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Pontifícia Universidade Católica de Goiás

Escola de Formação de Professores e Humanidades


Curso de Licenciatura em História

Disciplina: HIS1001. Antiguidade Clássica


Prof. Me. Ivan Vieira Neto (2023-1)

APOSTILA DE CURSO
ANTIGUIDADE CLÁSSICA
Texto 06

O Mundo Grego no tempo de Homero e Hesíodo.

Referência

LEFÈVRE, F. História do Mundo Grego Antigo. São Paulo:


Martins Fontes, 2013. pp. 87-98.
Capítulo 7

o MUNDO GREGO NO TEMPO DE HOMERO E DE HESÍODO

O éculo VIII constitui uma guinada fundamental para o historiador da Grécia: pela primei­
ra va, ele dispõe de documentos escritos que ultrapassam o estágio das peças contábeis e oferecem
uma visão global das mais variadas áreas, como a sociedade, a política, as crenças, as trocas. É
certo que os poemas homéricos e os de Hesíodo são acima de tudo obras literárias, nas quais a
parcela do imaginário permanece fundamental, como em toda criação poética, e requerem cuida­
do para se evitar uma leitura tanto excessivamente literal como superinterpretativa 1• Entretanto,
explorar essas obras-primas é indispensável, não só porque constituíram a referência dos gregos
durante séculos, mas também porque, em cerca medida, são testemunhos de um período de tran­
ição em que a cidade se desenvolve e em que o mundo grego conhece uma expansão sem prece-
dente (para facilitar a exposição, trataremos destes dois últimos pontos no capítulo seguinte).

A Grécia na época geométrica

Por volta de 900 teve origem em Atenas, antes de ser amplamente praticado em outros lu­
gares, o estilo cerâmico denominado "geométrico", que apresenta uma decoração de alta qua­
lidade, na qual se destaca o meandro substituindo os motivos circulares. Segundo a divisão
u uai, o Geométrico Antigo termina por volta de 850, dando lugar ao Geométrico Médio (até
por volta de 750), que se caracteriza por uma ornamentação cada vez mais sofisticada, com as
primeiras representações figuradas, ainda isoladas e rudimentares. Estas se tornam mais fre­
quentes e mais complexas a partir da transição para o Geométrico Recente (por volta de 750-
·700), que se destaca pela produção dos grandes vasos do Dípilo ("dupla porcà', edificada mais
tarde a noroeste da cidade, no bairro Cerâmico, assim chamado porque os artesãos oleiros se
concentraram ali). Neles estão representados desfiles de carros, navios, cenas de baralha ou de
aposição do morto (próthesis) antes do transporte para o túmulo (ekphorá), que lembram
cercas passagens dos poemas homéricos, embora certamente não se deva considerar a decoração
dos vasos como uma ilustração direta desses poemas.

1. Ver Ph. Brun et, la Naissance de la litrérature dam la Grece ancienne, Le Livre de Poche, "Références", n9 530, 1997.

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Época arcaica O mundo grego no tempo de Homero e de Hesíodo

Essa é a época de um crescimento demográfico e de um enriquecimento visível do rnobi.


liário dos túmulos. Assim, uma sepultura feminina do Areópago (colina situada ao pé da Ac�
pole), conhecida como da "Rich Lady", restituiu joias de ouro, mais de 30 vasos e um cofrezinhc
cuja tampa é adornada com cinco celeiros de trigo miniaturizados, evocando já na metade de
século IX uma aristocracia agrária que poderia prefigurar a classe dos pentacosiomedírnni01
conhecida na época de Sólon (infra, cap. 9). O fato de a defunta estar grávida no momento�
morte, como mostrou uma recente análise dos restos ósseos que a ânfora cinerária cominhi.
também poderia explicar em parte a natureza e a abundância do mobiliário funerário.
como for, Atenas é então um dos centros mais prósperos, a julgar pela superioridade de SCUl
artesãos e talvez devido à exploração das minas do Láurion - e neste caso a Ática poderia ter
sido já na época o cenário de um início de sinecismo (capítulo seguinte). Além disso, as trOQi
recuperaram uma intensidade notável, como sugere um túmulo do Dípilo contendo estatuerai
de marfim que revelam influências orientais (ca 730). No século VIII, especialmente no setor
que virá a ser o principal cemitério de Atenas, observam-se também mudanças nas prátiai
funerárias, mais diversificadas: volta à inumação, e depois reaparecimento de túmulos de ado­
lescentes ou de crianças ao lado dos túmulos dos adultos, o que poderia denotar maior acest1
ao direito à sepultura; por volta da virada do século, os grandes sêmata aristocráticos (túmul�
materializados pelos vasos monumentais mencionados acima) desaparecem e as oferendas são
depositadas numa fossa contígua, ao passo que se recomeça a queimar a maioria dos morros.
não mais numa fogueira e sim nos próprios túmulos, agora agrupados fora das ireas de habita­
ção. Essas sucessivas modificações do ritual, diferentes do que se observa em outras regiões da
Grécia (cf. a Argólida e a Coríntia, onde a inumação é preferencial), foram interpretadas colll-0
reflexo de evoluções socioeconômicas e mesmo políticas, ou como uma intenção de diferencia­
ção em certos grupos familiais etc.; mas, em última análise, não é fácil explicá-las.
A vizinha Eubeia, por sua vez, está sempre à frente: em Campânia, o estabelecimento colo­
nial euboico de Pitecussa data do meio do século VIII ou pouco antes - ou seja, aproximada­
mente da época em que começa a tomar forma a cidade de Erétria, rival de Cálcis e talVCJ
sucessora de Lefkandi, sítio por sua vez abandonado no final do século (capítulo anterior). Em
outros lugares, aglomerações são destruídas, como Ásina, vítima dos argivos (por volta de 7m
principalmente segundo Pausânias), ou periclitam, como Zagora, em Andros (por volta de
700). Outros centros logo conhecem um forte desenvolvimento, como Argos, Esparta, Corinto
e Mégara no Peloponeso, as ilhas de Lesbos, Quios (Empório), Samos e Rodes, por fim Éfe,,
Fig. 4. Ânfora funerária ática encontrada no Cerâmico, com cena de exposição do morto. Por
e Mileto no litoral asiático. Em toda a Anatólia ocidental, os gregos mantêm relações às vaJJ volta de 760 a.C. Altura: 1,55 m. Museu Nacional de Atenas 804 (R. Martin, L'Art grec, Le
conflituosas, mas também trocas proveitosas com as populações parcialmente indo-europeia! Livre de Poche, "La Pochotheque", 1984, fig. 32).

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Mapa 5. Sítios mencionados nos capítulos 7 a 12 (ca 800-ca 450 a.C.).


Época arcaica O mundo grego no tempo de Homero e de Hesíodo

instaladas sobre as ruínas do império hitita. Heródoto dedica-lhes explicações bastante longas,
conta c erca de dez principados submissos aos soberanos assírios Sargão II e, depois, Senaque­
principalmente a respeito das oferendas de seus soberanos ao santuário de Delfos: ao sul, líci01
ribe), que revelaram práticas funerárias semelhantes às mencionadas nos poemas homéricos
e cários, aos quais atribui diversas inovações militares, mas sobretudo o reino frígio de Midas, (cf. os funerais de Pátroclo no canto XXIII da Ilíada). Efetivamente, além da língua e da reli­
devastado pelos cimérios, que irrompem do norte do mar Negro a partir do final do século Vil! gião, um dos mais poderosos agentes da unidade cultural é então constituído pelas obras de
(saque de Górdion, a capital, nos anos 690) e que será suplantado pelos lídios do rei Giges (e, Homero e de Hesíodo.
680-650), fundador da dinastia dos mermnadas, cuja capital é Sardes, também ela vítima das
razias cimérias (seus descendentes mais famosos serão Aliares, que reina de 610 a 560 aproxj.
A epopeia homérica
madamente, e Creso, que reina de ca 560 a 546: cf. infra, cap. 10). Essas culturas, como as do
Oriente Próximo às quais os gregos devem os sinais alfabéticos, contribuem para o "fenômeno Segundo a tradição, o autor é um aedo cego que viveu naJônia (Quios?) no final do século
orientalizante" que fecunda o helenismo, principalmente num período que vai aproximaeu­ IX ou no século VIII ("quatro séculos antes de mim", diz Heródoto II, 53). A Ilíada (cerca de
mente de meados do século VIII à segunda metade do século VII (técnicas, artes plásticas e 15 mil versos), q ue narra a cólera de Aquiles, ocorrida no décimo ano da guerra de Troia, e a
cerâmica, religião, costumes diversos, até o uso da moeda: capítulo seguinte), antes de, por siu Odisseia (cerca de 12 mil versos), que canta o retorno de Ulisses a sua pátria, são a parte con­
vez, serem largamente influenciadas por ele. serv ada e mais bem acabada do ciclo troiano, que incluía também peças como Cantos cíprios (as
É também uma fase determinante para os santuários, onde se edificam os primeiros tem­ origens e os primeiros nove anos da guerra) e outros Retornos (Nóstoi). Os poemas propriamen­
plos, ainda rudimentares. Podemos citar o Heraion (santuário de Hera) de Samos, que, por te ditos compõem-se de vários subconjuntos: distinguem-se, na Odisseia, as peripécias de Telê­
volta do início do século VIII, poderia constituir o primeiro exemplo de complexo religioso do maco, depois as aventuras narradas por Ulisses entre os feácios e por fim o retorno a Ítaca e a
tipo "clássico" (espaço reservado denominado témenos, altar e templo contendo a estátua do vingança. Por isso o abade d'Aubignac, no século XVII, sugeriu que se tratasse originalmente
culto); e também o de Peracora, no istmo de Corinto, ou ainda o Dafnefórion de Erétrit de vários cantos independentes, compostos por autores diversos e interligados posteriormen­
dedicado ao culto de Apolo Dafnéforo (literalmente, "porta-louro") . A tradição situa o início
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te. Esse é um dos aspectos mais famosos da "questão homérica" que opôs analistas e unitários,
dos concursos olímpicos em 776, data que para muitos pareceu excessivame�te remoca. As paroxismo das inúmeras querelas que agitaram os filólogos depois dos eruditos alexandrinos
oferendas começam a acumular-se nesses lugares sagrados, principalmente os grandes tripés (infra, cap. 23). Mais sensíveis à coerência global, ainda que evoluções de forma e de fundo
de bronze com cuba fixa e depois com caldeirão móvel, logo seguidos pelas primeiras estátuas, de sejam perceptíveis entre os dois poemas, os especialistas atuais tendem a admitir a existência de
dimensões e realismo cada vez maiores (madeira, mármore, bronze por fundição direta e de­ um autor de gênio, ou de dois, compondo a Ilíada e depois a Odisseia com algumas dezenas de
pois pela técnica da cera perdida, com provável influência egípcia). Nessa produção se distin­ anos de intervalo. Mas isso não quer dizer que esse(s) autor(es) não tenha(m) herdado de uma
guem o Peloponeso (com destaque para Argos e Corinto) e principalmente Creta, que continlll longa tradição. De fato, parece estabelecido que a matéria dos poemas remonta em parte a um
a contar com seus contatos preferenciais com os artesãos orientais (cf. os escudos votivos com fundo micênico ou mesmo anterior (o verso utilizado, o hexâmetro datílico, poderia ter sido
decoração rebatida descobertos na gruta do monte Ida) e que desempenha um papel funda­ imitado dos minoicos), elaborado e transmitido ao longo de gerações por virtuoses da compo­
mental no desenvolvimento do estilo "dedálico". Aparentemente essas consagrações são feilll sição oral, valendo-se especialmente da repetição dos famosos "epítetos homéricos", e depois
em prejuízo das sepulturas, menos dotadas, embora contraexemplos notáveis - como as tum· flxado e transformado em obra-prima por Homero graças ao novo alfabeto. A vulgata que se
bas de guerreiros de Argos, uma das quais restituiu uma armadura impressionante - façam c onhece hoje é resultado de um longo processo de edição que teria sido iniciado por Pisístrato,
lembrar que a diversidade continua a ser uma característica essencial do mundo grego. Excep­ tirano de Atenas no século VI (infra, cap. 9: muitos consideram duvidosa essa tradição), e
cionais são os túmulos "régios" de Salamina de Chipre por volta de 700 (época em que a ilha concluída pelos filólogos de Alexandria. Mas a extraordinária popularidade e a difusão rapidís­
sim a dos poemas, ou pelo menos de sua substância, podem ser avaliadas em objetos como a
2. Ver M.-Chr. Hellmann, L'Architecture grecque, Le Livre de Poche, "Références", n? 544, 1998. "raça de Nestor" encontrada em Pitecussa (capítulo anterior).

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Época arcaica O mundo grego no tempo de Homero e de Hesíodo

a noiva). Com exceção desse ponto (apenas o dote direto subsistirá mais tar­
Outro ponto muito debatido é a questão do referente histórico, incerto devido à esp essu� jun tam ente com
cronológica da fase de elaboração. De fato, as realia homéricas mostram-se heterogê neas t de), aqui apa
rentemente estamos muito mais perto dos domínios de Iscômaco tal como apare­

ce no Econômico
compósitas, assim como a língua utilizada, que mistura artificialmente o dialeto jônico colt de Xenofonte, no século IV, do que dos inventários das lojas de Pilas. Os
outros elementos. A geografia e alguns objetos, tais como os capacetes com dentes de javali,� poem as praticamente não se interessam pelos pequenos proprietários independentes, que ima­
indubitavelmente micênicos, ao contrário da cremação dos mortos, que indica um uso poste. gin am os , como Hesíodo, criticando duramente os excessos dos reis "devoradores de presentes".
rior. O analfabetismo dos heróis, se não for uma opção poética, direciona para os primei l'O! ;--la pane mais baixa da escala figuram os tetas, livres mas sem outro meio de vida além do
tempos das "idades obscuras", ao passo que a organização política remete claramente às cidada trabalh o braçal para outrem - condição que a sombra de Aquiles, que Ulisses encontra nos
emergentes do século VIII (o vocabulário especializado já é, em grande parte, aquele que t Infernos, considera a menos invejável de todas (canto XI da Odisseia). A parte estão os demiur­
conhece nas épocas arcaica e clássica). É como se Homero tivesse deliberadamente se empenh.. gos, itinerantes e detentores de uma técnica altamente especializada que colocam a serviço das
do em encantar seus ouvintes projetando-os no mundo dos heróis dos tempos passados, do comunidades mediante remuneração (adivinhos, curandeiros, ourives etc.). As atividades ma­
qual a memória coletiva guardara algumas lembranças, mas repintando esse universo fabuloio ríti mas revelam grande mestria, o que não é de surpreender numa época em que se redescobri­
com as cores do cotidiano do auditório. Portanto, a necessidade de uma leitura "estratigráfiQ' ram as antigas rotas percorridas na Idade do Bronze e em que os gregos se lançam na aventura
dos poemas fica evidente quando se deseja recolocar um determinado pormenor em seu con­ colonial. Mesmo assim, os intercâmbios têm um estatuto ambíguo: o uso aristocrático e ritua­
texto exato, na medida do possível (cf. a questão insolúvel da guerra de Troia, rapidamen1t lizado do dom e contradom não é exclusivo do comércio à base de troca, que por sua vez
mencionada no capítulo 5). Mas nem por isso se deve perder de vista a autonomia e a coerênàa nunca está muito longe da pirataria - atividade valorizada quando é um avatar guerreiro prati­
interna da obra-prima poética: como disse um dos maiores críticos alexandrinos, Aristarco dt cado pelos nobres e desprezível quando os fenícios ou outros traficantes a têm como profissão.
Samotrácia (ca 170), convém acima de tudo "explicar Homero por meio de Homero". Feita A rroca opera-se com as mais diversas mercadorias (vinho, metais manufaturados ou não, peles
essas ressalvas, passamos a percorrer rapidamente o "mundo de Ulisses" (M. I. Finley). ou gado vivo, escravos), mas os bois constituem a unidade de medida preferencial para o valor
O lugar de honra é reservado aos aristocratas, a quem o poeta se dirige prioritariamemt dos bens: por exemplo, nos concursos fúnebres organizados para Pátroclo, é assim que os
Deles provêm os heróis que se enfrentam em combate singular, revestidos de soberbas armadu­ aqueus avaliam os prêmios postos em jogo por Aquiles para a prova de luta (12 animais para o
ras e transportados em carro até o local da luta (qual pode ser aqui a relação com as práticas da grande tripé que vai ao fogo, 4 para o escravo qualificado e polivalente).
Idade do Bronze?). O ideal agonística de competição e de exaltação da areté (valor pessoal, es­ Entre os nobres, um círculo restrito é definido como reis (basileis), dos quais um, primus
pecialmente em combate) continuará a ser uma referência constante nas épocas posteriores, !UI interpares, se distingue como o rei soberano (mesmo termo no singular, às vezes no comparati­
fileiras dos hómoioi esparciatas (infra, cap. 9), assim como nas dos cidadãos atenienses sedemm vo ou no superlativo; o termo ánax, resquício micênico, é apenas um qualificativo traduzível por
de philotimía (amor às honrarias, outorgadas por boa conduta para com a comunidade). Além "senhor", empregado igualmente para um deus ou para o dono do oíkos). O termo géras designa
do butim, constituído especialmente pelas armas do vencido, o poder deles é avaliado por meio os privilégios reservados aos basileís, em forma de presentes do povo ou de partes de honra no
de suas propriedades, o oíkos, termo que designa conjuntamente o patrimônio e as pessoas da butim e nos sacrifícios. Também podem ser arrecadadas contribuições, se necessário. O rei rei­
casa (principalmente a família próxima e os escravos, alguns dos quais podem ter uma posiçá) nanre detém um poder hereditário, que entretanto ele precisa justificar com uma posição efeti­
notável, como a intendente de Ulisses, Eurinoma). Na moradia, um lugar fundamental é ocu­ vamente dominante, tanto por sua riqueza como por sua força: é assim que Agamêmnon
pado pela câmara do tesouro (thálamos), onde são guardadas as riquezas provenientes da gucr· garante para si o comando supremo dos aqueus, ao passo que, na ausência de seu pai, o jovem
ra, dos saques e as ofertadas por outros nobres, aos quais se retribui para manter o prestígio. O Telêmaco é posto em dificuldade pelos pretendentes, que devem conquistar os favores de Pené­
próprio senhor prefere definir-se como entendido nos trabalhos do campo, enquanto a esposa lope para reinar no lugar dele. O rei, assistido pelos outros basileis, delibera e reúne a assembleia
dirige a atividade doméstica e colabora na produção (fiação e tecelagem). O casamento carac· dos soldados (Ilíada) ou dos cidadãos (Odisseia). Embora se observe algum avanço de uma
teriza-se pela prática do dom (presentes do noivo) e contradom (dote direto entregue pelo P' epopeia para a outra, o povo não tem mais personalidade na política do que no meio da rua:

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Época arcaica O mundo grego no tempo de Homero e de Hesíodo

quem ousa fazer uso da palavra é logo rechaçado, e não há vestígio de voto. Apesar da oposiçã, m o nte Hélicon, morada das Musas. A herança opôs Hesíodo a seu irmão Perses, que vence mas
ou desaprovação de alguns de seus conselheiros, a opinião do rei sempre vence, como a de Zeus logo fica arru inado: Os trabalhos e os dias, longa sequência de conselhos que o poeta lhe dá para
que igualmente tem de lidar com a contestação dos outros deuses. Basileús e basileis desempt. er bem-sucedido, é um valioso testemunho sobre o pequeno campesinato beócio, provavel­
nham também um papel decisivo no exercício da justiça, em que parece ter início um esboço de mente no início do século VII. O outro poema conservado, Teogonia, é mais ambicioso e valeu
regulação da vendetta: uma cena controversa que figura no escudo de Aquiles, descrito no canrr a Hesíodo sua reputação de ordenador das genealogias divinas e dos ciclos míticos, empreendi­
XVIII da Ilíada, poderia indicar essa evolução lenta e empírica que conduz aos textos normati. menro parcialmente complementado pelos Hinos chamados de "homéricos" - compostos mais
vos elaborados pelas gerações seguintes, tais como o "código" de Drácon cerca de dois sécul01 tard e por autores anônimos e dedicados a uma determinada divindade em particular (Apolo,
depois (infra, cap. 9). A cidade homérica tem também as fratrias, termo que será retomado par Deméter etc.). O próprio Hesíodo reivindica a posição de intermediário entre os deuses e os
designar estruturas sociais que ainda desempenham um grande papel na Atenas clássica. homens que sua arte lhe confere, assim como evoca orgulhosamente seus êxitos poéticos, como
É banal dizer que nos poemas o mundo dos deuses copia o dos homens, mas o pomo de nos concursos fúnebres celebrados em Cálcis para o herói Anfídamas (talvez em relação com a
vista inverso seria igualmente legítimo, com os heróis reivindicando uma ascendência divin. guerra lelantina: capítulo seguinte).
que lhes permite um contato privilegiado com um determinado deus (cf. o par Ulisses-Ateo. O oíkos hesiódico tal como aparece em Os trabalhos é bem modesto em comparação com o
na Odisseia). Homens e deuses estão igualmente subordinados ao destino (moira), mas os ho­ dos heróis: basta confrontá-lo com as posses que Hefesto representa no escudo de Aquiles, no
mens dependem principalmente da boa vontade dos deuses, cujas boas graças tentam obte r ot canto XVIII da Ilíada. Uma casa, um boi de lavoura, alguns escravos ou trabalhadores sazonais
procuram apaziguar por meio de sacrifícios. Todos os atos constitutivos do culto tal como r p ara auxiliarem um dono totalmente devotado a sua propriedade, uma esposa escolhida na
conhecido nas épocas arcaica e clássica estão ilustrados nos poemas, desde a simples prece até. idade certa e com cuidado para que não dilapide os recursos arduamente ganhos. Essa condição
consulta aos oráculos; o termo témenos designa sempre os domínios reservados dos basilets d difícil se explica por uma degradação contínua, exposta no célebre mito das raças, que levou o
nível superior, significação herdada do mundo micênico; mas em quatro ocorrências o sencid homem da idade de ouro para a idade de ferro - a idade da decadência, na qual vive o poeta.
evoluiu para a acepção clássica de "espaço delimitado para um santuário". O agón fúnebre cele­ , essa existência mesquinha, a impressão é de que o equilíbrio é sempre precário e talvez ques­
brado para Pátroclo evoca irresistivelmente os concursos que começam a ser org;nizados emác tionado a todo momento por um endividamento não controlado - daí a afirmação do ideal de
principalmente em Olímpia, onde foram encontrados tripés semelhantes aos que Aquiles ofe­ autarcia (autossuficiência, com algumas adaptações mencionadas abaixo) - ou pelas exigências
rece aos vencedores. Por fim, também nesse caso se pode detectar uma evolução entre as duas excessivas dos basileís da vizinha cidade de Téspias, aos quais o poeta recomenda mais justiça.
epopeias: enquanto os deuses da Ilíada participam da fúria dos homens, a Odisseia encerra-se Entretanto, não há em Hesíodo incitação à revolta, tampouco crise agrária: se aconselha a ter
depois de Ulisses obter justiça, com uma reconciliação da comunidade de Ícaca, sob patrocíni apenas um filho para não desmembrar o patrimônio, também admite que mais braços possibi­
de Acena, divindade políade (protetora da cidade) por excelência (canto XXIV, às vezes con�­ litam rendimentos maiores; se não confia no comércio marítimo porque a navegação assusta,
derado uma adição tardia, é provável que erroneamente). Será que esse final tão moral quer também expressa a ideia de lucro obtido do escoamento de um excedente de produção, com a
significar que o mundo está mudando, aparentemente mais ordenado, mais civilizado, definin· perspectiva de aumentar a propriedade comprando parcelas vizinhas. Além dessas ambiguida­
vamente o oposto do universo inumano dos Cíclopes, que "ignoram as assembleias e as leis"i des, deve-se destacar que essa poesia é didática, mas pouco técnica; em todo caso, é dominada
por uma exigência dupla: moral, ao colocar o trabalho da terra acima de qualquer outra ativi­
dade laboriosa; e religiosa, ao recomendar a observância minuciosa dos ritos e do calendário.
Hesíodo
Por isso o conhecimento dos princípios divinos, revelado ao aedo pelas Musas, é fundamental.
Aqui, nenhuma dúvida sobre a identidade do autor: ele próprio dá na obra alguns elemer.· A Teogonia é, à sua maneira, uma cosmogonia, até mesmo uma obra enciclopédica, que
tos biográficos. Originário da Eólida, seu pai perdera quase tudo no comércio marítim o, ant revela a origem do mundo desde o caos inicial até as últimas gerações divinas. Um lugar espe­
de estabelecer-se na Beócia para explorar uma pequena propriedade em Ascra, não lon ge de cial é reservado para os maus princípios (Engano, Fraqueza, Anarquia, Esquecimento) e para

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Época arcaica

os bons, filhos de Zeus e Têmis (a Justiça, a Paz, as Horas etc.). Nela reencontramos o homern
punido pela dupla falta de Prometeu, que enganara seu primo Zeus fazendo duas partes desi.
guais de sacrifício (para os deuses os ossos cobertos de gordura, para os homens as carnes eo.
mestíveis) e depois lhe roubou o fogo do qual Zeus, cheio de rancor, privara os mort ais:,
punição é Pandora, a primeira mulher, "esse mal tão belo", presente pérfido que Epimerei.
aceita, desprezando os conselhos de seu irmão Prometeu, e que abre o jarro onde estavam en­
cerrados todos os males, mas também a Esperança. Essa visão pessimista está presente tambén:
em diversas narrativas sobre a vida dos deuses, repleta de assassinatos e mutilações: Zeus, quc
elimina sua esposa Métis, divindade que personifica a inteligência astuciosa, a priori não st
mostra melhor do que seu pai Cronos, que por sua vez havia emasculado seu próprio pai Ura.
no, ambos por medo de perderem o reinado em proveito de filhos ou de irmãos que tomari am
seu lugar. Essa visão pessimista se expressa também pela consciência aguda de que a lei do mau
forte governa o mundo (parábola do gavião e do rouxinol). Em compensação, Zeus é também
o responsável pela justiça, com a qual presenteou a humanidade e que os reis sábios sabem
aplicar, seguindo os conselhos do poeta inspirado de Apolo, deus da cadência harmoniosat
principalmente da justa medida. Aí está efetivamente a salvação do homem: encontrar em tudo
a proporção correta, assim como o plantador calcula suas sementes com a maior exatidão pos­
sível, e aproveitar o kairós (oportunidade, lugar certo e momento certo para cada atividade).
Portanto, o poeta dá a seu irmão muito mais que um conselho de sabedoria camponesa ao
concluir assim Os trabalhos: "Feliz e afortunado aquele que, sabendo tudo o q;e se refere aos
dias, faz seu trabalho sem ofender os imortais, consultando os avisos celestes e evitando todo
descomedimento (hjbris)." Assim os princípios básicos da moral grega ficam estabelecidos por
séculos e Hesíodo se junta a Homero no eminente papel de educador-encantador.

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