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Sr O pees UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARA BIBLIOTECA CENTRAL N°_37% 30S Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som : um manual pratico/ Martin W. Bauer, George Gaskell (editores) ; tradugao de Pedrinho A. Guareschi. —7. ed, Petropolis , RJ : Vozes, 2008. Titulo original: Qualitative Researching with Text, Image and Sound : a Practical Handbook. ISBN 978-85-326-2727-8 1, Ciéncias sociais — Metodologia 2. Ciéncias sociais — Pesquisa 3. Ciéncias sociais — Pesquisa — Metodologia 4. Pesquisa avaliativa (Programas de acdo social) 5, Pesquisa qualitativa I. Bauer, Martin W., II. Gaskell, George. 02-2085 CDD-001.42 indices para catdlogo sistematico: 1, Pesquisa qualitativa : Metodologia 001.42 4 ENTREVISTA NARRATIVA Sandra Jovchelovitch & Martin W. Bauer Palavras-chave: fala conclusiva; narrativa principal; teoria pré- pria Eigentheory; narrativa; quest6es exmanentes e imanentes; nar- rativa e representagao; texto indexado e nao indexado; entrevista narrativa; informante; fase de questionamento; tdpico inicial; es- quema autogerador; trajetérias — individuais e coletivas. Oestudo de narrativas conquistou uma nova importancia nos tl- timos anos. Este renovado interesse em um t6pico antigo — interesse com narrativas e narratividade tem suas origens na Poética de Aristé- teles — esta relacionado com a crescente consciéncia do papel que o contar histérias desempenha na conformacgao de fendmenos sociais. No despertar desta nova consciéncia, as narrativas se tornaram um método de pesquisa muito difundido nas ciéncias sociais. A discus- sao sobre narrativas vai, contudo, muito além de seu emprego como método de investigagao. A narrativa como uma forma discursiva, narrativas como histéria, e narrativas como histérias de vida ¢ hist6- rias societais, foram abordadas por teéricos culturais e literdrios, lin- giiistas, filésofos da histéria, psicélogos e antropélogos. Este capitulo trata do emprego de narrativas na investigagao so- cial, discutindo alguns elementos da teoria da narrativa e apresentan- do a entrevista narrativa como uma técnica especifica de coleta de da- dos, em particular no formato sistematizado por Schittze (1977; 1983; 1992). Na seqiiéncia, apresentamos as quest6es tedricas relacionadas as narrativas, e apresentamos a entrevista narrativa como um método de geragao de dados, discutindo em detalhe o procedimento, a indi- cacao para seu uso € os possiveis problemas ligados a esta técnica. 00 4 ENTREVISTA, NARRATIVA Concluimos com uma discussdo sobre o espinhoso problema episte- oldgico do que, de fato, as narrativas nos contam. juestdes tedricas __ Nao ha experiéncia humana que nio possa ser expressa na for- a de uma narrativa. Como salienta Roland Barthes: A narrativa esté presente no mito, lenda, fibula, conto, novela, epopéia, historia, tragédia, drama, comédia, mimica, pintura (pen- semos na Santa Ursula de Carpaccio), vitrais de janelas, cinema, histérias em quadrinho, noticias, conversagao. Além disso, sob esta quase infinita diversidade de formas, a narrativa esté presente em cada idade, em cada lugar, em cada sociedade; ela comega com a propria historia da humanidade e nunca existiu, em nenhum lu- gar e em tempo nenhum, um povo sem narrativa. Nao se impor- tando com boa ou mé literatura, a narrativa é internacional, trans-histérica, transcultural: ela estd simplesmente ali, como a propria vida (1993: 251-2). Na verdade, as narrativas sao infinitas em sua variedade, e nés as contramos em todo lugar. Parece existir em todas as formas de ida humana uma necessidade de contar; contar histérias é uma for- elementar de comunicaga4o humana e, independentemente do lesempenho da linguagem estratificada, é uma capacidade univer- I. Através da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, colo- a experiéncia em uma seqiiéncia, encontram possiveis explica- es para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos que cons- ‘oem a vida individual e social. Contar historias implica estados in- ncionais que aliviam, ou ao menos tornam familiares, aconteci- entos € sentimentos que confrontam a vida cotidiana normal. Comunidades, grupos sociais e subculturas contam histérias com palavras e sentidos que sao especificos 4 sua experiéncia e ao seu modo de vida. O léxico do grupo social constitui sua perspectiva de mundo, e assume-se que as narrativas preservam perspectivas parti- culares de uma forma mais auténtica. Contar histérias é uma habili- dade relativamente independente da educagao e da competéncia lin- giiistica; embora a ultima seja desigualmente distribufda em cada po- uulagao, a capacidade de contar hist6ria nao o é, ou ao menos é em grau menor. Um acontecimento pode ser traduzido tanto em termos erais como em termos indexados. Indexados significa que a referén- dia é feita a acontecimentos concretos em um lugar e em um tempo. =o — Narragoes sao ricas de colocagées indexicadas, a) porque elas se refe- rem a experiéncia pessoal, e b) porque elas tendem a ser detalhadas com um enfoque nos acontecimentos ¢ agées. A estrutura de uma nar- ragao é semelhante a estrutura da orientacAo para a agao: um contex- to € dado; os acontecimentos sao seqiienciais e terminam em um de- terminado ponto; a narragao inclui um tipo de avaliagao do resultado. Situacao, colocagao do objetivo, planejamento e avaliacio dos resulta- dos sao constituintes das agdes humanas que possuem um objetivo. A narragao reconstréi ages € contexto da maneira mais adequada: ela mostra 0 lugar, o tempo, a motivacao e as orientacées do sistema sim- bélico do ator (Schiitze, 1977; Bruner, 1990). O ato de contar uma histéria é relativamente simples. Conforme Ricoeur (1980), alguém coloca um ntimero de ages e experiéncias em uma seqiiéncia. Essas sao as agdes de determinado nimero de personagens, € esses personagens agem a partir de situagdes que mudam. As mudangas trazem a luz elementos da situagao e dos per- sonagens que estavam previamente implicitos. Com isso, eles exi- gem que se pense, ou que se aja, ou ambos. Contar historias implica duas dimensées: a dimensao cronol6gica, referente 4 narrativa como uma seqiténcia de episédios, e a nao cronolégica, que implica a construgao de um todo a partir de sucessivos acontecimentos, ou a configuragao de um “enredo”. O enredo é crucial para a constitui- ao de uma estrutura de narrativa. E através do enredo que as unida- des individuais (ou pequenas historias dentro de uma histéria maior) adquirem sentido na narrativa. Por isso a narrativa nao é apenas uma listagem de acontecimentos, mas uma tentativa de ligd-los, tan- to no tempo, como no sentido. Se nés considerarmos os aconteci- mentos isolados, eles se nos apresentam como simples proposigdes que descrevem acontecimentos independentes. Mas se eles estdo es- truturados em uma histéria, as maneiras como eles s4o contados permitem a operacao de producao de sentido do enredo. E 0 enredo que da coeréncia e sentido a narrativa, bem como fornece 0 contexto em que nés entendemos cada um dos acontecimentos, atores, des- crig6es, objetivos, moralidade e relagdes que geralmente constituem a historia. Os enredos operam através de fungdes especificas, que servem para estruturar e configurar varios acontecimentos em uma narrativa. Primeiro, € o enredo de uma narrativa que define 0 espa- ¢o de tempo que marca 0 comego e o fim de uma histéria. Nés sabe- mos que a vida humana, e a vasta maioria dos fenédmenos sociais, flu- 92 4. ENTREVISTA NARRATIVA sem injcios ou fins precisos. Mas a fim de dar sentido aos aconte- entos da vida, e compreender o que esta acontecendo, é impor- tante demarcar os inicios € os fins. Em segundo lugar, o enredo for- nece critérios para a selegdo dos acontecimentos que devem ser in- cluidos na narrativa, para a maneira como esses acontecimentos sao denados em uma seqiténcia que vai se desdobrando até a conclu- ‘0 da historia, e para o esclarecimento dos sentidos implicitos que Os acontecimentos possuem corho contribuigées a narrativa como um todo. Decidir 0 que deve e 0 que nao deve ser dito, e o que deve dito antes, sao operagées relacionadas ao sentido que o enredo a narrativa. Neste sentido, as narrativas se prolongam além das ntengas e dos acontecimentos que as constituem; estruturalmente, as natrativas partilham das caracteristicas da sentenca sem nunca poderem ser reduzidas a simples soma de suas sentengas ou aconte- entos que as constituem. Nesta mesma perspectiva, o sentido 0 est no “fim” da narrativa; ele permeia toda a histéria. Deste ‘modo, compreender uma narrativa nao é apenas seguir a seqiiéncia cronolégica dos acontecimentos que sdo apresentados pelo conta- r de histérias: € também reconhecer sua dimensao nao cronolégi- ca, expressa pelas fungées e sentidos do enredo. entrevista narrativa A entrevista narrativa (daqui em diante, EN) tem em vista uma ituacgao que encoraje e estimule um entrevistado (que na EN € cha- mado um “informante”) a contar a histéria sobre algum aconteci- mento importante de sua vida e do contexto social. A técnica recebe seu nome da palavra latina narrare, relatar, contar uma historia. Em manusczito nao publicado, Schiitze (1977) sugeriu uma sistema- tizagao dessa técnica. Sua idéia basica € reconstruir acontecimentos sociais a partir da perspectiva dos informantes, tao diretamente quanto possivel. Até hoje, nds usamos entrevistas narrativas para re- construir as perspectivas do informante em dois estudos: primeiro, para reconstruir as perspectivas dos atores em um controvertido Projeto para o desenvolvimento de um software em um contexto corporativo (Bauer, 1991; 1996; 1997); e segundo, para investigar Tepresentagdes da vida ptiblica no Brasil (Jovchelovitch, 2000). -Experiéncias positivas nos encorajaram a recomendar a técnica e fazer a sistematizagao de Schiitze acessfvel lingua inglesa, com al- guma elaboragao. —=93— Esta versao espectfica de entrevista narrativa nao se tornou aces- sivel em inglés, embora escritos sobre narrativas sejam abundantes em diferentes versGes. Muitos escritos sobre “narrativas” possuem um enfoque analitico, enfatizando as caracteristicas estruturais e 0 significado filos6fico das narrativas (Riesman, 1993; Barthes, 1993; Bruner, 1990; Mitchell, 1980; Johnson & Mandler, 1980; Kintsch & van Dijk, 1978; Propp, 1928). A forca da sugestio de Schiitze é uma proposta sistematica de criar narrativas com fins de pesquisa social. O manuscrito de Schiitze de 1977 permanece sem ser publicado; ele se difundiu largamente como uma literatura no oficial e se tornou o foco de um verdadeiro método de pesquisa em comunidade na Ale- manha durante a década de 80. A idéia original se desenyplveu a partir de um projeto de pesquisa sobre estruturas de poder nas co- munidades locais. Narrativa como um esquema autogerador: “era uma vez” O contar historias parece seguir regras universais que guiam o processo de produgao da histéria. Schtitze (1977) descreve como “exigéncias inerentes da narracao” (Zugzwaenge des Erzaehlens) 0 que outros chamam de “esquema da histéria”, “convengao narrati- va” ou “gramatica da histéria” (Johnson & Mandler, 1980; Kintsch & van Dijk, 1978; Labov, 1972). Um esquema estrutura um processo semi-auténomo, ativado por uma situagéo predeterminada. A nar- ragao é entao eliciada na base de provocacGes especfficas e, uma vez que o informante tenha comegado, o contar histérias ira sustentar 0 fluxo da narracao, fundamentando-se em regras tacitas subjacentes. O contar histérias segue um esquema autogerador com trés principais caracterfsticas, como a seguir: Textura detalhada: se refere a necessidade de dar informagio deta- Thada a fim de dar conta, razoavelmente, da transicao entre um acontecimento e outro. O narrador tende a fornecer tantos detalhes dos acontecimentos quantos forem necessarios para tornar a transi- cao entre eles plausivel. Isto é feito levando o ouvinte em considera- cao. A histéria tem de ser plausivel para um publico, de outra manei- ra nao seria histéria. Quanto menos 0 ouvinte conhece, mais deta- lhes seréo dados. O contar histérias esté préximo dos acontecimen- tos. Ele dara conta do tempo, lugar, motivos, pontos de orientacio, planos, estratégias e habilidades. — 94 Fixagao da relevancia: o contador de histéria narra aqueles aspectos do acontecimento que sao relevantes, de acordo com sua perspectiva de mundo. A explicacao dos acontecimentos é necessariamente sele- tiva. Ela se desdobra ao redor de centros temAticos que refletem o que o narrador considera importante. Estes temas representam sua estrutura de relevancia. Fechamenio da Gestalt: um acontecimento central mencionado na narrativa tem de ser contado em sua totalidade, com um comego, meio e fim. O fim pode ser o presente, se os acontecimentos concre- tos ainda nao terminaram. Esta estrutura triplice de uma conclusio faz a histéria fluir, uma vez comegada: 0 comego tende para o meio, eo meio tende para o fim. Para além do esquema pergunta-resposta A entrevista narrativa € classificada como um método de pes- quisa qualitativa (Lamnek, 1989; Hatch & Wisnieswski, 1995; Ries- man, 1993; Flick, 1998). Ela é considerada uma forma de entrevis- ta nao estruturada, de profundidade, com caracteristicas especifi- cas. Conceitualmente, a idéia da entrevista narrativa € motivada por uma critica do esquema pergunta-resposta da maioria das en- trevistas. No modo pergunta-resposta, 0 entrevistador esta impon- do estruturas em um sentido triplice: a) selecionando o tema e os t6picos; b) ordenando as perguntas; c) verbalizando as perguntas com sua propria linguagem. Para se conseguir uma verséo menos imposta e por isso mais “va- lida” da perspectiva do informante, a influéncia do entrevistador deve sey minima e um ambiente deve ser preparado para se conse- guir esta minimizagao da influéncia do entrevistador. As regras de execucio da EN restringem o entrevistador. A EN vai mais além que qualquer outro método ao evitar uma pré-estruturagao da entrevis- ta. E o empreendimento mais notavel para superar o tipo de entre- vista baseado em pergunta-resposta. Ela emprega um tipo especffico de comunicagao cotidiana, o contar e escutar hist6ria, para conse- guir este objetivo. O esquema de narragio substitui o esquema pergunta-resposta que define a maioria das situagées de entrevista. O pressuposto subja- cente € que a perspectiva do entrevistado se revela melhor nas hist6rias onde o informante esta usando sua prépria linguagem espontanea na = Ce 0 PARA DE FEDERA PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM | narragao dos acontecimentos. Seria, contudo, ingénuo afirmar que a narragao nao possui estrutura. Uma narrativa esta formalmente es- truturada; como apontamos acima, a narragdo segue um esquema au- togerador. Todo aquele que conta uma boa histéria, satisfaz as regras basicas do contar histérias. Aqui surge o paradoxo da narragio: sio as, exigéncias das regras tacitas que libertam o contar histérias. A técnica é sensivel a dois elementos basicos da entrevista, como apontados por Farr (1982): ela contrasta diferentes perspectivas, € leva a sério a idéia de que a linguagem, assim como o meio de troca, nao € neutro, mas constitui uma cosmovisao particular. A avaliagéo da diferenga de perspectivas, que pode estar tanto entre o entrevis- tador e o informante, quanto entre diferentes informantes, € central a técnica. O entrevistador é alertado para que evite cuidadosamente impor qualquer forma de linguagem nao empregada pelo informan- te durante a entrevista. A técnica de eliciar informagoes Como técnica de entrevista, a EN consiste em uma série de re- gras sobre: como ativar 0 esquema da hist6ria; como provocar narra- g6es dos informantes; e como, uma vez comegada a narrativa, con- servar a narragao andando através da mobilizagéo do esquema au- togerador. A hist6ria se desenvolve a partir de acontecimentos reais, uma expectativa do ptiblico e as manipulagées formais dentro do ambiente. As regras que se seguem sao uma mistura da proposta de Schiitze e nossa elaboracao pessoal. A Tabela 4.1 sintetiza 0 conceito basico de EN e suas regas de procedimento. A entrevista narrativa se processa através de quatro fases: ela comega com a iniciagéo, move-se através da narracaio e da fase de questionamento e termina coma fase da fala conclusiva. Para cada uma dessas fases, € sugerido determinado namero de regras. A fungao destas regras nao € tanto encorajar uma adesao cega, mas oferecer guia e orientacao para o entrevistador, a fim de fazer com que surja uma narragao rica sobre um tépico de interesse, evitando os perigos do esquema pergunta-resposta de entrevista. O segui- mento destas regras levara certamente a uma situagdo isenta de constrangimentos, e manteré a disposicao do informante de contar uma histéria sobre acontecimentos importantes. Og Tabela 4.1 ~ Fases principais da entrevista narrative Fases Regras Preparacéo Exploragéo do campo Formulagdo de questées exmanentes 1. Iniciagao Formulagéo do tépico inicial para narragéo Emprego de auxilios visucis 2. Narrag&o central NGo interromper Somenté encorajamento ndo verbal para continuar a narragéo Esperar para os sinais de finalizagao ("coda") +3. Fase de perguntas Somente “Que aconteceu enléo?” Nao dar opiniées ou fazer perguntas sobre atitudes Nao discutir sobre contradicées Nao fazer perguntas do tipo “por qué?” Ir de perguntas exmanentes para imanentes 4. Fala conclusive Parar de gravar Séo permitidas perguntas do tipo “por qué?” Fazer anotacées imediatamente depois da entrevista Preparagéo da entrevista Preparar uma EN toma tempo. E necessdrio uma compreensao preliminar do acontecimento principal, tanto para deixar evidentes as lacunas que a EN deve preencher, quanto para se conseguir uma formulagao convincente do t6pico inicial central, designado a pro- vocar uma narracao auto-sustentavel. Primeiramente, o pesquisador necessita criar familiaridade com 0 campo de estudo. Isto pode im- plicar em ter de se fazer investigacées preliminares, ler documentos € tomar nota dos boatos e relatos informais de algum acontecimento especifico. Com base nestes inquéritos iniciais, e em seus préprios interess¢s, o pesquisador monta uma lista de perguntas exmanen- tes. Questdes exmanentes refletem os interesses do pesquisador, suas formulacoes e linguagem. Distinguimos das questées exmanen- tes as quest6es imanentes: os temas, tdpicos e relatos de aconteci- mentos que surgem durante a narragio trazidos pelo informante. Quest6es exmanentes e imanentes podem se sobrepor totalmente, parcialmente ou nao terem nada a ver umas com as outras. O ponto crucial da tarefa € traduzir questées exmanentes em questoes imanentes, ancorando questées exmanentes na narragio, e fazendo uso exclusi- yamente da prépria linguagem do entrevistado. No decurso da en- trevista, a atengao do entrevistador deve estar focada em questdes imanentes, no trabalho de tomar anotacées da linguagem emprega- oe da, e em preparar perguntas para serem feitas posteriormente, em tempo adequado. Fase 1: iniciagao O contexto da investigagao é explicado em termos amplos ao in- formante. Deve-se pedir a ele a permissao para se gravar a entrevis- ta. Gravar é importante para se poder fazer uma andlise adequada posteriormente. O procedimento da EN é entao brevemente expli- cado ao informante: a narrac4o sem interrupgées, a fase de questio- namento e assim por diante. Na fase de preparagao da EN, um tépi- co para narragio ja foi identificado. Deve-se ter em mente que 0 t6- pico inicial representa os interesses do entrevistador. Para ajudar na introdugao do tépico inicial, podem ser empregados recursos visuais. Uma linha do tempo, representando esquematicamente 0 comego € o fim do acontecimento em questao, é um exemplo possivel. O nar- rador, neste caso, ira enfrentar o problema de segmentar o tempo entre o comego e€ 0 fim da histéria. A introducao do tépico central da EN deve deslanchar o proces- so de narraco. A experiéncia mostra que, a fim de eliciar uma hist6- ria que possa ir adiante, varias regras podem ser empregadas como orientagées para formular o t6pico inicial: * O t6pico inicial necessita fazer parte da experiéncia do infor- mante. Isso ira garantir seu interesse, e uma narragao rica em detalhes. * O t6pico inicial deve ser de significancia pessoal e social, ou comunitaria. * O interesse e 0 investimento do informante no tépico nao de- vem ser mencionados. Isso é para evitar que se tomem posi- Ges ou se assumam papéis ja desde o inicio. * O tépico deve ser suficientemente amplo para permitir ao in- formante desenvolver uma histéria longa que, a partir de si- tuag6es iniciais, passando por acontecimentos passados, leve 4 situacao atual. * Evitar formulagées indexadas. Nao referir datas, nomes ou lu- gares. Esses devem ser trazidos somente pelo informante, como parte de sua estrutura relevante. Og ase 2: a narracdo central Quando a narragdo comeca, nao deve ser interrompida até que aja uma clara indicagao (“coda”), significando que o entrevistado se letém e da sinais de que a historia terminou. Durante a narragao, o trevistador se abstém de qualquer comentario, a nao ser sinais nao rbais de escuta atenta e encorajamento explicito para continuar a ‘agao. O entrevistador pode, contudo, tomar notas ocasionais perguntas posteriores, se isto nao interferir com a narraco. Restrinja-se a escuta ativa, ao apoio no verbal ou paralingiiisti- » € mostrando interesse (“hmm”, “sim”, “sei”). Enquanto escuta, ergunte-se mentalmente, ou escreva no papel, as perguntas paraa roxima fase da entrevista. Quando 0 informante indica 0 coda no final da histéria, investi- € por algo mais: “E tudo 0 que vocé gostaria de me contar?” Ou Haveria ainda alguma coisa que vocé gostaria de dizer?” Fase 3: fase de questionamento Quando a narragao chega a um fim “natural”, o entrevistador inicia a fase de questionamento. Este é o momento em que a escuta tenta do entrevistador produz seus frutos. As questées exmanentes do entrevistador sao traduzidas em questdes imanentes, com o em- prego da linguagem do informante, para completar as lacunas da historia. A fase de questionamento nao deve comecar até que o en- trevistador comprove com clareza o fim da narrativa central. Na fase de questionamento, trés regras basicas se aplicam: * Nao faca perguntas do tipo “por qué?”; faca apenas perguntas “que se refiram aos acontecimentos, como: “O que aconteceu antes/depois/entao?” Nao pergunte diretamente sobre opi- nides, atitudes ou causas, pois isto convida a justificagdes e ra- cionalizagées. Toda narrativa ira incluir determinadas justifi- cages e racionalizagées; contudo, é importante nao investi- ga-las, mas ver como elas aparecem espontaneamente. * Pergunte apenas quest6es imanentes, empregando somente as palavras do informante. As perguntas se referem tanto aos acontecimentos mencionados na histéria, quanto a t6picos do projeto de pesquisa. Traduza questées exmanentes em ques- tées imanentes. -99 — PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM * Para evitar um clima de investiga¢ao detalhada, nao aponte con- tradig6es na narrativa. Esta é também uma precaucgao contra in- vestigar a racionalizacao, além da que ocorre espontaneamente. A fase de questionamento tem como finalidade eliciar material novo e adicional além do esquema autogerador da historia. O entre- vistador pergunta por maior “textura concreta” e “fechamento da Gestalt”, mantendo-se dentro das regras. As fases 1, 2 e 3 sao gravadas para transcricao literal, com 0 con- sentimento dos informantes. Fase 4: fala conclusiva Zz No final da entrevista, quando o gravador estiver desligado, mui- tas vezes acontecem discuss6es interessantes na forma de comenta- vios informais. Falar em uma situagao descontraida, depois do “show”, muitas vezes traz muita luz sobre as informagées mais for- mais dadas durante a narracao. Esta informacao contextual se mos- tra, em muitos casos, muito importante para a interpretagao dos da- dos, e pode ser crucial para a interpretag4o contextual das narrati- vas do informante. Durante esta fase, o entrevistador pode empregar questées do tipo “por qué?” Isto pode ser uma porta de entrada para a anilise posterior, quando as teorias e explicagdes que os contadores de his- térias tém sobre si mesmos (“eigentheories”) se tornam o foco de anflise. Além do mais, na ultima fase, o entrevistador pode também estar em uma posicao de avaliar o nivel de (des)confianga percebido no informante, o que se constitui em uma informacao importante para a interpretagao da narragao no seu contexto. A fim de nao perder esta importante informagao, é aconselhavel ter um diario de campo, ou um formulario especial para sintetizar os contetidos dos comentarios informais em um protocolo de mem6- ria, imediatamente depois da entrevista. Se alguém organiza uma série de EN, é util planejar o tempo entre as entrevistas para escre- ver os comentarios informais e outras impress6es. Vantagens e fraquezas da entrevista narrativa Os pesquisadores que fazem uso da entrevista narrativa aponta- ram dois problemas principais da técnica: a) as expectativas incon- — 100 — Expectativas incontroldveis na entrevista O entrevistador procura obter de cada entrevista uma narragéo completa dos acontecimentos qué expresse uma perspectiva especi- a. Ele, por conseguinte, se coloca como alguém que nao sabe ada, ou muito pouco, sobre a historia que est4 sendo contada, e que ‘0 possui nela interesses particulares. Cada participante, contudo, onstruira hipdteses sobre o que o entrevistador quer ouvir, ¢ 0 que provavelmente ja sabe. Os informantes geralmente supd6em que entrevistador sabe algo sobre a hist6ria, e que eles nao irao falar so- re aquilo que ele j4 sabe, pois eles assumem isto como pacifico. E muito problematico montar um “pretenso jogo” de ingenuidade, es- ccialmente com respeito a uma série de entrevistas sobre as quais 0 nformante sabe que ele nao é 0 primeiro a ser entrevistado. Como foi visto acima, cada informante construira hipéteses so- re © que o entrevistador gostaria de ouvir. O entrevistador deve, ois, ser sensivel ao fato de que a historia que ele obterd é, até certo onto, uma comunicagao estratégica, isto é, uma narrativa com o propésito tanto de agradar ao entrevistador, quanto de afirmar de- terminado ponto, dentro de um contexto politico complexo que pode estar sendo discutido. Podera ser dificil, se nao impossivel, ob- er uma narrativa de um politico que nao seja uma comunicacio es- atégica. O informante podera tentar defender-se de um conflito, podera colocar-se dentro do conflito, mas sob uma luz favoravel com respeito aos acontecimentos. A interpretacio da EN deve levar em consideragao tais circuns- clas possfveis, inevitaveis na propria situacao da entrevista. Anar- acao em uma EN é uma fungio da situagéo como um todo, e deve interpretada a luz da situacao em estudo, da estratégia presumi- do narrador e das expectativas que o informante atribui ao entre- istador. Independentemente do que o entrevistador diz, 0 infor- ante pode suspeitar de uma agenda oculta. Alternativamente, 0 in- formante pode confiar no entrevistador, nao assumir uma agenda Ita, e fornecer uma auténtica narrativa dos acontecimentos, mas pode, ao mesmo tempo, transformar a entrevista em uma arena Para promover seu ponto de vista, com fins mais amplos do que os da agenda de pesquisa. — 101 — A textura da narrativa depender4, em grande parte, do pré-co- nhecimento que o informante atribui ao entrevistador. Fazer 0 pa- pel de ignorante pode ser um requisito irrealistico da parte do en- trevistador. Cada entrevista exige que o entrevistador se apresente como ignorante, quando na verdade seu conhecimento real esta crescendo de uma entrevista a outra. A credibilidade desta preten- so possui limites, e o conhecimento do entrevistador nao poder permanecer oculto por muito tempo. Sob tais circunstAncias, Witzel (1982) se mostra descrente da afir- macio de que as estruturas de relevancia dos informantes sao revela- das pela narracio. Toda conversagao é guiada por “expectativas de expectativas”. Mesmo em casos onde 0 entreyistador se abstém de formular perguntas e respostas, 0 informante ativo ira lhe contar a historia que ira agradar ou frustrar o entrevistador, ou ira usar 0 en- trevistador para fins que vao além do seu controle. Em todos os ca- sos, as estruturas de relevancia do informante podem permanecer ocultas. A narracio reflete a interpretacao da situagao de entrevista. Um contar historias estratégico nao pode ser descartado. Regras irrealisticas As regras da EN sao formuladas para guiar o entrevistador. Elas siéo construfdas para preservar a espontaneidade do informante em narrar alguns acontecimentos convencionais e problemas em estu- do. A questo principal é se tais regras sao tao titeis quanto preten- dem ser. Novamente Witzel (1982) tem dttvidas se 0 formato prescri- to do “t6pico inicial” é, de fato, aplicavel para qualquer informante. O entrevistador se apresenta como se ele nao soubesse nada sobre 0 tépico em estudo. Os informantes podem ver esta atitude como se fosse um truque, € esta percepcao ira interferir em sua cooperagao. A maneira como 0 entrevistador inicia sua entrevista implica na qualidade da entrevista. Este fato coloca muita énfase no inicio da entrevista. A narragéo podera se tornar um produto da maneira como 0 entrevistador se comporta. A fase de iniciagao é dificil de ser padronizada e se ap6ia totalmente nas habilidades sociais do entre- vistador. Esta sensibilidade do método ao momento inicial pode ser causa de ansiedade e estresse para o entrevistador. Tal fato podera trazer uma dificuldade para a aplicagéo da técnica da EN em um projeto de pesquisa com varios entrevistadores que possuem dife- rentes niveis de habilidades. Outro ponto de critica se refere ao fato — 102 — de que as regras da técnica de EN foram desenvolvidas dentro de campo especifico de estudo, que lida com politicas locais e pes- isa biogrdfica. As regras apresentam sugestdes que dao conta do problema da interacao nestes estudos especificos, e podem nao fun- onar como se pretende em outras circunstancias. Este é um proble- a empirico que deve ser investigado ao se aplicar a EN em diferen- s circunstancias. Pouca pesquisa metodolégica, contudo, foi feita ém da descrigao, ou de uma critica generalizada da técnica. As regras da entrevista narrativa definem um procedimento de ipo ideal, que apenas poucas vezes pode ser conseguido. Elas servem omo um padrao de aspiraco. Na pratica, a EN muitas vezes exige n compromisso entre a narrativa € o questionamento. As narrativas evelam as diversas perspectivas dos informantes sobre acontecimen- os e sobre si mesmos, enquanto que perguntas padronizadas nos pos- sibilitam fazer comparagées diretas percorrendo varias entrevistas so- bre O mesmo assunto. Além disso, uma entrevista pode percorrer va- seqiiéncias de narragéo e subseqiiente questionamento. A intera- 40 entre a narracao e o questionamento pode ocasionalmente diluir s fronteiras entre a EN ea entrevista semi-estruturada. Como afirma ibermas (1991), mais que uma nova forma de entrevista, nés temos una entrevista semi-estruturada enriquecida por narrativas. A ques- a0 que surge, entao, € se a multiplicagao de rétulos para procedi- ntos com entrevista serve para algum propésito. Flick (1998) apro- itou desta incerteza pratica como uma oportunidade para desen- olver a “entrevista episddica” (veja Flick, cap. 5 deste volume) que ode ser uma forma mais realistica de entrevista com elementos nar- ‘os do que a EN no sentido puro de Schiitze. Indicagao diferencial para a entrevista de narrativa As narrativas sao particularmente titeis nos seguintes casos: _ * Projetos que investigam acontecimentos especificos, especial- mente assuntos “quentes”, tais como juncio de corporacées, um projeto de desenvolvimento especifico, ou politicas locais (Schiitze, 1977). * Projetos onde variadas “versées” esto em jogo. Grupos sociais diferentes constroem histérias diferentes, e as maneiras como elas diferem sao cruciais para se apreender a dinamica plena dos acontecimentos. Diversas perspectivas podem realgar um eixo diferente, bem como uma outra seqiiéncia nos acontecimentos — 103— PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM cronolégicos. Além disso, diferenga nas perspectivas pode esta- belecer uma configuragao diferente na selegao dos acontecimen- tos que devem ser inclufdos no conjunto da narrativa. * Projetos que combinem histérias de vida e contextos sécio-his- toricos. Histérias pessoais expressam contextos societais € his- toricos mais amplos, e as narrativas produzidas pelos individu- os sao também constitutivas de fenémenos sécio-histéricos es- pecificos, nos quais as biografias se enrafzam. Narrativas de guerra so clAssicas neste ponto, como sao também as narrati- vas de exilio politico e de perseguigao (Schiitze, 1992). Embora o contar histérias seja uma competéncia universal eas narrativas possam ser usadas sempre que haja uma histéria a ser contada, nem toda situacao social leva 4 produgao de uma narrativa “confidvel”. Um indicador bom e simples é a duragao, ou a auséncia da narrativa central no projeto de pesquisa. Entrevistas muito cur- tas, ou a auséncia de narragéo, podem mostrar o fracasso do méto- do. Bauer (1996) realizou 25 entrevistas narrativas relacionadas a um projeto de desenvolvimento de um software controvertido. De um total de 309 minutos de narracéo, a duragao média das narra- Ges foi de cerca de 12 minutos, com uma escala que ia de 1 a 60 mi- nutos de narra¢4o ininterrupta. Isto mostra que a entrevista narrati- va nao foi igualmente adequada para todos os informantes. Na ver- dade, quanto maior a distancia entre o informante e 0 cerne da agao, menor a entrevista. Envolvimento direto e imediato nas atividades centrais do evento que esta sendo contado parece ser um fator im- portante na produgao de narrativas. Contudo, ceteris paribus, a au- séncia de narrativas pode ser muito significativa. Este 6 0 caso, por exemplo, quando alguns grupos especificos de individuos recusam produzir uma narragao e, ao fazer isso, expressam uma posicao defi- nida em relagao aos acontecimentos (Jovchelovitch, 2000). E também importante levar em consideragio problemas ligados ao desempenho do pesquisador. Ha casos em que a formulagao do t6pico inicial é inadequada e¢ ela nao consegue engajar o contador de histéria. Em tais casos, uma reavaliagao do desempenho do pes- quisador de acordo com as regras da EN pode ajudar a afastar ou su- perar esta fonte de erro. Além disso, existem situagées sociais que podem levar tanto & subprodugio, como a superprodugao de narrativas (Bude, 1985; Rosenthal, 1991; Mitscherlich & Mitscherlich, 1977). Distinguimos — 104 — 4, ENTREVISTA NARRATIVA, © menos trés situag6es que podem levar A subprodugao de narrati- as, isto é, onde nao hd o que contar ou ha pouco, independentemen- e da riqueza da experiéncia. Primeiro, pessoas que passaram por um auma podem nao estar em uma situagao de verbalizar estas expe- iéncias. Do mesmo modo como uma narragao pode ser terapéutica, pode também produzir uma renovagao do sofrimento e da ansie- lade associados com a experiéncia que é narrada. Em segundo lugar, 14 comunidades que mantém uma verdadeira cultura do siléncio, de este € muito apreciado e mais importante que falar. Neste caso, fluxo da narrativa pode ser muito breve, ou mesmo estar ausente. Finalmente, podera haver situagées em que os interesses de um gru- po de pessoas pode militar contra a produgao de histérias. Neste caso, 9 siléncio é privilegiado devido a uma decisao politica de nao dizer ada. Esta pode ser uma estratégia generalizada de defesa, ou pode estar diretamente relacionada a desconfianga no pesquisador. Em relagao a superprodugio de narragao, as seguintes situagSes levem ser levadas em consideragao. Ansiedades neuréticas podem evar a um contar histérias compulsivo e mobilizar uma vivida imagi- acgao com pouca fundamentacgao em acontecimentos reais ou na ex- eriéncia. Esta superproducao pode servir a mecanismos de defesa e a evitar a confrontagdo com os temas reais em jogo. Antropélogos observaram que algumas comunidades chamam os contadores de historia para dizer ao pesquisador o que a comunidade pensa que o esquisador quer ou necessita ouvir. Isto implica algumas vezes a in- vengao de narrativas fantasticas, que mistificam mais que revelam. Todas estas situagdes devem ser cuidadosamente avaliadas pelo esquisador. Algumas narragGes podem deslanchar respostas psico- l6gicas inesperadas que nao sao controlaveis pelo grupo de pesqui adores. Neste caso, como em todas as situagGes de pesquisa, consi- deragées éticas devem estar sempre presentes. andlise de entrevistas narrativas A entrevista narrativa é uma técnica para gerar historias; ela é -aberta quanto aos procedimentos analiticos que seguem a coleta de -dados. A seguir, apresentaremos brevemente trés diferentes proce- dimentos que podem ajudar aos pesquisadores na andlise das hist6- tias coletadas durante a entrevista narrativa: a andlise tematica, a proposta do proprio Schiitze e a andlise estruturalista. — 105 — CA CENTRAL SiBLIO7 Transcrigdo O primeiro passo na andlise de narrativas é a conversao dos da- dos através da transcrigdo das entrevistas gravadas. O nivel de deta- The das transcrig6es depende das finalidades do estudo. O quanto uma transcrig&o implica elementos que estejam além das meras pa- lavras empregadas varia de acordo com o que € exigido da pesquisa. Caracteristicas para-lingitfsticas, tais como o tom da voz ou as pau- sas, so transcritas a fim de que se possa estudar a versao das hist6- rias néo apenas quanto ao seu contetido mas também quanto a sua forma retorica. A transcricdo, por mais cansativa que seja, € util para se ter uma boa apreensio do material, e por mais monétono que o processo de transcric4o possa ser, ele propicia um fluxo de idéias para interpretar o texto. E fortemente recomendado que os pesqui- sadores fagam eles préprios ao menos algumas transcrig6es, sendo que este é concretamente o primeiro passo da anilise. Se a transcri- Cao € feita por alguma outra pessoa, especialmente em um contrato comercial, deve-se ter cuidado para assegurar a qualidade da trans- cricao. A transcrigéo comercial para fins de mercado esta muitas ve- zes abaixo da qualidade que é exigida quando o emprego de lingua- gens especfficas é um tema de anilise. A proposta de Schiitze Schiitze (1977; 1983) prop6e seis passos para analisar narrativas. O primeiro é uma transcrigéo detalhada de alta qualidade do mate- rial verbal. O segundo passo implica uma divisdo do texto em material indexado e nao indexado. As proposigées indexadas tém uma refe- réncia concreta a “quem fez o que, quando, onde e por qué”, en- quanto que proposicdes nao-indexadas vao além dos acontecimen- tos e expressam valores, juizos e toda forma de uma generalizada “sabedoria de vida”. Proposig6es nao indexadas podem ser de dois tipos: descritivas e argumentativas. Descrig6es se referem a como os acontecimentos so sentidos e experienciados, aos valores € opi- nides ligadas a eles, e as coisas usuais e corriqueiras. A argumentagao se refere a legitimacao do que nao é aceito pacificamente na historia eareflexdes em termos de teorias e conceitos gerais sobre os aconte- cimentos. O terceiro passo faz uso de todos os componentes indexa- dos do texto para analisar 0 ordenamento dos acontecimentos para cada individuo, cujo produto Schiitze chama de “trajetérias”. No quarto passo, as dimens6es n4o-indexadas do texto sao investigadas — 106 — como “andlise do conhecimento”. Aquelas opinides, conceitos e teo- vias gerais, reflexdes e divisdes entre o comum e 0 incomum sio a base sobre a qual se reconstroem as teorias operativas. Estas teorias Operativas sao entéo comparadas com elementos da narrativa, pois elas representam 0 auto-entendimento do informante. O quinto passo compreende o agrupamento e a comparacao entre as trajet6- tias individuais. Isto leva ao ultimo passo onde, muitas vezes através de uma derradeira comparagao de casos, trajetdrias individuais so colocadas dentro do contexto e semelhangas sao estabelecidas. Este processo permite a identificacao de trajetérias coletivas. Aniilise temdtica: construindo um referencial de codificagéo Recomenda-se um procedimento gradual de redugao do texto qualitativo (veja, por exemplo, Mayring, 1983). As unidades do tex- to sao progressivamente reduzidas em duas ou trés rodadas de séries de parafrases. Primeiro, passagens inteiras, ou pardgrafos, sio para- fraseados em sentengas sintéticas. Estas sentencas sao posteriormen- te parafraseadas em algumas palavras-chave. Ambas as reducdes operam com generalizacao e condensagao de sentido. Na pratica, o texto é colocado em trés colunas; a primeira contém a transcri¢ao, a segunda contém a primeira redugao, ea terceira coluna contém ape- nas palavras-chave. A partir deste parafrasear, desenvolve-se um sistema de catego- vias com 0 qual todos os textos podem ser, em tiltima andlise, codifi- cados, caso necessario. Primeiramente, sao criadas categorias para cada EN, posteriormente ordenadas em um sistema coerente de ca- tegorizacao geral para todas as ENs do projeto. Um sistema final de categorizacao somente pode ser decidido depois de revisées reitera- das. O produto final constitui uma interpretagdo das entrevistas, juntando estruturas de relevancia dos informantes com as do entre- vistador. A fuséo dos horizontes dos pesquisadores e dos informan- tes é algo que tem a ver com a hermenéutica. O processo de redugao descrito acima pode levar A andlise quan- titativa no sentido da andlise de contetido classica (veja Bauer, cap. 8 deste volume). Uma vez 0 texto codificado, os dados podem também ser estruturados em termos de freqiiéncias que mostram quem disse 0 que, quem disse coisas diferentes e quantas vezes foram ditas. A andlise estatistica para dados categoriais pode entao ser aplicada. A andlise de agrupamento (cluster) podera fornecer tipos de conteti- —107— PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM | dos narrativos. Resultados quantitativos podem ser extensamente ilustrados com citagées das narracées originais. As perspectivas nar- rativas do acontecimento ou problema em estudo podem ser descri- tas e classificadas qualitativa e quantitativamente. A andlise do con- tetido é um enfoque possivel; outro enfoque pode ser classificar ele- mentos formais da histéria. Andlise estruturalista Uma anilise estruturalista de narrativas focaliza os elementos for- mais das narrativas. A andlise opera através de um sistema de combi- nag6es que inclui duas dimensées: uma é formada pelo repert6rio de possiveis historias, do qual qualquer hist6ria acontecida é tima sele- Gao, € a outra se refere 4s combinagées particulares dos elementos da narrativa. Na dimensao paradigmatica, ordenamos todos os possiveis elementos que aparecem nas histérias: acontecimentos, protagonis- tas, testemunhas, situag6es, comegos, fins, crises, conclusdes morais; na dimensiao sintagmitica, estes elementos particulares so organiza- dos em uma seqiiéncia que pode ser comparada através de cada nar- rativa e relacionada a variaveis contextuais. Todo corpus especifico de narrativas sera mapeado nesta estrutura bidimensional. Falando de maneira geral, a andlise de narrativas implica sempre a andlise de aspectos cronolégicos e nao cronoldgicos da histéria. Narrativas sao uma sucessdo de eventos ou episédios que abrangem atores, ages, contextos e espacos temporais. A narracao de eventos € episédios apresenta uma ordem cronolégica e permite uma interpre- tacgao de como o tempo € usado pelos contadores de histéria. Os as- pectos nao cronoldégicos de uma narrativa correspondem a explica- g0es e razdes encontradas por detras dos acontecimentos, aos critérios implicitos nas selegées feitas durante a narrativa, aos valores e jufzos ligados & narracao e a todas as operagées do enredo. Compreender uma historia é captar nao apenas como o desenrolar dos aconteci- mentos € descrito, mas também a rede de relacées e sentidos que daa narrativa sua estrutura como um todo.’ funcao do enredo organizar os episédios em uma hist6ria coerente e significativa. E vital, por isso, identificar o enredo na andlise de narrativas. Abell (1987; 1993) propde uma representacio grafico-tedrica para comparar narrativas. Ela inclui a acdo de parafrasear os relatos em unidades que compreendem contextos, acdes, omissdes e efeitos. Num segundo passo, sao construfdos graficos, ligando atores, agdes — 108 — 4, ENTREVISTA NARRATIVA efeitos no tempo, para representar e para comparar formalmente cursos particulares de agGes. Na verdade, o método se constitui em um formalismo matematico para lidar com dados qualitativos, sem ser necessdrio recorrer a estatistica. Narrativa, realidade, representacao Ha uma série de quest6es que devem ser feitas sobre a relagio entre narrativas e realidade, todas elas referentes 4s conexées entre o discurso e o mundo que esta além dele. Deverfamos considerar toda narrativa como uma “boa” descrigaéo do que esta acontecendo? Deverfamos aceitar todo relato de um contador de hist6ria como va- lido em relagao ao que estamos investigando? E o que dizer de nar- _Tativas que estao claramente separadas da realidade dos aconteci- mentos? Como disse certa vez Castoriadis (1975), ao descrever a Torre Eiffel as pessoas tanto podem dizer “Esta é a Torre Eiffel”, ou “Esta 6 minha av6”. Como pesquisadores sociais, precisamos levar esta diferenca em consideragao. Este debate nao é simples e abrange muitos 4ngulos. Nés pensa- mos que é importante refutar alguns excessos recentes que exagera- ram a autonomia da narrativa, do texto e da interpretacdo, enquan- to minimizavam o mundo objetivo. Mas nés também pensamos que € crucial levar em consideragao a dimensao expressiva de toda pega narrativa, independentemente de sua referéncia ao que acontece na realidade. De fato, as proprias narrativas, mesmo quando produzem distorgao, s4o parte de um mundo de fatos; elas sao factuais como narrativas e assim devem ser consideradas. Mesmo narragoes fantas- ticas sio exemplos disso. A fim de respeitar tanto a dimensio ex- pressiva das narrativas (a representagao do contador de histérias) e o problenia da referéncia a um mundo além deles (a representagao do mundo), nés sugerimos a diviséo no processo de pesquisa em dois momentos, cada um deles respondendo a diferentes exigén- cias. Consideremos 0 caso hipotético em que a Torre Eiffel é descrita como “av6”. Se um informante produz tal descrigao, isto de fato é as- sim, do ponto de vista da pesquisa social, apesar da tarefa do entre- yistador de eliciar o relato e conferi-lo com fidelidade (Blumen- feld-Jones, 1995). No primeiro momento, a tarefa do pesquisador social é escutar a narrativa de um modo desinteressado e reprodu- zi-la com todos os detalhes e consideragées possiveis. Na verdade, extrema fidelidade em reproduzir as narrativas é um dos indicado- — 109 — res de qualidade da entrevista de narrativa. A este primeiro momen- to do processo de pesquisa aplicam-se as proposigées: * A narrativa privilegia a realidade do que é experienciado pelos contadores de histéria: a realidade de uma narrativa refere-se ao que é real para o contador de historia. ¢ As narrativas nao copiam a realidade do mundo fora delas: elas propéem representagGes/interpretagées particulares do mundo. * As narrativas nao estao abertas 4 comprovagao e nao podem ser simplesmente julgadas como verdadeiras ou falsas: elas ex- pressam a verdade de um ponto de vista, de uma situagao es- pecifica no tempo e€ no espago. * As narrativas estaéo sempre inseridas no contexto sécio-histéri- co. Uma voz especifica em uma narrativa somente pode ser compreendida em relagao a um contexto mais amplo: nenhu- ma narrativa pode ser formulada sem tal sistema de referentes. Este, contudo, nao € o fim da histéria. O pesquisador social nao apenas provoca e refere narrativas com o maximo de fidelidade e res- peito possiveis. Num segundo momento, o observador necessita dis- cutir a hist6ria da “av6”, por um lado, e a materialidade da Torre Eif- fel, por outro. Aqui, as narrativas e biografias devem ser situadas em relagao as fungGes que elas possuem para o contador de historia e em referéncia a um mundo além delas. Neste sentido, para o pesquisador social — um ouvinte e um observador — a histéria possui sempre dois lados. Ela tanto representa 0 individuo (ou uma coletividade), como se refere ao mundo além do individuo. Assim como precisamos ter muita sensibilidade para perceber as imaginagGes e distorgdes que configuram toda narrativa humana, precisamos também prestar aten- Gao a materialidade de um mundo de histérias. Como Eco (1992, 43) observou em relagao a tarefa da interpretagao, “se existe algo a ser in- terpretado, a interpretacao deve falar de algo que deve ser encontra- do em algum lugar e, de algum modo, respeitado”. Acreditamos que o mesmo é verdade em uma narrativa nao-ficcional. A pergunta quase obvia que surge desta situagao refere-se a quem estabelece o que é verdade, e como nés sabemos se a histéria é fiel ou distorce os acontecimentos. A resposta est4 totalmente a cargo do pesquisador, que tenta tanto apresentar a narrativa com maxima fi- delidade (no primeiro momento), como organizar informagao adicio- nal de fontes diferentes, para cotejar com material secundario e re- —110— isar a literatura ou documentacéo sobre o acontecimento a ser in- vestigado. Antes de entrar em campo, necessitamos estar equipados om materiais adequados para que possamos compreender e dar sentido as historias que coletamos. Passos da entrevista de narrativa 1. Preparagao. 2. Inicio: comegar gravando e apresentar o tdpico inicial. 38. A narragao central: nao fazer perguntas, apenas encorajamento nao-verbal. 4, Fase de questionamento: apenas quest6es imanentes. 5. Fala conclusiva: parar de gravar e continuar a conversagao infor- mal. 6. Construir um protocolo de mem6rias da fala conclusiva. Referéncias bibliograficas ABELL, P. (1987). The Syntax of Social Life: the Theory and Method of Com- parative Narratives. Oxford: Oxford University Press. — (1993). Some Aspects of Narrative Method, Journal of Mathematical Sociology, 18: 93-134. BARTHES, R. (1993). The Semiotic Challenge. Oxford: Basil Blackwell, p- 95-135. BAUER, M. (1991). Resistance to Change: a Monitor of New Techno- logy, Systems Practice, 4(3): 181-96. — (1995). The Narrative Interview: Comments on a Technique of Qua- litative Data Collection. Papers in Social Research Method — Qualitative series. 1, London School of Economics, Methodology Institute. — (1997) (ed.). Resistance to New Technology: Nuclear Power, Information Technology, Biotechnology. 2"4 edn. Cambridge: Cambridge University Press. BLUMENFELD-JONES, D. (1995). Fidelity as a Criterion for Practising and Evaluating Narrative Inquiry. In: J.A,. HATCH & R. 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