurgindo apenas
nos anos sessenta, tendo então um forte matiz acadêmico. Constitui-
se nesta década o que posteriormente viria a ser chamado de
‘feminismo da segunda onda’. O que nos interessa especialmente
aqui é o fato da emergência desta nova onda do feminismo coincidir
com o surgimento da filosofia francesa dita pós-estruturalista,
fortemente influenciada pela filosofia nietzscheneana, privilegiando
uma leitura tanto da filosofia como da sociedade ocidental que
ressalta os conflitos e as fissuras existentes. Esta ênfase nos conflitos
contribuiu enormemente a que os feminismos redirecionassem seus
esforços: não deixaram de reivindicar uma igualdade social de fato
além da formalidade, mas passou-se também e principalmente a
enfatizar-se as próprias contradições inerentes à sociedade ocidental
(assim como à sua filosofia) com a intenção de provocar uma
mudança qualitativa, a qual permitiria não apenas a inclusão das
mulheres no social, mas também uma mudança na concepção do que
é sociedade, a qual não deveria já basear-se em um modelo
hierárquico rígido, violentamente imposto sobre uma parte da
sociedade em benefício de uma outra.
Neste artigo, irei me concentrar sobre as relações entre este
feminismo da segunda onda e um dos principais filósofos pós-
estruturalistas, o franco-argelino Jacques Derrida. Os debates
provenientes deste encontro são inumeráveis e infindáveis; o recorte
que farei aqui privilegiará em um primeiro momento alguns dos
esforços por parte de Derrida para dar conta daquelas questões que
foram levantadas pelos feminismos. Na segunda parte do texto, irei
expor algumas das pontes tendidas do lado do feminismo ao
pensamento de Derrida por parte de duas autoras de grande
importância para os estudos feministas da segunda onda: Hélène
Cixous, ensaísta e escritora que compartilha as nacionalidades e uma
próxima amizade com Derrida e Gayatri Spivak, crítica literária
indiana, uma das maiores expoentes dos estudos pós-coloniais e
tradutora ao inglês de De la grammatologie, um dos livros
fundamentais do filósofo.
1
Gostaria de ressaltar desde o início que o termo desconstrução e o adjetivo
desconstrutivista são utilizados aqui para referir-se à obra e ao sistema de
pensamento proposto por Derrida, assim como aos textos de alguns dos/as
pensadores/as que lhe foram mais próximos/as, como Cixous e Spivak e também
Paul de Man.
a) Inversão
No caso da inversão, há a necessidade de se reconhecer que
frente a uma oposição clássica (que neste texto será exemplificada
sempre pela oposição homem/mulher, mas também poderia ser
fala/escritura, branquitude/negritude e um longo etc.) “nós não
estamos lidando com uma coexistência pacífica de face a face, mas
com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos comanda
(axiologicamente, logicamente, etc.), ocupa o lugar mais alto”
(DERRIDA, 2001, 48).
Se bem a passagem anterior, como outras deste texto, são
evidentemente abstratas, Derrida insiste em que seu discurso se
aplica a situações bem concretas (PERETTI: 1989, p. 102) e
exemplifica: a luta do feminismo clássico pelo direito ao voto ou pela
participação na vida pública das mulheres se encontram dentro desta
estratégia de inversão (ibid., p. 104). E dentro de sua própria obra
não é difícil localizar esta estratégia2, sendo que ela aparece de
maneira mais contundente, em minha opinião, no livro Políticas de la
Amistad, em que ele mostra como há “nos grandes discursos
filosóficos canônicos sobre a amizade” uma dupla exclusão das
mulheres (pois elas não são capazes de amizade entre si e tampouco
de serem amigas dos homens) através da qual se conforma a
“homossexualidade viril”, que obviamente não se refere a práticas
sexuais, mas à associação exclusiva dos homens à virtude, à justiça,
à razão humana e à razão política (1998, p. 306).
Poder-se-ia objetar com justiça que nos exemplos que eu
mostrei como sendo práticos não há inversão, mas apenas demandas
de igualdade – por parte das feministas clássicas – e uma denúncia
da exclusão das mulheres – parte de Derrida –. No entanto, tanto a
denúncia como as demandas implicam de maneira inequívoca a
consideração da violência dos homens sobre as mulheres e, ao fazê-
2
Além de Políticas de la Amistad, ver também (Derrida, 1995 e 1997).
lo, desmascaram o homem como ser autônomo, pois ele aparece
como dependente da relação de violência e de submissão da mulher e
a inversão então é concebível: sem a mulher (submetida) não há
homem. Ela o determina.
Importa, finalmente, apontar que esta estratégia de denúncia
ou inversão não é algo que ocorre em um determinado momento e se
encerra. Ela é contínua, pois a hierarquia da oposição dual tende a se
reconstituir ao longo do deslocamento e o trabalho de denunciá-la,
caso cesse, permitirá que a violência binária se reconstitua de outra
forma.
b) Deslocamento
Manter-se apenas no movimento de inversão implica seguir
preso à ordem binária própria à filosofia clássica ou ao falocentrismo.
No entanto, há sempre conceitos que não se deixam apreender por
estas ordens. Ao contrário do que ocorre, por exemplo, na dialética
hegeliana em que a oposição binária dá lugar a um terceiro termo, o
qual anula a diferença através de uma presença a si, na
desconstrução ou no feminismo deve haver uma disseminação
constante, a qual se vê obrigada a dar lugar a algo que acontece fora
da oposição binária, que lhe é radicalmente diferente e que vêm
justamente a surpreender. E se trata justamente de uma surpresa e
de um deixar-se levar por ela, por aquilo que era imprevisto e que
irrompe, além da inteligibilidade binária ou da força violenta que a
sustenta. Uma vez mais, tentarei mostrar que Derrida está certo em
que suas idéias se aplicam a casos concretos, e procurarei dois
exemplos, um em sua obra e outro no feminismo.
Acredito que o exemplo mais evidente e sem dúvida mais
conhecido deste deslocamento no feminismo seja a proposta de
Judith Butler da transgeneridade ou do travestimento como paródia
genérica. Butler propôs que a estrutura de gênero fosse considerada
como performativa3: ou seja, não há um gênero que guie nossos
atos, mas são nossos atos que, ligados a complexos sistemas de
identificação e de normatização, provocam efeitos ontologizantes
sobre os gêneros (masculino e feminino, em princípio). No entanto,
no caso da transgeneridade (especialmente as pessoas transgêneros,
ou travestis ou intersex (TTI)4) a identificação e a performatividade
fogem à norma e surgem então seres abjetos, inclassificáveis
enquanto humanos, pois fogem à ordem binária homem-mulher. Isso
causa enorme angústia às mulheres e homens assim como às
próprias TTI que, sabemos, estão à borda do não-vivível, seja pelas
enormes crises existenciais que sofrem por um sentimento de não
pertencimento à humanidade, seja porque são ameaçadas de morte
pela ira incontrolável de alguns homens e mulheres que se sentem
agredidos/as pela simples existência das TTI (2006, especialmente,
p. 13-34). Mas para Butler, e com certeza também para Derrida, a
força das TTI se encontra justamente em sua resistência à lógica
binária, da qual a inversão não havia retirado o feminismo. Importa
também pensar que não é propriamente que Butler haja inventado as
TTI, mas ela se viu surpreendida pelas mesmas e conseguiu formular
essa surpresa de uma maneira produtiva, provocando um
deslocamento dentro do próprio feminismo, mostrando como este era
extremamente limitado ao propor a mulher como seu único sujeito:
há outras formas de humanidade, sempre imprevistas, que podem vir
3
É uma pena que aqui não possamos desenvolvê-lo, mas não queria deixar de
lembrar que Butler se inspira na reformulação proposta por Derrida da teoria dos
atos de fala performativos de J.L. Austin (BUTLER, 2002, p.35; 2005, p. 17).
4
Esquematicamente, transgêneros são as pessoas que, por seus traços fisiológicos,
são consideradas pelo falocentrismo como pertencentes a um gênero, mas que
sentem pertencer ao outro gênero. Travestis são aquelas pessoas consideradas
como homens, mas que transformam seu corpo através de práticas e implantes,
sem que por isso venham a se considerar mulheres. As fronteiras entre ambos não
são rígidas, como poderá supor-se. Interesex são aquelas pessoas que nasceram
com genitais e outros traços fisiológicos que não podem ser assimilados ao sistema
binário homem-mulher (sendo ainda consideradas hermafroditas pelo discurso
médico).
a ocupar um lugar no feminismo, devendo este manter-se sempre
aberto a tal possibilidade.
Desta maneira, Butler consolidou uma necessidade, já antes
sentida pelos feminismos, de abrir-se a outros sujeitos que não a
mulher, e o fez através de um deixar-se afetar pelo deslocamento de
um conceito que não se deixava aprisionar pela ordem homem-
mulher; quando estiver falando sobre Spivak terei a oportunidade de
desenvolver este aspecto. Mas não apenas isto, o texto de Butler,
apesar de sua especificidade filosófica, pôde ser reapropriado pelas
próprias TTI, muitas das quais aceitaram que elas não sejam nem
mulheres nem homens, mas que isso não as coloca em uma posição
fora da humanidade, mas sim em um lugar não previsto que supõe
uma expansão da humanidade mesma.
Voltando à obra de Derrida, não há dúvidas de que, dentro
desta estratégia de deslocamento, seu texto mais significativo seja
Espolones. Los estilos de Nietzsche (1981), no qual, através de uma
leitura minuciosa da obra nietzscheana, Derrida mostra que o
‘conceito’ que não se deixa apreender pela oposição homem-mulher é
‘mulher’.
Como chegou ele a propor este conceito a partir da leitura de
um autor reconhecidamente anti-feminista como Nietzsche? Não
poderei fazer jus a todos os belos argumentos derrideanos, mas
limitarei a pinçar algumas de suas contribuições. Segundo Derrida, é
possível encontrar três figuras da mulher na obra de Nietzsche, as
quais, nos avisa, não serão jamais unificadas por nenhum trabalho
hermenêutico, pois são necessariamente contraditórias, pois assim o
eram os pensamentos de Nietzsche sobre as mulheres. Esta é, para
Derrida, uma das características de todo ‘grande pensador’: uma vez
que há sempre conceitos que fogem a qualquer tipo de assimilação –
não apenas a uma lógica binária, mas a uma lógica de qualquer tipo
– necessariamente o pensamento supera quem o pensa, pois alcança
singularidades que superam sistematizações assimiladoras5.
A primeira figura da mulher em Nietzsche aparece como sendo
condenada a ocupar o lugar da mentira, pelo homem “crédulo” ou
pelo “velho filósofo” que acredita na verdade e que ele a pode
possuir. Essa seria a mulher castrada (pelo homem). A segunda
figura é a da mulher castradora que se identifica com a verdade, por
vezes acreditando nela e por vezes não acreditando; neste último
caso, ela procura utilizar o sistema falocêntrico que a identifica com a
verdade para seu próprio proveito, valendo-se da astúcia. Esta figura
também é desprezada por Nietzsche porque o infantilismo ligado à
astúcia a mantém dentro do falocentrismo e a reduz a uma não-
verdade.
A terceira figura está além da dupla negação, desta reatividade,
é a mulher como “potência afirmativa, dissimuladora, artista,
dionisíaca. Não é afirmada pelo homem, mas se afirma a si mesma,
em si mesma e no homem” (1981). Aqui a castração já não tem
lugar, a mulher já não é condenada, mas reconhecida.
A mulher, então, é justamente aquilo que escapa ao binômio
homem-mulher. Se percebermos bem, a primeira figura da mulher
em Nietzsche é a mulher segundo o homem; a segunda figura é a
mulher enquanto se percebe a si mesma a partir da lógica do
homem. A terceira figura é a que escapa àquela ordem, a que difere,
aquilo além do previsto e do previsível, o que não se deixará jamais
5
Neste sentido, quando Nietzsche diz que nasceu póstumo não significa apenas que
ele nasceu em período que não o compreendesse, mas que nem ele mesmo estava
apto para tão titânica tarefa. Queria ainda recordar dois aspectos: em primeiro
lugar, o fato de que, se bem seja verdade que Derrida afirma em diferentes
momentos e sobre diferentes filósofos que aquele/a que carrega um nome próprio é
sempre mais de um/a, é em sempre sobre Nietzsche que ele enfatiza a
multiplicidade: Nietzsche ocupa um lugar de exceção na obra de Derrida
precisamente por isto: ele foi mais do que todos. Em segundo lugar, a afirmação da
existência de pensamentos que superam o sujeito é nietzscheana, cabendo a
Derrida apenas aceitá-la, há vários fragmentos na obra de Nietzsche que poderiam
comprová-lo. Ver, por exemplo, o último aforismo de Para além do bem e do mal
(1998).
apreender, dada a vivacidade de sua potência e da possibilidade de
provocar infinitos acontecimentos. Mas, veja bem: por que é a
mulher esta figura, este conceito do singular, do não apropriável, do
que foge sempre ao simbolizável? Não haveria outro conceito, já que,
finalmente, se estamos falando daquilo que é absolutamente singular,
não podemos desejar que nenhuma palavra se refira a ele? Ou seja:
nem o conceito ‘mulher’, nem nenhum outro poderá jamais
denominar a singularidade absoluta, é apenas uma catacrese, uma
palavra que denomina o indenominável o que faz com que qualquer
outra palavra possa substituí-la. Spivak está certa em pontuar: o que
faz Derrida escolher a palavra ‘mulher’ para denominar o conceito
catacrético que impede a oposição homem-mulher é a historicidade
deste conceito: a mulher esteve sempre delimitada pelo homem a tal
ponto que não podemos saber nada da mulher que não seja pelo
ponto de vista do homem. Tudo o que é mulher é aquilo que o
homem disse que é. Daí que a mulher é tudo menos ela, uma
possibilidade infinita de ser que o homem impede que seja. Pura
potência. E sabemos que não foi apenas Derrida a dar-se conta disto;
a psicanálise o fez de certa maneira6, não política, mas o fez, e uma
das mais importantes feministas francesa, Luce Iragaray, também (in
Butler, 2002, p. 76-86).
6
Não há dúvidas de que uns dos destinatários privilegiados de Espolones são os
psicanalistas, o texto procura de certa maneira o reconhecimento de uma ligação
entre Nietzsche e a psicanálise, que nem Freud nem Lacan quiseram nunca
explicitar.
Hélène Cixous comparte a nacionalidade franco-argelina, a
origem em família judaica e uma estreita amizade com Derrida, quem
a considerava como a maior escritora francesa contemporânea. Ela,
por sua vez, leu cada um dos textos escritos por Derrida desde os
anos sessenta, e reconheceu que em seu pensamento ele ocupa um
lugar de exceção.
Nos anos setenta, Cixous escreve um ensaio teórico, La risa de
la Medusa (1995), o qual vem a tornar-se um marco em sua obra.
Com base na releitura filosófica derrideana que expõe a filosofia como
falogocêntrica, denunciando a exclusão da mulher e do feminino,
Cixous propõe o termo “escritura feminina” para aquela atividade
literária que permite e preserva a diferença, abstendo-se da tentação
assimiladora da alteridade ou dos acontecimentos singulares. A
escrita masculina, pelo contrário, seria aquela que aprisiona a
alteridade, procurando submetê-la a si própria.
Esta definição do masculino e do feminino foi considerada por
muitas autoras feministas como sendo uma reinversão do par
masculino-feminino e, portanto, uma recaída no falocentrismo.
Cixous rebate as críticas afirmando que a feminilidade e a
masculinidade não estão presas a corpos de homem ou de mulher,
mas circulam. Sua obra é muito influente em todo o feminismo
francês.
7
Definitivamente, neste caso, a balança entre a crítica e o respeito quebrou-se. Se
bem não conheço uma resposta de Derrida às leituras de Spivak sobre Espolones,
ele reagiu severamente às críticas que ela lhe proferiu com respeito a seu livro
Espectros de Marx. Ver Marx e hijos (2002).
insuficiência humana para dar conta de todos os acontecimentos. No
entanto, ela julga que a escolha do nome ‘mulher’ para a
singularidade absoluta é também uma nova prisão para as mulheres:
elas são agora pura potência e quando ela passa, por exemplo, a
definir-se novamente através dos atributos falocêntricos, é
considerada como negativa (segundo ela, Derrida faz isto não apenas
em Espolones, mas também em outros textos como Otobiographies,
Glas ou Doublé seance; ver SPIVAK, 1997b, p.43-71).
Então, Spivak propõe que o feminismo abandone – ou aceite
apenas momentaneamente – a utilização do conceito ‘mulher’ para
designar a potência absoluta ou /os acontecimentos singulares, de
maneira justamente a não se deixar apreender por uma nova
reconstituição do binarismo. Outro nome poderia ser utilizado para
isto, por exemplo, o de ‘escrita’, tão caro a Derrida. E ela também
lembra Marx: a luta da classe operária busca, justamente, que no
futuro as classes sejam abolidas, o que implica sua própria dissolução
enquanto tal, e o mesmo deve ser o objetivo das mulheres.
Conclusões