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FINLEY. A Redescoberta de Creta
FINLEY. A Redescoberta de Creta
APOSTILA DE CURSO
ANTIGUIDADE CLÁSSICA
Texto 03
A Redescoberta de Creta.
Referência
DA
Ferro M. - A História Vigiada
Finley, M. I - Uso e Abuso da História
Finley, M. /. - Economia e Sociedade na Grécia Antiga
Braudel, F. - Gramática das Civilizações
Duby, G. - A Sociedade Cavaleiresca
Duby, G. - São Bernardo e a Arte Cisterciense
ANTIGUIDADE
Le Goff, J. - A História Nova
Duby, G. - Senhores e Camponeses
Dalarun, J. - Amor e Celibato na Igreja Medieval
Finley, M. I. - Grécia Primitiva: Idade do Bronze e Idade Arcaica
Grimal, P. - O Amor em Roma
Finley, M. /. - Aspectos da Antiguidade
Próximos lançamentos
Daumard, A. - Os Burgueses e a Burguesia na França
TRADUÇÃO
MARCELO BRANDÃO CiPOLLA
Martins Fontes
A REDESCOBERTA DE CRETA
seu pai, Zeus. Minos tinha na sua corte aquele artesão ini= ma caverna onde a mãe se ocultara para salvá-lo do marido,
gualável, de ascendência divina: Dédalo, um refugiado de 0 titã Cronos, que tinha o hábito de devorar os próprios
Atenas, que construiu as asas com as quais fugiu da ilha com filhos. Discutia-se se a caverna estaria localizada no monte
seu filho, Ícaro. Ícaro aproximou-se demais do sol, suas asas Ida, na região central de Creta, ou, com maior probabilida
derreteram, e ele se afogou no mar. Minos perseguiu Déda de, no monte Dikte, mais ao leste. Creta está repleta de ca
lo até a Sicília, onde foi morto (também por afogamento) vernas de montanha, e centenas delas já eram ocupadas por
pelas filhas de um rei local, Kokalos. No Hades, de acordo povos neolíticos pelo menos desde 6000 a.C. Muitas
com o testemunho de Ulisses, que visitou o local, Minos tornaram-se ou continuaram a ser santuários já no período
podia ser visto ostentando um cetro de ouro e distribuindo histórico grego, e, é claro, as controvérsias seriam inevitá
justiça. veis. Mas havia consenso quase que geral, e não só entre
Os mitos, é claro, poucas vezes primam pela coerência os cretenses, quanto a um fato: a ilha era a terra natal do
rei dos deuses olímpicos, e isto é da maior importância. Por
e Minos possuía uma outra face menos atraente. Era casa
que Creta, afinal de contas?
do com Pasífae, filha do Sol, que alimentou uma paixão an
Existem lugares que naturalmente evocam sentimentos
tinatural por um touro saído do mar. O próprio Minos,
de misticismo e reverência, que possuem aquilo que é cha
em certo sentido, era filho de um touro, se bem que este
mado pelos estudiosos da religião de qualidade numinosa.
fosse Zeus disfarçado (sua mãe era Europa). Pasífae, porém,
Delfos, por exemplo. Os que visitam Delfos sentem-na mes
apaixonou-se por um touro de verdade; ela recorreu a Dé mo hoje, apesar dos hotéis modernos e das lojas de lembran
dalo, que construiu um engenho que lhe permitiu manter ças, dos carros estacionados e dos ônibus turísticos. Caver
relações com o animal. Pasífae deu então à luz um mons nas e nascentes também a têm. Mas seria difícil sustentar
tro, meio homem, meio touro, chamado Minotauro (lite que Creta tem uma qualidade numinosa suprema, ou mes
ralmente, o Touro de Minos). O rei abrigou o Minotauro mo especial. É a maior ilha do mar Egeu, uma forma alon
num labirinto especialmente construído e ordenou aos ate gada com cerca de 258 km de comprimento e 58 km de lar
nienses, seus súditos, que enviassem todos os anos sete ra gura no ponto mais largo, com uma área de mais ou menos
pazes e sete virgens para serem oferecidos ao monstro co 8.400 km2 (um pouco menor do que Chipre, ou, digamos,
mo alimento. Certo ano, Teseu, o jovem filho do rei de Ate Porto Rico). É montanhosa, e a paisagem, vista do mar por
nas, persuadiu o pai a incluí-lo na remessa anual de vÍtimas. quem chega do sul, é rude, escarpada e espetacular. Algu
Quando chegou a Creta, Teseu de pronto conquistou o amor mas partes, em especial as Montanhas Brancas do oeste, são
da filha de Minos, Ariadne, e com a sua ajuda abateu o Mi praticamente inacessíveis, e hoje, assim como na Antigui
notauro. Os dois fugiram- estranhamente, não foram per dade, são dignas apenas de cabritos selvagens e criminosos.
seguidos-, e Teseu abandonou Ariadne na ilha de Naxos, Creta já foi famosa pelos seus ciprestes e carvalhos, pelas
onde o deus Dionísio a encontrou e desposou. suas pastagens altas, suas oliveiras e vinhas, seus campos fér
O interesse de Zeus por Creta não estava restrito a Eu teis, pelos portos do norte e do leste. (Se hoje a maior parte
ropa e a Minos. Ele próprio havia sido criado na ilha, nu- da ilha é estéril, isso se deve à má administração dos cris-
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tãos e sarracenos.durante a Idade Média.) E também é uma do de Agamenon? E o que eram Agamenon, a sua Micenas
ilha de cavernas. e a expedição que comandou senão gregos, não só na lin
Mas, depois que se diz tudo isto, a ligação especial en guagem que falavam, mas também no modo de vida?
tre Zeus e Creta permanece inexplicada, uma vez que a rries Essa falsa imagem manteve-se até princípios do século
ma descrição pode�ia ser igualmente aplicada a muitas par XX. De qualquer maneira, durante a maior parte dos sécu
tes da Grécia e da Asia Menor (a Turquia moderna) e a ou los intermediários poucas pessoas na Europa Ocidental se
tras ilhas do Mar Egeu. Não foi a geografia de Creta que quer pensaram em Creta. A ilha foi disputada e explorada
lhe conferiu uma preeminência especial, mas a sua história, de tempos em tempos por romanos, imperadores bizanti
ou melhor, a sua pré-história. Já houve um tempo - entre nos, sarracenos, cruzados, turcos, e finalmente, já quase na
2000 e 1400 a.C., em números redondos - em que Creta nossa época, pelos gregos, que a reintegraram ao seu terri
viveu uma Idade de Ouro, em que era muito mais rica, mais tório nacional. Mas, como já afirmara Políbio, intelectual
poderosa e mais civilizada que qualquer outra das áreas que ou historicamente, não valia a pena estudar Creta, nem em
mais tarde constituiriam o mundo grego. Essa cultura pri livros nem diretamente.
mordial foi destruída e literalmente enterrada: mesmo os O primeiro avanço importante foi realizado em 1834
seus remanescentes físicos logo desapareceram. Mas uma vaga por um jovem do Trinity College de Cambridge chamado
lembrança subsistiu. A vida em si não desapareceu da ilha. Robert Pashley. Ele havia completado o curso universitá
Muitos dos antigos grandes centros (ainda que não todos), rio normal em línguas clássicas e matemática, e estava des
como Cnossos, Gortyn e Faístos, subsistiram na condição tinado a ser um grande advogado. Antes, porém, ele se uniu
de cidades gregas menores, relativamente empobrecidas, com àquela notável constelação de exploradores e arqueólogos
uma consciência vaga e distorcida de um passado grandio britânicos do século XIX - Layard, Burton e Stanley tal
so, de Minos, do labirinto e do seu Minotauro, de serem vez sejam os mais famosos, e, sem dúvida, foram os mais
a terra 1e Zeus, o maior dos deuses olímpicos. espetaculares -, que abriam então novos campos de pes
Devemos ressaltar quão vaga era essa consciência. Se um quisa, vastos e exóticos. Com vinte e sete anos, Pashley ha
cretense, digamos, do século V a.C. (ou qualquer outro grego via conseguido, por intermédio de historiadores e geógra
dessa mesma época) fosse questionado a respeito de Minos, fos antigos e de fragmentos medievais e modernos, alguns
ele o descreveria como um grande governante grego de ou inéditos, todas as informações disponíveis sobre a ilha de
trora. Saberia que Creta já fora habitada por não-gregos, que Creta. Assim, acompanhado de um gravador espanhol de
ele chamaria de eteo-cretenses ("cretenses verdadeiros"), de Malta chamado Antonio Schranz, para mapear e descrever
quem o povo de Praisos, no leste de Creta, afirmava des todos os sítios antigos que conseguisse localizar, ele partiu
cender. Mas nunca duvidaria de que essa Idade de Ouro fo para Creta. Seu olho para o terreno era o de um batedor
ra constituída por uma civilização grega essencialmente igual indígena, tanto que um especialista moderno, ao se referir
a sua, apenas mais gloriosa, mais rica, mais magnífica. Pois aos quase sete meses de trabalho de Pashley, disse que ele
não havia o neto de Minos, Idomeneu, liderado um dos fa "identificou a maioria dos sírios com uma precisão nunca
mosos contingentes enviados contra Tróia, sob o coman- antes atingida e, desde então, poucas vezes desafiada".
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Ele também era um lingüista talentoso, com uma capa escreveu: "A cidade de Minos, o local onde se situava, se
cidade incomum de granjear a confiança da população lo gundo a lenda, o Palácio para ele construído, com todas as
cal, o que contribuiu bastante para o seu sucesso. Em 1834, maravilhas artÍsticas que continha, por seu artesão Déda
Creta ainda estava sob o domínio dos turcos, recuperada lo ... e o próprio labirinto, impôs-se naturalmente como o
pelo acordo firmado depois da guerra de independência grega primeiro objetivo." Entre Pashley e Evans o pensamento
de 1821-1831. Os cretenses, parte cristãos, parte muçulma sofrera uma completa revolução - uma revolução que não
nos, eram analfabetos, ignorantes e pobres, e não tinham foi concebida na própria ilha, mas na Ásia Menor e depois
motivos para confiar em ninguém. "Antes da revolução gre na Grécia continental, e realizada por um só homem, Hein
ga", escreveu Pashley, "Creta era a província mais mal rich Schliemann. A investigação em Creta prosseguira, res
governada do Império Turco." trit-a, porém, como no caso de Pashley, a relíquias e docu
O relato ilustrado das viagens de Pashley, em dois vo mentos gregos. Não que os resultados obtidos não fossem
lumes, foi publicado em 1837. Não houve mais volumes, importantes: foi descoberta em Gortyn boa parte de um
uma vez que todos os seus escritos e desenhos foram con código jurídico do século V a.C., inscrito em pedra, que ain
sumidós pelo fogo no ano seguinte. O que ele conseguiu da é único entre as antiguidades gregas. Assim, o estudo da
publicar é fascinante, não só pela detalhada explanação dos história e da civilização grega avançava consideravelmente,
procedimentos que utilizou para identificar o que queria, enquanto a glória da Creta primitiva permanecia tão obs
mas também pelas descrições da vida cretense, e, inciden cura e improvável quanto havia parecido a Políbio, dois mil
talmente, das idéias da população local acerca do seu passa anos antes.
do distante. Um menino de dez anos, por exemplo, disse Veio então o incrível Schliemann - em Tróia em 1870,
lhe que "o labirinto de Creta era uma das sete maravilhas em Micenas em 1876, e em Orchomenos, na Grécia Cen
do mundo, na época dos a�tigos helenos" e que "essas sete tral, em 1881 - e o mundo constatou, atônito, que as len
maravilhas correspondem aos sete sacramentos da Igreja das gregas deviam ser levadas a sério, ainda que não tão ao
Cristã". O próprio Pashley sabia tanto quanto o menino pé da letra quanto sugeria o próprio Schliemann. Schliemann
acerca da existência de uma grande civilização pré-grega. Ele não seria Schliemann se não tentasse expandir o seu traba
procurava resquícios greco-romanos, e achou alguns, que lho a Cnossos. Mas lá o obscurantismo burocrático turco
acreditava remontarem "ao período mais antigo da civili e a idade finalmente o dobraram, e ele não realizou mais
z�ção". Quando localizou Cnossos, foi levado a comentar, que uma fracassada escavação experimental. A descoberta
como bom racionalista, que as "cavernas naturais e sepul dos segredos de Cnossos foi reservada a Evans, e nunca um
cros escavados" da região "evocam a conhecida lenda anti só homem dominou tão completamente um campo arqueo
ga do labirinto de Creta... Não há, porém, motivo para crer lógico (a não ser o Abbé Breuil e as pinturas pré-históricas
mos que o labirinto de Creta teve uma existência mais real em cavernas).
que o seu fabuloso ocupante". Arthur Evans (Sir Arthur a partir de 1911) infelizmen
Cerca de setenta anos depois, Arthur Evans, recordando te adquiriu em nossa época algumas qualidades lendárias,
se das suas primeiras escavações em Creta, dez anos antes, que complicam os problemas surgidos desde então. Uma
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delas é a suposição absurda de que ele era na realidade um em muitos aspectos essenciais da cultura posterior de Ate
amador brilhante. Os fatos são estes: filho de um impor nas ou Esparta ou mesmo da Cnossos grega. Não poderia
tante arqueólogo e numismata, Evans recebeu a melhor edu haver um símbolo melhor ou mais visível dessa diferença
cação clássica e histórica disponível, passou seis anos em Ra que o próprio grande palácio, a estrutura labiríntica que as
gusa (hoje Dubrovnik) estudando os arquivos e antiguida escavações subseqüentes em outros lugares de Creta demons
des dos eslavos do sul e dos antigos ilíricos. Estudou com traram ser característica do mundo minóico. Esse tipo de
o sogro, o notável historiador E. A. Freeman, as ruínas e palácio, ou, diga-se de passagem, qualquer tipo, era total
moedas da Sicília, e adquiriu mais experiência arqueológica mente desconhecido entre os gregos posteriores. O edifí
na Grã-Bretanha. Em 1884, aos trinta e três anos, quando cio monumental característico destes era o templo armado
foi nomeado curador do Ashmolean Museum de Oxford, por colunas, uma estrutura ausente na civilização minóica,
eram poucos, se houvessem, os arqueólogos tão bem trei assim como a escultura monumental: não havia estátuas gran
nados em toda a Europa. des em Creta, nem de homens nem de deuses. E não havia
Durante uma visita a Atenas, Evans comprou algumas indícios de uma divindade masculina suprema: se Zeus era
pedras de selo gravadas provenientes de Creta, nas quais jul um dos antigos deuses de Creta, e não uma importação pos
gou perceber sinais de uma escrita desconhecida. Lá foi ele terio_r, foi um precursor muito fraco do olímpico grego.
para a ilha à procura de outras, as quais encontrou sem di A medida que prosseguiam as escavações e os estudos
ficuldade, visto que eram usadas como amuleto pelas mu tornou-se óbvio que a civilização minóica era centrada no
lheres grávidas. "Pedras de leite", elas as chamavam. Na An palácio e apresentava mais analogias com as civilizações con
tiguidade, essas pedras também eram utilizadas em volta do temporâneas do Oriente Médio do que com a cultura gre
pescoço ou do pulso, mas não tinham a função de amuleto ga posterior. Por trás da civilização minóica estavam um
ou talismã. O desenho gravado era o selo ou a marca do aumento de população, considerável quando comparada com
dono, usada para "selar" documentos, cerâmica, ou qual a pequena quantidade de pessoas que habitavam cavernas
quer coisa que necessitasse de tal identificação. de montanha no período neolítico;" um grande avanço tec
As "pedras de leite" decidiram a questão para Evans: nológico - que incluía o uso do metal - e o desenvolvi
ele faria escavações em Cnossos. Como era herdeiro de duas mento de uma organização social e de uma estrutura de po
fortunas, pôde superar as dificuldades que haviam detido der complexas. Quem quer que tenha construído os palá
Schliemann. Em 1894 ele comprou o sírio. Ainda assim, te cios dispunha de grandes recursos, tanto materiais quanto
ve de esperar que os turcos finalmente deixassem a ilha, no humanos, e tinha acesso a idéias e mercadorias do Egito,
fim de 1898, quando começou a escavar quase imediatamen da Síria, e mesmo da Babilônia. Todos os centros cretenses
te. Na primeira tentativa descobriu o palácio e uma grande importantes localizavam-se perto de bons portos, ou me
quantidade de tabuletas inscritas. A civilização "minóica", lhor, de praias protegidas, visto que naquela época os na
como Evans a chamou, renasceu em 1900, pois ele de pronto vios eram trazidos à terra quando fazia mau tempo.
percebeu que ali havia uma cultura muito mais avançada Talvez o aspecto mais espantoso dessa civilização seja
do que a da Idade da Pedra e que, ao mesmo tempo, diferia o seu aparente caráter pacífico. Os complexos palacianos
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não eram fortalezas como as de Micenas, Tirinto e outros ria, como pode perceber qualquer turista que visite Cnos
centros continentais. Tampouco havia traços de qualquer sos, se for razoavelmente observador e não der ouvidos à
outro tipo de fortificação, ou de armas e exércitos. Nesse tagarelice oficial dos guias.
aspecto, Creta diferia nitidamente das suas contemporâneas. Não que a imaginação não seja uma ferramenta essen
Nem mesmo os reis são visíveis: há um trono na sala do cial do arqueólogo. Considere-se a questão, básica, da data
trono de Cnossos, mas as paredes são decoradas com ani ção: quando começou a civilização minóica? Quando ela
mais míticos e padrões florais. O domínio dos mares tal terminou? Tais questões tiveram (e ainda têm) de ser res
vez explique a sensação de perfeita segurança contra ataques pondidas sem o auxílio de qualquer documento minóico da
marÍtimos. Mas nunca houve perigo de conflitos entre pa tado. A datação, assim, é arqueológica - isto é, inferida a
lácios? E não havia necessidade de coação e proteção poli- partir do estudo cuidadoso das camadas sucessivas nas ruí
cial na própria ilha? nas, da identificação de objetos datáveis importados de ou
Estas são perguntas óbvias; não podem ser respondidas tras sociedades, como o Egito, e da observação de similari
agora porque os indícios disponíveis são, em sua m� ior parte, dades entre esses objetos e objetos cretenses encontrados em
objetos materiais - edifícios, ferramentas, cerâmica, obras contextos datáveis. Para se chegar mesmo a uma data apro
de arte - e estes nunca nos dizem muita coisa acerca das ximada, é necessária uma grande sensibilidade para minú
idéias e instituições sociais de uma civilização. Evans e ou cias estilísticas e técnicas de artesanato, qualidade que Evans
tros arqueólogos encontraram várias tabuletas insc:itas, m� s, possuía em alto grau. Na melhor das hipóteses, pode-se ob
durante a sua vida, elas desafiaram todas as tentativas de m ter uma aproximação: é importante ressaltar isto agora, quan
terpretação. É uma singularidade da car:eira de �vans que, do a cronologia cretense está novamente sendo debatida com
atraído a Creta por caracteres desconhecidos escntos em pe uma ferocidade inversamente proporcional à certeza que po
dras de selo, ele se tenha concentrado em todas as suas ou de ser razoavelmente postulada por qualquer um.
tras descobertas e negligenciado a publicação das tabuletas, A cronologia de Evans pode ser disposta numa tabela
atrasando por conseqüência sua interpretação. (recentemente modificada por R. W. Hutchinson, que, de
1934 a 1947, foi curador da Villa Ariadne, o quartel-general
Evans morreu em 1941 com noventa anos, ainda traba de Evans em Cnossos):
lhando em suas publicações. Homem de prodigiosa ener
gia e força de vontade, contava com o apoio leal de um grupo Alto Minóico 1: 2500-2400 a.C.
de colaboradores muito capacitados, e os seus esforços pio II: 2400-2100
neiros logo foram seguidos por outras escavações em toda III: 2100-1950
a Creta. Também era um polemista feroz, capaz - o que
Médio Minóico 1: 1950-1840 a.C.
II: 1840-1750
provou na prática -de calar as vozes dissidente
_ _ ��1,
s. Em 1
III: 1750-1550
portanto, a imagem mais largame nte aceita da Creta mmoica
Baixo Minóico 1: 1550-1450 a.C.
era aquela construída por Evans, e incluía, deve-se acrescen II: 1450-1400
tar ' uma boa dose de inferência e de reconstrução imaginá- III: 1400-1050
20 ASPECTOS DA ANTIGUIDADE A REDESCOBERTA DE CRETA 21
É evidente que o padrão é por demais elegante e simé contrados mais do que Evans havia suposto existir. Quan
trico. Ele também sugere a existência de um império: o es do se pensa nas pouquíssimas formas de escrita inventadas
quema, inferido a partir das ruínas de Cnossos, foi arbitra pelo homem ao longo de toda sua história, é espantoso no
riamente estendido a Creta como um todo, embora hoje tar que a pequena ilha de Creta produziu pelo menos duas
tenhamos certeza de que pelo menos parte dele não é apli que foram exclusivamente suas. Havia uma escrita por ima
cável a certos sítios, como Faístos. E por que deveria? Afir gens modificadas, que Evans chamou de "hieroglífica" por
mar que toda a Creta era cultural e politicamente monolí analogia com a escrita egípcia; haviam duas escritas diferen
tica é uma suposição gratuita (e, hoje, comprovadamente tes, mais avançadas (nas quais os signos individuais corres
falsa). No entanto, uma vez admitidos estes defeitos, esta pondem a sílabas), que ele chamou respectivamente de li
ainda é, de maneira geral, a cronologia mais largamente acei near A e linear B; e, num pequeno disco encontrado em
ta; o Médio Minóico é reconhecido como o grande perío Faístos, possivelmente um objeto importado, havia ainda
do criativo, e 1400 -como a data realmente terminal. Naquela outro sistema de escrita. Todos aparecem unicamente em
época ocorreu uma grande destruição da qual a civilização Creta, com exceção do linear B, cujo uso era mais dissemi
minóica nunca se recuperou. O Baixo Minóico III foi des nado na Grécia continental que na própria Creta, mas que
prezado por Evans como um miserável mundo de "selva só ocorre em textos extremamente curtos ou em marcações
gens". de pedras de selo e cerâmica, e essa brevidade aumenta imen
Depois do "quando", a próxima pergunta é, por certo, samente as dificuldades de interpretação. Devemos lembrar
o "quem". Não há dúvida de que Creta foi alvo de migra que a escrita sobre materiais perecíveis, como o papiro egíp
ções antes e ao longo do período minóico. A última delas cio - mesmo que houvesse existido, o que não sabemos -
trouxe gregos à ilha. Mas, antes dos gregos, quem foi para não teria resistido ao clima cretense. Certos registros pala
lá? E de onde vinham? Em breve retomaremos estas ques cianos eram gravados em pequenas tabuletas de argila em
tões, que em grande medida ainda estão em aberto. A mais forma de folha, que não eram cozidas, e eram descartadas
famosa das disputas pessoais de Evans dizia respeito aos gre tão logo deixassem de ser necessárias. A destruição dos pa
gos. Existem afinidades e influências inquestionáveis entre lácios era acompanhada por grandes incêndios, que aciden
a arte e a arquitetura palacianas de Creta tardia e a grande talmente coziam algumas tabuletas inscritas, e apenas estas
civilização que então se desenvolvia na Grécia continental foram recuperadas pelas escavações modernas.
(que chamamos de civilização micênica). Evans naturalmente
insistiu na originalidade e na prioridade cretenses, e quase Em 1952 um jovem arquiteto britânico, Michael Ven
conseguiu destruir a carreira de um arqueólogo mais jovem, tris, anunciou, após anos de trabalho intensivo, que a lin
Alan Wace - que viria a se tornar a maior autoridade so guagem das tabuletas escritas em linear B era uma forma
bre Micenas -, que o desafiou (e que, como foi provado arcaica do grego. Esta descoberta imediatamente desafiou
posteriormente, esteve muito mais perto da verdade). ainda que de maneira exasperante, grande parte da image�
Parecia razoável supor que o veredicto final estivesse ortodoxa da civilização minóica. Agora era certo que os go
encerrado nos escritos não decifrados, dos quais foram en- vernantes de Cnossos, na época da sua destruição, falavam
22 ASPECTOS DA ANTIGUIDADE A REDESCOBERTA DE CRETA 23
grego. Mas quando haviam chegado, em que quantidade e tes que um povo de língua grega viesse a dominar Cnossos
com que efeitos? As tabuletas não contêm datas. Seu con em sua fase final; a escrita silábica foi inventada original
teúdo se restringe a prosaicas listas de suprimentos, reba mente para representar aquela linguagem e só mais tarde
nhos 'de ovelhas, inventários de posses do palácio e afins. foi aplicada ao grego, ao qual não se adaptava muito bem
Elas confirmam e elaboram a imagem, já sugerida pelas pró (assim como a escrita cuneiforme e o alfabeto fenício fo
prias ruínas, de uma sociedade muito centralizada, burocrá ram empregados para linguagens diversas das originais). E
tica, dirigida pelo palácio, mas infelizmente não contêm in assim as duas velhas perguntas permanecem sem resposta:
formações significativas acerca da política ou dos contatos Quem? Quando?
com o exterior. E até agora a escrita em linear B não foi As tabuletas não respondem a segunda questão, não só
encontrada em qualquer outro sítio cretense que não Cnos por não conterem datas, mas também por serem todas o
sos. Significará isto que a invasão de um povo que falava produto de um único momento no tempo: o momento em
grego - o que parece ter ocorrido - não atingiu o restante que um determinado palácio foi incendiado. Assim, sabe
da ilha? Talvez - ou talvez estejamos sendo enganados pe mos que o linear B era usado em Cnossos na época da sua
lo acaso, pelo azar de arqueólogo. destruição, mas não sabemos quando a escrita foi introdu
O linear B é uma escrita que se desenvolveu a partir zida lá, ou quantas modificações sofreu ao longo dos anos.
do linear A, mas a descoberta de Ventris não contribuiu Dependemos ainda da datação arqueológica. Embora a maio
para a sua interpretação. Isso se deve, em parte, à pouca quan ria dos arqueólogos continue aceitando a essência do esque
tidade de textos disponíveis. Embora o linear A, ao contrá ma cronológico de Evans, este tem sido rigorosamente con
rio do linear B, tenha sido encontrado em vários sítios cre testado, principalmente pelo professor Leonard Palmer, de
tenses, só os fragmentos de linear B provenientes de Cnos Oxford. Suas dúvidas devem-se ao seguinte fato: nos sítios
sos (excluindo-se, neste cálculo, os encontrados no conti continentais onde foram encontradas tabuletas em linear B,
nente) excedem em cerca de dez vezes a quantidade total como em Pilos, nas mesmas condições que as encontradas
de textos conhecidos de linear A. Contudo, a dificuldade em Cnossos (novamente graças aos incêndios após a des
principal reside no fato de que a linguagem do linear A cer truição dos palácios), a data geralmente aceita é 1200 a.C.
tamente não é o grego nem, provavelmente, qualquer ou São duzentos anos após a data proposta por Evans para o
tra língua conhecida. O duro trabalho criptográfico conti fim da era minóica, e, no entanto, a linguagem e o conteú
nua sem interrupções. Ocasionalmente anuncia-se algum es do geral das tabuletas de Cnossos são essencialmente indis
petacular avanço, que acaba por se revelar um alarme falso; tinguíveis do que foi encontrado no continente. Portanto,
assim, ainda é correto dizer, como escreveu John Chadwick argumenta Palmer, a data deve ser aproximadamente a mes
em 1958: "somos forçados a admitir que qualquer progres ma. A partir desta base simples, o argumento torna-se por
so parece estar momentaneamente bloqueado pela insufi demais técnico, por demais complicado, e por demais áspe
ciência do material disponível". Uma conclusão, no entan ro. Os cadernos de notas de Evans têm sido examinados,
to, parece segura: a linguagem da escrita linear A era a lín com o intuito de comparar as afirmações publicadas com
gua do povo que criou a Idade de Ouro minóica, muito an- as primeiras impressões anotadas durante a escavação. No-
24 ASPECTOS DA ANTIGUIDADE A REDESCOBERTA DE CRETA 25
vos esforços vêm sendo dispendidos no sentido de correla Mas todos os partidos nesta novíssima disputa concor
cionar e sincronizar as relíquias de Cnossos com as de ou dam em um ponto: o elo integral existente entre o estrato
tros sítios aos quais, como já dissemos, o elegante esquema pré-grego da população cretense e a Ásia Menor. Algumas
de Evans não se aplica, exceto com modificações drásticas. das provas são lingüísticas (e, de novo, altamente técnicas),
E a questão, velha e crucial, da relação entre as duas cultu como em topônimos pré-gregos como Cnossos ou Tilissos,
ras - cretense e continental - está sendo retomada. e algumas são arqueológicas. Mas a mais óbvia é o onipre
A violência da polêmica não ajudou o leigo a compreen sente touro. Nos afrescos cretenses os touros estão em to
der o que está em jogo. Não se pode simplesmente deslocar da parte, em diversos papéis (mas nunca como divindades
a destruição de Cnossos em duzentos anos e esquecer o as ou qualquer coisa que se assemelhe ao Minotauro, que de
sunto. Se Palmer estiver certo, toda a cronologia da última ve ser uma invenção grega pós-minóica). Existem também
grande era minóica terá de ser modificada, e, com ela, a nossa os misteriosos "cornos de consagração", que por vezes ser
compreensão do papel do novo elemento grego, tanto na vem como uma base sobre a qual o duplo machado era co
ilha quanto no continente. Se ele estiver certo, talvez a es locado como um tipo de estandarte. Esta combinação pos
crita linear B seja uma invenção continental, e não creten sivelmente tem um significado ritual. Ora, o touro também
se. A imagem, proposta por Evans, de um longo e miserá é identificado em contextos religiosos da Ásia Menor, asso
vel período selvagem em Cnossos teria de ser abandonada, ciado, por exemplo, ao deus hitita do clima, e, de maneira
e a grande onda de destruição que atingiu o continente em mais sensacional, nas descobertas feitas a partir de 1961 por
1200 a.C. teria de ser estendida também -à ilha. James Mellaart em Çatal Hüyük, na Planície de Konya,
Nessa medida, a datação de Palmer é um importante
centro-sul da Ásia Menor. Trata-se de um sÍtio neolítico,
desafio à cronologia ortodoxa. Por outro lado, isso não im
cujo nível mais profundo foi datado de 6500 a.C. Ele e'n
plica a rejeição da imagem global da civilização minóica desde
controu pinturas em paredes semelhantes às pinturas rupes
o seu surgimento no neolítico, cerca de trezentos ou mais
tres da Idade da Pedra na Espanha oriental; mas encontrou
anos antes de 2000 a.C.. Hoje sabe-se muito mais do que
também chifres de boi dispostos cerimonialmente de uma
Evans jamais soube, e uma ampliação do conhecimento ine
vitavelmente acarreta correções, elaboração e refinamento maneira que nos recorda, de forma notável, os "cornos de
da imagem. Mas a sua realização se destaca como um dos consagração" cretenses.
grandes monumentos na história da arqueologia, e torna É um longo caminho o que leva da Ásia Meno�, em
se mais notável ainda quando se considera que, quando ele 6500 a.C., à Creta de 2000 a.C., mas esta nova descoberta,
começou, tanto a disciplina quanto as suas técnicas eram quando relacionada com todos os outros elos conhecidos,
novas e freqüentemente grosseiras. Qualquer sugestão de não pode ser tomada como uma coincidência sem signifi
que Evans foi incompetente ou desonesto é tão absurda cado. O essencial é que todos esses elos sugerem uma mi
quanto o mito do seu amadorismo. É fácil ser inteligente gração da Ásia Menor para Creta em algum momento do
e superior depois que outro já realizou o desgastant� traba passado distante, e não um simples empréstimo de idéias
lho de escavação. oú instituições, que também ocorria todo o tempo.
26 ASPECTOS DA ANTIGUIDADE A REDESCOBERTA DE CRETA 27
A redescoberta de Creta ainda é, sem dúvida, um pro 1200, como na Grécia continental. Quando os gregos rea
cesso muito incompleto. O arqueólogo grego Nicholas Pla pareceram sob a luz plena da história, muitos séculos de
ton descobriu em 1962 um grande palácio labiríntico e, em pois, eles ainda falavam grego, mas utilizavam uma nova
1963, algumas tabuletas em linear A, nas proximidades da forma de escrita e tinham um modo de vida completamen
vila de Kato Zakro, na costa leste da ilha. O palácio, cujo te novo. É por isso que a Creta minóica e a Grécia micêni
nome se desconhece, é o quarto maior já desenterrado em ca são na verdade elementos da pré-história grega.
Creta, depois dos de Cnossos, Faístos e Malia, e, mesmo
assim, um arqueólogo de primeiro time, D. G. Hogarth,
colaborador de Evans, realizou escavações no local em 1901
e não conseguiu encontrá-lo. Na Grécia continental, em Te
bas, operações de construção civil realizadas no começo de
1964 revelaram as primeiras tabuletas em linear B a serem
encontradas nesse sítio, além de um grande número de pe
dras de selo babilônicas datáveis; pelo menos uma delas per
tence ao período compreendido entre 1375 e 1350 a.C. As
planícies da Ásia Menor estão pontilhadas de colinas como
Çatal Hüyük, com possibilidades ilimitadas. A datação por
carbono 14 já fez a Era Neolítica de Creta recuar mil anos
e poderá um dia oferecer uma resposta cientÍfica à cronolo
gia posterior. A análise química da argila e dos pigmentos
da cerâmica proporcionará um fundamento novo e confiá
vel à análise estilística.
Parece inevitável que todos estes problemas e propos
tas levantem grandes cortinas de fumaça de publicidade, com
afirmações e contra-afirmações proferidas com uma certe
za e uma acidez injustificáveis. A grande desvantagem des
te processo é desviar a atenção da essência para o efêmero
e para personalidades. A essência, afinal, é uma grande civi
lização perdida, atraente sob vários aspectos. Enquanto
aguardamos respostas mais exatas para diversas questões (so
bre origens, conexões, datas), a arte e a arquitetura, as reali
zações técnícas, os indicativos de como a sociedade se orga
nizava, estão lá para serem contemplados. Também o está
a catástrofe final, tenha ela ocorrido em 1400 a. C. ou em