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ANÁLISE DOS CONTEÚDOS FILOSÓFICOS NO PROGRAMA DE

FILOSOFIA PARA CRIANÇAS DE LIPMAN

Fernanda Carolina Vaz*


fc_vaz@hotmail.com
Leoni Maria Padilha Henning**

Introdução

O presente artigo pretende apresentar a problemática inerente


ao meu projeto de mestrado que está sendo realizado no
Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina,
tendo como foco central o Programa de Filosofia para Crianças. Este
projeto busca discutir e aprofundar estudos nos campos da
investigação filosófica e pedagógica que digam respeito ao ensino de
filosofia. Assim, ao cabo da pesquisa, discutiremos as críticas
dirigidas a Lipman sobre a possibilidade de um desenvolvimento do
pensar crítico e filosófico por parte das crianças, centralizando na
questão sobre os conteúdos filosóficos presentes em sua proposta.
Buscaremos apresentar algumas idéias que mostram explicitações e
relevância quanto ao desenvolvimento cognitivo das crianças
impulsionado pela proposta lipmaniana, tanto quanto consideraremos
a validade do Programa para o ensino de filosofia nas séries iniciais.
No entanto, para a finalidade de comunicação no contexto deste
Congresso, limitar-me-ei a levantar a problemática central inerente à
questão do conteúdo filosófico em Lipman, indicando alguns
caminhos de investigação necessários e que são sugeridos na rede de
problemas que imerge dessa temática.

*
Graduada em Filosofia pela UNESP, especialista em Filosofia Moderna e
Contemporânea pela UEL (curso em andamento) e estudante do Programa de
Mestrado em Educação na Universidade Estadual de Londrina.
**
Professora orientadora. Universidade Estadual de Londrina-UEL.
Ensinando filosofia às crianças

Temos hoje estudos e projetos desenvolvidos a partir do


Programa de Lipman, assim como temos críticas severas, por parte
de filósofos tradicionais, sobre o referido Programa. As diferenciações
entre as escolas tradicionais e pragmatistas (tradição de Lipman)
apontam diferentes formas de ensino, e que se chocam quando
colocadas frente a frente.
Lipman desenvolveu o Programa de Filosofia para Crianças sob
uma visão pragmatista de tradição, principalmente, deweyana,
unindo as concepções filosóficas e o pensar filosófico com uma prática
de ensino. Como podemos observar no parágrafo abaixo, isso pode
ter se constituído numa arma de ataque à proposta. Vejamos:

Enquanto o pragmatismo filosófico é basicamente uma


contraposição às concepções platônicas e cartesianas
da verdade e do conhecimento, os alheios à literatura
geralmente pensam o pragmatismo como um
expediente prático ou político, geralmente corrompido
em relação a compromissos sobre princípios.
(PRADO, 2003, p. 10)

Analisando a concepção filosófica pragmatista, percebemos a


importância da prática. No entanto, é oportuno enfatizarmos que
existe um esforço por parte dos pragmatistas clássicos e dos seus
seguidores, principalmente, para resolverem o dualismo, tão próprio
da nossa cultura, que distancia a teoria da prática. Considerando-se a
noção de “experiência”, presente na tradição deweyana, podemos
entender que essa bipartição não faria sentido nas concepções
filosófico-educacionais que acompanham aqueles princípios. Desse
modo, devemos aqui pontuar que não se trata de uma prática, como
sugere Carlos Prado, sem compromisso com os princípios. Pelo
contrário, os alunos, dentro dessa prática pragmatista, desenvolvem
uma posição empirista nos estudos da filosofia, atingindo assim o
cerne do pensamento da criança, o “brincar” e sua ação efetiva no
mundo. A assimilação de conceitos filosóficos é realizada dentro de
uma estrutura particular e lógica por parte da criança, tornando o
professor um expectador ativo que orienta essas assimilações.
Através das novelas1, Lipman desenvolveu histórias que
aproximam os conceitos filosóficos ao pensar infantil. Ao ler a novela
o aluno imagina o que está lendo, identifica-se com as personagens e
depois, ao discutir os problemas sugeridos na leitura com os seus
colegas na comunidade de investigação2, elabora os conceitos
embutidos dentro da novela, auto-corrige o seu pensamento exposto
no grupo e colabora com a auto-correção do pensamento da
comunidade. Isso acontece no conjunto das tarefas propostas pelo
professor às crianças, as quais, realizam efetivamente a filosofia
lendo e discutindo de forma democrática e organizada. O professor
tem a liberdade de abordar os conceitos filosóficos com brincadeiras e
artes em geral. Como diz Lipman:

[...] todas as disciplinas, tanto as ciências como as


humanidades, são linguagens a ser aprendidas,
linguagens cuja interação constitui a ‘conversação do
gênero humano’[...] Desta forma, para se fazer
aceitável às crianças, a filosofia tem tido de sacrificar a
terminologia hermética através da qual, desde
Aristóteles, tem conseguido se fazer ininteligível para o
leigo e escassamente inteligível para o graduado em
filosofia. (LIPMAN, 1990, pp.21-22)

Tais conceitos, obviamente, não são passados para as crianças


como conceitos “puros” , como os tradicionalistas o defendem,
dizendo que a filosofia deveria ser apresentada de forma pura a
qualquer interessado. Para eles, se a filosofia não for apresentada

1
Histórias criadas por Lipman constituídas de personagens e fatos ligados ao
mundo das crianças, com diferentes abordagens e conteúdos filosóficos para cada
faixa etária.
2
Assim chamado o grupo de alunos que compõem a sala de aula e, que dispostos
em círculo, desenvolvem as atividades de pensamento através do diálogo, pondo-se
a discutir sobre temas relevantes investigando sobre problemas concernentes à sua
experiência.
dessa maneira, corre o risco de deturpar os conceitos e a sua
especificidade como saber autêntico e rigoroso. Mas, como afirma
Lipman, a filosofia dada dessa forma, seria restrita aos graduados e,
ainda assim, de compreensão escassa. E o autor explica:

Sem dúvida foi Dewey quem previu, nos tempos


modernos, que... A reflexão do estudante é mais bem
estimulada pela experiência viva do que por um texto
desidratado, formalmente organizado; que nada melhor
que a discussão disciplinada para aguçar e aperfeiçoar
o raciocínio e que as habilidades de raciocínio são
essenciais para ler e escrever com sucesso; e que a
alternativa para não doutrinar os estudantes está em
ajudá-los a refletir efetivamente sobre os valores que
constantemente são impostos a eles. (LIPMAN, 1990, p.
20)

Contudo, não devemos confundir a maneira pragmatista de


entender a prática, com uma atitude de irrelevância e menosprezo
com relação aos conceitos “puros” ou à teoria. Contrariamente,
o que acontece é que dentro dessa prática o professor necessita
dominar os conceitos puros, ou seja, deve ser graduado em filosofia
ou, ao menos, dominar de forma bem abrangente os conceitos
filosóficos, devendo, para isso, participar de cursos preparatórios.
Somente assim, o professor poderá desenvolver as suas aulas e as
atividades com as crianças de uma forma prática, porém tão rigorosa
como querem os especialistas. É de responsabilidade do professor-
orientador guiar as conversas e discussões nas comunidades de
investigação e mostrar o conteúdo de uma forma que este desperte e
aguce a curiosidade da criança.
As aulas, dentro do Programa de Lipman, só não atingem esse
objetivo quando o professor não estiver preparado para lidar com os
conteúdos que estão sendo trabalhados com as crianças, ou seja,
quando não tiver formação filosófica para o mesmo. Devemos
entender também que, se fosse defendido para as crianças o método
de filosofia “pura” , como as escolas tradicionalistas defendem,
poderia gerar uma confusão de conceitos e, conseqüentemente, até o
relativismo, uma vez que a criança não desenvolveria a lógica no
grupo, não aguçando ainda, sua criatividade e curiosidade, fugindo,
portanto, do principal objetivo da filosofia. Dessa forma, o conteúdo
“puro” deve ser levado em conta por parte do professor. Contudo, o
fato desse conteúdo não estar sendo passado de forma “pura” para
as crianças, exatamente como tal ou tal filósofo escreveu, não quer
dizer que elas não estejam aprendendo a filosofar. Como defende o
autor:

[...] aplicar filosofia e fazer filosofia não são a mesma


coisa. O paradigma do fazer filosofia é a figura altiva e
solidária de Sócrates. Para ele não se tratava de uma
aquisição nem de uma profissão, mas de um modo de
vida. O que Sócrates nos exemplificava não é uma
filosofia conhecida, nem aplicada, mas praticada.
(LIPMAN. 1990, p.28)

Um dos principais objetivos do Programa de Filosofia para


Crianças é levar a reflexão filosófica até os pequeninos,
desenvolvendo e aguçando o crescimento cognitivo pessoal de cada
um deles. Estimular-los a refletirem sobre questões filosóficas. E,
procurando também entender o que acontece no mundo infantil, o
professor tende a fazer com que as crianças retomem a sua postura
curiosa, elaborem dúvidas e questionamentos, inspiradas na sua
experiência real e provocadas pela proposta de ensino, conduzindo os
problemas ao campo do intelecto, para que os mesmos sejam
pensados com profundidade e rigor. Para fazer uma criança de seis
anos refletir filosoficamente, essa filosofia deve fazer parte do mundo
dela. Por isso, a importância das novelas, pois elas levam esses
conteúdos ao “mundo infantil”. Lipman nos alerta: “[...] pois, fazer
filosofia não é uma questão de idade mas de habilidade em refletir
escrupulosa e corajosamente sobre o que se considera importante.”
(LIPMAN, 1990, p.31)
Considerações finais

Diante do fato de que temos hoje um Programa de Filosofia para


Crianças, cujas aplicações em contextos mundiais diversos nos
oferecem registros e comprovações de sua eficácia, alcançando os
objetivos propostos, há de se considerar, no entanto, a existência de
escolas de feições tradicionalistas que defendem uma outra posição.
Para elas, a filosofia deve continuar garantindo conteúdos “puros”,
herméticos e, ironicamente, como aponta Lipman, ininteligível para
os leigos e escassamente inteligível para o graduado nesse próprio
campo de conhecimento.
É evidente que essas questões devem ser analisadas com o
cuidado que merece a complexidade da problemática. Sabemos
também, que por estarmos ainda no início dessa investigação,
precisamos de aprofundamento para respaldar uma posição mais
clara a respeito desse confronto. No entanto, pelo que apresentamos
até aqui, entendemos que as questões que envolvem o problema do
conteúdo filosófico mostram-se importantes e relevantes para a
temática maior, a saber, o ensino de filosofia, no momento, gozando
de especial destaque e relevância entre nós.
Pelo exposto, acreditamos ainda que, na discussão deste artigo,
cabe uma pergunta extremamente básica mas, essencial: “o que é,
afinal, a filosofia?”.

Referências Bibliográficas

CENTRO BRASILEIRO DE FILOSOFIA PARA CRIANÇAS. A comunidade


de investigação e a educação para o pensar. Coleção Pensar, Vol.
2, São Paulo: CBFC, 1996.
CUNHA, M, V. John Dewey -Uma filosofia para educadores em sala de
aula, Petrópolis: Editora Vozes, 1994.
LIPMAN, M. A filosofia vai a escola. Vol.39, 3ª edição, São Paulo:
Summus, 1990.
LIPMAN, M. A filosofia na sala de aula, São Paulo: Editora Nova
Alexandria, 1994.
PRADO, C. Pragmatismo default. IN: GHIRALDELLI JR, P. (org.)
Filosofia americana – O que é pragmatismo? Vol. 1, Nº 1,
Setembro, Marília, SP: CEFA, 2003.
SEVERINO, A. J. A Filosofia da educação: construindo a cidadania,
Col.Aprender, São Paulo: Editora FTD, 1941.
TRENTIN, R.J.S. Mathew Lipman e a filosofia para crianças, Col.
Polêmicas do nosso tempo, Campinas-SP: Editora Autores
Associados, 2003.

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