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Acadêmica do quinto nível do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo e
bolsista do grupo de pesquisa sobre filosofia da arte orientado pelo professor Dr.
Gerson Luís Trombetta.
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Arthur Danto é professor emérito de Filosofia na Universidade de Columbia,
escreveu vários livros sobre temas filosóficos, dentre os quais estão traduzidos para
o português A Transfiguração do Lugar-Comum e Após o Fim da Arte, e desde 1984
escreve crítica de arte para o jornal The Nation.
contemporaneidade. À arte cabe, nessa perspectiva, existir enquanto e
somente enquanto uma espécie de filosofia da arte. Mas, antes de
verificarmos se o argumento tem procedência - e se de fato não existem
mais os limites que até então separavam essas duas instâncias -, vejamos
por quais processos ou movimentos internos a arte passou até estruturar-se
como tal no cenário contemporâneo.
Nosso trabalho divide-se em três grandes tópicos. Na primeira parte do
artigo procuramos analisar por que e em que sentido podemos entender a
arte clássica e a arte contemporânea como dois fenômenos que derivam de
uma mesma raiz. Em seguida, do longa-metragem Blow-Up3 extraímos
subsídios que corroboram nossa hipótese inicial sobre a relação de
proximidade entre arte contemporânea e filosofia. E, por último, nas
considerações finais, discutimos o caráter auto-reflexivo da arte.
3
Longa-metragem dirigido por Michelangelo Antonioni, em 1966, baseado no conto
As Babas do Diabo, do escritor argentino Julio Cortazar.
A objeção de Platão em torno da arte relaciona-se à possibilidade de sermos
enganados pela falsa realidade que criam os objetos artísticos. Não é
improvável que ele tenha expulsado os artistas da cidade ideal, na República,
em protesto também aos sofistas, que engendram ilusões a partir de seus
discursos. (Cf. X, 598d–608b). Mas por ora não nos interessam os embates
entre Platão e sofistas. Aqui queremos deixar claro que a preocupação do
filósofo em relação à possibilidade de sermos enganados pela arte
necessariamente implica a idéia de que a arte se opõe à realidade. Ora, mais
do que peça solta de um quebra-cabeça filosófico vigente em um passado
distante, esse é o pressuposto sobre o qual repousam ainda a nossa e as
mais diferentes concepções a respeito da arte. Ficamos sujeitos ao engano
somente quando já está formada a noção de realidade e, conseqüentemente,
daquilo que dela se diferencia. Apenas por esse viés é que podemos entender
por que Platão precisa expulsar os artistas da cidade ideal. Um segundo
passo do filósofo nesse sentido - e que repercutiu muito sobre todo o
pensamento ocidental - é estruturar uma hierarquia segundo a qual as
Formas são, respectivamente, mais reais e portanto melhores que o mundo
sensível e as imagens.
É claro que os problemas relacionados à arte tratados por Platão vinculam-se
também a outros fatores. Precisamos ter em mente que, se é correto que ele
rejeita a arte embasado na certeza de que nada nos impede de tomá-la
como realidade, então também precisa ser correto pensarmos que ele se
refere a objetos cujas propriedades se mesclem à realidade a ponto de nos
fazerem perder de vista os critérios que distinguem arte de realidade. E os
únicos objetos que se enquadram nessa categoria, em última instância, são
as obras de arte miméticas. Uma análise do teatro trágico feita por Nietzsche
pode nos ajudar a entender melhor esse problema deflagrado pelo diálogo
platônico.
Para Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, a arte do período de Platão
integra um contexto em que a mimética, pelo menos no teatro trágico, já
havia passado por dois momentos de drástica transformação.
Dionísio, o efetivo herói cênico e ponto central da visão, não está, segundo
esse conhecimento e segundo a tradição, verdadeiramente presente, a
princípio, no período mais antigo da tragédia, mas é apenas representado
como estando presente: quer dizer, originalmente a tragédia é só “coro” e
não “drama”. Mais tarde se faz a tentativa de mostrar como real e de
apresentar em cena [darstellen], como visível aos olhos de cada um, a figura
da visão junto com a moldura transfiguradora: com isso começa o “drama”
no sentido mais estrito. Agora o coro ditirâmbico recebe a incumbência de
excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para que eles, quando o
herói trágico aparecer no palco, não vejam algum informe homem
mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles
próprios. (NIEZTSCHE, 1992, p. 62).
Talvez o espectador contemporâneo tenha dificuldades
de calcular o impacto que representou, nos primórdios
da tragédia, a simples possibilidade de um público
considerar a interpretação de um ator no papel de um
deus tão legítima quanto a interpretação do deus em
seu próprio papel. Não por menos. Somos coerentes
quando pensamos que, por melhor que seja sua atuação, um ator não pode
ser confundido com a personagem que interpreta em determinada ocasião.
Apesar disso, ainda não sabemos que barreira nos impede de pensar que a
imitação de um objeto não pode ser considerada o objeto que imita se com
ele se parece em todos os aspectos. Recaímos, na verdade, no problema que
perturbou Arthur Danto durante alguns anos: por que a caixa de sabão de
Andy Warhol é considerada arte se um exemplar idêntico a ela, a caixa de
sabão na prateleira do supermercado, não é?
E não foi apenas Danto quem se debruçou sobre essas questões. No contexto
dos gregos, por exemplo, a diferenciação entre o objeto e sua representação
– imitação – parece ter sido garantida pela teoria platônica das Formas, que
estabeleceu uma dicotomia entre mundo sensível e mundo inteligível. Assim,
a partir de um critério de verdade determinado através da teoria das Formas,
Platão resolveu o problema da distinção entre mundo artístico e mundo real,
que hoje, sob outro viés, é resgatado pela arte contemporânea. Ora, se
levarmos em conta apenas os aspectos perceptíveis dos objetos para
designá-los arte ou não, então, como conseqüência absurda, temos de
admitir que todas as cópias idênticas das obras de arte são também arte.
Nessa perspectiva, por exemplo, somos impelidos - quase obrigados - a
considerar as caixas de sabão expostas no supermercado tão obras de arte
quanto possivelmente considerarmos as caixas de Andy Warhol.
O herói trágico, para tecer um último comentário a respeito da passagem
selecionada, era responsável por personificar através de seus atos
desmedidos e de seus sofrimentos a desmedida e o sofrimento de Dionísio.
Nesse sentido, embora o deus e o herói não fossem uma só figura, podemos
dizer que a história trágica, na medida em que era capaz de torná-los
cúmplices, também era capaz de transformá-los em um só. A substituição do
deus físico por uma personagem incumbida de representá-lo equivale - para
direcionarmos as observações de Nietzsche ao que nos interessa - à
substituição de uma realidade (Dionísio, o deus) por um objeto (herói
trágico, o objeto artístico) encarregado de representá-la. Além disso, a
menos que pensemos que Dionísio de fato existe, nesse caso específico a
substituição de objetos significa antes uma substituição de crenças. O
espectador da tragédia sujeita-se a abrir mão da crença de que Dionísio
precisa aparecer ao público para abrir-se à possibilidade de aceitar como
também real e legítima a aparição de alguém que, embora diferente do deus,
atue como se fosse o deus. Para trazer o caso aos nossos dias, de forma
análoga, podemos nos perguntar sobre o que afinal há nas caixas de sabão
de Warhol que nos impede de confundi-las às caixas de sabão das prateleiras
do supermercado senão o fato de sabermos - ou acreditarmos - que aquelas
são obras de arte enquanto essas não passam de meros produtos do
comércio. Aqui, como podemos perceber, o critério de distinção entre arte e
realidade depende da cognição: encontra-se antes no conhecimento que
temos do objeto do que propriamente nos aspectos formal e material desse
objeto. E, se pensarmos que muitos objetos artísticos contemporâneos são
idênticos a objetos reais não porque são produzidos para imitar a realidade,
mas sobretudo porque são extraídos da própria realidade como tais para que
passem a representá-la artisticamente – como é o caso das caixas de sabão
artísticas, que não são mais do que ex-caixas de sabão comerciais -, parece-
nos que levar em conta esse critério da cognição para atribuir credibilidade à
realidade do mundo que uma imitação instaura é imprescindível quando
estamos diante de obras de arte.
As mudanças que ocorreram desde os objetos artísticos miméticos até as
obras contemporâneas são parte da evolução interna da arte e podem nos
ajudar a esclarecer alguns pontos que levantamos nesse texto sobre o tema.
Basta pensarmos que o problema diagnosticado por Platão em relação aos
equívocos que podemos cometer diante de uma possível ausência de
fronteiras entre arte e realidade, ainda hoje, sob outro paradigma e num
contexto já em muito diferenciado, preocupa filósofos da arte e artistas:
como impedir, por exemplo, que da premissa segundo a qual parece não
haver mais critérios suficientemente fortes para evitar que todas as coisas se
tornem arte não entendamos que todas as coisas devam ser
necessariamente obras de arte? (DANTO, 2005, 113).
A esta altura novamente observamos que a dificuldade que se estabelece
quando nos debruçamos sobre o fenômeno da arte e suas variáveis, mais
cedo ou mais tarde, atravessa o tema da distinção entre arte e realidade.
Assim, embora a crítica platônica acerca da arte esteja fundada em um
sistema já superado - a teoria das Formas, pela qual a realidade é
discriminada segundo uma hierarquia ascendente que vai do falso para o
verdadeiro e na qual as imagens (arte mimética, reflexos, miragens)
encontram-se no mais baixo degrau da escala -, a preocupação quanto ao
problema de não identificarmos mais os limites que separam arte de
realidade é comum tanto a obras de arte miméticas quanto a obras de arte
contemporâneas. Comum àquelas porque, se arte é cópia (mimese) de uma
realidade, então é falsa em relação a essa realidade e pode nos levar a um
conhecimento equivocado sobre ela; comum a essas porque, se na arte
mimética os limites entre mundo real e mundo da arte já eram estreitos uma
vez que o objeto mimético copiava - e portanto denotava - a realidade, na
arte contemporânea a situação torna-se um pouco mais complexa: os
objetos começam inclusive a incorporar elementos próprios da realidade.
Mas por que objetos tão distintos como os que pertencem à arte
contemporânea em relação aos que caracterizam a arte mimética são
igualmente considerados arte? O que queremos dizer quando afirmamos que
todos são dotados de propriedades artísticas? Que tipo de abertura está
implícita no conceito de arte que nos permite posicionar tanto A Fonte, de
Marcel Duchamp, quanto As Meninas, de Velásquez, no centro de um mesmo
universo? A que espécie de progresso, se é que podemos entender assim,
essas considerações prévias apontam a respeito do movimento interno da
arte? Que conclusões podemos extrair do fenômeno por que passou a arte ao
deixar de restringir-se a objetos miméticos para passar a constituir-se de
objetos que representam a realidade e que se auto-representam das
maneiras mais complexas possíveis? São inúmeras as inquietações e poucas
as respostas de que por ora dispomos para solucioná-las. Mas, se é verdade
que não há nada melhor do que primeiramente recorrer à arte para depois
tentar entendê-la, talvez o longa-metragem Blow-Up, dirigido por
Michelangelo Antonioni, nos ajude a avançar nessa empreitada.
Referências bibliográficas
GHIRALDELLI, Paulo Jr. Entrevista com Arthur Danto. Disponível em: <
http://www.filosofia.pro.br/modules.php?name=News&file=article&sid=50>.