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Live 17/08/2021

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NEGRA


Há tempos se estuda a violência de gênero e as questões que a tangenciam, como o racismo, o
elitismo, as violações físicas e simbólicas, bem como as agressões virtuais. O passo inicial para
entender tudo isso é desmistificar explicações simplistas que foram naturalizadas com o tempo.

As pesquisas sociais constatam que é por meio da classificação em gêneros que as diferenças
biológicas entre seres humanos tendem a ser organizadas. Também explicam que a tipificação
heteronormativa homem/mulher consolidou no senso comum – distorcido pelas opressões
estruturais – a ideia de oposição entre os gêneros, o que serviu aos homens para estabelecer
uma hierarquia e concentrar poder em suas mãos, explorando as mulheres.

A mulher negra nasce com dupla carga de inferioridade em relação ao mundo masculino, que é
também hegemonicamente controlado por brancos. Se ela for pobre, então, essa mulher será
carregada para o fundo da hierarquia social, pois, no sistema capitalista, como se sabe, o poder
se institui não só pela opressão racial e de gênero, mas sobretudo pelo controle da riqueza.

As relações entre mulheres e homens é estabelecida na forma de antagonismo, em que a mulher


é não apenas considerada um ente inferior, mas está sempre relegada à categoria de outro, ou
seja, do que é diferente, com conotação negativa. É a violência que garante a fixidez dos papéis
e comunica que não há lugar para divergência na organização patriarcal, masculina, colonial,
racial e classista. Nesse contexto, a mulher negra é o outro do outro, como definiu a escritora
portuguesa Grada Kilomba, e a violência exercida sobre a mulher negra para assegurar sua
submissão é ainda maior. Essa situação não é vivida sem resistência, seja das mulheres em geral,
seja da mulher negra ou não branca, o que acaba por desencadear mais violência, como
reafirmação do poder masculino.

Mais de um terço dos estados do país não divulga a raça das mulheres vítimas de violência. E,
mesmo entre os que divulgam, os dados apresentam falhas, já que, em boa parte, o campo
aparece como “não informada”.

Considerando apenas os dados disponibilizados de forma completa, os números apontam que


cerca de 75% das mulheres assassinadas no primeiro semestre deste ano no Brasil são negras.
O percentual diminui para quase 50%, no entanto, do total de vítimas de agressões cometidas
por companheiros em casa e estupros.

Se a desigualdade de gênero e a gramática extremamente violenta que permeiam as relações


sociais no Brasil já não fossem uma mistura extremamente perversa que marca o cotidiano das
mulheres, este quadro é agravado por uma variável fundamental para compreendermos os
altos índices de violência contra a mulher hoje: o racismo.

DADOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NEGRA:

• 3 EM CADA 4 MULHERES ASSASSINADAS


• METADE DAS VÍTIMAS DE ESTUPRO
• 3 EM CADA 5 MULHERES MORTAS POR FEMINICÍDIO
• METADE DAS CRIANÇAS E ADOLSCENTES VÍTIMAS DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL
• METADE DAS MULHERES VÍTIMAS DE LESÃO CORPORAL EM DECORRÊNCIA DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
• Os dados revelam que:

• 10 estados não divulgam os dados de forma completa (sete não apresentam nenhuma
informação sobre raça e três têm apenas números parciais)
• em mais da metade dos casos de quatro dos cinco crimes pesquisados não consta a
raça (seja porque ela não foi divulgada, seja porque o campo aparece como ‘não
informada’)
• dos 889 homicídios com a raça informada, 650 (73%) foram cometidos contra
mulheres negras
• no caso dos feminicídios, as mulheres negras representam 60% do total (198 dos 333
crimes em que a raça está disponível)
• já nos casos de lesão corporal, as negras compõem 51% das vítimas em que a raça é
informada
• o percentual das mulheres negras vítimas de estupro é de 52% (1.814 de 3.472
registros)

Há diferenças significativas nos índices de vitimização por agressão e por assédio entre as
variáveis idade, instrução, renda familiar mensal, classe econômica, raça/cor. Quando falamos
das violências mais “sutis”, como as ofensas verbais e os assédios, o índice é mais alto entre as
mais jovens (70%) que entre as mais velhas (10%), entre as mais instruídas (52%) que entre as
menos instruídas (21%), entre as mais ricas (52%) que entre as mais pobres (37%), entre as que
pertencem às classes A/B (49%) que entre as que pertencem às classes D/E (34%), entre as
negras – pardas e pretas – (45%) que entre as brancas (35%) e entre as moradoras de regiões
metropolitanas (48%) que entre as moradoras do interior (35%).

A socióloga e consultora Ana Paula Portella também afirma que entender os perfis raciais é
essencial.

“O Brasil é um país de maioria negra, com 56% da população preta ou parda. E a gente tem um
impacto imensamente desproporcional da violência, assim como temos de outras
vulnerabilidades, sobre essa população negra”, diz Portella.

“Então é essencial que, em qualquer análise que se faça, procuremos verificar como o problema
se apresenta para a população branca e para a população negra.”

Os contextos de violência entre mulheres brancas e negras é diferente, segundo as especialistas,


por causa do racismo institucional e estrutural da sociedade.

“Nós terminamos por formular políticas pretensamente universais, que iriam atender a todas as
mulheres, mas, na verdade, terminamos atendendo só as mulheres brancas. Isso segue
reforçando e reproduzindo a vulnerabilidade das mulheres negras, porque não há políticas
específicas voltadas para as necessidades delas e seus riscos específicos”, diz Portella.

Por isso, a transparência e a divulgação destas informações raciais são tão importantes. “Se você
não tem evidências, não comprova, não diagnostica e não pode exigir políticas de correção para
essas barreiras”.
Isabela Sobral e Juliana Martins, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, concordam. “A
ausência dessa informação sugere uma cegueira institucional por parte das secretarias de
Segurança Pública. Se não conseguimos ver qual o problema, não conseguimos enfrentá-lo”,
dizem. “Que políticas públicas são essas que protegem apenas parte das vidas que devem ser
preservadas?”

As dificuldades, porém, não são poucas. Além da não divulgação dos dados, a falta de
padronização chama a atenção. Há casos em que “albino” foi considerado uma raça, por
exemplo, sendo que o albinismo é uma doença, e não uma categoria racial.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística trabalha com as seguintes opções: branca, preta,
parda, indígena ou amarela.

A maioria dos estados que não divulgaram os dados afirma que, ou os dados não são
preenchidos nos boletins de ocorrência, ou os sistemas que coletam as informações
consolidados não têm parâmetros para selecionar os dados específicos de raça.

Mesmo com falhas, os dados disponíveis de raça mostram um lado já conhecido dos indicadores
de violência no país: a maior parte das mulheres mortas é negra.

Dos 889 casos de homicídios dolosos que apresentam, de fato, informações sobre raça, 650
(73%) envolvem mulheres pardas ou pretas. Segundo classificação do IBGE, juntos, pretos e
pardos constituem os negros.

Segundo a pesquisadora Jackeline Romio, isso não significa que há, de fato, menos mulheres
negras sendo agredidas ou estupradas, mas que as mulheres negras estão denunciando menos
que as brancas.

“A gente deve levar em consideração que o dado de mortalidade é o mais robusto de todos. Ele
é a ponta do iceberg, pois, até chegar na morte, outros fatos violentos aconteceram antes”, diz
Romio. “Então, se o dado da morte aponta mais mulher negra, a gente desconfia do subregistro
dos outros crimes, que apontam menos. A mulher negra tem mais dificuldade em notificar.”

A pesquisadora lembra que o crime de homicídio tem o registro obrigatório e “duplo”, já que é
contabilizado nas delegacias e nos sistemas de segurança pública através do boletim de
ocorrência e nos hospitais e nos dados de saúde através do atestado de óbito.

Já os casos de agressões e estupros dependem das denúncias das próprias vítimas. Por isso,
sofrem mais com os efeitos da subnotificação.

“As mulheres negras são mais pobres, moram em áreas mais precárias, mais distantes da rede
de atendimento. Têm menos recursos financeiros para procurar ajuda, para conseguir um carro,
um transporte, e têm redes de apoio menores”, diz Portella.

“Quando chegam a esses serviços, elas enfrentam um racismo institucional. Ou seja, nem sempre
são ouvidas, nem sempre são respeitadas, nem sempre a sua queixa é levada a sério. Isso
termina desestimulando essas mulheres a fazerem uma denúncia e procurar ajuda na rede
institucional."

Além disso, o atual contexto do país colabora com a falta de denúncias, segundo as especialistas.

“A gente está em um contexto de pandemia e fechamento parcial dos serviços públicos que
resultam em uma barreira institucional para que a mulher consiga fazer essas queixas e
denúncias. Tem a ver também com transporte, com o funcionamento das instituições e dos
próprios fóruns e da Justiça”, afirma Romio.

“As instituições fecharam, mas as ocorrências continuam. Isso causa subnotificação e gera esse
‘delay’ entre o número oficial e a realidade vivida pelas mulheres”, diz Jackeline Romio,
pesquisadora da USP.

Estes indicadores podem ser explicados por uma maior atenção ao tema entre mais jovens e
mais instruídas, que interpretam como violência mais situações do que as mais velhas e menos
escolarizadas. Mas revelam também o quão complexo são estes fenômenos e a enorme agenda
em aberto que temos para as políticas públicas.

Governos, sociedade e as empresas já começaram a reconhecer que a violência contra as


mulheres precisa ser tratada levando em consideração a sua complexidade. Percebemos que
tivemos alguns avanços nos últimos anos, como a criação da Lei Maria da Penha. No entanto,
essas iniciativas ainda não são eficientes ao ponto de reverter estes dados de forma significativa
e definitiva.

Mudar esta realidade só será possível quanto assumirmos a pauta do enfrentamento à violência
contra a mulher em todas as instituições, promovendo políticas públicas eficientes em todas as
esferas de poder, com um olhar ainda mais atento à questão racial.

Precisamos assumir que, sem uma discussão séria de raça, os índices contra as mulheres negras
só aumentarão.

Joice Berth, nos diz que a violência contra a mulher negra não começou na pandemia.

A violência contra as mulheres não é um fato apenas brasileiro. Em todo o mundo, verifica-se
que ela cresce sem parar, há bastante tempo. Mas, aqui, tem impacto extra, pois a esse
problema acrescentam-se os derivados da violência racial, da enorme desigualdade econômica
e de outros tantos, como a favelização, o desemprego e os abusos cometidos contra os
empregados. Se a situação de pandemia nos revelou algo, foi a indiferença com que muitos
reagem a essa série de violências, a começar pelo chefe de Estado, que tem tratado de maneira
tão indigna os mortos e seus familiares, e com tanta irresponsabilidade os cidadãos que
precisam de proteção.

A violência contra as mulheres, contudo, é um problema de saúde pública, segurança pública e


educação. Ao tratar esse problema de maneira tão reducionista, como questão privada, isenta-
se o poder público da sua responsabilidade de garantir equilíbrio e igualdade nas relações
sociais. O fundamento político da violência doméstica não pode ser negligenciado e requer mais
do que ações paliativas de denúncia e prevenção: exige um trabalho social mais amplo.

O necessário período de isolamento social por que passam os brasileiros não é a causa da
violência doméstica, insisto. Relacionar uma coisa à outra é um modo, inclusive, de mascarar
um problema estrutural e histórico que sempre foi tratado com negligência proposital. É urgente
ampliar o entendimento das questões de gênero para criar um conjunto de práticas em várias
frentes – sociais, políticas e culturais – que tenha resultado concreto e seja capaz de influir no
nervo do problema: a produção da masculinidade como gestação de um poder opressivo contra
o outro antagônico, a mulher, e o outro do outro, a mulher negra. Como disse a socióloga
holandesa Saskia Sassen, é preciso desestabilizar conceitos estáveis para que possamos avançar
de maneira efetiva e responsável rumo à erradicação desse problema que, direta ou
indiretamente, atinge toda a sociedade.

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