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Ismail Xavier Sertaéo Mar Glauber Rocka e a estética de fome LELAQUISIGAD PROGRAMA, 06 10 MILENIO - CNPq COSACNAIFY 7 Apresentagio 15, Introdugio carfroto 1 23, Barravento:alienagio versus identidade caPiroto 11 55. Contraponto 1: O pagador de promessas © as convencBes do filme clisico 85 Deus ¢0 diabo na terra do sol: as figuras da revolugio capfroto 1v Contraponto 1: O cangaceiro, ou o bandido social como espeticulo cairuio ¥ 183 ConsideragGes sobre a estética da violEncia 47 199. Posfécio Leandro Saraiva 207, Bibliografia geral 213, Sobre o autor 221 Indice onoméstico 223 Filmes citados 225 Ficha técnica dos filmes analisados (ber Roche sign Uo Sha] Gedo Ol Ry em Dus data ra era do sok Apresentaciio ‘Meu intento neste livro, publicado originalmente em 198s, foi tratar de forma mais incsiva uma questlo central na experiéneia do cinema novo: a da relagdo entre seu didlogo com a heranga modernista¢ 0s imperativos de ‘uma militancia de efeito politico imediato na conjuntura dos anos 1960. ‘A demanda gerada pela insergo criativa na reflexio de longo prazo sobre a sociedade e a cultura brasileira era posta em correlagio com uma vontade de intervengao diretana vida politica, antes e mesmo depois do golpe militar de 1964, quando fo vivida em rermos distintos face ao periodo populisa ‘A retomada criativa do modernismo e a pedagogia politica forma- ram, no entanto, uma equagio nem sempre bem resolvida, e 0 enorme saldo positivo do movimento muito deve & sua adogéo do principio de ‘awcoria que definiu — em ntida tensio com as cobrangas pela “corresio” do recado politico urgente ~a forma dos seus melhores filmes, ua estética. Neste sentido, meu propésito foi superar o cardter redutor e excessiva- mente ideolégico do debate em torno de Glauber Rocha, renovar a visiio dos seus filmes pela atenglo a forma, discutindo, em outros termos, 0 sentido politico de sua mise-en-scéne dentro de sua peculiar jungio entre oolhar do documenrarista #0 cerimonial dos atores ~ gesto e palavra.! Era preciso assumir de modo mais radical o reiterado reconheci~ mento do que sempre houve de figurativo em seu cinema, de religioso em '. Quanto a esa tenso enteespagoaberto « mieanicinetetaizant,entendida como central no estilo de Glauber, ver Ismail Xavier, "Glauber Rocha: edi de Phisoir”, in Paulo Paranagus (org), Le Cinéma bd, 1987, 9p. 145-4: Text include no livre de Ismail Nave, Ocinama Brae moderna, 3008, sua “critica da slienagdo”, de contraditrio em sua riquissima encenasio da histéria, Expor 0 modo como o conflito entre distintas temporalida- des ganhava expressio na trama e no estilo, desestabilizando critica da religido presente em seus filmes realizados antes do golpe de 1964. Dai o meu empenho em ressaltar 0 que ha de cireula: e magico no movimento que impulsiona Barravento [1961-62], € 0 que estéimplicado na alegoria da cexperanga de Deus eo diabo na tera do sol (1963-64), filme que oferece um ‘exemplo notavel de composicio do “realismo figural” tao bem explicado por Erich Auerbach em seu clissico Mimesis Foi o ensaistaalemio que me ajudou a entender como conviviam, no plano da forma artstca, o Glauber Ikitor de Marx ¢ 0 Glauber leitor da Biblia, e de que modo o dilaceramento proprio &alegoria moderna se instalava no que parecia ser uma pedagogia feta de certezas. Procurei mostrar, na leitura do filme, sua condicio de obra- sintese capaz de tornar visivel,e artculada, uma concepglo messianica da Revolugdo muito presente na esquerda latino-americana dos anos 6o. Naquela conjuntura, Glauber encarnava o intelectual militante, com uma sensibilidade peculiar, mas era também o zineasta em clarissima sin- toni com a reflexio sobre cinema moderno realzada nos grandes foruns da época. Isto se evidencia em seus filmes e textos, mas de modos distintos, pois vale lembrar que a palavra do cineasta nfo se projeta de forma autom- tica nos filmes. Estes ndo slo apenas produtos da vontade e da ida; sofrem inflexdes vindas das circunstincias e abrigam conflitos, mais ou menos declarados, numa travessia que pode estar cheia de atropelos, como aconte- ceu com Barravento, Neste sentido, a andlise imanente no apenas esclarece a estrurura eos sentidos nela implicados, mas também especifica, com mais rigor, as perguntas que devem orientar uma pesquisa voltada para a géne- se de obra, ou se, para 0 processo de criaglo ede produgio material do filme. Tal pesquisa jd encontrou urna formulagao mais sistemética no caso de Deus €0 diabo, em especial no trabalho recence de Josette Monzani, que analisa as varias versdes do roteiro escrito por Glauber ao longo de anos.* 12. Ver Erich Averboch, Mine 1943. [Ed. brats Mina « mpresntoio de ralidade na tiratara ident 199) 4:Ver Jonette Montani, Génse de Des 0 diabo metre dow 006. Em contrapartda, embora motivo de muitas observagies que ofereceram Na taiz da minha insisténciaestava a convicgo da necessidade de retomar as interpretagDes e discutir os temas mais amplos da estética e da politica dos anos 60 a partir de um contato mais euidadoso com as obras. Sabemos que Glauber Rocha, como outros artistas naquela década, trazia consigo o imperativo da participagdo no processo politico-social, assumindo inteiramente 0 cardter ideolégico do seu trabalho ~ ideol6- ‘gico em sentido forte, de pensamento interessado e vinculado & luta de classes. Afirmava entio 0 desejo de conscientizar o povo, a intengio de revelar 08 mecanismos de exploracao do trabalho inerentes & estruta- +a do pais ¢ a vontade de contribuir para a construgio de uma cultura nacional-popular;linhas de forga que se manifestavam no cinema, na rmiisica, no teatro. Era a forma especifica encontrada por artistas bra- sileiros para expressar 0 seu compromisso histérico e sew alinhamento com as forgas empenhadas na transformagio da sociedade. Diante daquela atmosfera de engajamento, meu propésito foi iden- tticar como, nos filmes analisados, as caracteristicas de imagem e som +e poem como respostas a demandas que vém da esfera do politico e do social, e como também elementos de outra natureza entram no jogo que constitu a obra. > Tive a chance de diset-lo com Maria Rita Calvo, Jodo Alexandre Barbas, Lig Chiapp- ni Moras Leite, Eduardo Peduela Caizal Jean-Claude Bernardeo que me orient nas rmodificagdespostevores. A intervensio para vler ating est introdag, ratcamente refit. No mais stereo torn de minhasconsderagSes no capitals de contaponta para ‘orni-os mais adequados& fungio que tém no conjunt. Nos ceptslos dedicados «Glau ee Aados novos haviam me ajudado a sitar melhor a8 quextdes. Cro te iad mas claro ‘© movimento do text. Nas consideragbes Finis, fa fia a ponte ence Serio Mars Glauber Roche € etic de free Alegre do ubdeersalvimente cinema nov, copies ine ‘a marina, iveo que eva, naquele momenta em elaborsio, A esttca da fore & aqui Alscutda em oposigio a um passdo cinematogriico com o qual els exh em confioy no ‘outro live, Tre em rans [1967] &pomto de parids dentro de um percuso onde anal vo no proceso cultural braslizo, dere 3 seed wn tla que na hava eacrenentel nota « parigrefn onde 2c flimes brasieiros que intervieram de modo tclosio do tropicalis até meados dos anos 7, Cada filme define um modo particular de organizar a experiéncia em discurso, sendo um produto de miiltiplas determinagées. £ comum se dizer que sio redutoras as andlises que reconhecem no filme apenas aquilo que esti na ideologia formulada nos manifestos ou nas entre- vistas do autor. E 0 mesmo é dito das analises que, partindo do filme, saltam com certa pressa de um resumo do enredo para a caracterizagio da mensagem da obra ou da ideologia do autor. Fala-se de associa~ gio mecit ‘a, que nio leva em conta as mediagtes do processo de representagio. Ou seja, 0 modo pelo qual se conta a estria, os meios 4 disposicdo do autor, as limitagbes impostas pelo veiculo usado, as ‘convengdes de linguagem aceitas ou recusadas, a inscrigo ou no em determinado género. Meu objetivo era justamente levar em conta as mediagdes. Para esclarecer como procurei fazé-lo, comento aqui 0 referencial utilizado na lida com o especifco, a0 cinema ou & narrativa como forma geral de representagio. No percurso que vai da textura do filme & interpretagio, procurei cescolher uma categoria descritiva, um aspecto da elaboragao do filme que servisse de baliza para marcar identidades e rupturas. Ao teabalhar com elementos como decupagem, camera na mio, faux raccord, descon- tinuidade, campo-contracampo e som off, organizei a an de uma questio: a do ponto de vista do narrador, Em outros termos, preocupei-me com o “foco narrativo” (foco no sentido de ponto de onde emana, fonte de propagagio): sua caracterizagio nos diferentes filmes ¢ os significados sugeridos pelo comportamento do narrador em cada caso, Perguntei sempre: Como se conta a estoria? Por que os fatos sto dispostos deste ou daquele modo? O que esti implicado na escolha de um certo plano ou movimento de edmera? Por que este enquadra- mento aqui, aquela miisica a? em torno, Na busca de respostas, procurei reduzir 20 minimo 0 apelo a con- ceitos gerais. Nesta introdugdo sinto apenas necesséria uma observagio a respeito da nogio de narrador, embora 0 proprio texto deixe claro 0 seu sentido neste trabalho. Para evitar equivocos, preciso nio confun- dir a figura do narrador, que pertence & obra, e é elemento a ela inter- no, coma figura do autor, sujeito empirico responsiivel pela produgao 6 da obra, seja uma pessoa ou um complexo industrial, elemento exterior 8 obra. Autor e narrador pertencem @ mundos distintos. Este é figura imagindria tanto quanto as personagens e oatros elementos ligados & ficgdo. Isto fica bem nitido quando explicitamente uma das personagens da estéria € a propria figura mediadora que nos dé a conhecer 0 mundo imaginario que emana de palavras impressas ou de imagem-som na sala escura. Machado de Assis, quando esereveu Dom Casmurro, escolheu fazer de Bentinho o narrador da c2téria ¢, nessa cscolha, fez de uma personagem envolvida na ficgio (que tem rome, feigdes e comporta~ mento dentro dela) a figura mediadora. No entanto, mesmo quando “na rmoita”, escondido, o narrador pode ser eara:terizado e, da mesma for~ rma, ndo se confunde com o autor. Seja qual for 0 processo pelo qual se conta a estéria, 0 narrador é figura logicamente necesséria, mediaso pressuposta, em verdade invengao decisiva dos responsiveis pela obra, invengio como outras e que ocupa Iugar fundamental na organizagao do filme, conto ou romance. No cinema corrente, ¢ em certa literatura naturalist a figura do narrador se esconde por trés do seu préprio ato, o qual ele executa com certos cuidados. Nao é palpvel, nao tem rosto, nem nos deixa nehum outro trago que nao seja 0 ato mesmo de narrar. Pelos cuidados que toma, acaba por provocar em nés uma relago muito particular com a Fegdo, ta como se esta se desenvolvesse por si mesma ¢ a mediasio no existisse, tal como se estivéssemos diante de algo tao autdnomo quan- to certos acontecimentos de nosso cotidiano. Mas, sabernos, li no fun~ do, que estamos diante de um jogo de linguagem, de um faz-de-conta com o qual desenvolvemos uma relagio toda especial e que resulta de uma cumplicidade sutil que envolve a todos. Afinal, o jogo da fiesio implica varias metamorfoses, nos dois extremos do processa: prog consumo, A do préprio autor, que se transforma em alguém ou numa entidade que acredita no que conta como se houvesse visto ou estivesse vendo, testemunhando, ¢ esta empenhado em manter o encanto frente 408 ouvintes ow espectadores; estes, por sua ver, tém a sua metamorfo~ se, pois se transformam em entes capazes de “suspender 0 descrédito”, para usar a expressio de Samuel T. Coleridge, e accitar a autenticidade 7 os eventos os mais maravilhosos ou prosaicos, de modo a completar © circuito de cumplicidades necessério 20 faz-de-conta. O narrador essa figura mediadora que resulta da metamorfose do autor, ou da sua invengo, como ditiam alguns, ou da linguagem de seu trabalho, como diriam outros. Num processo inverso, mas de estatuto semelhan- te, como espectadores, acionamos quem ou 0 que dentro de nés esté Aisposto a se envolver no jogo porque precisa da ficgdo, a deseja. Para ilustrar, lembremos 0 exemplo de metamorfose dado por Wolfgang ‘Kayser: a mie ou o pai, ao narrar um conto de fadas, abandona a atitude de adulto para se transformar em alguém que acredita no universo ima- gindrio que a sua propria encenagto caté eriando. H& muita coisa séria implicada nesse jogo que, no momento, des- revo apenas esquematicamente. Fis simulacio geral, seria ingénuo atribuir diretamente a0 autor aquilo que € proprio ao narrador que ele inventa, Se hé algo a “cobrar” de cineas- tase eseritores, 0 sentido de suas invengdes — inclu mos apenas a idéia de que, nessa ‘onarrador—no conjunto de relagdes internas a obra, relagdes que definem a contribui- 0 de cada aspecto para as significagées do filme ou do romance. Em cada caso, o narrador tem certas capacidades e saberes, mas trabalha dentro de certos limites. No cinema, as mediagdes que me levam a fiegao s0 complexas, envolvendo todos os recursos de elabo- ago da imagem e do som. Examinar o trabalho do narrador é mergu- thar dentro do filme para ver como imagem e som se constituem, numa analise imanente que, ao caracterizar os movimentos internos da obra, oferece instrumentos para discussbes de outra ordem, particularmente aquelas que nos levam a0 contexio da produsio do filme e sua relagio com a sociedade. Nessa ordem de idéias, meu estudo dos filmes de Glauber Rocha procura percorrer os meandros da aividade do natrador, investigar em deralle como a mediaglo opera. S20 os pr6prios filmes que permitem ccaracterizé-a. Seja qual foro tipo de producio, independentemente das intengOes de 4 ou », posso examinar os filmes e falar da postura da nat ragdo, de seus cvivério, de seu saber, de sua logica. A obra de ficglo & a invengao de uma estéria e, a0 mesmo tempo, de um modo de narréela 8 Neste trabalho, a andlise de diferentes modos de narrar se articula a consideragdes tematicas particulares, em especial a relagio entre o estilo dos filmes e as formas de representaclo préprias & cultura popular. Ou, ‘mais precisamente, a perspectiva segundo a qual os filmes incorporam. na sua representagdo determinadas formas de consciéncia. A partir de anilise centrada na questdo do “foco narrativo”, tento responder as perguntas: Quais as implicagdes de certo aspecto formal no plano da significagio? Como se concebem os movimentos da consciéncia de seg- ‘mentos especificos — camponeses, pescadores de uma comunidade de origem africana — no interior de uma visio global do processo his- ‘rico? Que estaruto ganha a religido do oprimido? De que forma, em suma, 0 cinema de Glauber encontra seu lugar entre o ciculo da lenda 0 vetor da historia? Capitulo 1 BARRAVENTO: ALIENAGKO VERSUS IDENTIDADE Barravento: alienagao versus identidade A alicnago come parimetro:retomando a questo Logo no inicio da projegio, o lerreiro que introduz Barravento & contun- dente na indicagio de leitura: No litoral da Bahia vivem os nagras puxadores de ‘xaréu', cwjos antepas~ sados vieram escravos da Affica. Permanecem até hoje os cultos os desser afticanos« toto esse povo & dominado por um mistieizmo sngico¢ faralista Accicam a ris © analfabetisme e a exploragao com a passvidade corae- tersica dagusles que esperam o eno divino, ‘lemanjd’éarainka das éguas, «0 etha mae de rect, senkorado mar gue ara, guarda «castigo pscadsres ‘Barravento’ é momento de violénca, quando as coisas da terra mar se transformam, quando no amer, na vide ¢ no meio social ocorrem sibieas ‘mudangas. Tados ox personogens apresentades neste fle ndo tem relogao com pesioas vives ou morta ¢ isto seré apenas mera coincidéncia, Os fatos contudo existem, Barravento foi realiado numa aldeia de pescadores na praia de Buraguinko, alguns guilémetros depois de Itpoan, Bahia. Os pro~ dures agradecem & prefitura municipal de Salvador, ao governo da Behia, «aos proprisirios de Buraguinko ea todos agueles que trnaram posstvis as flmsgens, prncipalmente aos pescadores, a quem este filme & dedicade ‘As declaragdes de muitos criticos ea propria posigdo de Glauber Rocha na época da realizagao do filme nos sugerem uma interpretagio de Barravento que se alinha aos termos do letreiroinicial: 4 Em Barravento enconiramas 0 inicio de um génere, 0 filme negro’ como Trigucirinko Neto, em Bahia de Todos os Santos, deseji um filme de rup- sura formal como objeto de um discurso eitico sobre a miséria das pescadores negros¢ sua passividade mistica.! Assim dizia Glauber em 1963, no Revisdo ertisa do cinema brasileir, Luis Carlos Maciel, por sua ve, observa: Barravento revela« preocupasao fisndamental de Glauber com a alienacao religiosa do povo brasileiro. Nele a erengas religinsas dos pescadores de wna praia da Bahia s20 0 grande obsedculo para a luta de libertagio do jugo econ émico a que extao submerides. Sao as crengas que impedem a rebeliao, Sao las gue impedem a humanizagio? Barthélémy Amengual, em 1973, diz: Ainda em 1962, 0 cinema politico tem idéias simples eclaras:o Bem é a ree, a solidariedade, aconscincia de clases 0 mal éa iracional, areligio, a a isd, resignayao, Barravento termina com a imagem de um farol erigide como simbolo politico: lu, poder e jusiga prometidas aos trabathadores se les se consciensizarem de sua forga ede sua unidade? Em 1977, a0 tentar a descrigio de um percurso do cinema novo frente is formas de representagao popular, eu trazia uma hipétese que camninhava nna mesma direglo: a década de 60, no seu conjunto, corresponderia a0 momento do que se poderia chamar “critica dialética” da cultura popu- lar, marcada pela presenga da categoria da alienagio no centro de sua abordagem da consciéncia das classes dominadas; a década de 70 corres- ponderia a um gradativo deslocamento pelo esforgo de “compreenso 1. Glauber Rocha, Reid erica do cinema Brasil 1965] 200), so. 2 Luis Carlos Maciel, “Diaétia da violencia" in Glauber Rocha eal, Deus €o dado no tera do sol 1965, p20. 5. Darhélémy Amengua, “Glauber Rocha eos caminhos da iserdade”, in Raquel Getber (org), Glaber Roch, (19751973. 8-99 24 antropol6gica”, tornada possivel através de um recuo do cineasta, que resolve por entre parénteses seus valores ~ em alguns casos, a visio arxista do processo social e da ideologia ~ e renuncia a idéia da reli- glosidade popular como alienagio. Abre-se espago para uma politica de adesio que privilegia, nas representagbes dadas, uma positividade quase absoluta, que as torna intocdveis porque testemunho da resisténcia cul- tural frente & dominagio e afirmagao essencial de identidade Barravento € Deus ¢ 0 diabo na terra do sol seriam dignos repre- sentantes da década de 60, Nessa esquematizagio, despontavam como exemplos claros da critica & alienagio pelo misticismo. EO dragao da maldade contra 0 santo guerreiro {196] era apontado como ponto de inflexdo, no caso particular de Glauber. © panorama era mais amplo ¢ localizava o termo final dessa tendéncia & adesao ao popular na pro- posta de Nelson Pereira dos Santos, crstalizada em O amuleto de Ogum [1973-74] (sua versio mais feliz) e Tenda dos milagres [1977] (versio. caricatural e doutrindra). ‘Ao analisar com mais cuidado o filme Barravento, percebi o quanto a leitura marcada pelo contetido de critica & alienagao religiosa era seletiva, podendo apenas dar conta de certos aspectos do enredo e de uma parcela dos didlogos, minimizando os problemas colocados pela composigio da ‘imagem. Ficou clara a presenca de um estilo de montagem que, associado uma utlizaglo particular da cémera ea uma movimentagio coreogeifica das figuras humanas, estabelece relagbes de tal natureza que esta interpre- taglo 6 posta em xeque. Ela nfo dé conta do filme em sua complexidade de percursos ¢ deixa de lado elementos cuja presenga, no apenas episédi- «a, € recorrente a0 longo do filme. Feita essa constatagio, tornou-se dificil assumir Barravento como um discurso univoco sobre a alienagio dos pes- cadores em sua miséria e reduzir 0s elementos de estilo a expresses do temperamento do cineasta, cuja relevancia seria menor ou quase nula nas consideragdes sobre a sua significagao social e politica. Estabelecida uma dlitegio de lenara que procura integrar, em pé de igualdade, como fonte de significagdes os diversos procedimentos presentes no filme, procuro aqui retomar a anise evitando 0 preconceito que opde a0 “eixo” do discurso, via de regra o enredo, os “ornamentos” 35 Recusando essa hierarquizagdo, que deprecia justamente o espe- cifico, procuro um tipo de integragzo diferente daquele proposto por René Gardies no seu livro.t A formalizagéo da anilise na base de um inventério dos eédigos em agdo na obra de Glauber Rocha visa, no caso de Gardies, a um levantamento capaz de identificar uma constelaga0 de procedimentos como foco do sistema textual” caracteristico da obra. ‘Nessa linha, hi um avango pela integracio de procedimentos especii- 5 no corpo da analise, pois eles constituem uma parcela dos eédigos «em agdo, mas a tendéncia a descrigio topol6gica, onde se definem puras recorréncias e seus lugares, deixa a leitura a meio caminho. Compa- +a-se 0s filmes no conjunto ¢ opera-se uma decomposigio que encai- xa todos num tinico engradado, perdendo-se a chance de reconstruir a dindmica de cada filme na sua particularidade. Tornam-se invisiveis as transformages que marcam o trajeto do autor ao longo dos anos e faz~ se um discurso por demais genérico sobre a presenga de referenciais histéricos e miticos, que acabam por fluruar nos filmes. Nao hé uma tentativa de precisar melhor como 0 movimento interno de cada filme define os eritérios e valores que orientam a incorporagio desses ele- ‘mentos da historia, da cultura popular e do mito. Estdo Id apenas como ‘objeto da representasio, ou estio ld para definir a propria perspectiva que preside o discurso sobre o mundo e a sociedade? Estas sio algumas das razSes que me levam a privilegiar a anise individual de cada filme ¢, dentro desse percurso, optar pela considera- ‘920 particular e detalhada de alguns segmentos que assumi serem capa- 2es de condensar os problemas. No caso de Barravento, o segmento a ser tomado como né da discuss € constituido de seis planos e marca a passagem entre duas seqiiéncias, fundamentais do filme. Antes de sua descrigio e anilise, para situé-lo, apresento um retrospecto onde a divisio do filme em sete blocos narra- tivos e sua descricio sumiria jé pressupdem uma selecto e seus critérios 4 René Gardies, Glauber Rock, 1974. [Ba bras: "Glauber Rocha: politica, mit Hnguae gem", Raquel Gesber (org), Glauber Rock, 1977) ‘5 Coneeitopreposto por Chrisian Mets em seu ive Langue cing, 1971, pp. 69-90 26 ‘Ao mesmo tempo, para definir melhor certos tragos de estilo, comento em seguida meu préprio retrospecto para poder chegar mais perto da ima~ ‘gem e som de Barravento ‘Montando e desmontando o esqueleto: tradutor/traidor LOCO K: CHEGADA DE FIRMING, Os pescadores trabalham puxando a rede, enquanto Firmino é visto caminhando na praia, numa montagem que alrerna as imagens do tra~ balho com a aproximagio solitéria do malanéro que volta da cidade. © reencontro de Firmino com sua comunidade de origem gera o dis- curso contra a exploracdo ¢ a permanéncia das condigdes precétias de vvida, Parcela substancial do trabalho da comunidade é apropriada pelo dono da rede, que nio vive na aldeia; enquanto isto se reproduz, os pescadores aceitam passivamente tal condigao, submetendo-se a0 poder despético do Mestre, velho lider que organiza o trabalho, negocia com © dono da rede a partilha aviltante dos peixes ¢ exerce infiuéncia em imaltiplos aspectos da vida da aldeia. O Mestre tem sua lideranga legiti- ‘mada pelo sistema religioso da comunidade. Firmino chega, ¢ 0 acom- panhamos em diferentes diglogos que nos esclarecem sobre suas antigas relagbes ¢ sobre a atual condigio das personagens principais da est6ria Arua, Cota, namorada de Firmino, e Naina —a moga angustiada que gosta de Arud ¢ tem posi¢éo ambigua na comunidade devido 8 sua ori~ ‘gem branca. Cenas de roda de samba e capoeira permeiam essa primeira fase, cujo objetivo é fornecer um retrato da aldeia, povo e paisagem, trabalho e costumes, deixando clara a condiglo de Firmino como figura que vem perturbar a ordem de Buraquinho. LOCO I: FIRMING DESFERE 0 PRIMEIRO ATAQUE CONTRA ARUA Pescador de “corpo fechado”, figura protegida pelos deuses e sob a tutela do Mestre, Aru deve permanecer virgem para conservar sua santidade e 2” estar em condigses de substituir Mestre no fururo, assumindo o poder «© protegendo os pescadores. Este bloco se inicia com a cena noturna em que Firmino deita com Cota na praia; no diflogo ele revela sua revolta contra Arua, prometendo fazer despacho contra o jovem, para acabar com aadoracdo que o cerca. Enquanto isso, no terreiro de candomblé, (08 atabaques maream o ritual de Naina para verificar se ela ¢ filha de emanja. Firmino, apesar da oposigdo de Cota a0 uso do feitigo, pe seu plano em pritica. © despacho nio funciona. Na manha seguinte, Firmiro promete continuar aluta e mudar de ttica, LOCO M. CENTRADO NA QUESTAG DA REDE (© Mestre entra em discussio com o representante do dono da rede a Propésito da queda do rendimento do trabalho, o que diminui a cota do patrdo; as explicagBes que fornece nao convencem o representante ¢ (© Meste termina por renunciar & sua reivindica¢do por uma rede nova, Firmino aproveita a ocasizo para fazer novo discurso contra a explora~ so, ¢ Arua, oscilante, nfo traduz em ago sua discordincia para com 0 Mestre, Acata a decisio de remendar a rede, 0 que é feito com paciéncia pelos pescadores. No entanto, Firmino aproveita a noite para corté-la danifica-la de vez. Cota 0 surpreende no ato de sabotagem ¢ ele dis- cursa sobre a condigdo dos negros desde a vinda da Africa reiterando a nevessidade de mudanga. No dia seguinte, os pescadores se véem des- providos de seu instrumento de trabalho ¢ os representantes do patrio vvém buscar a rede inti. Em siléncio, todos assistem & retirada. Fir- ‘ino agita novamente, incitando & resisténcia e acusando o pessoal de covarde. Isto causa confronto com Arua, mas a intervengio dos pesea- dores impede o conflto, O Mestre define que podem pescar sem a rede, como st fazia nos velhos tempos. BLOCO WV: A COMUNIDADE REVIVE SEUS MITOS. Sem a rede, os pescadores ndo vio para o mar. Ha um tempo morto, hhiato pera recordagdes e lamentos frente & miséria geral, no sertio seco 28 no litoral. Homens e mulheres, em rodas, contam estérias dos velhos tempos, da pesca sem rede, do barravento. Nesse momento, somos informados de algumas tradigdes ¢ lendas da comunidade que explicam melhor seus valores e 0 papel de algumas personagens na sua vida. Uma velha conta a hist6ria da mae de Naina. A posigio de Arua no sistema simbélico dos pescadores fica mais clara. Em conversa com Chico, seu. amigo, Arua comenta sua prépria condigo e demonstra influéncia dos discursos de Firmino numa fala confusa, Isto ndo 0 impede de assumir 0 papel de protetor da pesca, cumprindo as expectativas da comunidade & se langando no mar, sozinho, para buscar o peixe, na jangada e sem rede. Arui é bem-sucedido e sua volta é festejada pela aldeia, Os pescadores saem para o mar, sentindo a proteglo e a forga de Arua. A movimen- tagio das jangadas e dos remos, sob os olhates das familias, marca um momento de integragao feliz.da comunidade com sua tradigio. Firmino resolve acabar com essa “mistifcacio” e convence Cota a seduzir Arua antes que seja tarde. LOCO V: A PROFANAGAO DE ARUA SE CONSUMA, 1Na praia, Cota aproveita a noite para banhar-se nua no mar, exibindo- se ostensivamente para Arua, Este ndo resiste & seducdo, aceita a sua sexualidade ¢ viola os preceitos que, segundo a {&, garantem o seu poder sobrenatural. Paralelamente, no terreiro, uma nova fungao da continuidade aos rituais que envolvem os varios estagios de preparacio de Naina. Ela é filha de lemanja e a mie-de-santo determinou que ela deve fazer um ano de isolamento na camarinha. Os detalhes de sangue do ritual se alternam com o encontro sexual na praia, nur processo de intensificagio dramtica, Na manba seguinte, Arua acorda, s6 € sereno, na praia tranqiila, LOCO Vi: BARRAVENTO S€ CONSUMA, Deflagra-se a tempestade sempre temida pela comunidade. Seu Vicente, pai branco de Naina, esta no mar. Arua e Chico tentam salvé-lo, Cota 39 corre pela praia ¢, em meio & convulsio geral, morre afogada em cir- cunstincias nada clara. A natureza se acalma e Aru voltas6, informando que Chico e seu Vicente esto mortos. Ele néo acredita mais em seus Poderes sobrenaturais; assume-se definitivamente como homem, fali- vel como os outros. Firminc agita novamente c Arud investe eonira ele No duelo, Firmino 0 derrota, mas pede & comunidade que siga Arui, 0 novo lider que tem nova consciéncia, e abandone a obedincia ao Mes- tre, Dado seu tiltimo recado, Firmino desaparece. BLOCO Vi DESENLACE, Em alongada seqUéncia notuma, acompanhamos 0 cortejo finebre na des- Pedlida a Chico, até o amanhever. Arua assume o discurso de Firmino con= trao Mestre. Este procuraisoli-lo da comunidade, Naina tem seus cabelos cortados e esté quase pronta para o ano dedicado a lemanjé. As mécs-de- santo comentam que sua dedicagio pode salvar Arua. © casal se encontra na praia e, a0 se despedir, Arua promete voltar depois de trabalhar um ‘tempo na cidade. Diz que Firmino rem razo; 28 coisas devem muda. Faz planos de comprar uma nova rede, “para consertar a nossa vida e ade todo mundo”. Garante a Naina que ela nao esta s6, podendo fcar um ano na ‘caminhada religiosa para depois reencontré-lo. Ao amanhecer, Arua se vay passando pelo mesmo farol que marcara a chegada de Firmino. Esse retrospecto traduz.o desenvolvimento geral da est6ria e seleciona ‘lgumas indicagdes sobre didlogos ¢ combinagées de imagens que per- ‘item avangar certs interpretagoes. Podemos, a partir dele, perceber a tasdo basica do filme e seu desenvolvimento, marcado pelo trindmio: «quiliério —inicial 8 vida da comunidade antes da chegada de Firmino; desepuilibrio — causado pela presenga de Firmino e sua campanha sub- versiva; nove epuildbrio ae final ~ comunidad permanece nas mesmes condigéea, tendo o esforyu dle Firmino resultado na transformagio de ‘Arai, que vai para a cidade, tel eomo ele um dia o fzera Dentro da evolugdo dos episédios, essa triade pode ser detecta- da em escala menor, comandando as transformagdes do enredo. Por 30 exemplo, Firmino cria um problema com a danificasao da rede e as ten- sdes geradas pela sua iniciativa sio resolvidas na palavra de ordem do Mestre: “Pescaremos sem rede, como antes”; quando Arua assume seu papel ¢ a comunidade se ajusta & palavra de ordem do Mestre, traba- Ihando segundo a tradigSo, & outra ver. Firmino quem toma a iniciativa para gerar nova ruptura do equilibri, insistindo junto a Cota para que seduza Arua. Nessa configuragao geral, fica nitido o papel de Firmino como ele- ‘mento motor das transformagoes ¢ fonte dos desafios que pOem as per- sonagens em movimento. Se é ele quem empurra a est6ria, no admira ‘que seu discurso venha a primeiro plano. A sua dentincia tem como alvo 4 religio, acusada de ser um obstéculo & tomada de consciéncia ¢ rei- vindicagdo de direitos por parte dos pescadores. Ele procura firmar sta lideranga, fazer-se ouvir, mas sua atuagao junto & comunidade é proble- mitica, num trajeto de isolamentos e fracassos que torna seu método questionével.' O maior efeito de sua pregagio se exerce sobre Arua, seu adversério, mas a andlise de Jean-Claude Bernardet jé nos chamou a atencio para a repetico ai envolvida: quando toma consciéncia de que é preciso mudar, quando assume um discurso progressista, Arua também se isola, Essa identidade de situagio frente a Firmino nio se evidencia apenas no nivel do enredo, pois ao abandonar Buraqui- rnho numa atirude pessoal, Arua deixa a pergunta: voltard algum dia para completar a repetigéo? Ela se faz. presente na propria forma da narragio. Ao longo do filme, os discursos de Firmino assumem uma impostagio teatral-didatica na mire-en-scéne e 0 enquadramento 0 isola dos pescadores. Discursa praticamente para a ciimera e encontra seus couvintes numa suposta platéia fora do mundo de Buraquinho. Quando ‘Arua, no final, esboga a mesma postura doutringria diante dos pesca- dores, o enquadramento também 0 isola e pe em suspenso sua figura, filmada em ligeiro contre-plongée (cimera baixa), de modo a recortar 0 céu chapado ao fundo. 1. Retomo aqui snlise js desenvovida por Jeso-Claude Bernacdet, in sil em tmpo de nea: eso sobre icra brasil de 1988 «195, [1967] 2007, 7581 3 Sem considerar essa transformagio pessoal de Aru, a comunidade, ‘do possuindo quase nenhum contato com o exterior e nao integrada em processos sociais mais amplos, reitera os seus mecanismos tradi- cionais de sobrevivencia, vida cultural e relagdes internas de poder. ‘Seu isolamento sé ndo & absoluto por forga de dois fatores: primeiro, as migragdes em ambos os sentidos ~ ha os pescadores que foram serta- nejos ¢ Jamentam as condigbes precérias no sertio e na cidade, onde 4 vida é tio rim quanto a da pesca, e hi casos especiais, como os de Firmino ¢ Arua segundo, o arrendamento da rede, que coloca a forga de trabalho dos seus habitantes a servigo dos comerciantes da cidade, fato que ndo melhora suas condigdes de vida, No desenvol- vvimento do filme, hd, de um lado, a revelagio elara do mecanismo de exploragio, o que da legitimidade a certos discursos de Fitmino e nos prope a transformagdo da consciéncia de Arua como dado positivo, progressista, porque obedece aos imperativos da mudanga solicitada pelas condigdes miseréveis expostas ao longo do filme. De outro, ha uma série de vaivéns no jogo de relagbes e na propria agdo do malan- dro da cidade que torna problemética a sua posigao efetiva diante dos valores religiosos da comunidade. Se nao tem fé, por que recorre a0 como puniglo dos céus por cla ter seduzido Joaquim, jovem euja pesiglo no sistema religioso da comunidade era similar & de Arua no presente, Natrada essa hist6ria no loco tv, é notavel sua repetisio na trajetéria de Cota, nos blocos v e vt Nesse particular, afego de Barravento ccmporta-se segundo o modelo das repeticdes cilicas, onde o presente segue uma logicajé estabelecida pelo sistema simbélico. ‘Como se nao bastassem tais ressonncias de ordem mitica, hé algo mais no arranjo dos acontecimentos para marcar a presenca de deter- ‘minagbes que caminham na diregio de minha leita do segmento que tomei como detalhe deflagrador da discussdo. Volto agora minha aten- so novamente para Firmino. Primeiro, para acentuar aspectos mais Gerais do tratamento a ele dedicado pela narragio. Em seguida, para Jembrar seu comportamento na vizinhan¢s imediata dos Seis planos que antecedem o barravento, A passagem de Firmino por Buraquinho constitui o micleo da est6= tia; € seu principal elemento motor. Em termos da religiéo, Firmino é lum auténtico Exu, Desde o primeiro momento em que reencontra sua aldeia natal até seu desaparecimento de cena, ele tem seu comportamen- to marcado pela constante militincia. Ao sew estilo, agita sempre, tece suas tramas e faz seus discursos a qualquer hora, como se tivesse uma missio a cumprir sem descanso e no pudesse incluir nada mais em sua relagdo com os pescadores. Essa idéia de missio a cumprir, que tende a reduzir sua figura & fungdo de portador de mensagens dentro do filme, if fica esbogada na forma de sua chegada. Vindo de tris do farol, Fir- ino caminha soltario e, quando cai em meio 20 grupo de pescadotes, ji inicia a falagio. Os dados do seu passado ~ rancores antigos contra Arui, a relagdo com Cota, a vida na cidade, aqui e ali indiretamente referida ~ Ihe conferem uma espessura individual e 0 identificam como Pessoa. Mas, 4 medida que o filme se deservolve, essa dimenslo vai se dissolvendo e, a0 final, Firmino desaparece literalmente. Encerrada a tarefa no duelo com Arua e dado o silkime reeado para os pescadores, ele some, depois de caminhar em diregio is pedras. O plano geral do 6 ‘mar e dos recifes que marca a passagem do bloco v1 para o vit se insere justamente af, pois nele Firmino j nao aparece. Na préxima sequién- «ia, temos as seguintes cenas encadeadas: a conversa sobre o futuro de ‘Aru e de Naina, 0 enterro para o morto ~ 0 peseador Chico, vitima do barravento, 0 efeito dos acontecimentos no rosto triste do Mestre. Ha luma nogo de continuidade que se insinua nos ritos da aldeia, Enfim, a vida continua. Quanto a Firmino, ocorre um completo siléncio. Se no inicio ainda tem um passado como todo mundo, no final ele ndo tem futuro. Quando abandona a cena, apaga, s6 de:xando vestigios. Tudo sugere a metifora e nio hi como nao dizer: Firmino é um barravento. No acontecer abrupto e no dissolver. & presenga convulsa e, de repente, ndo é nada, Nesse contexto, no surpreendem certos detalhes de sua ago na vvizinhanga do barravento propriamente dito. Antes que se prenuncie acontecimento, Firmino engana seu Vicente, pai de Naina, ¢ faz 0 velho sair para © mar, acenando com um suposto chamado de lemanjé. Ele reafirma, nessa armadilha, o papel de orquestrador que assume durante toda a seqiléncia. Nés 0 vimos conspirar e depois vigiar o banho de ‘Cota no mar em planos bem marcados pela trifha sonora: & num desses planos de Firmino que se inicia 0 eanto que vai pontuar a relagio de (Cota e Arua, no paralelismo com os rituais do terreiro. Pois bem, a cena em que Firmino engana seu Vicente & tiltima dessa seqiiéncia norurna, sendo logo seguida pelo plano geral de Arua na praia, 0 primeiro do segmento escolhido para anilise. Estabelecida a passagem para o bar- ravento, a primeira imagem ap6s 0 plano do eét, 0 tiltimo do segmento de transigdo é novamente de Firmino: em plano americana, ele grita: “Seu Vicente est no mar”, Seu alarme encontra resposta na aparic20, de Chico, que sai de uma palhoga meio sem rumo numa movimentacao afobada e um tanto quanto estranha para quem sempre viveu na aldeia, & Firmino quem intercepta seu caminho, orienta sua corrida eo empurra, na diregdo da jangada e do mar, para que Chico, seguido de Arua, tente salvar o velho, No mar, Chico encontra a morte e Arua tem a evidéncia dos seus limites huumanos. Se a tempestade éa circunstncia imediata da tragédia, nao hi diivida de que & Firmino quem empurra Chico para a ‘morte, assim como o fizera com seu Vicente, numa atitude que supde ‘uma sintonia com o barravento, antes mesmo de qualquer aniincio da atmosfera esse episédio fundamental, fica patente uma coordenag3o onde @ personagem faz um dueto com as forgas da natureza. A ameaga de Fir~ mino se cumpre porque dessa vez. a natureza (0 cosmos) esta do seu lado, sendo significativo que tal acontega somente depois da transgres- so, depois de Arua desrespeitar a regra basica que sustenta 0 encan- to que 0 cerca, Cumprida essa primeira etapa, Firmino consolida sua vvitéria frente a Arai no confronto direto quando, apés 0 barravento, assume um duelo que evitara em momentos anteriores do filme. Nesse duelo, a narragio se organiza de modo a compor uma moldura franca~ ‘mente teatral que desnaturaliza 0 evento ¢ o inscreve num jogo simbélico. enfrentamento se dé como rito de atualizagdo de antagonismos extra- pessoais, antagonismos de forgas que as personagens podem representar, ‘mas que ulrapassam o nivel do aqui e agora humano e social. O cariter da representagio é dado logo no inicio da luta pela coreografiae pelas imprecagdes que marcam a aproximagio dos dois em vetores opostos; é sustentado pelo estilo do gesto da capoeira e pela trilha sonora do berimbau, ¢ reafirmado pela atinude de Firmino apés a vit6ria. Junto a0 adversério, dé o iltimo recado e termina por grtar direto para a cime- 1a; levanta-se, firma na areia a langa da vit6ria e retira-se com passos cadenciados, como que iberto, para desaparecer. ‘Tal conjugagdo de elementos, longe de acumular evidéncias que fornegam um suporte para a critica aos equivocos da consciéncia reli- ‘tiosa, faz justamente o oposto. Na verdade, o desenvolvimento do fil ‘me € 08 procedimentos especificos da narragio nos colocam diante de uma disposigdo de situagdes que faz do sistema religioso dos pesca- dores uma boa, seno a melhor, explicagéo para a légiea dos fatos. Quando estabeleci a hipstese da equivaléncia entre os seis planos des- critos ¢ 0 enunciado lingtifstico “no corpo sexuado de Arua esté a raiz do barravento”, atribui ao narrador uma atitude de adesio aos valores ‘eligiosos das personagens, numa reiteragdo da propria eficdcia de suas cexplicagdes magicas. Observando outras seqiiéncias e procedimentos 8 narrativos, creio ter acumulado argumentos para demonstrar que tal leitura é plausivel, faz sentido e marca a coeréncia desse segmento com uma série integrada de elementos presentes na obra. ‘A convivéncia de contrérios: a ambivaléncia na estrutura ‘Ao apontar as relagdes de coeréneia, tomo o cuidado de particularizar. Prefiro nao me referir & relagio entre parte (segmento analisado) ¢ todo (Glme tomado em sua estrutura), mas & selagio entie paste ¢ asgectos fundamentais do todo (a série articulada de elementos que reforgam a interpretagio proposta). Isto porque, como jé explcite, existem aspec- tos desse mesmo todo que nio se encaixam nessa diregdo de leiturs, mas afirmam justamente o aspecto alienante dessas mesmas representagoes ‘que recebem a adesio do narrador nos momentos em que o filme se ‘organiza conforme a visio de mundo dos pescadores. A narragio em Barravento oscila, mais até do que Firmino. No seu estilo convulso, adere ese afasta do objeto do seu discurso, num movimento que torna ambiguos os valores que, em tiltima instincia, a orientam, assim como torna opacos certos episédios de sua est6ria. Diante de seus desequili~ brios, 56 umta interpretagao altamente seletiva é capaz de privilegiar 0 que ha nela de critica externa a cosmovisio dos pescadores. Hi, inega- velmente, uma postura de franco ataque & figura do Mestre, lider des- pético que tem seu poder legitimado pela representagio religiosa. No entanto, esta, enquanto manifestagio coletiva, s6 recebe os elogios celebragdes de uma narragdo que, no seu modo de trabalhar imagem e som, mais de uma vez confirma a sua validade explicativa frente a0 mundo. Hé, sem divida, uma convivéncia entre religiao e miséria que desgasta essas crengas aos ollios urbano-industriais. Diante do visto, clas parecem ineficazes para trazer a felicidade & aldeia. Mas, se os pes~ cadores se queixam, em dado momento, e nos levam a esperar ummovi mento subseqiiente de raciocinio que implique a anslise do que esté na raiz de sua miséria, no momento seguinte vem a explosio de Felicidade, ‘ ostentago de uma tal coesio interna e harmonia com a natureza, que ” faz com que suspendamos o juizo e recolhamos nosso ponto de vista, descabido ealheio 20 universo da tela. ‘Se hé um tempo que corre em linha reta, expresso na rede que vem da cidade, na acumulacio dos exploradores e na pregagio de Firmino que atinge Arua, ha também um tempo circular, de repeticao indefinida, expresso nas reprodusdes das lendas, na regularidade dos rituais eno proprio jogo de compensagdes, que faz da integracdo de Naina no sis- tema celigioso a contrapartida da perda de Aruf, que se desgarra para vviver a histéria. Esse jogo de compensagies se evidencia no desenvol- vimento geral do filme, pela simetria bem precisa entre os dois movi= ‘mentos — de exilio, no caso de Arua, e de integracio, no de Naina, também é claro na montagem paralela que associa 0s dois fatos decisi- vvos desses trajetos cruzados: a profanagdo de Arud eos rtuais de purifi- casio de Naina no terreiro, Essa presenga da circularidade manifesta-se, inclusive, no desligamento de Arua ao final, sugerida na imagem do farol que dera origem a figura de Firmino. Se, numa diresdo de leitura, © farol é luz e conota desalienasdo e promessa de liberdade, noutra ele ¢instincia de repetigio ese insere nessa rede de elementos que sugere a circularidade de tudo, Se Arud repete Firmino,talvez refaga 0 percurso de volta, cidade-aldeia, para agir como ele, que assume o discurso da Politica ¢ da consciéneia transformadora enquanto tece uma pratica que o-envolve no sageado, Ha, em Berravento, um movimento descentrado, Na sua textura de imagem e som, nas ages das personagens, nas intervengdes da nature- ‘a, nos deparamos com relagdes especificas que marcam um percurso nada univoco em seu foco: uma anslise do exterior da comunidade e sua alienasao integra, 4 sua pr6pria estrutura, uma organizagio do mundo natural e social que parte dos valores e sintoniza com as representagiies ‘que emanam desta comunidade e de sua religido. © fundamental nessa superposicio de perspectivas é a impossibi- lidade de separar 0s focos contraditdrios e localiza-los em diferentes niveis do discurso, cada nivel abrigando homogeneamente um dos polos da contradicao. Nao hd, por exemplo, a separacio entre o nivel “mais pro- fando” do enredo ~ iluminista, desenvolvimentista — e o nivel “mais. 50 ‘epidérmico” das imagens, movimentos de camera e batuques ~ migico, religioso. Se, reteradamente, caracterizei o discurso de Barravento como desequilibrado, convulso, tais desajeitos néo sio propriedade exclusiva de um modo de montar, sonorizar, movimentar a cimera ou 0s atores; © enredo é também seu lugar. Em ousras palaveas, quero evitar a idéia de que existe uma intengao racional que se manifesta no esqueleto da estéria, mais consciente e controlivel, contraposta & expressio de dis- posicdes inconscientes, descontroladas e irracionais, na textura de ima- gem e som. Quero sublinhar exatamente o oposto: é todo o filme que se contorce para que nele desfil a oscilacZo entre os valores da identidade cultural —solo tradicional da reconcliaglo, da permanéncia e da coesio — £05 valores da consciéncia de classe — solo do confito, da transforma- 0, da luta politica contra a exploragao do trabalho. Do ponto de vista dos pescadores de Buraquinho, Arua, depois de Firmino, se aliena porque se desgarra da comunidade, separando-se do ‘mito e da natureza para se inserir no tempo do outro, o branco, dono a rede. Do ponto de vista do outro, € a comunidade que se aliena na teligido, € 0 movimento de Arud em direcio & cidade € uma promes- sa de salvacdo de quem emerge para a lucidez e encara um mundo em sransformasio. Barravento, filme, &a equagio irresolivel que confronta

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