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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL

ADRIANA KEMP MAAS

A LEITURA COMO FORMAÇÃO DO SUJEITO-PROFESSOR(A)

Ijuí

2006
ADRIANA KEMP MAAS

A LEITURA COMO FORMAÇÃO DO SUJEITO-PROFESSOR(A)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Educação nas Ciências –
Mestrado - da UNIJUÍ – Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
em Educação nas Ciências - Letras.

Orientadora: Claudia Luiza Caimi

Ijuí

2006
À Graciana e à Joana Maria,

pela oportunidade de experienciar o amor em sua plenitude

e por resistirem a todas as limitações que

“minhas escolhas” estão impondo às nossas vidas.


AGRADECIMENTOS

Ao Gilberto, pelo apoio e dedicação, não só a mim, mas também às nossas filhas.

Ao meu pai, Ervino, e à minha mãe, Ilse, por me permitirem estar-aí.

À Armelinda e ao Veríssimo Maas, pela compreensão e pelo apoio.

À “Tia Tatina”, pelo carinho e pelo socorro tão necessários.

Ao meu nono, Ermindo Toso, pelo desejo de viver que tornou possível o que parecia
impossível: sobreviver a um grave acidente e driblar todas as suas seqüelas; o que me fez ver,
enquanto eu escrevia este texto, que a vida merece ser comemorada!

À Cleonice Ortiz, por cuidar, pacientemente, de minhas filhas e de minha casa,


amenizando um de meus limites para escrever.

Ao André Gagliardi, pela amizade, pelo carinho e pelo apoio constante.

À Lenir Brum, pela amizade e pelas experiências compartilhadas numa das curvas
irregulares da minha vida.

À professora Ercília Cazarin, pelos ensinamentos desde a formação inicial em Letras,


pela amizade, pelo constante incentivo e por tudo o que representa para mim por conseguir reunir
num só conjunto (a sua vida!) garra, trabalho e afetividade.

À professora Claudia Caimi, por me apresentar a obra de Jorge Larrosa, pelas


experiências de leitura promovidas em sua disciplina no Mestrado e, especialmente, por orientar-
me na escritura desta dissertação.
Aos professores e professoras do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em
Educação nas Ciências da UNIJUÍ, com os(as) quais tive o privilégio de dialogar nas disciplinas
que cursei.

Às colegas e aos colegas do Mestrado, turmas 2004 e 2005, com os(as) quais tive a
oportunidade de interagir durante os dois últimos anos, em especial, à Lala Marin e ao Airton
Almeida, também pela amizade e interlocução.

Às professoras entrevistadas, que contribuíram, com seus depoimentos, para o


levantamento de inquietações e para a sustentação do que se apresenta nesta pesquisa.

Ao Marcelo e à Angélica, secretários do PPGEC, pelo atendimento sempre atencioso e


amistoso.

À professora Maria Júlia Macagnan, pela provocação da vontade de fazer o Mestrado,


que “hibernava” em mim há algum tempo, e pela abertura para a realização do estágio de
docência no curso de Letras.

À Sabrina Corrêa, pelas conversas filosóficas e pelo incentivo.

Ao Marlon André da Silva, pelas aprendizagens compartilhadas e pelo exemplo de


determinação.

À professora Drª. Cátia Maria Nehring e ao professor Dr. Alfeu Sparemberger, pela leitura
atenta e pelas contribuições à qualificação do texto.

Ao professor Dr. Alfredo Veiga-Neto, pela lisura e pelo refinamento da apreciação que fez
do meu texto.

À UNIJUÍ, pela concessão da bolsa parcial durante o ano de 2004.

À CAPES, pela concessão da bolsa integral durante o ano de 2005.

A todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram para que esta dissertação
pudesse ser escrita, em especial, àquelas que me emprestaram livros.
“Porque a palavra que se toma não se toma porque se

sabe, mas porque se quer, porque se deseja, porque se

ama. Ao tomar a palavra, não se sabe o que se quer

dizer. Mas se sabe o que se quer: dizer. Um dizer em

que a liberdade ao mesmo tempo se afirma e se

abandona: se afirma abandonando-se, se abandona

afirmando-se”.

(Jorge Larrosa)
RESUMO

A problemática desta pesquisa diz respeito à implicação da leitura na formação de


sujeitos professores e professoras. Discuto a formação docente do ponto de vista da
subjetividade dos sujeitos docentes e de sua influência sobre a subjetividade dos alunos e
alunas (subjetivação). Para tanto, parto de uma problematização acerca do que é ser
professor(a), confrontando e/ou colocando em diálogo as noções colhidas da legislação
brasileira, do depoimento de professoras egressas de um curso normal de nível médio e
pós-médio existente em Ijuí-RS e do educador e teórico da educação Paulo Freire (1996),
de quem acolho a concepção de educação como prática social comprometida com a vida,
com a promoção existencial das pessoas. A proposição de se tratar da formação docente
como formação da subjetividade é sustentada com base em Tardif (2002), Bakhtin (1981)
Foucault (1972, 1995 e 2004) e Larrosa (1994), passando também pelas contribuições
teóricas de Bréal (1992) e Benveniste (1995). A formação docente concebida como
formação da subjetividade (com marcas sócio-culturais e históricas) de sujeitos em
interação com outros sujeitos (intersubjetividade) aponta para a linguagem como condição
de possibilidade do humano e, assim, para o diálogo como fundante da educação e da
própria subjetividade, perpassado também por relações de poder. A leitura, tal como é
promovida na maioria das escolas, funciona como uma técnica de disciplinamento, de
“formatação” de sujeitos. No entanto, com base em Larrosa (1996, 2001, 2002 e 2004),
concebo a leitura como um campo de possibilidade para o exercício intersubjetivo, como
experiência, encontro entre dois horizontes alargados. A possível contribuição desta
pesquisa centra-se na instigação para se pensar um outro lugar para a leitura na
formação de professores e professoras; um lugar central e, ao mesmo tempo, de
abertura; como uma prática que não privilegie somente o aspecto técnico-instrumental da
formação, ligado exclusivamente à dimensão epistemológica como fonte de informações
e/ou conhecimentos, enfim como instrumentalização para o ensino de determinados
saberes e/ou conteúdos. A perspectiva para a qual aponto é a de conceber a leitura como
espaço-tempo de construção/transformação da subjetividade dos sujeitos-leitores-
professores(as), capaz de potencializar o desenvolvimento integrado das três dimensões
concebidas como fundantes da docência: epistemológica, social e pessoal, dentro de um
contexto sócio-histórico e cultural amplo e complexo.

Palavras-chave: Formação de Professores(as), Experiência, Leitura, Subjetividade,


Intersubjetividade.
ABSTRACT

The matter of this research concerns the implication of reading on the teacher education of
some subjects. Teacher education is discussed from the teachers´ subjectivity point of
view and its influences on the student’s subjectivity (subjectivation). For that, I start with a
problematization about what is to be a teacher, confronting and/or putting the notions
collected from the Brazilian legislation into a dialogue, from the former students´
testimonies of a teaching high school and college course existing in Ijuí-RS, and also with
the educator and education theorist Paulo Freire (1996), from whom a gather the concept
of education as a social practice committed to life, to the existential promotion of the
people. The proposition of treating teacher education as a subjectivity construction is
based on Tardif (2002), Bakhtin (1981), Foucault (1972, 1995 and 2004) and Larrosa
(1994), passing through the theoretical contributions by Bréal (1992) and Benveniste
(1995). Teacher education conceived as a subjectivity construction (with historical and
socio-cultural traces) of subjects in interaction with other subjects (intersubjectivity) points
to language as a condition for the human possibility, and, thus, for the dialogue as a basis
for education and subjectivity itself, also passing by power relations. Reading, as it is
promoted in most of the schools, works as a disciplinary technique, as a “formation” of the
subjects. Nevertheless, based on Larrosa (1996, 2001, 2002 and 2004), I conceive
reading as a possibility field for the intersubjective exercise, a meeting point of two broad
horizons. The possible contribution of this research is centered in the instigation to think of
another place for reading in teacher education; a central place, and, at the same time, an
open place; as a practice which does not privilege only the technical-instrumental aspect
of education, linked exclusively to the epistemological dimension as a source of
information and/or knowledge, or as instrumentalization for the teaching of certain areas
and/or contents. The perspective I aim at is to conceive reading as a space/time for the
subjects/readers/teachers´ subjectivity construction/transformation, which is able to
potentialize the integrated development of the three dimensions conceived as founding for
teaching: epistemological, social and personal dimensions, within a broad and complex
socio-historical and cultural context.

Keywords: Teacher Education, Experience, Reading, Subjectivity, Intersubjectivity.


RESUMEN

La problemática de esta investigación dice respecto a la implicación de la lectura en la


formación de sujetos profesores y profesoras. Discuto la formación docente desde el
punto de vista de la subjetividad de los sujetos docentes y de su influencia sobre la
subjetividad de los alumnos y alumnas (subjetivación). Para eso, parto del problema
acerca de qué es ser profesor(a), cotejando e/o poniendo en diálogo las nociones
recogidas de la legislación brasileña, del testimonio de profesoras egresadas de curso
secundario y pos-secundario existentes en Ijuí-RS y del educador y pensador de la
educación Paulo Freire (1996), de quien acojo la concepción de educación como práctica
social comprometida con la vida, con la elevación de las condiciones de existencia de las
personas. La proposición de tratarse de la formación docente como formación de la
subjetividad se apoya en Tardif (2002), Bakhtin (1981), Foucault (1972, 1995 y 2004) y
Larrosa (1994), incluyendo las contribuciones teóricas de Bréal (1992) y Benveniste
(1995). La formación de profesores(as), concebida como formación de la subjetividad (con
rasgos socioculturales e históricos) de sujetos en interacción con otros sujetos
(intersubjetividad), apunta hacia el lenguaje como condición de posibilidad del humano y
así hacia el diálogo, como cimiento de la educación y de la propia subjetividad,
desplazándose también por relaciones de poder. La lectura, así como es fomentada en la
mayoría de las escuelas, anda como una técnica disciplinal, de “moldear” sujetos. En
tanto, basados en Larrosa (1996, 2001, 2002 y 2004), concebo la lectura como un campo
de posibilidad para el ejercicio intersubjetivo, como experiencia, encuentro entre dos
horizontes agrandados. La posible contribución de esta investigación dirige la atención
hacia la incitación, a fin de que podamos pensar otro lugar para la lectura en la formación
de profesores(as); un lugar central y, al mismo tiempo, de apertura; como una práctica
que no privilegia sólo el aspecto técnico-instrumental de la formación, enlazado
exclusivamente a la dimensión epistemológica como fuente de informaciones y/o
conocimientos, en fin, como instrumentación para la enseñanza de determinado saber y/o
contenido. La perspectiva a la que apunto es la de concebir la lectura como
espacio/tiempo de construcción/transformación de la subjetividad de los
sujetos/lectores/profesores(as), capaz de potenciar el desarrollo integrado de las tres
dimensiones que hemos concebido como cimiento de la docencia: epistemológica, social
y personal, dentro de un contexto socio/histórico y cultural amplio y complejo.

Palabras-clave: Formación de profesores(as), Experiencia, Lectura, Subjetividad,


Intersubjetividad.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 12

1 SER PROFESSOR(A): uma introdução ao problema............................................ 21

2 SUBJETIVIDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS).................................... 39


2.1 A subjetividade na linguagem e a linguagem na subjetividade............................ 42
2.2 A formação docente como processo de subjetivação.......................................... 50

3 SOBRE LEITURA, ESCOLARIZAÇÃO E EXPERIÊNCIA........................................ 58


3.1 A prática da leitura como um modo de “dar a ler” .............................................. 67
3.2 A experiência como o indeterminado da vida...................................................... 84
3.3 A leitura como experiência................................................................................... 92

“PEDRAS COMUNS, “PEDAÇOS DE VIDRO” E... NOVAS INQUIETUDES............. 97

REFERÊNCIAS............................................................................................................. 106

OBRAS CONSULTADAS............................................................................................. 109

ANEXOS........................................................................................................................ 111
INTRODUÇÃO

“... aprendemos, ao mesmo tempo, a falar como se


deve, a pensar como se deve, e a viver as relações
educativas como se deve. E sentimos, às vezes,
que já não podemos pensar o que todo o mundo
pensa, nem podemos dizer o que todo o mundo diz,
nem podemos viver como todo o mundo vive, e
sentimos, às vezes, certa inquietude que atravessa
nossa língua, nosso pensamento e nossa vida. E
quando sentimos isso, já estamos fora, fora dos
marcos que se nos impõe (e que nos constituem),
mas fora também de qualquer território seguro ou
assegurado”.
(Jorge Larrosa)

Lançar-se ao desafio de pesquisar e escrever sobre a pesquisa é

transitar em solo movediço, o que, ao mesmo tempo em que nos impõe o já

pensado, exige que sejamos capazes de pensar “por nós mesmos”. Nesse

movimento, somos interpelados por novas formas de pensar o já pensado, pois não

escrevemos a partir do nada; partimos de um lugar, que diz de nossos limites e cujas

possibilidades precisamos descobrir.

O caminho percorrido desde a concepção inicial do projeto de

pesquisa, ainda durante o processo seletivo para o ingresso no programa de

mestrado, implicou diversas voltas, curvas, vaivéns. Manteve-se a temática da

pesquisa, pois a formação de professores(as) constitui para mim um tema

inquietante, que me diz respeito, que me atravessa; e a leitura me faz. A leitura, no


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meu modo de ver, juntamente com outras práticas, nos torna o que somos e nos

permite um vir-a-ser; é potencialmente transgressora, subversiva, transformadora.

A disposição em pensar o tema da leitura dentro desse campo de

investigação – a formação docente – pode suscitar, num primeiro momento, algo

pouco original, pois ler é uma prática amplamente difundida nos processos

educativos em geral e é apontada como ação inerente à formação de

professores(as). Minha formação inicial em Letras já me mostrava isso; vários foram

os componentes curriculares dedicados à discussão de práticas de leitura; e todos,

inclusive aqueles cujo objeto de estudo não versava sobre leitura, tinham no ato de

ler uma de suas principais – geralmente a principal – “estratégia” de ensino-

aprendizagem. No entanto, a partir da minha inserção na atividade professoral,

foram emergindo em mim outras inquietações: que saberes me capacitariam para

conseguir êxito no processo ensino-aprendizagem com os(as) alunos(as)? Como/por

que eu tinha “alcançado” alguns saberes sem “aulas específicas” sobre eles e

como/por que outros, que eram objeto de alguma(s) disciplina(s) do curso, não

“estavam comigo”? A busca de respostas possíveis a essas interrogações me fez

ver que outros(as) professores(as) também carregavam consigo dúvidas

semelhantes, as quais encontrei, inclusive, norteando reflexões de estudiosos

dedicados a compreender os entraves que se apresentam à formação de

professores(as), bem como o processo de construção dos saberes docentes, quais

são esses saberes e como se constituem1.

1
Entre esses estudiosos, destaco: TARDIF, M. Saberes Docentes e Formação Profissional. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2002; PERRENOUD, P. Ensinar: agir na urgência, decidir na incerteza. Porto
Alegre: Artmed, 2001 e MARQUES, M. O. Aprendizagem na mediação social do aprendido e da
docência. 2 ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2000.
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Minha relação (passional) com a leitura, motivo de meu ingresso no

curso de Letras, começou a se delinear para mim como responsável por muitas

aprendizagens que, mesmo não sistematizadas, não ordenadas, compunham o meu

“jeito de dar aulas”. Jeito este marcado pela instigação à prática da leitura como

possibilidade de transpor limites (culturais, geográficos, históricos), de dialogar com

o diferente e com o distante (no tempo e no espaço) e de refletir sobre as “verdades”

instituídas, possibilitando a abertura para seu questionamento e desvelando sua

contingência e sua historicidade. O desejo de aprofundar reflexões sobre a temática

da leitura decorre, pois, de minha experiência pessoal como leitora e como

professora, conjugada à investigação acerca do processo de formação docente.

Penso que essa temática ainda oferece instigantes possibilidades de abordagem e

interlocução.

Nessa perspectiva, esta pesquisa dedica-se a problematizar a

implicação da leitura na formação de sujeitos-professores(as). O foco de estudo

incide sobre as experiências de leitura de professoras egressas2 de um curso normal

de nível médio e pós-médio existente no município de Ijuí-RS3. Cabe ressaltar que a

formação docente nesse nível é responsável por quase a metade dos(as)

professores(as) em atividade no Ensino Fundamental em todo o país, cujo total

supera 2 milhões de sujeitos; destes, 47,1% têm formação em nível médio, 51,2%

têm nível superior e 1,7% são leigos4. Esses dados são importantes à medida que

evidenciam um grande contingente de professores(as) egressos(as) de cursos

2
Refiro-me somente a professoras, no feminino, porque o grupo entrevistado é constituído
exclusivamente por mulheres.
3
As professoras ouvidas são egressas do Curso Normal de Nível Médio e Pós-Médio da Escola
Estadual Guilherme Clemente Köeller, que é hoje a única escola a oferecer curso normal no
município de Ijuí-RS.
4
fonte: http://novaescola.abril.com.br/ed/172_mai04/html/magisterio.htm. Acesso em 17/05/2005.
15

normais de nível médio na rede regular de ensino no país. Diante dessa

constatação, interessa-me estudar como se constitui esse sujeito docente que, na

prática, atua diretamente com e sobre outros sujeitos – alunos e alunas.

O objetivo geral é discutir leitura e formação do sujeito docente. Esse

objetivo desdobra-se em: 1. refletir sobre a formação do ser-professor(a); 2.

investigar e discutir como a leitura é concebida por professores(as) egressos(as) de

cursos normais a partir de sua prática docente. Acompanhando esses objetivos,

trago uma hipótese: a de que essa investigação e discussão pode indicar um

redimensionamento da compreensão do processo de formação de professores(as),

processo que não estaria atrelado somente à dimensão técnico-instrumental da

profissão, e sim à própria constituição do sujeito-docente.

Quando comecei este estudo, sabia sobre o que e por que pesquisar,

mas não tinha respostas à questão sobre como desenvolver a pesquisa. E esse

como, a metodologia da pesquisa, foi se constituindo, se concebendo no decorrer do

curso, nas leituras experienciadas, nos diálogos, na interlocução com meus outros

(orientadora, colegas, professores e professoras, amigos e amigas, professoras

entrevistadas), numa relação de alteridade. O projeto cresceu, ficou ousado, quis me

levar mais longe, mas somos feitos também de limites. Foi necessário delimitar, abrir

mão, por ora, de uma parte do que me interpelava, exigindo uma abordagem, um

estudo, uma interpretação.

Considerando que o dispositivo metodológico visa ao alcance dos

objetivos propostos, realizei uma pesquisa empírica e uma pesquisa teórica. A


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primeira consistiu na escuta de alunas egressas de um curso de magistério em nível

médio e pós-médio existente em Ijuí – RS, a partir de um roteiro de entrevista com

questões abertas sobre leitura e formação (anexo A). Esse roteiro, juntamente com o

projeto de pesquisa, foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da

UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul,

obtendo parecer favorável à implementação da pesquisa (Anexo B). Integram o

grupo de entrevistadas três alunas egressas do curso de magistério na modalidade

normal em nível médio, que atualmente cursam Pedagogia, e três egressas do

referido curso na modalidade normal em nível pós-médio, que não freqüentam

outros cursos de formação, mas estão em atividade, como professoras ou monitoras

em escolas de educação infantil. Das três primeiras, apenas uma exerce o

magistério.

Minha abordagem enfoca as falas das ex-alunas, agora professoras,

atuantes em educação, por já conseguirem certa articulação entre a prática como

alunas e a prática como professoras, o que, bem sabemos, exige uma inserção no

exercício da atividade professoral e implica uma temporalidade. Aparecem, portanto,

no decorrer do texto, as falas de quatro professoras, sendo uma egressa do curso na

modalidade normal de nível médio (identificada como Isadora) e três egressas do

curso na modalidade normal de nível pós-médio (identificadas como Marta, Luiza e

Natália). Esses nomes são fictícios, com vistas a garantir o anonimato aos sujeitos

da pesquisa, conforme determina a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de

Saúde.

As entrevistas foram gravadas em encontros individuais realizados na


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residência de cada uma das professoras, após explicitação das intenções e objetivos

da pesquisa, bem como informação das garantias oferecidas: anonimato, caráter

voluntário da participação e possibilidade de desistência a qualquer momento,

mesmo depois de concedida a entrevista5. Os depoimentos foram gravados em

áudio e posteriormente transcritos, na íntegra, tendo sido levados à verificação por

parte das professoras ouvidas, juntamente com o termo de consentimento livre e

esclarecido (anexo C), em duas vias. Depois de ler a transcrição de suas falas e

reconhecer a fidelidade da mesma àquilo que foi dito, cada uma das entrevistadas,

sempre individualmente, concedeu autorização para que eu pudesse levar adiante o

estudo e citá-las ao longo deste texto, assinando o referido termo, do qual também

ficaram com uma cópia.

No que tange à pesquisa teórica, tomo de cada um dos autores

estudados os conceitos que, na minha interpretação, são mais relevantes para a

reflexão a que me proponho acerca da temática desta pesquisa. Não tomo uma

teoria como base, mas não me furto a uma conceituação dos problemas tratados,

sobre os quais quero pensar criticamente, considerando cada sujeito ouvido na

pesquisa empírica, sem generalizações.

Com base nessa concepção, a pesquisa empírica fundou-se sobre o

perguntar e ouvir as professoras; não para fazer análise de suas falas a partir de

determinado referencial teórico, mas para perceber nessas falas, que podem ser

tomadas como um discurso sobre suas práticas pedagógicas, sobre práticas de

5
A definição do local e do horário para os encontros sempre foi feita pelas entrevistadas, cabendo a
mim o deslocamento ao seu encontro.
18

subjetivação e de auto-subjetivação, o que elaboram sobre sua atividade como

professoras e sua relação com a leitura.

Não pretendia, desde o início, e não quero “ler” as falas das

professoras à luz de referenciais de análise prévios, mas tomá-las como referenciais

para pensar a formação docente, como um discurso que desvela percepções e

concepções com as quais seja possível dialogar sobre essa formação. Não

pretendo, a partir do ‘testemunho’ das professoras, fazer qualquer afirmação de

caráter generalizador ou universalizante, primeiro, porque meu corpus empírico é

limitado e também porque, tendo como problema de pesquisa a formação do sujeito

docente, com recorte sobre suas práticas de leitura, estou lidando com

singularidades6. E faço isso de um lugar: o lugar do diálogo com os autores lidos,

assumindo meu gesto de interpretação de seus textos, bem como das falas das

professoras. Essa interpretação constitui um recorte e, como tal, carrega o risco de

descontextualização e, até mesmo, de distorção do que foi enunciado; por isso, meu

esforço em compreender e trazer para a minha escrita o contexto discursivo em que

as palavras foram enunciadas pelas professoras. A percepção/interpretação das

falas, que dizem da subjetividade de cada sujeito enunciador, também é atravessada

pela minha subjetividade (inconclusa, cindida, descentrada). Portanto, minha

abordagem constitui uma perspectiva, dentre outras possíveis, e pela qual sou

responsável, não como autora/identidade centrada e segura, mas como sujeito

interpelado, atravessado por experiências, saberes, emoções...

6
Cabe, porém, ressaltar que o singular também se constitui num campo cultural/coletivo. Conforme
Chartier (2005), é ilusório pensar que as experiências são muito originais, singulares, pessoais,
quando são, na verdade, freqüentemente, experiências coletivas, compartilhadas com as pessoas
pertencentes a uma mesma geração. Goulemot (1996), também nesse sentido, escreve: “Parece-me
evidente que, em grande parte, o que construímos como nossa história pessoal pertença, em boa
parte de seus aspectos, a uma narração cultural” (p. 110).
19

O texto está organizado em três capítulos. No primeiro, parto de uma

problematização acerca do que é ser-professor(a), fazendo dialogarem as noções

colhidas da legislação brasileira, do depoimento das professoras entrevistadas e do

educador e teórico da educação Paulo Freire (1996). Com ele, destaco o caráter

contingencial e sócio-histórico da formação, pois penso que refletir sobre a formação

docente implica reconhecer a legitimidade da seguinte pergunta: formar docentes

para quê? Ou: a que fins serve a formação de professores(as)? Acolho desse autor

a concepção de educação como prática social comprometida com a vida, em todos

os seus aspectos, e me dedico a problematizar a relação entre as exigências legais

para a formação de professores(as) e o processo de formação efetivado na prática,

visto aqui a partir dos depoimentos das professoras entrevistadas.

O segundo capítulo discute a formação de professores(as) do ponto de

vista da subjetividade dos sujeitos docentes em sua interação com e “sobre” outros

sujeitos. A proposição de se tratar da formação docente como formação da

subjetividade é introduzida a partir de Tardif (2002) e sustentada com base em

Bakhtin (1981), Foucault (1972, 1995 e 2004) e Larrosa (1994), passando também

pelas contribuições teóricas de Bréal (1992) e Benveniste (1995). As reflexões

tecidas nesse tópico apontam para a linguagem como condição de possibilidade do

humano e para o diálogo como fundante da subjetividade, perpassado também por

relações de saber-poder7. Trata-se de reconhecer a subjetividade como

7
A partir de Foucault (2004), entendo que os discursos veiculam saberes que constroem verdades,
as quais são incorporadas/mobilizadas para a ação de disciplinar, controlar e docilizar os corpos. O
corpo, portanto, é um campo de saber e alvo dos mecanismos de poder (p. 132). O poder a que me
refiro aqui é o definido por Foucault como poder disciplinar, que “em vez de se apropriar e de retirar,
tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e
melhor” (p. 143). Trata-se de uma forma de poder que tem na disciplina sua técnica específica com
vistas a tomar os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. O
poder, em Foucault, não é triunfante, mas sim capilar, ou seja, ele emana de todos os poros da
sociedade, concretizando-se em relações de poder. Assim, quem se apropria do saber, das verdades
20

intersubjetivamente construída. Cabe perguntar: Qual a relevância disso para o tema

da formação docente? O que isso tem a ver com leitura? Essa discussão assume

uma conotação importante no contexto de minhas reflexões.

No terceiro capítulo, o foco da discussão incide sobre leitura,

escolarização e experiência. A sustentação teórica é buscada em Larrosa (1996,

2001, 2002 e 2004) e Benjamin (1983). A leitura, tal como é promovida na maioria

das escolas, funciona como uma técnica de disciplinamento, de “formatação” de

sujeitos8; no entanto, com base em Larrosa, concebo-a como um campo de

possibilidade para o exercício intersubjetivo, como experiência, encontro entre dois

horizontes alargados.

O desafio a que me lanço nesta pesquisa consiste em desvelar uma

possibilidade de se pensar um outro lugar para a leitura na formação de

professores(as); um lugar central e, ao mesmo tempo, de abertura. Trata-se de

reconhecê-la e promovê-la como uma prática que não privilegie somente o aspecto

técnico-instrumental da formação, ligado exclusivamente à dimensão epistemológica

como fonte de informações e/ou conhecimentos, enfim como instrumentalização

para o ensino de determinados conteúdos e/ou saberes. A perspectiva para a qual

aponto é a de conceber a leitura como prática de construção/transformação da

subjetividade dos sujeitos-leitores-professores(as), capaz de potencializar o

desenvolvimento integrado das três dimensões destacadas como fundantes da

docência: epistemológica, social e pessoal, dentro de um contexto sócio-histórico e

cultural amplo e complexo.

que ele inventa, ocupa posição privilegiada nessas relações.


8
A escola, ao lado de outros espaços institucionais, atua em determinados campos de saber-poder
que inventam/constroem e reconstroem subjetividades (FOUCAULT, 2004).
1 SER-PROFESSOR(A): uma introdução ao problema

“O contexto pedagógico atual se caracteriza pelo


privilégio de um modo técnico-científico de elaborar
a idéia de educação e pelo privilégio de sua
legitimação do ponto de vista da efetividade e
competência”.
(Jorge Larrosa).

A legislação vigente no Brasil admite como formação mínima para o

exercício do magistério na educação infantil e nos anos iniciais do ensino

fundamental a oferecida em Cursos Normais de Nível Médio ou Pós-Médio9. As

Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores(as) nesses níveis

implicam o desenvolvimento de competências10 que abrangem diferentes dimensões

da profissão: competências referentes ao comprometimento com valores estéticos,

políticos e éticos inspiradores da sociedade democrática; competências referentes à

compreensão do papel social da escola; competências referentes ao domínio dos

conteúdos a serem socializados, de seus significados em diferentes contextos e de

sua articulação interdisciplinar, bem como competências referentes ao domínio do

conhecimento pedagógico e ao conhecimento de processos de investigação que

9
A Resolução do Conselho Nacional de Educação – Câmara da Educação Básica nº 2/99, em seu
Art. 1º, rege: “O Curso Normal em nível Médio, previsto no artigo 62 da Lei 9394/96, aberto aos
concluintes do Ensino Fundamental, deve prover, em atendimento ao disposto na Carta Magna e na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDBEN, a formação de professores para atuar como
docentes na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, acrescendo-se às
especificidades de cada um desses grupos as exigências que são próprias das comunidades
indígenas e dos portadores de necessidades educativas especiais”.
10
Ao empregar o termo competência(s), no contexto desta dissertação, não estou me referindo ao
aspecto tecnicista que o conceito pode, por um lado, mobilizar e que implica apenas a conformação
da subjetividade dos(as) trabalhadores(as) aos “ideais progressistas” do capital. Estou acolhendo o
conceito de competências a partir da abordagem histórico-crítica desenvolvida por Werner Markert,
no artigo “Trabalho e Comunicação: reflexões sobre um conceito dialético de competência” (In:
Educação & Sociedade, ano XXIII, n. 79, ago. 2002). Esse autor pensa “um conceito integral de
competências, que reflete as relações complexas entre o mundo do trabalho e o mundo da vida” (p.
189). Emprego, também, o termo saber na mesma acepção a que me refiro a competência, ou seja,
as referências que faço a esses dois termos – competência e saber – não têm uma conotação
meramente funcionalista em relação às práticas cotidianas do(a) professor(a), e sim remetem ao
caráter essencialmente político e intersubjetivo dessas práticas.
22

possibilitem o aperfeiçoamento da prática pedagógica e ao gerenciamento do

próprio desenvolvimento profissional11.

Reconhecer essas competências como intrínsecas à docência implica

pensá-la como uma área que integra, essencialmente, três dimensões:

epistemológica, social e pessoal. Essas dimensões, por sua vez, têm

especificidades, mas são interdependentes e estabelecem relação com outros

elementos.

A dimensão epistemológica diz respeito à relação do sujeito-

professor(a) com o objeto de saber que tem o compromisso de ensinar, bem como a

mediação que precisa estabelecer entre esse objeto de saber e os(as) alunos(as).

Tal relação exige do(a) professor(a) uma série de competências e é perpassada

pelas dimensões social e pessoal, que dizem respeito à sua relação com os sujeitos

alunos e alunas e com a comunidade, mas também, à sua relação consigo mesmo,

dentro de uma realidade, de um campo sócio-cultural e econômico.

Pensar o desenvolvimento integrado dessas três dimensões aponta

para o tempo de duração e para a organização curricular dos cursos de formação de

professores(as). Os Cursos Normais de Nível Médio têm, em sua maioria, duração

de quatro anos e meio e o compromisso de garantir o domínio dos conteúdos

curriculares necessários à constituição de competências gerais e específicas; em

geral, recebem alunos(as) recém-saídos do ensino fundamental, que cursam, ao

mesmo tempo, os componentes curriculares do ensino médio e os específicos da

11
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores(as) em cursos normais
constam da Resolução do Conselho Nacional de Educação – Câmara da Educação Básica nº 2/99.
23

formação para a docência na educação infantil e séries iniciais. Os Cursos Normais

Pós-Médio, por sua vez, recebem alunos(as) que já concluíram o ensino médio; no

entanto, têm apenas dois anos e meio de duração. O documento legal que

estabelece as diretrizes para a formação de professores(as) nesses níveis preceitua

que:

[...] as áreas ou os núcleos curriculares são constitutivos de


conhecimentos, valores e competências e deverão assegurar a
formação básica, geral e comum, a compreensão da gestão
pedagógica no âmbito da educação escolar contextualizada e a
produção de conhecimentos a partir da reflexão sistemática sobre a
prática (Resolução do Conselho Nacional de Educação – Câmara da
Educação Básica nº 2/99).

Não obstante o que prescreve essa Resolução, na prática ainda

prevalece o que se verifica nas escolas de um modo geral, ou seja, a lógica

disciplinar. O depoimento de algumas das professoras entrevistadas, referindo-se às

áreas estudadas durante o curso de formação, evidencia a separação que ainda

prevalece entre elas, bem como a importância atribuída a alguns componentes

curriculares, para os quais se concede mais tempo, em detrimento de outros:

Não tinha [filosofia]. Só no primeiro. Mas... foi dada uma pincelada


só, que eu lembre. Trabalhos, mais pesquisas. E as didáticas eu
achei bem importante, porque ali é que tu mostra realmente pro
aluno o que é ser professor... (Luiza).

Tem filosofia no primeiro ano, Sociologia, Antropologia... Literatura


teve todos os anos; e as pedagógicas também (Marta).

Esses depoimentos trazem à tona um paradoxo no que diz respeito à

formação de professores(as). Evidencia-se, a partir das determinações legais

constantes nas diretrizes para a formação docente, na modalidade normal, um

elevado nível de exigência em relação à qualificação dos(as) professores(as)


24

egressos(as), que requer o desenvolvimento de múltiplas competências. No entanto,

a ausência de ligação, de diálogo, entre as áreas e a distribuição desigual dos

tempos destinados a cada uma acabam por funcionar como potentes “bloqueadores”

desse desenvolvimento ao invés de promovê-lo. Mais adiante, veremos como isso

se dá com relação à leitura.

Vejamos o que dizem duas das professoras entrevistadas, em resposta

à pergunta “o que você considera necessário para ser professor(a)?”:

Eu acho que em primeiro lugar tem que gostar muito do que tu faz,
ser professor. Porque se tu não gostar, não adianta, porque a área
da educação envolve muito da pessoa, tanto psicológico, como o
trabalho do dia-dia, porque o professor é muito sugado em escola,
ele sofre muito... (Luiza).

Realmente eu acho que é gostar e querer ser professora [...]eu acho


que o que precisa mesmo pra ser professor é gostar, e gostar muito,
de buscar. [...] eu acho que pra ser professor hoje, né, realmente, é
preciso gostar daquilo. Não dá pra você ir pra lá e pensar assim que
é muito tranqüilo. Eu só fui por isso, porque é uma coisa que eu
sempre gostei (Marta).

No que tange à atuação em educação infantil, há, ainda, outro aspecto

exigido dos(as) professores(as): o cuidado com as crianças.

Porque te largam 30 anjinhos ali e tu tem que dar conta. E não pode
acontecer nada! A responsabilidade é toda tua. Existe uma grande
responsabilidade, uma criança cai, se machuca, o que tu vai dizer
pros pais?! (Luiza).

Para além das competências intelectuais/cognoscitivas exigidas do(a)

professor(a) no exercício da docência, especialmente na educação infantil e nas

séries iniciais, há a responsabilidade para com o cuidado que precisa dispensar às

crianças, bem como com a afetividade. Sela-se uma espécie de compromisso afetivo
25

com os “pequenos” e, também, com as famílias. A afetividade, assim como o

cuidado, não é só uma conseqüência, que resulta do contato diário com as crianças,

mas sim uma necessidade:

A gente enfrenta muita coisa ruim, pais relapsos, mães que não
estão nem aí pros filhos, crianças doentes que tem que dar jeito
porque os pais não dão. Mandam pra escola às 7 h da manhã pra
ficar até as 6h da tarde, sem fralda, sem roupa; tu que tem que dar
jeito. [...] Crianças que largam lá e saem correndo; aí tu vai ver a
criança, tá com quase 40 de febre; daí tu liga, não vão buscar; dali a
pouco dá uma convulsão, tu tem que sair correndo. Essas coisas são
do nosso dia-a-dia (Luiza).

[...] uma ligação muito grande, às vezes isso extrapola, porque eu


acho que eles fazem uma transferência... eu tive um caso bem sério
de um aluno que fez uma transferência da mãe, que ele não tinha.
Daí precisa um jogo de cintura, tem muitas vezes que tu acaba te
envolvendo realmente... e é só a prática que vai te dizer o que tu tem
que fazer. Isso me manteve, isso não quer dizer que eu não possa
me envolver, que eu tenha que ser fria, mas eu tenho que estar
consciente do meu papel, eu não posso entrar nessa transferência
com a criança, porque às vezes a questão de vida dela é tão sofrida
que tu entra, tu já tá querendo botar ela no colo e trazer pra casa...
(Natália).

Se, por um lado, o cuidado e o afeto são necessários em situações de

risco social das crianças, em virtude da miséria e/ou da negligência dos pais ou

responsáveis, por outro, constituem uma exigência para que o próprio processo

ensino-aprendizagem possa ser desencadeado:

Acho que a primeira coisa é gostar de criança. Se tu não tem aquela


harmonia com as crianças, aí não flui, não vai pra frente... (Isadora).

Essas considerações evidenciam a multiplicidade de aspectos

envolvidos no exercício docente, principalmente na educação infantil e séries iniciais.

Acrescenta-se a isso o fator econômico como um entrave à formação e à atuação

dos(as) professores(as).
26

O financeiro é difícil... E daí eu acho que tem que gostar muito, e ter
muita paciência (Luiza).

[...] não dá dinheiro, não dá pra pensar assim ‘eu vou lá, dou aula
quatro horas e pronto’, porque não é assim; pra você ser professora
eu penso que precisa gostar, gostar muito daquilo ali que você vai
fazer, do trabalho que você vai fazer. Porque daí eu acho que o que
tu vai ganhar vai valer a pena, porque tu vai estar fazendo o que tu
gosta... (Marta).

Uma pesquisa sobre o perfil dos(as) professores(as) brasileiros(as),

realizada em 2004, mostra as dificuldades enfrentadas pelos mesmos para

acompanhar o avanço da tecnologia e ter acesso a atividades culturais. Mais de

40% dos(as) docentes entrevistados(as) foram no máximo uma vez a museus,

23,5% lêem jornal apenas uma ou duas vezes por semana, 58,4% nunca usam a

Internet e quase 60% não têm correio eletrônico. A maioria, 74,3% tem como

principal forma de lazer a televisão12.

A remuneração e as condições de vida dos(as) professores(as)

constituem fatores que fragilizam a docência em nosso país. Em função da má-

remuneração, esses sujeitos, de um modo geral, não dispõem de recursos

financeiros para investir em sua formação continuada, que depende não apenas da

participação em cursos, mas também da compra de livros, do acesso a atividades

artístico-culturais, a bens tecnológicos etc. e, ainda, são obrigados a submeter-se a

uma sobrecarga de trabalho a fim de garantir sua sobrevivência. O aspecto

12
A referida pesquisa foi realizada pela Unesco no Brasil, em parceria com o Ministério da Educação
(MEC), o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o Instituto Paulo
Montenegro e a Editora Moderna, e apresenta “um retrato” dos(as) professores(as) brasileiros(as) de
ensino fundamental e médio em escolas públicas e privadas de todo o país. A pesquisa “O perfil dos
professores brasileiros: o que fazem, o que pensam, o que almejam..." (São Paulo: Moderna, 2004)
contempla características sociais, econômicas e profissionais e foi construída a partir de questionários
respondidos por 5 mil docentes em todas as regiões do país.
27

econômico-financeiro constitui, reconhecidamente, um significativo entrave que se

apresenta à formação e ao exercício docentes em nosso país de forma geral e, de

maneira mais ou menos radical, em algumas regiões brasileiras. Não cabe, contudo,

debruçar-me sobre essa questão em minha pesquisa. Uma abordagem razoável

acerca desse ponto exigiria outro estudo, com outro enfoque e outros referenciais.

A partir dessas considerações, evidencia-se, todavia, a complexidade

da formação de professores(as), sobretudo no nível médio e pós-médio. A

dificuldade de acesso aos recursos materiais necessários; o tempo de duração dos

cursos; a organização curricular e sua efetivação na prática das escolas de formação

constituem aspectos que contrastam com as competências exigidas para e pelo

exercício docente. Acrescento a isso a compreensão de que a prática efetivada nas

escolas não é determinada por preceitos e/ou exigências legais, mas sim pelos

sujeitos que fazem o dia-a-dia da educação, como destaca uma das professoras

ouvidas:

[...] depende do profissional que tá lá dentro trabalhando. Não é


porque tá instituído em lei, não é porque uma secretaria tá colocando
isso, que isso vai ser feito. Isso depende do comprometimento de
quem tá lá. Se eu não for comprometida, eu posso te dizer: se eu
não sou comprometida com isso, se eu não tenho essa visão de
trabalho, o que eu posso fazer? Simplesmente chegar lá, cumprir
minha carga horária, virar as costas e vir embora (Natália).

Pensar a formação de professores(as) implica refletir acerca da

pergunta: formar professores(as) para quê? Para transmitir/repassar:

conteúdos/conhecimentos; verdades/valores? Para desenvolver habilidades? Para

problematizar/questionar: a realidade; os valores vigentes; as verdades instituídas?

Para “dar o mundo” já pensado? Ou para ensinar a pensar?


28

Paulo Freire, na obra Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à

prática educativa (1996), define formação em oposição a treinamento: “[...] formar é

muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas [...]”

(p. 15). Esse autor começa sua reflexão convidando a pensar sobre as atividades de

cozinhar e velejar. Ambas exigem alguns saberes, e é, segundo ele, na prática de

qualquer uma delas que se confirmam, se modificam e/ou se ampliam esses

saberes. Assim também ocorre com a prática educativa: há saberes indispensáveis

que precisam fazer parte dos programas de formação de professores(as). Nesse

sentido, a primeira questão ressaltada pelo autor é a necessidade de o(a)

professor(a), desde o princípio de sua experiência formadora, se convencer “de que

ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua

produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p. 25).

Quero destacar o termo “experiência”, aludido pelo autor, em dois

aspectos. Primeiro, ao afirmar que o aprendizado da docência ocorre, efetivamente,

em sua prática, Freire (1996) aponta para uma noção de experiência relacionada ao

fazer do(a) professor(a). A partir dessa concepção, aprende-se a ser professor(a) ou

aperfeiçoa-se o fazer docente no decorrer de sua prática. Esse aspecto da noção de

“experiência” liga-se ao trabalho cotidiano da docência; trata-se de uma modalidade

de aquisição, desenvolvimento e/ou aperfeiçoamento de saberes no exercício

prático da profissão docente.

Já, na seqüência, ao se referir ao ensino como criação de

possibilidades para a produção ou construção de conhecimentos, o autor, no meu


29

modo de interpretar, concede à experiência outra ênfase, agora estreitamente ligada

à subjetividade do(a) professor(a). A noção de experiência formadora, que Freire liga

à idéia da criação de possibilidades para a produção ou para a construção de

conhecimentos, transcende a concepção de experiência como algo que se adquire

no exercício prático de uma atividade e que proporciona um aperfeiçoamento desse

exercício. Ambas as noções implicam uma temporalidade e merecem discussão.

Voltarei a esse ponto no terceiro capítulo.

De acordo com Freire (1996), o processo de formação docente é

permanente e a relação entre educador(a) e educando(a) precisa ser dialógica.

Refletir sobre a formação docente requer, necessariamente, considerar a finalidade

a que se destina, que é ensinar. E a reflexão sobre a prática de ensinar, por sua

vez, conduz a pensar sobre aprender, uma vez que:

Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo


socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram
que era possível ensinar [...] Aprender precedeu ensinar ou, em
outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante
de aprender. Não temo dizer que inexiste validade no ensino de que
não resulta um aprendizado... (FREIRE, 1996, p. 26).

A prática educativa consiste em ensinar-aprender. E a autenticidade

dessa prática, segundo o autor, implica uma experiência total, em todos os aspectos

da vida humana, em que a beleza deve andar junto com a decência e a seriedade.

Essa concepção aponta para a noção de Ser-Professor(a), que transcende o saber-

fazer e refere-se à subjetividade. Compreendo essa experiência total mencionada

pelo autor como a integração das três dimensões que descrevi anteriormente:

epistemológica, social e pessoal.


30

O educador e/ou a educadora, na concepção de Freire (1996), precisa

ser não um transmissor de conhecimentos ou um treinador de habilidades e

competências, mas um problematizador. Nesse sentido, “[...] ensinar não se esgota

no ‘tratamento’ do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à

produção das condições em que aprender criticamente é possível” (p. 29). Cabe

ao(à) professor(a) não só ensinar conteúdos, mas ensinar, também, a ‘pensar certo’.

O conceito ‘pensar certo’ é definido por Freire (1996) como uma maneira de pensar

que não toma as verdades/certezas do sujeito pensante como indubitáveis, mas,

pelo contrário, coloca-as em questionamento, abrindo o próprio sujeito à reflexão e à

crítica13.

Nesse sentido, entendo que o(a) professor(a) precisa, ele mesmo,

antes de mais nada, aprender a pensar. Essa necessidade também foi apontada por

uma das professoras entrevistadas, ao se referir à dificuldade percebida durante seu

estágio com alunos(as) que apresentavam muitas limitações na fala, que não

conseguiam se expressar por desconhecerem os nomes dos objetos, designando

todos pela palavra “coisa”:

[...] as crianças... não é que não tenham (eu não gosto de dizer... os
livros até dizem assim ‘fala pobre’ ou ‘não têm fala’ ou coisa assim!),
não tenho outra palavra... mas é mais ou menos isso aí. Isso aí me
fazia ficar: ah, mas daí como é que eu vou fazer pra que eles
descubram que as coisas têm nome, que aquele coiso de fazer uma
coisa é uma coisa que tem nome? Então eu procurava trazer novas
palavras, dizer o nome pra eles dizerem, até pra ampliar; porque o
trabalho do professor é fazer com que o mundo deles seja ampliado,
né; pra que eles descobrissem que existem outras coisas que são

13
Quando me refiro à dimensão reflexiva e/ou crítica do exercício docente, no contexto desta
abordagem, não se trata da noção de reflexão típica da ordem racional, baseada no distanciamento
entre o sujeito pensante e o objeto pensado, mas sim como elemento constitutivo do próprio pensar;
concebo a reflexão como abertura à linguagem e a novas possibilidades de sentido. Assim também, a
noção de crítica que mobilizo não diz respeito à crítica de opinião, baseada no raciocínio lógico-
dedutivo, mas a uma dimensão de abertura do sujeito a novas possibilidades interpretativas.
31

importantes [...] eu podia ter pensado ‘vou fazer isso e pronto!’ Não!
Tem que esperar chegar lá, conhecer eles, ver o que eles não
faziam, eu jamais podia imaginar que tivesse crianças assim, 6 anos
que não soubessem pegar uma corda e pular! E eles não sabiam. Eu
não poderia imaginar que criança com 6 anos não saberia aparar
uma bola! E eles não sabiam. Então foi uma realidade assim... [...] a
importância que é, que você tem que valorizar, você não pode levar...
ah, mas esse livro14 diz que é pra fazer isso no pré. Nada do que os
livros do pré me diziam pra fazer eu podia fazer! No início eu fiquei
assustada, [...] tudo que eu olhei lá não dá pra fazer! Eu falava com a
coordenadora: eles não conhecem a letra; eu falava com a
professora... ‘Tu olha pra eles e pensa no que fazer!’. Então, no fim,
teve de ser só no PENSA! (Marta)

O depoimento dessa professora destaca uma dificuldade enfrentada

durante sua prática docente, para a qual não havia respostas prontas em nenhum

livro, nem mesmo na prática de outros(as) professores(as), senão na sua

capacidade de reflexão sobre a realidade, considerando a situação concreta e

acionando sua bagagem de conhecimentos. Também essa reflexão pode ser

aproximada ao pensamento de Freire (1996) quando este afirma que, como seres

humanos, estamos no mundo e com o mundo e uma das belezas disso reside

justamente na capacidade que temos de intervir no mundo, conhecendo-o e

podendo transformá-lo. Com base nessa concepção, o autor ressalta a importância

de o(a) professor(a) abrir-se ao conhecimento já existente (historicamente

produzido), bem como à produção de novos conhecimentos a partir dos já

existentes. Ele define esses dois momentos de abertura (ao conhecimento

existente/produzido e à possibilidade de produção de novos/outros conhecimentos)

como integrantes do ciclo gnosiológico, ou seja, integrantes do processo de reflexão

sobre os limites da faculdade humana de conhecimento e os critérios que validam as

condições de verdade de nossos conhecimentos. O autor afirma que ensinar,

aprender e pesquisar são atividades que lidam diretamente com esses dois

14
A professora entrevistada está se referindo aos livros que oferecem atividades didático-
pedagógicas a serem utilizadas em sala de aula, tomando como critério a divisão por séries escolares
(livros didáticos e manuais do professor).
32

momentos. Conforme Freire (1996), o ato de ensinar, dedicado, efetivamente, ao

aprender, exige pesquisa; não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Para

ele, o problema, no campo da educação, consiste no fato de que nem sempre o(a)

professor(a) se reconhece (se percebe e se assume) como um(a) pesquisador(a).

Os conceitos curiosidade epistemológica e pensar certo perpassam

todas as concepções que Freire (1996) elenca como saberes necessários à

atividade docente. Segundo o autor, pensar certo é uma exigência que a abertura ao

conhecimento (já existente e possível de ser produzido) impõe à curiosidade do

sujeito. Assim, à medida que avança na superação do senso comum, o sujeito

transita da ingenuidade à curiosidade epistemológica, ou seja, ao estudo, à

pesquisa, orientado por um rigor investigativo, que vai permitindo ir além do

conhecimento do senso comum. Nesse sentido,

Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito


ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o
respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o
compromisso do educador com a consciência crítica do educando
cuja ‘promoção’ da ingenuidade não se faz automaticamente
(FREIRE, 1996, p. 32-3).

Outra exigência da atividade docente sobre a qual Freire (1996)

discorre se refere ao respeito aos saberes dos educandos. É imprescindível ao

exercício da docência o desenvolvimento da capacidade de considerar os saberes

dos educandos e educandas, partindo desses saberes para possibilitar aos sujeitos

a ampliação de seu universo cultural e intelectual. Com vistas a isso, enfatiza a

necessidade de contextualização dos saberes a serem ensinados, partindo da

realidade circundante, dos problemas que afligem os alunos e alunas, suas famílias,

enfim, a comunidade. Assim, concebe a educação como prática social comprometida


33

com a vida e cujo objetivo é a promoção existencial das pessoas, o alargamento de

seu horizonte de percepção e de perspectivas.

Esse tipo de educação exige professores(as) que não só dominem

determinados saberes e sejam capazes de transpô-los aos alunos(as), mas também

que sejam sensíveis à realidade na qual os mesmos estão inseridos e capazes de

estabelecer relações entre os saberes que têm o compromisso de ensinar e essa

realidade; capazes de perceber as potenciais possibilidades que os saberes podem

oferecer às pessoas. Requer professores(as) capazes de proporcionar aos(às)

alunos(as) “experiências totais”. Cabe, a partir dessa percepção, questionar: o que,

quais saberes e/ou circunstâncias/experiências formam esses(as) professores(as)?

Voltarei a essa pergunta ao final de minhas reflexões. Por ora, interessa-me avançar

na discussão sobre esse perfil docente esboçado por Freire (1996).

Outra competência necessária ao(à) professor(a) é a criticidade. As

reflexões propostas por Freire acerca desse aspecto da prática educativa aproximam

as noções de ingenuidade e criticidade, bem como as noções de saber do senso

comum e saber científico. Segundo o autor, mesmo havendo diferença e relativa

distância entre essas noções, não há ruptura, mas sim superação. Para ele, tanto os

conhecimentos feitos da experiência, sem nenhum rigor científico, quanto os

conhecimentos produzidos cientificamente partem de um ponto comum: a

curiosidade. “Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos

põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a

ele algo que fazemos” (FREIRE, 1996, p. 35). O autor enfatiza a função da

educação na promoção da curiosidade humana, que “vem sendo histórica e


34

socialmente construída e reconstruída” (FREIRE, 1996, p. 35). Promover a

ingenuidade elevando-a ao status de criticidade é tarefa da prática educativo-

crítica15.

Ensinar exige, ainda, conforme Freire (1996), estética e ética. Segundo

ele, somos seres éticos e estéticos e, por isso, a beleza e a decência, sem

moralismo e/ou puritanismo, devem caracterizar, também, a prática educativa.

Nesse sentido, o autor une as noções de promoção da ingenuidade em criticidade

às noções de ética e estética. Assim:

[...] transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico


é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício
educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser
humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação
moral do educando. Educar é substantivamente formar (FREIRE,
1996, p. 37).

Apreendo, ainda, de Freire (1996) a concepção de que ensinar exige a

corporeificação das palavras pelo exemplo. De acordo com o pensador:

Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em


lugar de desdizê-lo. Não é possível ao professor pensar que pensa
certo mas ao mesmo tempo perguntar ao aluno se ‘sabe com quem
está falando’ [...] o pensar certo a ser ensinado concomitantemente
com o ensino dos conteúdos não é um pensar formalmente anterior
ao e desgarrado do fazer certo. Neste sentido é que ensinar a pensar
certo não é uma experiência em que ele – o pensar certo – é tomado
em si mesmo e dele se fala ou uma prática que puramente se
descreve, mas algo que se faz e que se vive enquanto dele se fala
com a força do testemunho (FREIRE, 1996, p. 39-41).

Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de

discriminação. Pensar certo não significa ter certeza inabalável sobre o que se
15
Concepção de educação defendida por Freire, em contraposição à prática educativa fundada na
transmissão de conteúdos e no treinamento de algumas habilidades racionais, à qual Freire
denomina “educação bancária”, baseada no depósito de conteúdos, numa analogia com a prática dos
depósitos de valores monetários em instituições financeiras (Bancos).
35

pensa; ao contrário, pensar certo implica questionar-se, abrir-se ao risco e à

aceitação do novo. No entanto, aceitar o novo também não significa acolhê-lo só por

ser novo. “O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou

marca uma presença no tempo continua novo” (FREIRE, 1996, p. 39). Pensar certo

implica, também, rejeitar qualquer forma de discriminação e exige humildade; requer

pensar em defesa da natureza humana, “Natureza entendida como social e

historicamente constituindo-se e não como um ‘a priori’ da História” (FREIRE, 1996,

p. 41).

Ensinar exige, também, reflexão crítica sobre a prática. A capacidade

de refletir sobre a própria experiência didático-pedagógica e também sobre a

atividade de outros(as) professores(as) é ressaltada por Freire (1996) como

exigência à formação docente. A interação e a troca de experiências entre colegas

durante o processo de formação também são destacadas pelas professoras ouvidas

durante a pesquisa:

Então isso eu acho que me ajudou bastante, eu tive lá uma fala, uma
realidade; daí vim pra cá, outra realidade16. [...] isso também
enriquece bastante, daí tu vê quem tá buscando estudar. E tu pensa:
mas essa não vai dar de jeito nenhum! Depois soube, conversando
com as colegas, que foi um excelente estágio e deu uma ótima
professora. Mas lá, na hora da formação, não parece. Espevitada,
parece assim, mas da onde que saiu isso, eu não deixaria meu filho
com essa professora de jeito nenhum. Tem essas histórias também;
então isso ajuda a pensar e enriquecer: quem são as professoras!?
(Marta).

[...] têm muitos relatos de professores, relatos de experiências, que


professores contam que também já passaram por isso, enfrentaram
essas vivências, essas realidades, acho que é bastante interessante
a gente ler e estar por dentro dessas histórias... (Isadora).

Fazer uma troca, mostrar o projeto pra ver o que foi bom, o que não
foi. Isso era feito, há anos atrás isso era feito, mais pela Secretaria

16
A entrevistada está se referindo às duas escolas de formação que freqüentou, em cidades distintas.
36

[Municipal de Educação] e foi até parado de fazer. Eu acho uma


pena, porque se trocava muita experiência com isso. (Luiza).

Ainda acerca da exigência de reflexão crítica sobre sua prática e a do

outro, Freire (1996) afirma:

[...] é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz


de educador assuma que o indispensável pensar certo não é
presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que
iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo
contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser
produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor
formador (p. 43).

Outro elemento que o exercício docente requer dos(as)

professores(as), conforme Freire (1996), diz respeito ao reconhecimento e à

promoção da identidade cultural17. Nesse sentido, escreve:

Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é


propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns
com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a
experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e
histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador,
realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.
Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como
objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos
outros. É a ‘outredade’ do ‘não eu’, ou do tu, que me faz assumir a
radicalidade de meu eu (FREIRE, 1996, p. 46).

Reconhecer-se inconcluso é outro saber necessário à prática

educativa, ressaltado por Freire, e implica, de um lado, admitir seus limites e os

limites de seu conhecimento, e, de outro, a abertura para tanto.

17
Freire não se filia a concepções essencialistas ou fixas de identidade. Penso que é possível
entender identidade cultural em Freire (1996) a partir de Stuart-Hall (2005). Para este autor, nossa
identidade cultural surge de nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas
etc., que não são homogêneas, e sim híbridas, ou seja, que se caracterizam pela fusão entre
diferentes tradições culturais.
37

Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida,


a seus desafios, são saberes necessários à prática educativa. Viver a
abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com
o momento, tomar a própria prática de abertura ao outro como objeto
da reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente. A razão
ética da abertura, seu fundamento político, sua referência
pedagógica; a boniteza que há nela como viabilidade do diálogo. A
experiência da abertura como experiência fundante do ser inacabado
que terminou por se saber inacabado. Seria impossível saber-se
inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à procura de
explicação, de respostas a múltiplas perguntas (FREIRE, 1996, p.
153).

Reconhecer-se inconcluso, cindido, descentrado oferece ao sujeito a

possibilidade de abertura aos outros e à linguagem, e permite o estar-se

construindo, constantemente. Nesse sentido, destaco também o depoimento de uma

das professoras entrevistadas, evidenciando que a formação do sujeito-professor(a)

constitui-se de uma busca constante e ininterrupta, uma busca que vai além do

espaço da sala de aula e do cumprimento das “tarefas” propostas ou impostas

pelos(as) professores(as) formadores(as), pois aponta para a própria vida. O tempo

da formação confunde-se com o tempo da vida:

[...] O bom professor, ou o que vai formar realmente eu acho que é a


busca. E a busca é aquilo que eu fui fazer indo estudar lá na sala de
aula como aquilo que eu fiz sem que lá tivessem me pedido. Às
vezes as colegas diziam: ‘De onde tu tirou?’ Ah, de tal lugar. ‘Ah,
mas a professora não mandou ler!’ Ela não mandou, mas eu achei
que se eu buscasse lá eu ia enriquecer aquilo que ela pediu. ‘Ah,
mas ela não mandou ler aquele outro capítulo!’ Tá, mas naquele
outro capítulo eu achei aquilo que agora vocês acharam interessante!
(Marta).

Na perspectiva de Freire (1996), em resumo, a formação do(a)

professor(a) problematizador(a) exige pesquisa, respeito aos saberes dos

educandos e das educandas, criticidade, estética, ética, corporeificação das

palavras pelo exemplo, risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de


38

discriminação, reflexão crítica sobre a prática, reconhecimento e promoção da

identidade cultural e reconhecimento da própria subjetividade como inconclusa.

As considerações tecidas até aqui colocam em evidência a

complexidade do exercício docente e, por conseguinte, da formação de

professores(as). A formação do(a) professor(a) é mais do que sua preparação para

um fazer docente, pois implica também um modo de ser do sujeito (subjetividade) e,

portanto, transcende a temporalidade destinada ao processo formativo em suas

instâncias convencionais (escolas de formação); refere-se à própria existência, à

vida do sujeito-professor(a).

A formação docente institucionalizada é concebida, então, na

perspectiva desta abordagem, como espaço-tempo18 de potencialização de

determinadas competências. O desenvolvimento dessas competências pressupõe

um processo de formação que vai além do domínio de “conteúdos a serem

ministrados” e aponta para um Ser-Professor(a), cuja atitude diante do mundo deve

ser de reflexão e crítica.

O capítulo seguinte é dedicado à discussão sobre como estou

entendendo a formação/construção da subjetividade e sua relação com o tema da

formação docente.

18
Refiro-me a espaço-tempo de aprendizagem; portanto, não se trata do espaço em si e do tempo
cronológico, mas de um espaço-tempo simbólico.
2 SUBJETIVIDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS)

“Gosto de ser mulher*, de ser gente, porque que


sei que a minha passagem pelo mundo não é
predeterminada, preestabelecida. Que o meu
‘destino’ não é um dado, mas algo que precisa ser
feito e de cuja responsabilidade não posso me
eximir. Gosto de ser gente porque a História em
que me faço com os outros e de cuja feitura tomo
parte é um tempo de possibilidades e não de
determinismo” (*homem, no texto original).
(Paulo Freire)

A perspectiva de formação docente para a qual venho apontando é

perpassada pela compreensão de que aprender a ser professor(a) transcende o

domínio técnico de “conteúdos a serem ministrados”. Formar professores(as) implica

construir/reconstruir subjetividades; e exercer a docência, por sua vez, implica

interagir com outras subjetividades e agir sobre elas. Uma das professoras

entrevistadas, discorrendo sobre o que considera necessário para ser professor(a),

diz:

Acho que é você ser curiosa, e além de você ser curiosa, você
projeta coisas. Porque na verdade, o aluno é aquilo que tu quer que
ele seja. Se você for crítico, você vai ter uma turma que vai ser
crítica, que vai ser questionadora (Natália).

Essa afirmação, além de destacar a curiosidade como um elemento

fundante da atividade docente, instiga a pensar acerca da influência do sujeito que

ocupa o lugar de professor(a) na interação com os sujeitos que estão em posição de

alunos ou alunas. O(a) docente é apontado como alguém que “projeta coisas”,

alguém cuja atitude diante do conhecimento é capaz de influenciar a atitude dos

alunos. Tem-se, então, no espaço pedagógico, para além do encontro entre sujeitos

e determinada(s) área(s) de saber, o encontro entre diferentes sujeitos que se


40

concretiza no espaço intersubjetivo da sala de aula. E esse encontro não constitui

um momento em que subjetividades já dadas, prontas, acabadas deparam-se e

influenciam-se mutuamente no que diz respeito as suas relações com os saberes;

pelo contrário, esse encontro é produtor e transformador de subjetividades sempre

em construção.

Por isso, um viés importante para pensar a formação de

professores(as) é a subjetividade desses sujeitos. Conforme Tardif (2002),

interessar-se pela subjetividade dos(as) professores(as) é “tentar penetrar no próprio

cerne do processo concreto de escolarização, tal como ele se realiza a partir do

trabalho cotidiano dos professores em interação com os alunos e com os outros

atores sociais” (p. 228).

As pesquisas que tentam levar em consideração a subjetividade

dos(as) professores(as), desenvolvidas nos últimos anos, baseiam-se em diferentes

orientações teóricas, das quais Tardif (2002) destaca três: 1. pesquisas sobre a

cognição ou sobre o pensamento dos sujeitos docentes, de inspiração psicológica;

2. pesquisas que estudam as histórias de vida desses sujeitos, seus próprios relatos

e metáforas pessoais referentes ao seu ofício, de inspiração fenomenológica; 3.

pesquisas de cunho interacionista, nas quais a subjetividade dos(as) professores(as)

remete às categorias, regras e linguagens sociais que estruturam suas experiências

nos processos cotidianos de comunicação e de interação.

Essas diferentes concepções mostram, como ressalta Tardif (2002, p.

75), que “a questão da subjetividade é rica e complexa, e pode ser estudada através
41

de enfoques variados”. O autor refere-se, também, a pesquisas realizadas no

Canadá, as quais, reconstruindo a história de vida dos(as) professores(as) a partir

de uma metodologia narrativa (autobiográfica), evidenciam que experiências

realizadas antes da preparação formal para o exercício docente oferecem indicativos

para compreender o sentido da escolha da profissão, bem como influenciam na

orientação e nas práticas pedagógicas atuais dos(as) professores(as). Dentre as

experiências, destacam-se a vida familiar e as relações com pessoas significativas

na história de cada sujeito-professor(a); as experiências escolares anteriores e as

relações com professores(as); experiências marcantes com outros adultos no

ambiente escolar e/ou extra-escolar. Tais experiências, conforme resultados das

pesquisas sintetizadas pelo autor, são freqüentemente citadas pelos(as) aprendizes

de docência em processo de formação inicial como fontes de suas convicções,

crenças ou representações. De acordo com ele, os resultados obtidos nessas

pesquisas “sublinham a importância da história de vida dos professores, em

particular a de sua socialização escolar, tanto no que diz respeito à escolha da

carreira e ao estilo de ensino quanto no que se refere à relação afetiva e

personalizada no trabalho” (TARDIF, 2002, p. 78-9).

As pesquisas referidas por esse autor colocam em destaque a

subjetividade dos(as) professores(as), evidenciando que a formação do sujeito-

professor(a) não se limita ao processo formal de escolarização – esse sujeito torna-

se o que é nas e pelas suas experiências. O depoimento de uma das professoras

entrevistadas vem ao encontro dessa concepção e destaca a inserção social e as

experiências pessoais como fundantes da “escolha” pela docência:


42

[...] às vezes minhas conversas com meus conhecidos, sobrinhos,


familiares ligados à igreja, eu estou agora terminando, eles diziam
‘não: - tu sempre foi, eu sempre te conheci professora’. [...] eu
sempre estive ligada, me criei ligada à comunidade evangélica [...].
Eu me lembro que desde bem pequena eu já gostava de estar do
lado da professora na igreja, auxiliando, segurando uma gravura,
vendo o que ela fazia, sempre estive envolvida. Então era um desejo
muito grande de ser professora. E ela na verdade, além de ser
professora na igreja, ela era professora também na escola. Isso me
fazia achar que ficar perto dela era muito interessante (Marta).

A fala dessa professora nos permite enunciar que o sentido de quem

somos se constrói nas relações com outros sujeitos, a partir de como eles nos vêem

e nos narram, em determinado contexto sócio-histórico e cultural. Conforme Larrosa

(1996), o sentido de quem somos (a nossa subjetividade) pode ser comparado à

construção e à interpretação de um texto narrativo. Assim como um texto, cujas

possibilidades de sentido dependem de suas relações intertextuais – relações que

mantém com outros textos - e dos contextos discursivos do qual emerge e no qual é

lido, também o sujeito constrói e têm construídas sobre si interpretações que não só

o representam, mas o subjetivam, ou seja, o fazem. Isso significa reconhecer que o

ser – sujeito – é impensável fora da interpretação; e como toda interpretação é

discursiva, é impensável fora da linguagem (LARROSA, 1996). Nessa perspectiva, é

pertinente discutir a questão da subjetividade na linguagem.

2.1 A subjetividade na linguagem e a linguagem na subjetividade

O esforço em interpretar o tema da subjetividade, no contexto desta

abordagem, conduz ao reconhecimento e ao acolhimento da concepção de

linguagem de Bakhtin ([Volochínov], 1981)19. Empenhado em construir sua

19
A edição original da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem é atribuída a Valentin N. Volochínov,
integrante do Círculo de Bakhtin. No entanto, a autoria é controversa; há estudiosos que atribuem ao
próprio Bakhtin a autoria desse e dos outros dois textos cujas edições originais são atribuídas,
43

proposição acerca da interação verbal, o autor tece contundentes críticas às duas

correntes do pensamento filosófico-lingüístico, às quais denomina subjetivismo

individualista e objetivismo abstrato. Meu interesse recai principalmente sobre a

argumentação elaborada por ele acerca da primeira orientação. O autor nega

veementemente o subjetivismo individualista, afirmando que o mundo interior e a

reflexão de cada indivíduo são situados, estão em relação com a concretude da

vida. A forma de pensar, a cosmovisão de cada sujeito, enfim, a organização do

pensamento individual tem marcas sócio-culturais, históricas, que são fundadas

sobre uma base material.

Esse autor inscreve globalmente a língua no sujeito. De acordo com

ele, “o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma

utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto” (BAKHTIN

[VOLOCHINOV], 1981, p. 92). Todo falante serve-se da língua para suas

necessidades enunciativas concretas e toda palavra comporta duas faces: é

determinada pelo fato de que procede de alguém e se dirige a alguém, que são

sempre pessoas situadas num espaço e num tempo. A linguagem é social e a

personalidade individual é socialmente estruturada. Assim, a consciência individual

é, conforme o autor, constituída pela linguagem; não há consciência fora da

linguagem. Criticando a teoria estruturalista de Saussure, Bakhtin [Volochínov]

afirma que a enunciação individual (a “parole” saussureana) e a própria atividade

respectivamente, a Volochínov e Medvedev (Freudismo e O método formal nos estudos literários), ao


passo que outros defendem a tese de que essas três obras não foram escritas por Bakhtin, uma vez
que ele, mesmo tendo tido a oportunidade de, mais tarde, quando já havia se dissipado a força da
perseguição política da qual foi vítima, não reivindicou nem assumiu a autoria desses textos
(FARACO, 2006). Diante dessa controvérsia, opto por fazer a referência incluindo os dois nomes, ou
seja, Bakhtin [Volochínov], ressaltando, também, que as concepções divulgadas na obra em questão,
seja ela de autoria de um ou outro pensador do Círculo, condizem com o pensamento de Bakhtin.
44

mental dos sujeitos não são fatos individuais, e sim de natureza social. O autor

afirma:

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema


abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica de
sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação
verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (BAKHTIN
[VOLOCHÍNOV], 1981, p. 123).

A concepção bakhtiniana de linguagem é comprometida com uma

visão de mundo que aponta para as formas de construção e instauração do sentido.

Tudo o que se enuncia está ligado às condições de comunicação que, por sua vez,

estão ligadas às estruturas sociais.

Zoppi-Fontana (1997) observa que Bakhtin aponta para a incompletude

do sujeito, “cuja autoconsciência se reduz a uma vivência interior (o eu-para-mim)

que não possui representação exterior” (p. 118). Para Bakhtin, o sujeito é construído

a partir da representação que o outro produz dele: “a autoconsciência do meu ser no

mundo só se dá através da compreensão ativa e valorativa do outro que me enxerga

enquanto corpo exterior que se destaca do seu entorno” (ZOPPI-FONTANA, 1997, p.

118). E essa compreensão se dá na e pela linguagem, o que nos faz seres de

linguagem.

Para Bakhtin ([Volochínov], 1981), a linguagem é dialógica; o diálogo

não é apenas a comunicação entre pessoas colocadas face a face, “[...] mas toda

comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (p. 123). O princípio dialógico20 é

20
Conforme Zoppi-Fontana (1997), o conceito de dialogismo de Bakhtin se sustenta na noção de
vozes que se enfrentam em um mesmo enunciado e que representam os diferentes elementos
45

constitutivo da linguagem que é, por sua vez, constitutiva do sujeito. A subjetividade

funda-se, conforme o autor, no mergulho do ser humano na corrente de

comunicação. As relações dialógicas definem o acontecimento da linguagem e são

sempre relações de sentido que se estabelecem entre enunciados produzidos na

interação verbal. As vozes que interagem na corrente de comunicação são sempre

vozes sociais que se interpelam mutuamente e são chamadas a manifestarem-se

compreendendo ativamente os enunciados e compondo a teia discursiva. Para

Bakhtin, conforme já frisamos anteriormente, a própria consciência individual “só

pode surgir e se afirmar como realidade através da encarnação material em signos”

(1981, p. 33). E como o signo21 só aparece entre indivíduos socialmente

organizados, “em um terreno interindividual”, “a consciência individual não só nada

pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio

ideológico e social. A consciência individual é um fato sócio-ideológico” (BAKHTIN

[VOLOCHÍNOV], 1981, p. 35).

O caráter dialógico da linguagem tem, segundo Brait (1997), dupla e

indissolúvel dimensão. É preciso considerar que a linguagem se constitui de um

permanente diálogo entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade,

uma cultura, uma sociedade, ou seja, o dialogismo é elemento instaurador e

constitutivo da natureza interdiscursiva da linguagem. Não obstante a isso, o

dialogismo diz respeito também às relações que se estabelecem entre o eu e o outro

nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que, por sua

vez, instauram-se e são instaurados por esses discursos, em relações de alteridade.

históricos, sociais e lingüísticos que atravessam a enunciação.


21
O signo é a unidade lingüística que tem significante e significado; a imagem acústica de um signo
lingüístico não é a palavra falada, ou seja, o som material, mas a impressão psíquica desse som,
segundo Saussure (1975). No uso corrente, contudo, o termo signo designa freqüentemente a
palavra.
46

No que tange ao tema da subjetividade, entendo que é importante

resgatar também as contribuições oferecidas, no campo dos estudos de linguagem,

por Michel Bréal ([1897] 1992) e Émile Benveniste ([1966] 1995). O primeiro afirma

que o aspecto subjetivo é a parte mais antiga da linguagem. Para explicar o que

entende por “aspecto subjetivo da linguagem”, o autor recorre a uma analogia que,

segundo ele, é usada algumas vezes comparando a linguagem a um drama em que

as palavras figuram como atores e em que o agenciamento gramatical reproduz os

movimentos dos personagens. Referindo-se a essa comparação, o autor afirma a

necessidade de, pelo menos, melhorá-la, pois: “o produtor intervém freqüentemente

na ação para nela misturar suas reflexões e seu sentimento pessoal [...] como nós

mesmos fazemos no sonho, quando somos ao mesmo tempo espectador

interessado e autor dos acontecimentos” (BRÉAL, 1992, p. 157).

A alusão feita pelo autor ao cenário onírico em que se dá o “drama da

linguagem” permite algumas considerações: no sonho, emerge o inconsciente; as

ações são de outra ordem, diferente da ordem regida pelos princípios da

racionalidade científica. Comparar o “universo de ação” da linguagem ao universo

dos sonhos é uma forma metafórica de dizer que a linguagem é viva e, como tal,

passível de mudanças ao longo do tempo pela ação/intervenção humana; ação que

é acontecimental, pois resulta das necessidades humanas. Nas palavras de Bréal

(1992):

A fala não foi feita para a descrição, para a narrativa, para as


considerações desinteressadas. Expressar um desejo, dar uma
ordem, demonstrar a posse sobre as pessoas ou sobre as coisas –
esses empregos da linguagem foram os primeiros. Para muitos
homens, eles são ainda quase os únicos (p. 161).
47

A partir das considerações desse autor fica claro que a subjetividade

não é um acessório da linguagem, mas sim uma parte essencial, trata-se “sem

dúvida do fundamento primordial ao qual o resto foi sucessivamente ajuntado”

(BRÉAL, 1992, p. 161).

Cabe explicitar, no entanto, que não se trata de uma subjetividade

“senhora de si”. Compreendo o destaque conferido por Bréal ao aspecto subjetivo da

linguagem como uma ressalva às teorias estruturalistas que, à revelia do que as

línguas vivas em seu uso concreto já mostravam, ainda insistiam no caráter

uniformizante da linguagem; ignoravam o elemento subjetivo, deixando de

compreender o caráter contextualizado das palavras e ignorando a heterogeneidade

da linguagem. Entendo o reconhecimento da presença da subjetividade na

linguagem como o primeiro passo para a compreensão da linguagem na

subjetividade, ou seja, da linguagem como elemento estruturante e constitutivo do

eu.

Por sua vez, Benveniste ([1966] 1995) prestou importante contribuição

aos estudos lingüísticos, resgatou a fala como seu elemento essencial, propôs o

estudo da enunciação e trouxe à tona a subjetividade na linguagem. Para ele, a

linguagem é uma faculdade que está na natureza: “Não atingimos nunca o homem

separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a [...]” (p. 285).


48

De acordo com o autor, “é na linguagem e pela linguagem que o

homem se constitui sujeito” (p. 286); a linguagem é a realidade do ser e fundamenta

o conceito de “ego”. Na perspectiva de Benveniste, a subjetividade:

Define-se não pelo sentimento que cada um experimenta de ser ele


mesmo (esse sentimento, na medida em que podemos considerá-lo,
não é mais que um reflexo) mas como a unidade psíquica que
transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que
assegura a permanência da consciência (1995, p. 286)

Para ele, o fundamento da subjetividade está no exercício da

linguagem, no momento em que o eu diz eu, enuncia-se, ou seja, o sujeito se

apropria da linguagem e se afirma nela e através dela. Conforme Dahlet (1997), não

podemos esquecer que, quando Benveniste se refere à subjetividade, trata-se antes

de tudo de língua. Ele inscreve radicalmente o sujeito na língua, definindo o

indivíduo pela construção lingüística particular que ele usa, quando se enuncia como

locutor “eu”. O sujeito de Benveniste é “realidade de discurso” (p. 261); é um sujeito

em discurso que só se inicia na língua.

Não obstante, é na relação de alteridade lingüística com o outro que a

enunciação do eu se torna possível:

A consciência de si mesmo só é possível se experimentada por


contraste. Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que
será na minha alocução um tu. Essa condição de diálogo é que é
constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade (BENVENISTE,
1995, p. 186).

No meu gesto interpretativo, as concepções de Benveniste permitem

afirmar que a linguagem é a realidade do ser, ou seja, é a condição de possibilidade

do humano. Conforme o autor, cada falante se apresenta como sujeito, enuncia-se a


49

si mesmo e, fazendo isso, propõe outra pessoa – o tu, que só existe em relação ao

eu e que também se enuncia, dando ocasião à intersubjetividade. O eu de

Benveniste se apresenta como transcendental ao tu – “... ego tem sempre uma

posição de transcendência quanto a tu...” pelo fato de estar de posse da palavra; no

entanto, não existe sem o outro, sem a relação de polaridade que se estabelece

entre as pessoas:

[...] nenhum dos dois termos se concebe sem o outro; são


complementares, mas segundo uma oposição ‘interior/exterior’, e ao
mesmo tempo são reversíveis. Procure-se um paralelo para isso; não
se encontrará nenhum. Única é a condição do homem na linguagem
(BENVENISTE, 1995, p. 286-7).

De acordo com Benveniste, o fundamento lingüístico da subjetividade

reside numa realidade dialética que engloba o eu e o outro, o indivíduo e a

sociedade, e os define pela relação mútua. Penso que a subjetividade concebida por

Benveniste é intersubjetiva, ou seja, é fundada na relação de alteridade que se

estabelece entre os sujeitos da linguagem.

Interessa-me de Benveniste essa concepção de uma subjetividade

intersubjetiva. Mesmo que restrita à língua, a concepção de subjetividade proposta

por esse autor destaca a alteridade entre as pessoas como fundante do eu. Por sua

vez, Bakhtin oferece substrato teórico para pensar a linguagem como interação,

constitutivamente dialógica. Ele escreve:

[...] Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto


traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no
processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não
está na palavra nem na alma do falante, assim como também não
está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e
do receptor produzido através do material de um determinado
50

complexo sonoro. É como uma faísca elétrica que só se produz


quando há contato dos dois pólos opostos (BAKHTIN
[VOLOCHÍNOV], 1981, p. 132) [grifos do autor].

Embora, num primeiro momento, as considerações de Benveniste, no

texto que serviu de base a esta abordagem, corroborem a concepção de uma

subjetividade intersubjetiva, é em Bakhtin que encontro as bases sobre as quais se

fundam a linguagem e a subjetividade na perspectiva em que estou abordando. Ao

passo que a intersubjetividade de Benveniste se dá pelo exercício da língua – o “eu”

tem diante de si um “tu”, que passa a ser “eu” quando enuncia; em Bakhtin, a

intersubjetividade precede a subjetividade. O sujeito se constitui na relação dialógica

com outros, relação cuja condição de possibilidade é a linguagem, dialógica por

constituição e, assim, carregada de elementos históricos e sócio-culturais. Na

seqüência, interessa-me pensar o sujeito-professor(a) do ponto de vista de sua

subjetividade intersubjetiva, que se constrói continuamente no contexto de ensino-

aprendizagem, perpassado por relações de saber e poder.

2.2 A formação docente como processo de subjetivação

Privilegiar a subjetividade dos(as) professores(as) não pode significar

partir do próprio sujeito como se este fosse um desde sempre aí22. A noção de

sujeito que norteia minha compreensão e meu esforço em interpretar o tema da

formação docente é perpassada pela idéia de que nos tornamos o que somos (e

estamos nos tornando continuamente – somos um vir a ser, pois nunca estamos
22
“algo sempre dado, como uma entidade que preexiste ao mundo social” (VEIGA-NETO, 2003, p.
131). No meu modo de entender, essa concepção – moderna e iluminista - de sujeito implica também
uma visão negativa da concepção de ideologia. O sujeito desde sempre aí é concebido como objeto
de influências externas – sociais, culturais, políticas, econômicas, educacionais – e, por isso,
manipulável. A noção de ideologia que subjaz a essa concepção liga-se fortemente à idéia de
alienação. Como se fosse possível libertar-se da ideologia e, daí sim, ter consciência da dominação
para poder ser livre.
51

prontos). Veiga-Neto (2003), a partir de Foucault, afirma: “nos tornamos sujeitos

pelos modos de investigação, pelas práticas divisórias23 e pelos modos de

transformação que os outros aplicam e que nós aplicamos sobre nós mesmos” (p.

136). A subjetividade não é um dado prévio nem um ponto de partida; é um

processo constante e complexo em que não somos apenas influenciados por fatores

externos a nós mesmos, pois esses fatores – sociais, culturais, políticos,

econômicos, educacionais – não são tão externos; eles nos constituem, nos

objetivam subjetivando-nos, ou seja, o sujeito é “fabricado” a partir de sua

objetivação em diferentes campos de saberes e práticas de poder que o dividem e o

classificam, bem como por sua auto-subjetivação através do trabalho e da reflexão

sobre si mesmo (FOUCAULT, 1995).

O que me interessa ressaltar é a compreensão de que o sujeito se

constitui por modos de subjetivação, isto é, por práticas que transformam os seres

humanos em sujeitos. Foucault, na obra Arqueologia do Saber, concebe o sujeito

apontando para a ordem do anonimato; segundo o autor, o que o sujeito enuncia

não tem origem nele mesmo, e sim no campo discursivo em que está inserido. A

subjetividade não é fundante da linguagem, mas sim fundada e constantemente

produzida por ela, sendo atravessada pelo inconsciente. Ao tratar das regras de

formação dos enunciados, o autor escreve:

[...] as regras de formação têm seu lugar não na “mentalidade” ou na


consciência dos indivíduos, mas no próprio discurso; elas se

23
Foucault, no célebre texto O Sujeito e o Poder, no qual retoma sua obra e justifica sua dedicação
em estudar o poder em função de seu especial interesse pelas formas de subjetivação, refere-se a
“práticas divisoras” (na versão em língua portuguesa de Vera Portocarrero, 1995), e as define como
as práticas que dividem o sujeito no seu interior e em relação aos outros, ou seja, as práticas através
das quais é possível estabelecer as dualidades que são colocadas em oposição binária: “o louco e o
são, o doente e o sadio, os criminosos e os ‘bons meninos’” (FOUCAULT, 1995, p. 231).
52

impõem, por conseguinte, segundo um tipo de anonimato a todos os


indivíduos que tentam falar neste campo discursivo (FOUCAULT,
1976, p. 78).

Na seqüência de seu pensamento, cujas referências aludidas aqui se

limitam às obras Vigiar e Punir e História da Sexualidade (volumes I, II e III), a noção

de sujeito que subjaz às reflexões de Foucault aponta para uma construção

histórico-discursiva operada por dois dispositivos distintos: “sujeito [assujeitado] a

alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma

consciência ou autoconhecimento” (FOUCAULT, 1995, p. 235). O que esse autor

estuda não é nem as idéias, nem os comportamentos, mas algo que, podendo ser

separado de ambos para fins analíticos, ao mesmo tempo os torna possíveis:

dedica-se a estudar o que denomina “experiência de si”, que também é algo

produzido histórica e culturalmente. Na introdução ao Uso dos Prazeres, o segundo

volume da História da Sexualidade, o autor expressa seu propósito:

[...] nem uma história dos comportamentos nem uma história das
representações. Mas uma história da “sexualidade” [...] Meu
propósito não era o de reconstruir uma história das condutas e das
práticas sexuais de acordo com suas formas sucessivas. Também
não era minha intenção analisar as idéias (científicas, religiosas ou
filosóficas) através das quais foram representados esses
comportamentos [...]. Tratava-se de ver de que maneira, nas
sociedades ocidentais modernas, constituiu-se uma “experiência” tal,
que os indivíduos são levados a reconhecer-se como sujeitos de uma
“sexualidade” [...] O projeto era, portanto, o de uma história da
sexualidade enquanto experiência – se entendemos por experiência
a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de
normatividade e formas de subjetividade (FOUCAULT, 1984, p. 9).

Tomando a sexualidade do ponto de vista da experiência, Foucault

reage diretamente contra qualquer realismo ou essencialismo do eu. A subjetividade

é apresentada como resultado – constante e nunca acabado - de um complexo

processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam, no âmbito de uma cultura,


53

práticas discursivas que definem a verdade do sujeito e regulam seu

comportamento, colocando em evidência uma complexa relação de forças entre

campos de saber e poder.

A partir de Foucault, entendo que o sujeito é construção discursiva, é

fruto de uma complexa teia de discursos produzidos com base numa relação entre

saber e poder. A pretensa individualidade do sujeito não pode ser tomada, portanto,

como um dado não problemático. A subjetividade é um dado histórico. Larrosa

(1994), ao estudar a constituição do sujeito pedagógico, a partir de um referencial

foucaultiano de análise, lembra que:

[...] a idéia do que é uma pessoa, ou um eu, ou um sujeito, é histórica


e culturalmente contingente, embora a nós, nativos de uma
determinada cultura e nela constituídos, nos pareça evidente e quase
‘natural’ esse modo tão ‘peculiar’ de entendermos a nós mesmos [...]
O homem é, sem dúvida, um animal que se auto-interpreta
(LARROSA, 1994, p. 40).

E o autor vai além, ressalta a diversidade dessas auto-interpretações,

afirmando que elas também podem ser colocadas em uma perspectiva histórica e/ou

antropológica. As interpretações que os sujeitos fazem de si mesmos podem variar

conforme o contexto sócio-histórico, cultural e econômico em que estão inseridos

(lugar social ocupado).

O sujeito-professor(a) pode ser tomado, portanto, como uma

construção histórico-ideológica. Construiu-se, ao longo do tempo, e através de um

conjunto de técnicas de saber-poder, em diferentes espaços discursivos, uma

representação do sujeito docente; em se tratando do sujeito feminino – a professora


54

-, essa representação traz ainda muitas peculiaridades. Destaco o depoimento de

uma das professoras ouvidas em minha pesquisa:

[...] eu era a mais velha da turma; a maioria eram meninas [...]. Mas
isso também enriquece bastante, daí tu vê quem tá buscando
estudar. E tu pensa: mas essa não vai dar de jeito nenhum! Depois
soube, conversando com as colegas, que foi um excelente estágio e
deu uma ótima professora. Mas lá, na hora da formação, não parece.
Espevitada, parece assim, mas da onde que saiu isso, eu não
deixaria meu filho com essa professora de jeito nenhum. Então eu
ficava pensando... que as pessoas que não têm a postura que se
espera... por exemplo, essa menina, ela tinha piercing na
sobrancelha, piercing no nariz, piercing no umbigo, um monte de
colares [...] isso acabava por sustentar o que os professores diziam
‘tu não pode ir pra escola assim”. Na verdade, os professores que
estavam ali dando a formação diziam isso pras meninas: ‘não diz
palavrões, isso não é postura de professor’, porque elas são o
exemplo lá pras crianças. Tem essas histórias também; então isso
ajuda a pensar e enriquecer: quem são as professoras!? (Marta).

A partir desse depoimento, desvelam-se as marcas de uma

representação historicamente construída de quem poderia vir a ser uma professora,

fazendo emergir uma “imagem ideal” desse sujeito24. Destaco esse depoimento por

entender que aponta para a noção de formação como subjetivação. Aquela aprendiz

de professora que, inicialmente, parecia não se enquadrar no perfil construído e

aceito socialmente para o exercício da docência, foi se fazendo diferente:

Essa menina que eu imaginava que não tinha perfil, ela adorava as
crianças, eu cheguei a ver ela com a turma aqui no Um Real25, assim
apaixonada pelas crianças, na rua com a turma, ela deu aula lá numa
outra escola... [...] E realmente quando eu vi ela ali com as crianças,
ela não estava com piercing em lugar nenhum, estava com
pulseiras... Eu sempre ouvi isso, porque realmente sempre as
crianças quiseram copiar os professores, eles vão olhar a tua postura

24
Essa representação também se faz notar na prosa ficcional brasileira. Um exemplo é a personagem
principal do romance A Normalista, de Adolfo Caminha, publicado em 1893. Trata-se de uma moça
ingênua, de caráter excepcionalmente brando, educada em uma casa de caridade, com “vocação” ao
magistério.
25
A entrevistada está se referindo a determinada loja que comercializa produtos variados ao preço de
R$1,00 (um real), localizada no centro da cidade de Ijuí-RS, seguindo uma tendência de mercado que
começou a se difundir pelo país nos últimos anos.
55

e vão copiar. Então eu acho que a gente deve esforçar-se; não que
tenha um modelo: professor é assim, professor é assado. (Marta).

É recorrente na fala dessa professora entrevistada a alusão a um

determinado perfil e a uma postura de professor e/ou professora. Ao final do

depoimento transcrito acima, ela, mesmo negando o modelo, reitera a representação

idealizada do sujeito-professor(a), que diz respeito, inclusive, a sua aparência física.

Na seqüência do depoimento, ela afirma:

Então, por mais que tu não queira, tem uma coisa assim que é de
professor. Professor não pode vir sempre de salto alto, professor, ele
não pode estar vestido exageradamente, porque vai tirar a atenção
das crianças, então essas coisas que fazem um perfil do professor. E
muito mais das falas, eu acho muito importante, eu não consigo
imaginar um professor em sala de aula ficando irritado e dizendo um
palavrão, entende? Então essas coisas que eu pensava nessa
menina, porque se você tá acostumado, chega lá e pode escapar,
uma palavra que não... que você tá tentando passar pras crianças
que não deve, né!? (Marta).

No meu modo de interpretar, as falas dessa professora corroboram o

entendimento de que o logos pedagógico é um campo de subjetivação, ou seja, de

“fabricação” de sujeitos, conforme concebido por Larrosa (1994). O que se mobiliza

no fazer pedagógico não são apenas saberes que servem à qualificação do ser

humano para sua atuação técnico-profissional nas mais variadas áreas. As práticas

pedagógicas não são apenas espaços de mediação entre os sujeitos e os saberes;

são também produtoras de subjetividades. Conforme Larrosa, o modo tradicional

instituído de se conceber o logos pedagógico consiste em entender as práticas

pedagógicas como lugares de mediação nos quais a pessoa simplesmente encontra

os recursos para o pleno desenvolvimento de sua autoconsciência e sua

autodeterminação. Nessa perspectiva, “As práticas pedagógicas seriam espaços


56

institucionalizados onde a verdadeira natureza da pessoa humana – autoconsciente

e dona de si mesma – pode desenvolver-se” (LARROSA, 1994, p. 44).

Resumidamente, estou concebendo o campo pedagógico como

espaço-tempo de desenvolvimento integrado das dimensões epistemológica, social

e pessoal do sujeito-professor(a), como espaço-tempo de sua subjetivação. Entendo

as práticas pedagógicas destinadas à formação docente como transformadoras da

própria subjetividade do sujeito-professor(a), que já vem em constante formação ao

longo de sua vida, emergindo de suas experiências. A partir dessa concepção,

interessa-me pensar, mais detidamente, sobre a leitura nesse processo.

Os depoimentos das professoras entrevistadas, destacados no próximo

capítulo, desvelam algumas concepções de leitura que subjazem à formação e à

atuação docentes. Isso me desafia a pensar acerca do papel que a prática da leitura

desempenha no processo de formação, não só inicial, mas também continuada, que

atravessa a prática docente, e do que é capaz de desencadear no sujeito-

professor(a).

A partir do discuti no capítulo anterior acerca da formação de

professores(as), bem como das reflexões tecidas neste tópico sobre a subjetividade,

penso que não é possível conceber a formação docente apenas como a preparação

formal para um fazer didático-pedagógico. A formação docente é atravessada pela

formação, complexa e constante, da subjetividade, que se dá ao longo da vida do

sujeito, numa relação de alteridade com outros sujeitos, relação esta que tem na

linguagem sua condição de possibilidade. Entender a formação docente como


57

formação de uma subjetividade intersubjetiva implica reconhecer a experiência26

como seu elemento fundante. Dedico o próximo capítulo à reflexão sobre a

possibilidade da experiência pelo viés da leitura.

26
A noção de experiência que norteia minha abordagem não se sustenta apenas na idéia de algo que
se adquire no exercício prático de uma atividade e que proporciona um aperfeiçoamento desse
exercício. Trata-se de algo estreitamente ligado ao Ser-Professor(a), que vai além do saber-fazer.
3 SOBRE LEITURA, ESCOLARIZAÇÃO E EXPERIÊNCIA

“Nessa longa conversa com os mortos-vivos, que


chamamos de leitura, nosso papel não é passivo.
Quando é mais que devaneio de um apetite
indiferente nascido do tédio, a leitura é uma forma
de atuação”.
(George Steiner)

Quais são as experiências de leitura oferecidas pela escola? Qual a

concepção de leitura que subjaz à prática escolar? Ler é abrir-se ao universo

dialógico da linguagem ou decodificar letras e palavras? Ler é fazer um exercício de

linguagem e a partir daí desvelar sentidos possíveis ou extrair/apreender um

sentido? Qual “o lugar” da leitura na formação dos(as) professores(as)? Estas são

algumas das questões que norteiam minha reflexão neste capítulo.

Os(as) professores(as) são sujeitos leitores(as). Marinho e Silva (1998)

oferecem argumentos em prol dessa afirmação. Segundo as autoras, os(as)

professores(as) vivem no interior de uma sociedade letrada. À parte os problemas de

difusão e distribuição da cultura impressa, os(as) professores(as) se inserem nesse

meio perpassado pela escrita e isso os coloca no lugar de leitores(as); estão

expostos(as) a impressos diversificados e as necessidades sociais pressionam por

seu uso, seja em instâncias públicas ou privadas. Assim também a cultura escolar

apóia-se maçicamente no uso da escrita: livros didáticos e paradidáticos, textos

literários, quadro-negro, gramáticas, livros complementares de exercícios, trabalhos

de alunos, dicionários, cartazes, cadernetas, redações, peças de teatro, discursos de

formatura constituem materiais de leitura com os quais os(as) professores(as) lidam

em sua atividade cotidiana. Eles(as) fazem uso desses materiais de leitura e são,

portanto, leitores(as). Além disso, deposita-se sobre a escola a expectativa quanto à


59

inserção, especialmente das crianças e dos jovens, na cultura letrada. Para porções

consideráveis da população brasileira, a escola representa a principal via de acesso

à escrita, seus professores e professoras são vistos como leitores(as) e exercem a

tarefa de fazer com que suas crianças também se tornem aptas à leitura (MARINHO;

SILVA, 1998).

No entanto, as mesmas autoras evidenciam que os(as) professores(as)

são, antes de tudo, leitores(as) escolares, ou seja, suas experiências de leitura

tendem a voltar-se para a escola e a prática docente. Pesquisas citadas por elas

apresentam dados relativos às preferências de leitura dos docentes, destacando que

“os professores tendem a citar como suas obras preferidas aqueles títulos que

permitem (ou ensejam, quando é o caso), leituras mais lineares e convencionais e

que têm, por isso, boa entrada no mercado escolar” (MARINHO; SILVA, 1998, p.

46)27.

Freitas e Costa (2002), por sua vez, em outro livro que apresenta

resultados de pesquisas realizadas com vistas a compreender as práticas sócio-

culturais de leitura e escrita na formação de professores28, referem-se à presença na

vida dos alunos e alunas aprendizes de docência de práticas diferenciadas de leitura

27
As pesquisas a que se referem Marinho e Silva (1998) foram realizadas por Castanheira (1991) e
Costa Dias (1997); a primeira é um estudo, no estado de Minas Gerais, sobre as relações das
camadas populares com a escrita e a escolarização dos filhos; a segunda investiga as relações de
professoras de escolas do meio rural no Vale do Jequitinhonha – MG - com a leitura e mostra que
nesse ambiente fortemente marcado pela oralidade e por altos índices de analfabetismo, a escola e
suas professoras representam, para as populações envolvidas, um dos únicos espaços de contato
com a cultura letrada e com o mundo dos “outros”. As pesquisadoras integram o CEALE – Centro de
Alfabetização, Leitura e Escrita, ligado à Faculdade de Educação da UFMG – Universidade Federal
de Minas Gerais.
28
As pesquisas cujos resultados são mobilizados por Freitas e Costa (2002) resultam das atividades
do Grupo de Pesquisa “Linguagem, Interação e Conhecimento” (LIC), sediado na Faculdade de
Educação da UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora – MG, integrado por especialistas das
áreas de Educação, Lingüística e Psicologia. Os sujeitos das pesquisas são professores(as) das
redes particular e pública de ensino da referida cidade mineira e região.
60

e escrita em interação com diversos instrumentos culturais da contemporaneidade.

No entanto, segundo os resultados das pesquisas apresentadas, essas práticas

mostraram-se, na maioria dos casos, ignoradas pela escola. A leitura/escrita da e

para a escola atém-se ao aspecto técnico-instrumental da linguagem, centrado no

deciframento de um código, prática que se afasta da língua real e viva presente no

cotidiano das interações verbais (FREITAS; COSTA, 2002).

Na pesquisa que realizei, todas as professoras entrevistadas referem-

se à prática da leitura como indispensável no seu processo de formação docente:

A leitura te auxilia bastante pra ti trabalhar, enfrentar as realidades


que tu tem. E os autores escrevem bastante sobre isso! (Isadora).

Porque na hora que precisar vai vir à mente aquilo que você leu. E
na área do ensino eu acho que é assim também; se eu não tivesse
lido antes aqueles livros29, leituras às vezes um tanto forçadas,
porque você tá estudando, não era aquilo que você queria ler, você
queria ler uma outra área, quem sabe, uma área mais gostosa, mas
você teve que ler aquilo ali, ficou registrado: ah, ela falava sobre isso,
na hora de escolher a história, como que é, como que se escolhe a
história, ela falava, essa autora falava, então eu buscava lá. [...]
Então eu acho a leitura assim, sei lá, hoje se escuta muito falar que
dali se aprende e realmente tem um grande peso a leitura (Marta).

Eu acho que o professor não pode parar nunca de se qualificar. E


uma das maneiras de o professor se qualificar é ler (Luiza).

É fundamental porque além de ela [a leitura] te dar embasamento


pras coisas que você vai fazer, ela é o que vai nortear o teu trabalho,
junto com teus alunos. Tu já imaginou um professor não leitor,
querendo uma turma leitora? [...] Eu já vi... professor fazendo hora do
conto e lá longe ele dizer “Odeio histórias! E sou obrigado a fazer
hora do conto.” Então, ele tá violentando ele e tá violentando uma
turma. Então eu acho que professor sem leitura não tem como. Tu já
imaginou, é um médico sem estudar. Ele fez um curso, montou um
consultório e não leu mais nada. (Natália).

29
A entrevistada está se referindo aos livros ditos teóricos, especialmente filosofia da educação e
teoria literária.
61

Em outro momento da conversa, esta última professora se refere à

leitura como fornecedora de subsídio para a confrontação crítica entre concepções

teóricas distintas:

E se eu não tenho isso [leitura]... só um, ele não vai me dar subsídio
pra nada, tem que confrontar... (Natália).

Os depoimentos aqui destacados evidenciam as concepções de leitura

como fonte de embasamento teórico-prático e como estratégia de qualificação

profissional e de atualização de saberes. A leitura, nessas concepções, volta-se a

um fim: a apreensão de conteúdos e/ou saberes a serem aplicados. O que aparece

mais nitidamente no horizonte de preocupação dessas professoras é o aspecto da

prática docente e, assim, as referências à leitura, quando aproximadas do processo

de formação docente, são imediatamente relacionadas aos conteúdos que elas

precisam mobilizar para exercer sua atividade. Nessa acepção, a leitura acaba

funcionando como um canal conteudista.

A leitura transforma-se num meio de acesso aos conteúdos a serem

ensinados. Esses conteúdos integram um saber, que é tomado como natural ou

como produzido por outros e buscado pelo(a) professor(a), sendo a prática da leitura

a sua principal via de acesso. Tanto naturalizando o saber, como se não fosse

produção humana historicamente marcada, como reconhecendo-o enquanto produto

da ação humana, essa “atitude” do(a) professor(a) acaba por colocá-lo à margem do

processo de produção de saberes e, o que é pior, acaba, muitas vezes, por

esterilizar a reflexão e a crítica que deveriam perpassar sua relação com os saberes

e seu exercício didático-pedagógico com os(as) alunos(as). Um dos depoimentos


62

que colhi destaca também a leitura como dispositivo metodológico, como forma de

veicular saberes, fazendo-os chegar até os(as) alunos(as). Essa prática é apontada,

portanto, como veículo capaz de conduzir os saberes cientifica e historicamente

produzidos tanto aos docentes como aos discentes, funcionando como fonte de

saberes e técnica de ensino.

No discurso das professoras ouvidas, a noção de leitura como mera

decodificação de textos escritos, como deciframento de um código lingüístico,

parece superada. Em seu lugar, emerge a noção de leitura como apreensão de

saberes; a leitura é o modo pelo qual se extraem conceitos, conteúdos, sentidos. O

que se sobressai, de acordo com essa noção, é a idéia de apreensão, que implica

algo já dado, algo pronto para ser extraído, apreendido, compreendido e,

conseqüentemente, reproduzido.

No meu modo de entender, ambas as perspectivas – fonte de saberes

e técnica de ensino – concedem à leitura um caráter técnico-instrumental e deixam

margem a um questionamento acerca de como se estabelece o saber da docência.

Restringir os saberes mobilizados pela atividade docente à apreensão de

determinado objeto de saber, cuja construção seria alheia aos(às) professores(as)

que efetivamente fazem a docência, é incoerente com a concepção de educação

como prática social comprometida com a vida, como um esforço com vistas à

promoção existencial das pessoas, que exige o desenvolvimento integrado das

dimensões epistemológica, social e pessoal. Esta é a perspectiva que, a partir de

Freire (1996), assumo nesta abordagem e de acordo com a qual o saber da

docência não é estabelecido por outros e apreendido pelo(a) professor(a), tampouco


63

se limita a um objeto separado do sujeito docente, mas sim é construído

intersubjetivamente por meio da reflexão e da ação reflexiva dos sujeitos docentes

em interação com os saberes produzidos pelo ser humano e em interação entre si e

com os demais sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem. Coerente

com essa perspectiva, a leitura não se limita a funcionar como fonte de saberes ou

dispositivo de ensino, mas, essencialmente, como suscitadora de questionamentos,

como abertura à reflexão e à crítica.

Há, porém, a concepção de leitura como produção de sentidos: “Ler

será, portanto, fazer emergir a biblioteca vivida, quer dizer, a memória de leituras

anteriores e de dados culturais” (GOULEMOT, 1996, p. 113). A leitura entendida

como produção de sentidos parece, num primeiro momento, escapar à falta de

criticidade e abertura que marca a noção de leitura como prática de apreensão de

algo. A leitura como prática de produção de sentidos é mais ampla do que a anterior:

produzir implica não tomar os sentidos como prontos, dados de antemão. No

entanto, há o risco de se promover o que Larrosa (1996, p. 417) denomina como

mero “jogo de reconhecimentos”, em que “o texto do passado confirma o texto do

presente tal como este nos é dado a ler nos discursos dominantes”30. Nessas

noções, o importante ao ler é o que nós pensemos do texto (compreensão) e/ou o

que possamos apreender dele (pragmatismo).

A prática de leitura como estratégia de apreensão de algo – seja

informação, saber, domínio lingüístico etc. – está arraigada na separação entre

sujeito (leitor) e objeto (texto) e impede que se passe algo com o leitor durante a

30
Tradução livre. Todas as citações de trechos da obra de Larrosa (1996) apresentadas ao longo
deste texto são traduções minhas do original em espanhol.
64

leitura. Por outro lado, também a prática de leitura como produção de sentidos, se

tomada de um ponto de vista não-problematizador, pode converter-se em

instrumento de legitimação de interpretações prévias e, igualmente, impedir o efetivo

encontro entre leitor e texto.

Por outro lado, o depoimento abaixo, em resposta à pergunta “Precisa

ter bastante leitura para ser professor(a)?”, aponta para a perspectiva da abertura:

Muita leitura. Eu às vezes fico pensando assim: ‘puxa vida, se esses


vinte anos todos que eu estive em busca de estudar, eu tivesse lido
esses livros que agora eu fui chamada a ler...’ Me abriu... (Marta).

Para essa professora, as leituras exigidas durante o curso de formação

constituíram possibilidades de abertura, pelas quais ela passou a vislumbrar outros

horizontes. E é interessante a forma como ela se refere a tais leituras, afirmando que

se as tivesse feito antes, teria tido essa chance de ampliar suas perspectivas. Na

seqüência da entrevista com essa professora, questionei sobre se ela acredita que,

se tivesse tido, mais cedo, acesso a essas leituras que fez durante o curso de

formação e que afirma terem-lhe aberto um novo horizonte de perspectivas, teriam

provocado nela esse mesmo “efeito”; se teria ela conseguido fazer essa mesma

leitura. E ela responde:

Eu acho que... teria aprendido bem mais, eu estaria com a mente já


bem mais aberta, [...] porque quando eu entrei no curso, as leituras e
mesmo as discussões, as socializações das leituras, tudo muito
corrido: ‘Tá, você tem dois minutos!’, mas às vezes ali tem uma coisa
que você leu que você queria ampliar mais. Não dava! Mas eu
procurava fazer em casa, buscar fora. Mas eu acho que teria aberto
bem mais a minha mente. Talvez tivesse ido buscar... isso que fui
buscar nessa época, em 1999, quem sabe teria ido buscar antes,
mais cedo (Marta).
65

A ênfase, na concepção dessa professora, recai efetivamente sobre o

ato de ler, que não está atrelado à mediação de alguém ou à interferência de um(a)

professor(a) formador(a). A este(a), coube a provocação; a abertura propriamente

ficou por conta do encontro entre a leitora e os textos. Essa concepção me interessa

especialmente, à medida que vejo nela ressaltado o “lugar” do(a) professor(a) como

um instigador, alguém que tem a função político-social de garantir aos alunos e às

alunas o acesso aos textos, os mais variados, promovendo a possibilidade do

encontro entre eles.

Tomo a questão formulada por Larrosa (1996) para avançar em minhas

reflexões: o que é ler, quando não é uma fantasia trivial ou uma forma de ócio,

quando não tem que ver somente com a aprendizagem de algo exterior

(apropriação), com uma mera aquisição de informação? O que é ler, quando o

importante não é o que nós pensemos do texto, mas sim o que desde o texto ou

contra o texto ou a partir do texto possamos pensar de nós mesmos? Quero,

portanto, voltar a atenção para o que é ler quando, ao fazê-lo, algo acontece com o

sujeito leitor.

Entender a leitura na perspectiva proposta por Larrosa (1996 e 2004)

implica pensá-la como um exercício de linguagem que mobiliza duas dimensões: a

compreensão e a interpretação. Para entender essas duas dimensões, recorro a

Gadamer (1998). De acordo com ele, o ser humano está inscrito na linguagem e é

constituído por ela, ou seja, a linguagem é condição de possibilidade do humano.

Assim, a compreensão não ocorre porque dispomos de um instrumental conceitual


66

que nos capacite para tanto, mas é própria da condição humana31, ao passo que a

interpretação é demandada por aquilo que nos interpela, nos afeta, nos toma e

constitui uma abertura a novos horizontes de perspectiva. O mesmo autor afirma que

não existe compreensão ou interpretação que não ponha em jogo a totalidade do

ser-no-mundo. A leitura como interpretação sempre projeta o sujeito do

conhecimento, “mesmo quando sua intenção é restringir-se a uma leitura puramente

‘literal’ de um texto ou deste ou daquele evento” (GADAMER, 1998, p. 43).

A interpretação é uma forma de ação do sujeito – ser da linguagem - no

mundo e funciona como desvelamento. Também corrobora esse entendimento uma

afirmação de Larrosa (2001). No contexto da citação, o autor está se referindo à

pretensão de chegar à verdade sobre si mesmo e escreve: “Não há um eu real e

escondido a ser descoberto. Atrás de um véu, há sempre outro véu; atrás de uma

máscara, outra máscara; atrás de uma pele, outra pele” (p. 9). Penso que é possível

aproximar estas palavras de Larrosa da noção de interpretação como desvelamento

de sentidos; não se trata, pois, de descobrir sentidos - explícitos ou ocultos - no

texto, mas de entender que os sentidos não estão para serem descobertos, e sim

inventados; não estão para serem apreendidos, e sim criados. O gesto interpretativo,

ao mesmo tempo em que desvela, também encobre algo, não havendo uma

“emergência completa”. Interpretar é sempre dizer, é ação discursiva, mesmo que

interna. No entanto, é pertinente observar que o único modo de dizer algo é dizer de

um lugar sempre precário, provisório, ou seja, o lugar da interpretação não pode ser

tomado como o lugar da verdade, mas da construção de possibilidades de verdades,

31
Essa concepção tem seu fundamento na hermenêutica da facticidade de Heidegger. O conceito
heideggeriano de compreensão tem, segundo Gadamer (1998, p. 40), um peso ontológico: “A
compreensão também já não é mais uma operação que se deslocaria em sentido inverso e posterior
ao da vida constituidora, ela é o modo de ser originário da vida humana mesma”.
67

sempre plurais e perspectivadas, que emergem do encontro entre o horizonte do

leitor e o horizonte do texto. Portanto, a leitura é sempre um encontro entre

horizontes discursivos distintos e, como tal, guarda algo de estranho, de

surpreendente. Nessa perspectiva, ler é desestabilizar e/ou desconstruir sentidos, é

mergulhar na teia invisível dos já-ditos e instaurar novas e renovadas possibilidades

de sentidos.

3.1 A prática da leitura como um modo de “dar a ler”

Uma das professoras ouvidas, ao contar sobre sua relação com a

leitura durante os primeiros anos de escolarização, expressa o sofrimento que lhe

era causado pela obrigatoriedade de ler e escrever sobre essa leitura e, ainda, ter de

ler para a professora o escrito:

[...] quando a gente estudava... imagine que se agora a gente tem


pouco acesso a livros... a gente era obrigado a fazer redação que
tinha que ler. Então eu tava sempre ou doente, ou não tinha voz, eu
nunca conseguia ler. Mas isso não era... era... e era obrigada. Além
de tudo, de dar uma desculpa dessas, eu era obrigada a ler!
(Natália).

Essa mesma professora narra também uma outra experiência de

relação com os textos, proporcionada por uma professora que lia histórias para ela e

os(as) demais colegas:

E, depois disso, a gente teve uma professora de português... e ela


tinha uma maneira de trabalhar bem diferente. Ela nos contava as
histórias! Cada aula era um capítulo. E aí ela foi... foi pegando a
gente. [...] ela tinha umas coleções de livros. E ela passou a me
emprestar. [...] eu acho que foi muito dela, da maneira como ela
trabalhou isso. Porque eu não tinha o compromisso da leitura pra dar
o retorno pra ela. Não! Ela tinha o prazer de contar. [...] Mudou. Era
68

bem sofrido. Imagina, tu ter que ler, tu ter que escrever!? E daí vem
uma outra pessoa fazendo a leitura, uma outra leitura... (Natália).

No entanto, o depoimento dessa professora, quando se refere à sua

atuação docente e à forma como “tenta promover” a leitura, permite entrever uma

relação conflituosa com a noção convencional/predominante de leitura. Ela não quer

fazer como sua primeira professora, mas também não consegue romper com a idéia

de leitura estreitamente ligada à avaliação. O que faz, então? Refugia-se na

tentativa de promover a contação das histórias lidas pelos(as) alunos(as); foge da

palavra leitura, mas não escapa ao controle e à avaliação da mesma, agora

disfarçados sob o signo da oralidade:

E isso eu procurei fazer [...] Não da leitura em si, vamos contar a


história. Tu retira o livro que tu quer, não interessa, não faz esse
controle, e você vai me contar, você não vai ler pra mim. Você lê e
você me conta a história. E funcionou. No início teve muita recusa,
mas não trabalhei com a questão de ser obrigatório (Natália).

Não me interessa, nem me cabe, julgar a atitude da professora, mas

evidenciar a percepção de um conflito, de uma tensão com algo que é constitutivo

do próprio logos pedagógico instituído. Aliás, a tensão percebida no depoimento

dessa professora merece ser destacada como um aspecto positivo, pois geralmente

o que se vê praticar nas escolas é uma leitura-treinamento, em que o(a)

professor(a), do alto de seu pedantismo pedagógico32, crê estar fazendo o que é

certo e, assim, não se permite sequer o questionamento, muito menos o

32
Savater (1998), discorrendo sobre o ensino de forma geral, cita algumas possíveis causas da sua
ineficácia, com destaque para o que denomina “pedantismo pedagógico”. Não se trata, conforme o
autor, de um “distúrbio psicológico de alguns, mas de uma doença profissional da maioria” (p. 144). O
pedantismo pedagógico consiste em uma pretensão de superioridade pela detenção de determinados
saberes, que impossibilita o(a) professor(a) de esboçar junto aos alunos as inquietações e tentativas
que levaram a estabelecer esses saberes, mas à explicação (imposição) dos mesmos, sem admitir
que os alunos podem não ter por aquela área ou por aquele tema o mesmo interesse que ele(ela)
tem.
69

tensionamento.

Larrosa (2001) também alerta para a sutileza das técnicas de controle

e avaliação da leitura na escola, que desvelam determinada concepção de leitura

sustentada, por sua vez, em determinada concepção de linguagem. De acordo com

o autor, na escola, como a concebemos e praticamos, é essencial a avaliação. Isso

impõe a necessidade de tornar visíveis os “resultados” das práticas de ensino. Ainda

de acordo com o autor, a essa escola é perfeitamente funcional determinada

concepção de linguagem: instrumento de comunicação33. Essa concepção técnica

de linguagem dá sustentação a determinada concepção de leitura: “A língua não é

outra coisa que um suporte de idéias, sentimentos e, em geral, expressões, e ler não

é outra coisa que apropriar-se disso que a língua comunica” (LARROSA, 2004, p.

334). O sistema educativo que ainda concebe a linguagem como veículo, como

tecnologia de informação, entende e pratica a leitura do ponto de vista do

processamento de informações.

Nesse contexto, a oralidade acaba, muitas vezes, sendo convertida em

uma eficaz forma de controle sobre a recepção correta do sentido daquilo que se lê.

Sobre isso, Larrosa (2001, p. 14) escreve:

A oralidade no ensino supõe habitualmente um controle muito estrito


sobre a recepção correta do sentido e sobre as produções
lingüísticas dos estudantes; ao contrário, a leitura escapa muito mais

33
Os avanços nos estudos de linguagem, com a virada lingüística do pensamento filosófico do século
XX, fazem ver o ser humano como um ser da e na linguagem, ou seja, a linguagem como constitutiva
do humano, não mais admitindo, portanto, a concepção de linguagem como algo secundário no
conhecimento da realidade, mas, ao contrário, como constitutiva da própria realidade e do ser no
mundo - somos seres de linguagem e a realidade é interpretação pela linguagem (Sobre isso, ver:
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-Pragmática na filosofia contemporânea. SP:
Loyola, 1996). No entanto, à revelia desses avanços, na prática de muitas escolas ainda prevalece
uma concepção mecanicista de linguagem como mero instrumento de comunicação.
70

facilmente a todo controle e sua dimensão solitária e silenciosa


permite exercícios de interpretação muito mais arriscados e plurais,
pelo menos se não considerarmos a leitura como mera apropriação
de algo (informações, idéias, verdades, etc.) que já está no texto.

Uma das professoras entrevistadas, falando a respeito de sua relação

com as narrativas, evidencia o caráter moralizante do qual as histórias narradas para

ela na infância eram revestidas:

Minha mãe contava histórias. [...] As histórias que minha mãe


contava sempre tinham alguma coisa a ver com algo que ela queria
que a gente fizesse. Teria que fazer as coisas como a mãe mandava
porque, se não, alguma coisa podia dar errado. Então ela contava as
histórias do Pedro Malazartes que foi comprar banha e a mãe disse
tu põe a banha na água quando tu parar lá pra almoçar pra banha
não derreter, tu põe o sal no sol pra não molhar, as agulhas tu põe
aqui, põe lá. E ele fazia tudo errado, botava a banha no sol, o sal na
água, as agulhas na gaveta e dava aquela confusão. Então a mãe
dizia: olha o Pedro Malazartes! Então eu me lembro que as histórias
que a mãe contava sempre tinham a ver com obediência (Marta).

Por outro lado, o depoimento dessa mesma professora evidencia que a

leitura, realizada solitária e subversivamente, escapa ao controle e permite novas

possibilidades de interpretação:

Eu não tinha mais idade pra estar na creche quando meus irmãos
foram pra creche; eu já tinha uns 9 anos. Mas como a gente era de
família muito pobre, elas34 aceitavam que eu ficasse um turno na
creche e no outro eu ia pra escola. Em troca disso, eu tinha que
ajudar, eu tinha que trabalhar. Então eu ajudava a cuidar dos bebês
[...] se elas saíam, eu ficava olhando; se alguém chorasse, eu tinha
que descer e chamar uma delas [...] eu descobri que no mesmo
andar do berçário, tinha uma biblioteca, com caixas de livros, que
não eram acessados às crianças; as crianças nunca pegavam livros
[...] Mas o que eu fazia? Eu pegava escondido! Já que eu tinha que
ficar com as crianças e, às vezes, as crianças estavam dormindo, eu
buscava. Foi onde eu li Soldadinho de Chumbo... eu lia, lia, lia! E eu
contava pro meu pai e meu pai dizia ‘mas ah, que elas te pegam!’
Não, eu ponho no lugar de novo! Eu ia trocando, os que eu já tinha
lido eu ia e devolvia. [...] Então foi ali, eu acho, que eu comecei a
tomar gosto. E eu contava pra minha mãe: ah, mas eu aprendi outra
história do Malazartes! Não eram aquelas histórias que a mãe

34
A entrevistada está se referindo às freiras que coordenavam a Creche, mantida por uma instituição
religiosa.
71

contava. Eram histórias... Ah, mas eu aprendi outras e outras nos


livros de histórias (Marta).

As leituras a que se refere essa professora, experienciadas em

determinada fase de sua infância, são atravessadas por uma subversão crítica. Os

encontros que se davam entre ela e as histórias lidas constituíram-se, para ela,

como uma possibilidade de abertura à linguagem. Essa abertura proporcionou-lhe a

desestabilização dos sentidos previamente determinados (“ah, mas eu aprendi outra

história do Malazartes! [...] Ah, mas eu aprendi outras e outras nos livros de

histórias!”), fazendo abrir-se diante de si um universo amplo, no qual ela mergulhou

a partir da formação do gosto pela leitura.

É interessante, também, perceber as diferentes referências feitas pelas

professoras ouvidas no que tange às leituras exigidas delas durante seu processo

de formação escolarizada, relacionadas com sua atual prática educativa. As

professoras falaram especialmente das leituras realizadas a partir das disciplinas de

filosofia, literatura e didáticas. No primeiro bloco de depoimentos que destaco

abaixo, elas estão se referindo às aulas de filosofia:

A filosofia, ela entra... nas tuas argumentações, nas ações com as


crianças... no pensar [...]. A filosofia, ela é desvalorizada porque se
diz que não faz nada; a filosofia, o filósofo não faz nada, é um
desocupado, ou coisa assim. E o que, de certa forma, me marcava
bastante na filosofia é que eu não vou encontrar resposta pra tudo.
Posso até, digamos, posso até chamar as crianças pra... tá, não era
isso! Tá, mas eles não são obrigados a responder tudo, ou eu
também não sou obrigada a responder pra eles todos os
questionamentos, o porquê disso, o porquê daquilo! Então, eu acho
que a filosofia, ela te alivia um pouco, porque claro que tem que
buscar saber, mas também tu não precisa ter resposta pra tudo, né!
[...] Ela te ajuda muito, a filosofia te faz pensar... (Marta).

A filosofia... primeiro: ‘ah, faz de conta que não é nada, que tá ali, é
mais uma matéria a cumprir’, e depois tu vai traçando os paralelos
[...] Mas no início, quando te dizem a primeira palavra ‘aula de
72

filosofia’, pronto! [...] vai falar das histórias daqueles teóricos, fez
isso, fez aquilo, tu cansada, um dia inteiro de trabalho e tendo que ler
lá isso. E o cara chega e começa a falar e vai chamando tua atenção,
e vai questionando, então... Faz toda a diferença. Porque às vezes a
gente perguntava pra ele, porque tinha horas que a gente não tava
entendendo, e daí? Daí ele largava outra questão. E daí ia puxando,
em nenhum momento ele simplesmente respondeu uma questão, ele
fazia tu te colocar naquele lugar e dali procurar respostas. [...] é que
às vezes você não faz essa ligação no imediato, eu to fazendo tal
coisa porque isso vai dar resultado disso. Não! Mas depois quando tu
pára e repassa todo o trabalho que tu fez, daí que tu vai ver aonde
que tá... quando você vai fazer esse tipo de atividade é que você vai
ver o porquê; na hora às vezes você não consegue fazer a ligação,
depois ela vai acontecer! E isso foi a questão da filosofia (Natália).

Olha, assim... a gente não pode dizer que não ficou nada, mas... às
vezes coisas que te fazem pensar... mas... leituras assim que te
faziam pensar algumas coisas, de pensadores, e só! (Luiza) [grifo da
enunciadora marcado pela tonalidade da voz].

Não pretendo promover qualquer comparação entre as concepções

das professoras acima citadas. Contudo, é importante destacar que a mesma

matéria, freqüentada no mesmo curso de formação (normal pós-médio), tendo

indicado e/ou exigido das três professoras as mesmas leituras, deixou em cada uma

delas marcas diferentes. O depoimento da primeira professora permite perceber o

seu atravessamento pelas questões filosóficas, ressalta o pensar como prática

inerente à docência e concebe a filosofia como um campo privilegiado para o

desenvolvimento desse exercício. O segundo depoimento citado destaca a

capacidade de questionar, que também se liga diretamente ao pensar, como

elemento importante no processo de formação, concebendo a filosofia como a área

do conhecimento humano que oferece subsídios para o estabelecimento de relações

entre os saberes e, conseqüentemente, para sua melhor compreensão. Já o terceiro

depoimento desvela uma relação incipiente com as questões filosóficas, pelo menos

com as questões mobilizadas no transcorrer das aulas. Essa professora se refere à

provocação ao pensar como uma coisa menor, sem importância, evidenciando que

essas leituras não a atravessaram, não fizeram sentido para ela.


73

No que tange às aulas de literatura, é possível perceber uma ênfase

sobre o aspecto prático-metodológico. No entanto, dependendo das experiências de

cada uma, essa ênfase é mais ou menos instrumental. Em alguns depoimentos,

evidencia-se a existência de um questionamento, uma atitude autônoma, reflexiva,

fazendo emergirem concepções de educação e de prática de leitura que apontam

para a abertura do sujeito ao universo simbólico que a literatura35 é capaz de

mobilizar.

Ela [a professora de literatura] trabalhava muito a prática de contação


de histórias. Não é uma carga horária muito extensa pra literatura.
Então, quem foi, quem buscou... conseguiu. [...] porque tem a
questão: o que eu posso contar pra criança da pré-escola, dessa
idade? [...] o professor tem que ir lá e ver, qualquer história eu posso
contar, desde que seja realmente do interesse deles [...]. Eu fico
imaginando que naquele grupo que eu to trabalhando deve ter
alguém como eu. Então eu fico pensando, quanto mais rica de
detalhes eu contar pra eles, porque minha mãe tinha isso, ela tinha
riqueza de detalhes quando contava e por isso a gente gostava tanto
de ouvir as histórias dela. Eu lembro que isso me ajudava, me
cativava, fazia eu gostar de ouvir a mãe contar, ou seja, não achava
chato ela contar, e pedíamos conta mais, porque era rico, assim, ela
era expressiva. Tudo isso, bom tem que ter expressão. [...] Então eu
acho que me ajudou muito. Então eu procuro pras crianças também.
Tanto gravuras, detalhes, eu procuro muito (Marta).

Em literatura foi trabalhado bastante literatura infantil e como aplicar


as histórias. Foi muito interessante, eu gostei. Assim, pegar e falar da
historinha da Casa Sonolenta, por exemplo, eu não vou pegar e
despejar a historinha. Existem outras técnicas, outros jeitos (Luiza).

A gente trabalhou bem a literatura pra trabalhar, trabalhada na


educação infantil, e com ensino fundamental também a gente

35
A literatura é manifestação cultural, entendendo-se por cultura “um corpo complexo de normas,
símbolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos,
orientam as emoções” (MORIN, E. Cultura de massas no séc. XX – o espírito do tempo. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1977, p. 15). O texto literário é objeto lingüístico e estético ao mesmo
tempo; caracteriza-se pela multissignificação; pela liberdade na sua criação em relação às tradições
lingüística, retórico-estilística e temática e pela ênfase no significante, ou seja, ao passo que a
atribuição de sentidos ao texto não-literário apóia-se no “plano do conteúdo” (significado), a atribuição
de sentidos ao texto literário implica “ler” também sua forma estética. Isso faz do literário um campo
discursivo que privilegia a criatividade e a imaginação, tanto de quem escreve quanto de quem lê. Por
isso, sua leitura não se restringe à transmissão de informações e/ou conteúdos, é potencialmente
mobilizadora da imaginação, dos desejos, da vontade, enfim, daquilo que nos subjetiva.
74

trabalhou bastante, o porquê das histórias, até como trabalhar a


questão da literatura com as crianças, ficou bem claro. Porque às
vezes a gente acha que ler é obrigar o outro a ler, né. Você só
desperta interesse, não tem como obrigar os outros a lerem. Não tem
que obrigar ninguém a ler... isso foi bem trabalhado (Natália).

É interessante perceber, no primeiro depoimento destacado acima, que

a professora entrevistada começa se referindo àquilo que caracterizou o trabalho

didático-pedagógico realizado pela professora de literatura com sua turma durante o

curso de formação docente (a pergunta era: “O que vocês liam na disciplina de

literatura?”). No entanto, seu depoimento logo se desprende do que a escola de

formação ensinou a fazer com os textos literários e resgata percepções e

concepções de suas experiências de leitura, de sua relação com as histórias ouvidas

e lidas no decorrer de sua vida. Já os depoimentos das outras duas professoras

restringem-se às técnicas e às orientações para se trabalhar com os textos literários,

ensinadas pela escola de formação. A natureza das experiências anteriores de

leitura dessas professoras parece constituir um ponto interessante para pensar como

e por que elas, apesar de freqüentarem o mesmo curso de formação e enunciarem o

mesmo discurso enaltecedor da leitura, são atravessadas por concepções e práticas

de leitura significativamente distintas, pelo menos no que se refere aos campos

filosófico e literário.

Com Larrosa (1996 e 2001), lembro que, quando um texto passa a

fazer parte do discurso pedagógico, ou seja, quando é incorporado ao processo de

ensino-aprendizagem, fica submetido a determinado conjunto de regras didáticas e

ideológicas36. “A literatura escolar não é a Literatura, do mesmo modo que a física

36
O termo ideologia, no contexto desta abordagem, significa visão de mundo. Acolho a definição de
Marcondes (2000), para o qual o conceito de ideologia pode ser entendido em um sentido descritivo,
que não parte do contraste entre aparência e realidade, nem supõe a caracterização da ideologia
75

escolar não é a Física e a história escolar não é a História” (LARROSA, 1996, p.

393). O processo de escolarização de toda área de saber implica uma interpretação

e um recorte dessa área, marcados, por sua vez, por determinadas concepções de

educação, de sujeito, de conhecimento, por determinada visão de mundo e por

motivações de ordem prática.

De acordo com Larrosa (1996 e 2001), o logos pedagógico

predominante é constituído por regras didáticas e ideológicas que acabam por

estabelecer mecanismos de controle com vistas a “exorcizar os perigos da leitura”.

Conforme o autor, referindo-se, no contexto de sua escrita, mais especificamente à

literatura, uma das modalidades de controle dos “perigos” da leitura consiste em

desativar sua força potencialmente transformadora mediante operações destinadas

a formar e solidificar a consciência: “Somente aquele que já tenha sido formado e

cuja formação é suficientemente sólida, poderá submeter sua identidade aos

ataques da literatura e sair vitorioso” (LARROSA, 1996, p. 65). A ampla e profunda

referência feita por Larrosa ao literário como um campo privilegiado para a leitura

potencialmente transformadora tem a ver com a natureza polissêmica e polifônica

dos textos literários. Por outro lado, com Bakhtin (1981), entendo que a linguagem é

dialógica, o que significa dizer que todo texto remete a outras vozes e pode mobilizar

sentidos variados, por aproximação/confirmação ou distanciamento/negação. Assim,

todo texto põe em movimento vozes que oferecem a possibilidade de desvelamento

de múltiplos sentidos.

como “falsa consciência”, conforme expressão cunhada por Marx e Engels (In: Ideologia Alemã,
1962). O termo ideologia é tomado, portanto, como “a consciência de uma época, a maneira como
uma sociedade ou grupo concebe a si mesmo; ou, ainda, o conjunto de representações segundo o
qual se identificam” (MARCONDES, 2000, p. 123).
76

Os mecanismos de proteção desenvolvidos pela “tutela pedagógica”

dos textos servem para evitar que o leitor se entregue é vá mais além de um

horizonte conhecido; servem para impedir que ocorra efetivamente o encontro entre

o sujeito-leitor e o texto. Esses mecanismos visam a evitar que algo interpele o

sujeito e demande dele um gesto interpretativo, pois quando isso ocorre não existe

controle, as possibilidades são infinitas.

Outra modalidade de controle pedagógico da experiência da leitura

consiste em:

[...] submeter essa experiência à lógica de uma finalidade sensata e


prevista de antemão. Neste caso a leitura é parte de um projeto. A
experiência da literatura está submetida a uma finalidade moral,
cognoscitiva, ou puramente estética (LARROSA, 1996, p. 65).

Essa segunda modalidade apresentada por Larrosa é tanto mais

eficiente quanto mais sutil, uma vez que o “perigo” de pôr em questão o que somos,

próprio da leitura que se constitui experiência, é colocado a serviço de uma

finalidade:

[...] pôr em questão o que somos é um meio para chegar a ser outra
coisa: para saber mais, para ser melhores, para aumentar nossa
sensibilidade, para conseguir um certo prazer sem conseqüências. E
tudo isso em um sentido já previsto. Perder-se seria, de algum modo,
uma forma de salvar-se, dissolver-se seria uma forma de reconstruir-
se ainda mais solidamente, desapossar-se seria somente uma forma
de modificar e fortalecer a autopossessão (LARROSA, 1996, p. 65).

A partir da explicitação das duas modalidades de controle pedagógico

da leitura, Larrosa nos coloca diante de uma constatação:


77

Ler, quando pedagogicamente assegurado, é uma atividade que tem


sido suficientemente controlada para que nada nos passe, ou para
que o que nos passe seja o que está previsto que nos tem que
passar e não qualquer outra coisa (LARROSA, 1996, p. 65).

No entanto, o mesmo autor lembra que o discurso não pode controlar

totalmente a si mesmo. Todo texto carrega consigo possibilidades de significação

que escapam sempre de qualquer controle e, sendo assim, todo texto pedagogizado

arrasta consigo a possibilidade de pôr em questão e de modificar a lógica na qual

está inserido, ou seja, o próprio logos pedagógico.

A possibilidade que a leitura guarda de tensionar e desestabilizar o

próprio logos pedagógico ao qual é submetida, quando de sua incorporação ao

sistema de ensino, é reafirmada por Larrosa (1996). Ele exemplifica isso se referindo

à poesia pós-platônica, afirmando que é capaz de transmitir verdades e máximas

morais formuladas fora dela. O que o próprio Platão defende em seus diálogos sofre

influências que fogem ao seu controle:

Nos diálogos platônicos, a poesia é constantemente recriada e


interpelada pela razão, mas o curso do pensamento deixa-se
também constantemente interferir e desviar pela poesia e pelo mito.
O que existe é um jogo tenso, um mútuo descentramento às vezes
violento, um diálogo apaixonado em que cada um dos pólos tira o
outro de suas posições e, às vezes, se deixa inquietar por ele
(LARROSA, 1996, p. 398).
A leitura é muito mais do que um método mais ou menos eficaz para a

transmissão indireta e agradável de um corpus doutrinário, e a situação vital do

ensino é bem mais ampla do que o contexto concreto dessa transmissão. Nesse

sentido, a prática escolar da leitura constitui uma atividade cujo conteúdo se

desconhece e cujo método deve ser constantemente inventado e reinventado. Ou


78

seja, o encontro entre leitor e texto, dois horizontes amplos e distintos, não cabe na

“gaveta conteudista”; e a leitura é concebida como a promoção desse encontro.

Resumidamente, Larrosa concebe o logos pedagógico como algo que

funciona através do jogo aberto e excêntrico, nunca fechado e nunca centrado, de

três elementos que constantemente interferem entre si: primeiro, a vida concreta,

situada no espaço e no tempo, sempre plural e complexa, em que se desenvolvem

os protagonistas (os sujeitos do processo de ensino-aprendizagem); segundo, um

tecido dialógico híbrido, ou um jogo excêntrico entre discursos heterogêneos;

terceiro, um impulso na direção da verdade e da justiça, ou uma suscetibilidade

compartilhada pelo conhecimento e pela melhoria do humano.

O logos pedagógico passa a ser compreendido, então, não como algo

natural, mas como fruto de interpretações e opções político-ideológicas. Portanto, as

diretrizes éticas e metodológicas da prática pedagógica devem ser estabelecidas

com base em dois processos fundamentais e complementares entre si: a reflexão

sobre os limites impostos e as possibilidades que se abrem aos sujeitos envolvidos

no processo concreto de escolarização e o questionamento diante da realidade e

das práticas instituídas. Isso implica encarar a prática educativa (didático-

pedagógica) não como o lugar das respostas, mas como o espaço-tempo

privilegiado das perguntas, através do qual é possível lidar com as incertezas,

ajudando o sujeito a preparar-se para a ação circunstanciada, entendida como a

capacidade de agir em circunstâncias reais de vivência social.


79

Nisso reside, no meu modo de entender, o aspecto mais interessante

da leitura literária e da leitura filosófica em sua relação com o campo pedagógico. O

literário e o filosófico são discursos que se abrem ao questionamento e “funcionam”

incitando perguntas, abrindo-nos à interrogação da realidade, ou melhor, daquilo que

temos tomado como realidade. Não se constituem como forma de transmissão não-

problemática de um corpus doutrinário (valores morais) ou de saberes; têm a ver

com o próprio jogo da verdade e da justiça. A literatura, em particular, é a

problematização incessante do que contar e do como contá-lo, quando aquele que

conta (narrador) atenta para essa vida concreta, que, por um lado, tem de ser

transformada e que, por outro, constitui o elemento vivo do discurso.

Para Larrosa (1996 e 2001), a separação radical entre literatura e

comunicação, que acaba por colocar a primeira como algo fora do mundo da vida,

como algo à parte, expressa sua resistência à subordinação. No entanto, a péssima

conotação que o adjetivo pedagógico tem hoje, no campo literário, também

evidencia uma concepção demasiadamente estreita e dogmática de logos

pedagógico. É preciso reconhecer sua complexidade e sua abertura. E é nesse

sentido que o autor insiste na radical impossibilidade de subordinação da literatura,

não para mantê-la separada da pedagogia, mas, ao contrário, para explorar essa

resistência à subordinação frente a uma concepção do logos pedagógico que seja

capaz de incluir tensões e contradições constitutivas. Não se trata, portanto, de

afastar a literatura da pedagogia com medo que esta “contamine” aquela, mas sim

de permitir que a literatura, devido justamente a seu caráter de insubordinação,

possa contribuir para tensionar e abrir o campo pedagógico.


80

Larrosa (1996) também questiona: que literatura tem esses efeitos e,

sobretudo, como é que a literatura pode atuar desse modo? E constrói a resposta

referindo-se a Peter Handke, um autor, segundo ele, nada suspeito de

“pedagogismo” e celebrado, na época em que escrevera, por seus ataques ao

realismo comprometido alemão (arte engajada) – a geração que se considerava a si

mesma como ocupada com a denúncia crítica da história e da realidade alemãs – e

por seus ataques simultâneos à literatura lúdica, segundo ele, meramente divertida,

que faz o leitor se esquecer de si mesmo e do mundo, procurando um prazer sem

conseqüências. As primeiras linhas do texto de Handke, transcritas por Larrosa,

expressam o seguinte:

O sistema estúpido de educação que os representantes das


autoridades responsáveis me aplicaram, tanto a mim quanto a todos,
não podia fazer, de mim, grande coisa. Eu nunca fui educado pelos
educadores oficiais: sempre deixei que fosse a literatura a me
transformar [...]. Tendo me dado conta de que eu mesmo tinha
podido mudar graças à literatura, que a literatura havia feito outro de
mim, eu espero, sem cessar, da literatura uma nova possibilidade de
me transformar [...]. E porque me dei conta de que eu mesmo tinha
podido mudar graças à literatura, que é apenas a literatura que me
permitiu viver com uma maior consciência, estou convencido de
poder mudar os outros graças à minha literatura (HANDKE apud
LARROSA, 1996, p. 405).

A resposta esboçada por Larrosa às questões referidas acima aponta

para vários autores lidos por Handke. Autores cujo mérito essencial é oferecer ao

sujeito-leitor uma abertura à linguagem, a uma realidade ainda não pensada e ainda

não consciente, uma nova possibilidade de leitura/interpretação/construção da

realidade e, conseqüentemente, uma nova possibilidade de pensar, de dizer, de

existir. Nesse sentido, Larrosa afirma:


81

A literatura que tem o poder de mudar não é aquela que se dirige


diretamente ao leitor, dizendo-lhe como ele tem de ver o mundo nem
a que lhe dita como deve interpretar-se a si mesmo e às suas
próprias ações; mas, tampouco, é a que renuncia ao mundo e à vida
dos homens e se dobra sobre si mesma. A função da literatura
consiste em violentar e questionar a linguagem trivial e fossilizada,
violentando e questionando, ao mesmo tempo, as convenções que
nos dão o mundo como algo já pensando e já dito, como algo
evidente, como algo que se nos impõe sem reflexão (1996, p. 405-
406).

Larrosa (1996) evidencia e reafirma uma relação entre literatura e

realidade, que diz respeito não à subordinação da primeira à segunda, como lugar

de representação e denúncia, tampouco como elemento fora da realidade (arte pela

arte), mas sim como produção humana “em relação com a realidade e com a

autenticidade e, portanto, com a verdade e com o pensamento” (p. 406). No entanto,

com uma noção de verdade diferente da noção metafísica, “uma verdade que não

existe a não ser enquanto vontade de verdade e com um pensamento que não é

outra coisa senão resistência aos conceitos que nos dão as coisas já pensadas e,

portanto, impensadas” (LARROSA, 1996, p. 406).

O que se evidencia como aspecto negativo, de acordo com o autor,

não reside na aproximação entre literatura e comunicação, “mas entre a literatura

que comunica fazendo se manifestarem as imagens convencionais do mundo e a

literatura que nos dá o mundo como algo já pensado, como um mero objeto de

reconhecimento” (LARROSA, 1996, p. 406). Questão crucial é, então, a diferença

essencial entre duas formas de logos pedagógico: o que faz pensar e o que

transmite o já pensado, ambas as formas incluindo a literatura, bem como todas as

demais áreas de saber. Ou seja, a questão nodal, em educação, diz respeito a como

são tomados os textos, se o são como elementos de representação e/ou

transmissão da realidade, em que o sujeito-leitor apreende o já pensado, ou se o


82

são como possibilidades de abertura do sujeito à linguagem e, portanto, ao

questionamento da realidade convencionada.

Se considerarmos “ensinamento” qualquer afirmação geral sobre a

existência humana, à qual o texto possa dar lugar, ou qualquer influência que o

mesmo possa exercer sobre o leitor, todo texto (literário ou não) poderia ser

pedagógico, sem prejuízo de suas outras dimensões (LARROSA, 1996). Isso implica

encarar o aspecto pedagógico não como ensino moralizante e dogmático, mas como

abertura ao desconhecido, como possibilidade de criação de um novo horizonte de

perspectivas. E implica, também, reconhecer que o pedagógico de um texto não está

tanto nele, mas na forma de lê-lo.

O discurso pedagógico dá a ler, estabelece o modo de leitura, tutela


a leitura e avalia. Ou, dito de outra maneira, seleciona o texto,
determina a relação legítima com o texto, controla essa relação e
determina hierarquicamente o valor de cada uma das realizações
concretas de leitura. O discurso pedagógico dogmático, aquele que
se apropria do texto para a demonstração de uma tese ou para a
imposição de uma regra de ação, deve assegurar a univocidade do
sentido e, para isso, deve ‘programar’, de alguma maneira, a
atividade do leitor. Para conseguir isso, a pedagogia tem dois
recursos: ou se assegura de que o texto contenha, de forma mais ou
menos evidente, sua própria interpretação de maneira que se
imponha por si mesma, ou o professor tutela a leitura, tomando para
si a tarefa da imposição e o controle do sentido ‘correto’ (LARROSA,
1996, p. 410-11).

Nessa “maneira de dar a ler” (de “promover” a leitura), mesmo

coexistindo vários textos no espaço da sala de aula, acaba-se por estabelecer uma

relação hierárquica e não conflitiva entre eles, ou seja, a intertextualidade,

compreendida como a coexistência de múltiplas perspectivas discursivas em um

mesmo espaço, por si só, não garante o diálogo entre os textos; é necessário que

essa heterogeneidade de perspectivas seja posta em diálogo; este, compreendido


83

como prática cuja efetivação implica sempre a abertura ao desconhecido, ao novo

e/ou àquilo que se apresenta de maneira renovada, e o tensionamento entre

diferentes perspectivas.

Se tomarmos a leitura como encontro entre horizontes distintos (em

tudo o que o termo horizonte guarda de amplidão e infinidade de possibilidades)37,

não podemos conceber uma prática de leitura não conflitiva. Ao contrário,

considerando a linguagem como condição de possibilidade do humano e como

dialógica por constituição, a leitura sempre impõe a intertextualidade, ou seja, o

encontro tensionador e problematizador entre sentidos que são mobilizados por uma

espécie de presença-ausente, pelo mergulho na teia discursiva invisível dos já-ditos,

universo no qual se constituem os horizontes (alargados) que se encontram no ato

da leitura e as possibilidades de criação de novos sentidos. A subjetividade é

intersubjetiva, é constituída constantemente numa relação dialógica entre sujeitos,

na e pela linguagem e, coerente com essa perspectiva, a leitura também se constitui

como um encontro intersubjetivo.

Como alternativa ao modo fechado de controle exercido pelo logos

pedagógico sobre a leitura, Larrosa (1996) sugere:

Diante desse modo dogmático de pedagogização da narrativa,


poderíamos imaginar outro modelo que funcionasse como seu
reverso. Tratar-se-ia, aí, de tornar impossível a transmissão de um
sentido único. Para isso, a seleção dos textos deve privilegiar sua
‘multivocidade’, sua ‘plurissignificatividade’ e sua abertura; o
comentário dos textos deve destinar-se a multiplicar suas
possibilidades de sentido; o contexto da leitura deve ser o menos

37
No horizonte do leitor, tem-se toda a contingência de sua vida concreta: sua inserção social, sua
bagagem de leituras e outras experiências. No horizonte do texto, a perspectiva de seu autor, que é
também um sujeito situado social e historicamente; a expectativa de um leitor virtual; uma teia
discursiva heterogênea na qual o texto, uma vez enunciado, mergulha; a mobilização dos sentidos já
dados e/ou dos não admitidos etc. (Sobre isso, ver: ISER, Wolfgang. Ato da leitura. Vol. I e II, ambos
publicados pela Editora 34, respectivamente, em 1996 e 1999).
84

especializado possível; a não fixação do sentido deve ser


impulsionada pelo jogo excêntrico de textos plurais e, em cada texto,
pela manutenção, - e de modo que esteja como que dividido contra si
mesmo – da diferença e da tensão entre sua leitura poética e sua
leitura hermenêutica (p. 412).

Essa proposição do autor constitui-se numa abertura do campo

pedagógico à leitura como experiência, privilegiando o encontro intersubjetivo, cuja

condição de possibilidade é oferecida pela linguagem.

3.2 A experiência como o indeterminado da vida

O depoimento de uma das professoras ouvidas também oferece

elementos para pensar acerca da experiência. No excerto destacado abaixo, a

professora entrevistada está discorrendo sobre o que considera necessário para ser

professor(a):

[...] tem que ter um pouco de experiência [...] e experiência tu vai


adquirir indo lá, dando aula (Luiza).

A mesma professora, referindo-se agora a que tipo de leituras

considera importantes para a formação docente, afirma:

[...] Eu acho que tem que ser coisas relacionadas às crianças, como
trabalhar, como fazer, idéias de atividades também são muito
importantes pra gente. Porque às vezes você gasta todos os
neurônios já, e daí aparece uma idéia nova: ah, isso é legal, vamos
fazer né! Então eu acho que é uma troca de experiências também
[...] E... e as didáticas eu achei bem importante, porque ali é que tu
mostra realmente pro aluno o que é ser professor, mas eu sinto
assim, como eu já tenho experiência, já tinha experiência, pra mim o
que elas deram foi suficiente, mas eu acho que pra quem não tinha,
foi pouco (Luiza).

Essa noção de experiência, que subjaz ao depoimento da professora e


85

é amplamente referendada nos cursos de formação, bem como nas pesquisas que

se dedicam a investigar o tema da formação docente, está estreitamente ligada à

dimensão empírica e pragmática da profissão. A experiência é concebida, então,

como uma faculdade ou uma habilidade prática adquirida e/ou desenvolvida ao

longo do tempo dedicado ao exercício da atividade docente. Nesse sentido, liga-se

diretamente ao trabalho e, mais especificamente, ao trabalho desempenhado por

determinado tempo. Já no primeiro capítulo deste estudo fiz referência a essa noção

de experiência, a partir da abordagem de Freire (1996). Trata-se, aqui, da primeira, e

mais comum, dimensão da experiência destacada pelo autor. No entanto, percebo

também em Freire o desvelamento de uma outra dimensão da experiência,

estreitamente ligada à subjetividade do sujeito-professor(a). E tomar a experiência

como um elemento constitutivo da subjetividade implica não restringi-la ao seu

caráter pragmático, exclusivamente ligado ao saber-fazer.

Conforme Larrosa (2001), o termo experiência é derivado do latim

experiri, que significa provar, experimentar. Segundo o autor, a experiência é, antes

de tudo, um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O

radical é periri, que está presente também no termo periculum (perigo) e a raiz indo-

européia é per, com a qual se relaciona, em primeiro lugar, a idéia de travessia e,

secundariamente, a idéia de prova. Por fim, a palavra experiência tem o prefixo ex,

que é o mesmo de existência. Nesse sentido, A “experiência é a passagem da

existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento,

mas que simplesmente ex-iste de uma forma sempre singular, finita, imanente,

contingente” (LARROSA, 2001, p. 5).


86

Para além da significação dada pela etimologia da palavra, a noção de

experiência que perpassa a obra de Larrosa pode ser buscada em Benjamin. Este

autor, no texto intitulado Sobre alguns temas em Baudelaire, escreveu:

Na verdade, a experiência é um fato de tradição, tanto na vida


coletiva como na particular. Consiste não tanto em acontecimentos
isolados fixados exatamente na lembrança, quanto em dados
acumulados, não raro inconscientes, que confluem na memória
(BENJAMIN, 1983, p. 30).

Ainda de acordo com o mesmo autor, a experiência é mergulho nas

correspondências. Essa noção perpassa o texto referido acima, e pode ser

entendida como algo que permite reviver, não apenas rememorando fatos ou

situações, mas trazendo à presença, algo como uma presença ausente38.

Para Benjamin, que escreveu nas primeiras décadas do século XX, sob

o impacto das duas grandes guerras mundiais e do holocausto, a experiência está

em decadência, “atrofiada”. As pessoas já não têm o que contar umas às outras,

predomina a informação de massa. O autor escreveu:

A rígida exclusão da informação do âmbito da experiência depende


também do fato de ela não entrar na ‘tradição’. Os jornais aparecem
em grandes tiragens. Nenhum leitor tem mais facilmente qualquer
coisa para poder contar ao outro. Há uma espécie de concorrência
histórica entre as várias formas de comunicação. Na substituição da
mais antiga relação pela informação, da informação pela ‘sensação’,
reflete-se a progressiva atrofia da experiência. Todas essas formas

38
É algo difícil de conceituar; uma tentativa de apreender e expressar o sentido dessa presença-
ausente parece provocar um esvaziamento de linguagem; é como se somente fosse possível senti-la
e, tendo sentido-a, qualquer tentativa de verbalizar reduzisse a beleza e a abrangência dessa
experienciação e fosse incapaz de efetivamente dizê-la. É possível sentir essa atmosfera ao ler o livro
Sobre a leitura, de Marcel Proust (2003), publicado originalmente como o prefácio que o autor
escreveu, em 1905, para a sua tradução do livro Sésame et lês Lys, de John Ruskin. Proust,
referindo-se às leituras experienciadas na sua infância, mostra operar-se nele uma espécie de
resgate inconsciente daquilo que experienciou, à medida que é tomado pelas sensações que a leitura
provocava nele; são lembranças que trazem consigo as sensações experimentadas e tomam o
sujeito, dissolvendo-se a pretensa distância entre sujeito (leitor) e objeto (texto).
87

se afastam por sua vez da narração, que é uma das mais antigas
formas de comunicação. Esta não visa, como a informação,
comunicar o puro em-si do acontecimento, mas o faz penetrar na
vida do relator, para oferecê-lo aos ouvintes como experiência. Assim
aí se imprime o sinal do narrador, como o da mão do oleiro no vaso
de argila (BENJAMIN, 1983, p. 31).

De acordo com Benjamin, a experiência está dialeticamente ligada à

tradição e ao novo; implica uma relação dialética entre tradição e novidade. A noção

de tradição, para Benjamin, está ligada à idéia de resgate. Para ele, a experiência

vale-se principalmente da memória involuntária, ou seja, daquilo que não foi vivido

expressa e conscientemente; daquilo que não foi vivência. A experiência seria

proporcionada pela conjunção, na memória39, de determinados conteúdos do

passado individual com conteúdos do passado coletivo.

O elo que ligava os homens à tradição era condição de possibilidade

da experiência. Mas, conforme escreve Benjamin no texto Experiência e Pobreza, o

homem moderno desprendeu-se desse elo. Na sociedade de massas,

[...] nossa pobreza de experiência nada mais é que uma parte da


grande pobreza que ganhou novamente um rosto – tão nítido e exato
como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso
patrimônio cultural, se a experiência não o vincula a nós?
(BENJAMIN, 1983, p. 196).

A partir de Benjamin, entendo que a relação do homem com as

narrativas (tradição oral), com os lugares que habita, com os objetos de arte, enfim,

com a cultura reduziu-se ao utilitarismo; mais que isso, trata-se de uma relação de

adaptação à cultura, que já não é produzida pelo homem em interação com a

39
A memória, tal como a concebo nesta abordagem, não pode ser dissociada dos sentidos e da
linguagem; é atravessada pelo inconsciente, pelas questões que nos afetam; não é da ordem da
razão; resulta de uma complexa associação de elementos/forças conscientes e inconscientes (Ver
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago,
1997).
88

natureza e com outros homens, mas fabricada em grande escala, massificada e

imposta aos homens. O autor afirma: “O intérieur burguês obriga seu habitante a

adquirir o máximo possível de hábitos, mais adequados a esse intérieur que ele

mesmo” (BENJAMIN, 1983, p. 197).

Larrosa (2004), na esteira de Benjamin, afirma que excesso de

informação, excesso de opinião e falta de tempo são elementos definhadores da

experiência na sociedade moderna. O autor distingue a noção de experiência da

difundida busca incessante pela informação. O saber da experiência é diferente de

saber coisas, de estar informado. É comum a tomada da expressão “sociedade da

informação” como sinônimo de “sociedade do conhecimento” ou “sociedade de

aprendizagem”. Essa compreensão funda-se na noção de que o conhecimento se dá

sob o modo da informação, como se aprender não fosse outra coisa que adquirir ou

processar informação40. Conforme Larrosa, no entanto, “uma sociedade constituída

sob o signo da informação é uma sociedade em que a experiência é impossível”

(2004, p. 155).

O excesso de informação, somado ao excesso de opinião, rareia a

experiência. É cada vez mais difundida a noção de que precisamos estar

constantemente informados sobre tudo e, mais, termos opinião formada sobre os

temas a respeito dos quais estamos sempre buscando informações. “A opinião,

como a informação, converteu-se em um imperativo” (LARROSA, 2004, p. 155).

Esse imperativo implica uma confusão da noção de crítica. É como se ser crítico

40
Nessa mesma perspectiva, que diferencia informação de conhecimento, discorre Miguel Ángel
Randón Rojas no artigo “Relación entre los conceptos: información, conocimiento y valor –
semejanzas e diferencias (Disponível em: <http://www.ibict.br/cienciadainformacao>).
89

fosse simplesmente ter uma opinião formada a respeito de algo, e como se essa

opinião se limitasse, ainda, a ser contra ou a favor.

Larrosa denuncia:

O par informação/opinião é muito geral e permeia também, por


exemplo, nossa idéia de aprendizagem, inclusive os pedagogos e
psico-pedagogos chamam de ‘aprendizagem significativa’. Desde
pequenos até a Universidade, ao largo de toda nossa travessia pelos
aparatos educativos, estamos submetidos a um dispositivo que
funciona da seguinte maneira: primeiro é preciso informar-se e,
depois, há que se opinar, há que se dar uma opinião obviamente
própria, crítica e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria a
dimensão ‘significativa’ da assim chamada ‘aprendizagem
significativa’ (LARROSA, 2004, p. 156-7).

Outro aspecto apontado pelo autor como algo que tem provocado o

atrofiamento da experiência é a falta de tempo, que diz respeito à maneira como o

sujeito moderno se relaciona com o tempo. A velocidade e a pressa caracterizam a

vida moderna. Assim, tudo o que se passa reduz-se a estímulos fugazes e

instantâneos, que tornam efêmeros todos os “acontecimentos” de nossa vida,

fazendo com que passem por nós, mas não em nós e conosco.

A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a


obsessão pela novidade, pelo novo que caracteriza o mundo
moderno, impede sua conexão significativa. Impede também a
memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por
outro acontecimento que igualmente nos excita por um momento,
mas sem deixar nenhuma marca. O sujeito moderno é um
consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso
impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar permanentemente
excitado e já se tornou incapaz de silêncio (LARROSA, 2004, p. 157).

No que tange ao processo de formação escolar, a organização

curricular, calcada em disciplinas que, geralmente, não dialogam entre si, e a


90

distribuição dos tempos destinados a elas, conforme atestam os depoimentos das

professoras entrevistadas, acabam por impedir e/ou anular a experiência:

[...] as leituras e mesmo as discussões, as socializações das leituras,


tudo muito corrido. Tá, você tem dois minutos, mas às vezes ali tem
uma coisa que você leu que você queria ampliar mais; não dava! [...]
no primeiro ano era assim: um período tinha 45 minutos, então tinha
dias que tinha 3, 4 disciplinas. Então tinha dias que você não
chegava a render; quando a professora começava a engrenar um
trabalho, tinha outra professora batendo na porta (Marta).

Também Larrosa (2004, p. 158) adverte que “o currículo se organiza

em pacotes cada vez mais numerosos e mais curtos. Com o quê, também em

educação, estamos sempre acelerados e nada nos acontece”.

Excesso de informação, transbordamento de opinião e falta de tempo,

provocada exatamente por uma determinada maneira de relação com o tempo - que

privilegia a busca incessante da informação e nos torna escravos da opinião -, são

os três primeiros elementos apontados pelo autor como responsáveis pelo

atrofiamento da experiência no mundo moderno. Mas há ainda um quarto elemento

que, somado aos anteriores, funciona como potente destruidor das condições de

possibilidade da experiência: o excesso de trabalho. Ao discorrer sobre isso, Larrosa

questiona inclusive a noção de experiência que perpassa os discursos e as práticas

em educação; a noção de experiência concebida como um saber-fazer que somente

a prática, o exercício da profissão, é capaz de proporcionar.

Larrosa é contundente ao afirmar sua tese de que a experiência não só

nada tem a ver com o trabalho, mas que, mais ainda, o trabalho, “essa modalidade

de relação com as pessoas, com as palavras e com as coisas que chamamos


91

trabalho, é também inimiga mortal da experiência” (2004, p. 159). O depoimento de

uma das professoras entrevistadas, referindo-se ao predomínio do “trabalho

pedagógico” que se instituiu nas escolas de educação infantil a partir da mudança de

seu estatuto de creche, mais ligada ao cuidado, para o de escola, mais ligada à

dimensão pedagógico-educativa, também instiga a refletir sobre a questão

experiência versus trabalho:

[...] as nossas crianças estão perdendo a brincadeira, porque a gente


tinha bem determinado um período que você trabalharia, e pra nós,
entre aspas, seria esse pedagógico, e depois aquele tempo livre da
construção da criança. E hoje não, hoje entram dois profissionais
diferentes na sala e dois profissionais que têm que dar conta desse
pedagógico que às vezes... o brincar, às vezes, fica meio perdido
(Natália).

O testemunho da professora Natália mostra que a relação pedagógica

com as crianças também está perpassada pela idéia de trabalho, por determinada

noção de trabalho ligada à idéia de produtividade que, por sua vez, afasta-se da

dimensão lúdica do brincar e acaba tomando o espaço-tempo antes dedicado, ainda

que não intencionalmente, a essa dimensão na escola. Essa percepção alerta para

outro problema: o excesso de profissionalização da atividade educativa.

No entanto, não me dedicarei a discutir essa problemática; limito-me a

levantá-la, pois se fez latente na fala da professora. Apesar de guardar estreita

relação com o problema de minha pesquisa, sua investigação me conduziria por

outro caminho, diferente do que me interessa discutir nesta abordagem - a formação

docente e seu atravessamento pela prática da leitura. Contudo, o levantamento

dessa questão alerta também para a pobreza de experiência no mundo moderno. E

fica um questionamento: se concordamos com Larrosa no sentido de que essa


92

modalidade de relação com as pessoas, com as palavras, enfim com o mundo, a

que chamamos trabalho, é inimiga da experiência, o excesso de profissionalização

da atividade educativa não seria também esterilizante da experiência? Por outro

lado, como viabilizar condições dignas ao exercício docente sem se inscrever nesse

discurso da profissionalização?

Benjamin (1983) ressalta, como destaquei acima, a pobreza de

experiência que caracteriza o mundo moderno, afirmando que o homem moderno só

tem vivência. No entanto, o autor deixa entrever, no final de seu texto Experiência e

Pobreza, que, tendo rompido o elo com a tradição - condição de possibilidade da

experiência -, em troca do novo, a possibilidade para o homem moderno é o

mergulho nas vivências. No meu gesto interpretativo, a experiência é o que “faz

sentido” para o homem, aquilo que o interpela e o projeta para a vida.

3.3 A leitura como experiência

Larrosa (1996, 2001, 2002 e 2004), diferentemente de Benjamin

(1983), concebe a experiência como algo ainda possível, sendo a leitura um “lugar”

para isso, porque mobiliza não a “dimensão racional”, no sentido cartesiano, mas a

imaginação, o desejo, a vontade, que são elementos constituidores da subjetividade.

Ao discorrer sobre a experiência da leitura, o autor recorre à imagem de algo que

penetra a alma: “Ao ler, permitimos que algo entre em nossa mais profunda

intimidade. Algo se apodera de nossa imaginação, de nossos desejos, de nossas

ambições” (LARROSA, 1996, p. 64). De acordo com ele, a leitura como experiência

é algo que nos afeta no centro do que somos. Ler, no sentido de uma experiência
93

verdadeira, é fazer vulnerável o centro mesmo do que somos, a nossa subjetividade;

“não há leitura se não há esse movimento em que algo, às vezes de forma violenta,

vulnera o que somos. E o põe em questão” (LARROSA, 1996, p. 64).

Nesse sentido, quando a leitura constitui uma experiência, o ato de ler

produz efeitos no sujeito-leitor, formando-o, transformando-o, deformando-o. Isso

porque:

O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da


experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de
pormos), nem a o-posição (nossa maneira de opormos), nem a im-
posição (nossa maneira de impormos), nem a pro-posição (nossa
maneira de propormos), mas a ex-posição, nossa maneira de
expormos, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco.
Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou
se impõe, ou se propõe, mas não se ex-põe. É incapaz de
experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe
acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe
chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre
(LARROSA, 2001, p. 05).

A leitura é concebida, então, como uma prática instigadora,

provocadora de aberturas, comprometida não com a apreensão de um conteúdo

e/ou de um sentido, mas constituindo-se como uma abertura à linguagem, à

mobilização daquilo que já experienciamos e que nos afeta, nos faz.

O mesmo autor (1996), tendo destacado as precauções e os

mecanismos de controle dos perigos da leitura por parte do logos pedagógico e

afirmando que a leitura pedagogicamente assegurada é uma atividade controlada a

fim de impedir a experiência - tal como concebida nesta abordagem - ou a fim de

garantir seus efeitos sobre os sujeitos, adverte que a leitura, muitas vezes, foge ao

controle e ao resultado antecipadamente previsto. O encontro que se efetiva entre


94

leitor(a) e texto escapa da tutela imposta à leitura com vistas à apreensão de um

sentido, de uma moral, de um saber, ou qualquer outro objetivo pré-determinado e

se constitui, efetivamente, num acontecimento na vida do(a) leitor(a), numa

experienciação impossível de ser medida ou avaliada, mas produtora de sentidos

que sempre podem ser outros e, por isso, transformadora da própria subjetividade.

A referência feita por Larrosa (1996) à poesia ajuda a compreender a

concepção de leitura como experiência. Segundo ele, a poesia nos faz sentir o que,

na vida diurna, regida pelos princípios da racionalidade científica, nos temos

obrigado a não sentir, aquilo que, para ser o que somos, temos subjugado

violentamente em nós mesmos. Os versos do poeta mexicano Octavio Paz (1914-

1998) podem ser lidos aproximando-se do horizonte do texto de Larrosa:

La Poesia41

Llegas, silenciosa, secreta,


y despiertas los furores, los goces,
y esta angustia
que enciende lo que toca
y engendra en cada cosa
una avidez sombria.

El mundo cede y se desploma


como metal al fuego.
Entre mis ruinas me levanto,
solo, desnudo, despojado,
sobre la roca inmensa del silencio
como un solitario combatiente
contra invisibles huestes.

Verdad abrasadora,
¿a qué me empujas?
No quiero tu verdad,
tu inmensa pergunta.

41
O poema integra o livro Calamidades y milagros (1937-1947) e contém, na íntegra, onze estrofes.
Não apresento aqui a tradução dos versos citados em respeito à concepção do próprio Octavio Paz,
para quem “[...] toda leitura de um poema é uma tradução que transforma a poesia do poeta na
poesia do leitor”. Prefiro, portanto, que o leitor faça seu gesto hermenêutico do poema e não da
minha tradução.
95

¿A qué esta lucha estéril?


No es el hombre criatura capaz de contenerte,
avidez que solo en la sed se sacia,
llama que todos los labios consume,
espíritu que no vive en ninguna forma
mas hace arder todas las formas.

Meu encontro com os versos de Octavio Paz me permite uma

interpretação do poema aproximando-o do horizonte da linguagem. Nesse gesto

interpretativo, estendo à linguagem o que os versos expressam sobre a palavra

poética. Assim como a palavra poética toma o sujeito e o expõe a si mesmo, diluindo

sua pretensão de uma subjetividade segura de si e desvelando seu caráter

fragmentário e disperso, a linguagem não é simplesmente expressão da

subjetividade, mas constituidora da mesma. E essa subjetividade não possui um

centro, uma essência; ao contrário, é dispersa e fragmentada. A leitura por sua vez,

é exercício de linguagem e, como tal, é prática potencialmente dialógica.

Conforme Larrosa (1996), a linguagem poética proporciona uma

experiência de si mesmo e do mundo que não pertence à ordem do diurno, maduro

e sólido daquilo que se concebe como identidade, verdade e justiça. A experiência

que o encontro dialógico com essa linguagem proporciona vai muito além da

representação da realidade (esta também fruto de interpretação). Trata-se de uma

experiência estética e crítica ao mesmo tempo. E é essa concepção de leitura –

como experiência dialógica intersubjetiva - que percebo proposta na obra de

Larrosa; a leitura como “atravessamento”, não como algo que passa pelo sujeito,

mas como algo que se passa com o sujeito.


96

A leitura como experiência não se restringe à apreensão dos sentidos

ou significados que estariam contidos no texto a ser lido, prontos para serem

tomados, decodificados, apreendidos; ao contrário, se constitui como algo que está

potencialmente presente, podendo ser experienciado. Essa experienciação constitui

um exercício de memória discursiva, que resulta de uma complexa associação de

elementos/forças conscientes e inconscientes, perpassados pela historicidade. A

leitura como experiência funciona como um resgate do outro, não um resgate literal

e nem de apreensão, mas um resgate como desvelamento, como emergência do já-

dito, sempre ressignificado. A leitura permite-nos entrever o passado - e nós

mesmos – em meio ao presente; é uma experiência de relação com o texto – no qual

podem estar presentes diferentes discursos e que nos permitem o resgate de uma

presença-ausente, que pode ser o outro, mas também nós mesmos.


“PEDRAS COMUNS”, “PEDAÇOS DE VIDRO” E... NOVAS INQUIETUDES.

Nesse “mergulho” no tema da leitura na formação de professores(as),

fui interpelada por inquietações que emergiram das falas das professoras e busquei

problematizá-las por meio do diálogo com as concepções teóricas que encontrei nos

autores estudados. No meu gesto interpretativo, concebo a leitura como formação,

como um espaço-tempo (simbólico) de aprendizagem que subjetiva o(a)

professor(a).

A leitura é amplamente reconhecida como prática inerente à formação

de professores(as). Portanto, o tema da leitura na formação docente não é novo, o

que não significa dizer que tenham sido “esgotadas” suas possibilidades de

abordagem. E foi por perceber (e sentir) que uma outra possibilidade de abordagem

era possível (e necessária) que me lancei ao desafio de problematizar e discutir a

implicação da leitura na formação dos sujeitos–professores(as), entendendo a

formação como a construção da subjetividade, como a constituição do sujeito-

docente e não apenas como sua preparação formal/instrumental para a prática da

docência. Concebo a leitura como exercício de linguagem e, como tal,

potencialmente dialógico e intersubjetivo, dentro de um processo de formação


98

perpassado por dispositivos de subjetivação que agem sobre os sujeitos, fazendo-

os, continuamente.

Na perspectiva aqui apresentada, reconhecer e promover a prática da

leitura como um exercício de linguagem, em que o encontro entre leitor(a) e texto

permite desvelar sentidos possíveis, oferecendo-se ao sujeito como uma

possibilidade para a experiência, é uma forma de se potencializar a construção de

saberes docentes. Esses saberes não se restringem a conteúdos passíveis de

serem repassados; dizem respeito à constituição subjetiva do(a) professor(a),

integrando as dimensões epistemológica, social e pessoal, pois “o que o professor

transmite não é tanto uma matéria de estudo, mas uma relação com uma matéria de

estudo” (LARROSA, 1996, p. 432).

Diante disso, uma outra concepção da leitura, da experiência da leitura

como abertura a outros horizontes, talvez possa abrir o caminho para uma outra

concepção do que seja educação, “em que a experiência educativamente

significativa não esteja necessariamente regulada pela apropriação, a auto-

realização e a identificação e não esteja, portanto, sempre já pedagogicamente

disciplinada e anulada” (LARROSA, 1996, p. 220). Assim, a perspectiva para a qual

aponto concebe a leitura como constitutiva da formação do sujeito-professor(a);

trata-se de uma concepção de leitura como acontecimento que promove o diálogo

com vistas à abertura e não à identificação, que promove o embate entre sentidos

variados e não o “fechamento” em torno de um sentido previamente determinado.

Por isso meu esforço em problematizar esses dois temas – formação docente e

leitura - e sua inter-relação. Nesse sentido, mais uma vez cito a fala de uma das
99

professoras entrevistadas, agora acolhendo explicitamente suas palavras:

Porque se você faz... aquelas leituras que são bem do pedagógico,


você só faz um paralelo se você tem outras leituras, você consegue
fazer isso se você tem outras leituras. Se não, você fica ali, é aquilo
ali, é “A Bíblia” e acabou, não tem nada fora disso! (Natália).

Tomo emprestadas essas palavras para dizer da relevância da leitura

como exercício dialógico no processo de formação docente, como prática

efetivamente intertextual, capaz de instigar os sujeitos-professores(as) à reflexão, à

confrontação crítica entre o(s) sentido(s) instituído(s) e os sentidos possíveis de

serem criados.

O depoimento da professora Marta, por sua vez, evidencia que a leitura

funcionou para ela como uma possibilidade de se libertar das amarras daquilo que

alguém, com a pretensão formativa, disse que ela teria de fazer:

Ah, mas esse livro diz que é pra fazer isso no pré; nada do que os
livros do pré me diziam pra fazer eu podia fazer. No início eu fiquei
assustada [...] ‘tudo que eu olhei lá não dá pra fazer!’[...] Tu olha pra
eles e pensa no que fazer!. Então, no fim, teve de ser só no PENSA!
[...] quando eu tava estudando, a gente comentava que faltava mais
espaço, mais carga horária para as didáticas, da matemática, de
estudos sociais... E eu julgava que essas eram mais importantes: as
Didáticas! Só que eu penso que o que ajudou mesmo bastante [...] o
que me fez crescer bastante foi o referencial teórico; [...] essas
leituras me fizeram crescer... [...] essas da área da didática, não pude
nunca usar nada daquilo que os livros diziam [...] eu tive que
inventar, tive que bolar, de acordo com a realidade deles. [...] Uma
vez eu montei um girinário com eles. Porque eles tinham um mito de
que o sapo come a mão da gente... come a mão de criança que
mente, essas coisas assim [...] Então eu tive que buscar... não é que
se faça isso na pré-escola, mas a necessidade mostrou que era
importante, e eles não vão esquecer nunca. [...] a didática te diz isso:
nessa área se faz isso, mas tem que buscar. Todas as áreas são
importantes (Marta).

O ideal de formação buscado inicialmente por essa professora aponta


100

para determinado conjunto de componentes curriculares, aos quais ela se refere

como revestidos de um caráter prático-aplicável. No entanto, a partir de sua inserção

no exercício docente, o que ela percebe como efetivamente fundante de sua prática

é sua capacidade de pensar, de buscar alternativas diante do que se apresentava

para ela. E o caminho para essa busca foi traçado pelas leituras que ela

experienciou, leituras que lhe permitiram um diálogo com outras áreas, com outras

concepções, que se fizeram abertura, que não estavam, inicialmente, identificadas

como potencialmente formativas, mas que, paradoxalmente, a libertaram daquele

modelo prévio de formação e, fazendo isso, a formaram, mas diferente,

imprevisivelmente, imprescritivelmente.

Ao(à) professor(a) formador(a), cabe proporcionar o acesso à leitura,

cabe provocar para a sua prática; não há garantias de que ela se constituirá em

experiência; isso depende de cada sujeito, das outras experiências dele(a); de sua

história de vida; de seus interesses, daquilo que o(a) afeta.

O que o curso proporciona é a potencialização de uma formação; nele,

a ênfase parece se dar sobre a instrumentalidade da atuação docente, evidenciada

pelos depoimentos das professoras e pela importância atribuída por elas aos

componentes curriculares ditos pedagógicos, que seriam aqueles que efetivamente

ensinariam a “dar aulas”. No entanto, o que cada uma “faz” com isso, a atitude de

cada uma diante desse instrumental não fica atrelada ao que o curso oferece ou

pode oferecer, tem a ver com as experiências anteriores, entre as quais se destaca a

leitura, a relação que cada uma manteve e mantém com a leitura. Quanto mais

freqüente e intensa essa relação, tanto mais elaborada é a reflexão sobre os


101

saberes que o exercício docente mobiliza e tanto mais autônomas são as decisões

sobre dispositivos metodológicos a serem utilizados nessa prática. As leituras

sugeridas e/ou exigidas no curso parecem funcionar como potencializadoras de uma

capacidade de reflexão e crítica que já vinha sendo gestada ao longo do processo

de formação da subjetividade dessas professoras, marcado pelas leituras

experienciadas por elas.

A referência feita pelas professoras à possível relação entre o que

leram no curso de formação, especialmente a partir das aulas de Literatura, e o que

vivenciam dando aulas, aponta para as experiências de leitura anteriores ao seu

ingresso no curso. Este funcionou diferentemente para cada sujeito-leitor(a) e

aprendiz de docente; as experiências de leitura anteriores emergem com muita força

a partir da inserção desses sujeitos na atividade professoral. O depoimento das

professoras desvela o acontecimento dessa experiência, sua escassez ou sua falta.

Para Marta, as leituras experienciadas desde muito cedo, primeiro a partir da

oralidade (histórias que a mãe contava), depois a partir dos encontros que,

subversivamente, manteve com textos de literatura, lendo vorazmente enquanto

velava o sono das crianças na creche onde trabalhava em troca de abrigo, marcam

sua relação com a linguagem e, conseqüentemente, sua subjetividade, abrindo-a

para uma prática dialógica e intersubjetiva.

Já para Natália, o contato com a leitura só se deu no ambiente escolar

(após os 6 anos) e de uma maneira prescritiva, disciplinar, regulada pela

decodificação, em voz alta, de textos escritos. Posteriormente, teve a oportunidade

de uma outra relação com a palavra escrita, a partir de uma professora que também
102

lia, que tinha o prazer de contar histórias e, dessa forma, cativou-a para a leitura,

mostrando esta como uma abertura possível a um mundo simbólico. Para essa

entrevistada, a leitura, enquanto prática individual se faz bastante presente e parece

constituir um exercício importante para seu crescimento pessoal:

Eu não sou muito... eu não classifico muito leitura. Pra mim, o que
vem, o que eu tenho em mãos, to sempre procurando, to lendo... [...]
O meu gosto é tão assim... eu gosto muito da literatura quando ela é
mais voltada para a psicologia. [...] eu sou daquelas assim que caiu
um livro eu quero ler. Não faço essa questão... eu gosto de romance,
disso ou daquilo. Eu leio de tudo. [...] Eu gosto de tudo... [...] Acho
que não tem leitura que tu faça e que tu possa dizer que isso não
tem nenhuma influência (Natália).

No entanto, quando se refere à leitura em sua prática docente, desvela-

se um conflito, abordado no capítulo três, em que a concepção de leitura como

técnica de ensino, estreitamente vinculada à avaliação, contrasta com o ponto de

vista de que a leitura não deve ser obrigatória, marcado no discurso da professora.

O depoimento de Luiza, por sua vez, que revela: “Eu... eu não sou uma

leitora muito assídua das coisas”, mostra uma relação não estimulada, escassa, com

a leitura:

O pré-escolar da gente era feito em casa, com os pais. Eu lembro


que quando eu entrei na primeira série eu sabia ler e escrever já,
porque a minha mãe tinha me ensinado em casa. Eu sabia todo o
alfabeto. E não tenho recordações do primário, de professores que
trabalhassem literatura com a gente. Fui ter contato com os livros
mais tarde (Luiza).

No entanto, ao se referir às suas experiências de leitura, por mais

escassas e tardias que tenham sido, ela as relaciona com suas emoções, deixando

entrever certa intensidade:


103

O primeiro livro que eu li foi Ana Terra, quando tava na sétima ou


oitava série, e a professora pediu pra gente ler um livro e fazer relato,
essas coisas. [...] eu nunca esqueci da história, e eu chorei, eu chorei
igual uma criança quando eu li o livro. E isso foi bem marcante pra
mim! (Luiza).

Mais adiante, em resposta à pergunta “Você percebe alguma relação

entre suas leituras e o que vivencia dando aulas?, afirma a necessidade de

promover a leitura:

Eu tive praticamente três livros que eu li, e não esqueço deles. É


porque marcou, né! Hoje a gente trabalha bastante a literatura. A
gente coloca uma caixa de livros no chão, em cima de um tapetinho,
e eles pegam os livros pra olhar. Eu não tive isso, às vezes tinha
uma vontade de pegar um livro pra olhar, mas não tinha. E eu lembro
que a biblioteca da minha escola quando eu estudava era usada só
pra fazer pesquisa, não era pra retirar livro. (Luiza).

Não se trata, aqui, de exaltar a leitura como método de ensino, mas

como atitude explícita e prática constante do(a) professor(a); a leitura como

experiência capaz de desencadear processos reflexivos na formação, como

exercício potencialmente dialógico e promotor de encontros entre subjetividades

distintas, entre diferentes horizontes de perspectiva, que são sempre singularidades

socialmente marcadas, isto é, são sujeitos constituídos pela linguagem, que, por sua

vez, transmite um legado histórico e sócio-cultural que permeia as práticas

discursivas. Estas são práticas de saber e poder (conhecimento e ação), que

desencadeiam processos de objetivação e de subjetivação; são práticas que têm o

sujeito como objeto de estudo e de ação e o dizem como isso ou aquilo, e que,

internalizadas pelo sujeito, fazem-no tomar-se como objeto de si mesmo, ou seja, a

partir das quais pensa e age sobre si mesmo, conforme Foucault (1984 e 2004). No

entanto, no meu gesto interpretativo, não entendo essas práticas como


104

“determinantes negativas” da subjetividade, como opressoras ou alienantes do

sujeito; pelo contrário, é sua “positividade” que me interessa marcar, ou seja, seu

funcionamento na “produção” de subjetividades e, especialmente, sua condição de

possibilidade: a linguagem como fundante da subjetividade. E é entendendo a

linguagem como dialógica por constituição que concebo a leitura como formação do

sujeito-professor(a), como prática discursiva potencialmente “fazedora de abertura”

para que o sujeito, mais do que acessar saberes e apreender sentidos, possa criar

sentidos e questionar as “verdades” instituídas que o objetivam e subjetivam.

Como já afirmei, não há garantia de que a leitura efetivamente

aconteça como experiência; no entanto, a promoção do ato de ler oferece as

condições de possibilidade para tal; eis o compromisso do professor e da professora

como sujeitos sociais, comprometidos com a promoção existencial das pessoas e

cuja prática é fundada na linguagem e, portanto, intersubjetivamente validada.

Nessa perspectiva, a leitura, tal como a estou concebendo, constitui uma prática

capaz de potencializar o desenvolvimento das competências fundantes da formação

docente para o exercício da prática educativa com vistas à promoção existencial das

pessoas; não porque veicula saberes, valores morais, verdades etc., mas porque

permite e promove a imaginação e o questionamento diante do mundo e de si

mesmo, fazendo-se abertura.

A experiência da leitura, a leitura como experiência, como refere

Larrosa (1996, 2001, 2002 e 2004), consiste no encontro entre leitor(a) e texto. Cada

leitura é um encontro entre horizontes distintos, que resulta noutro texto, que, por

sua vez, é outro horizonte. A leitura, nessa perspectiva, é ato de mobilização,


105

emergência, desvelamento, tensionamento, questionamento, quebra e/ou instituição

de sentidos, que sempre podem ser outros. Os sentidos que cada sujeito produz em

sua leitura, nesse evento surpreendente que é a leitura, dizem de sua subjetividade,

que é singular e social ao mesmo tempo, dizem da perspectiva de seu olhar, daquilo

que o afeta dentro de um universo de possibilidades, mas também transformam sua

subjetividade, sua perspectiva de visão e a abrangência e intensidade do que o

afeta. Não há como passar pela experiência da leitura sem que nada nos passe e,

assim, nos transforme:

Escrever (e ler) é como submergir num abismo em que acreditamos


ter descoberto objetos maravilhosos. Quando voltamos à superfície,
só trazemos pedras comuns e pedaços de vidro e algo assim como
uma inquietude nova no olhar. O escrito (e o lido) não é senão um
traço visível e sempre decepcionante de uma aventura que, enfim, se
revelou impossível. E, no entanto, voltamos transformados. Nossos
olhos aprenderam uma nova insatisfação e não se acostumam mais
à falta de brilho e de mistério daquilo que se nos oferece à luz do dia.
E algo em nosso peito nos diz que, na profundidade, ainda
resplandece, imutável e desconhecido, o tesouro (LARROSA, 1996,
p. 41).

Essas palavras de Larrosa traduzem também meu estado de espírito

ao dar por terminada esta escrita. A sensação que fica é de que não passou de um

mergulho através do qual encontrei objetos maravilhosos, idéias instigantes,

percepções outras, mas que ao voltar à superfície e escrever sobre elas, trouxe

apenas “pedras comuns” e “pedaços de vidro”, mas também novas inquietudes.


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ANEXOS

Anexo A - Roteiro para a entrevista aberta

Anexo B – Parecer do Comitê de Ética na Pesquisa da UNIJUÍ

Anexo C – Termo de Consentimento Livre e Informado


ANEXO A

Roteiro para a Entrevista Aberta

1) O que te levou a fazer o curso de magistério?


2) O que você acha que é necessário para ser professor(a)?
3) Precisa ter bastante leitura para ser professor(a)?
4) Que tipo de leituras?
5) No curso de magistério tem as disciplinas de Literatura, Filosofia e disciplinas
pedagógicas (como didática, fundamentos, etc.)?
6) O que é trabalhado nessas disciplinas?
7) Que tipo de leituras são indicadas pelos professores dessas disciplinas?
8) Das indicações de leitura, quais você mais gosta? Por quê?
9) Fora das indicações que o curso oferece, você lê outras coisas? O quê?
10) Você acha que essas leituras que você faz por conta interferem na tua formação como
professor(a)? Como?
11) Você lembra de algum livro ou texto que você tenha lido em outros tempos de tua vida
(na infância, na adolescência...) que tenha te marcado? Por quê?
12) Dessas leituras todas (indicadas pelos professores e que você faz por conta), quais
você considera mais importantes para tua formação como professor(a)?
13) Você acha que existe alguma relação entre o que você lê e o que você vivencia dando
aulas?
ANEXO B

VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO


COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA UNIJUÍ
PARECER CONSUBSTANCIADO Nº 94/2005

Protocolo de Pesquisa nº 070/2005, de 05/09/2005


Título: A leitura como formação do sujeito professor
Pesquisadora Responsável: Adriana Kemp Maas
Acadêmica do Curso de Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ
Instituição Responsável: UNIJUÍ
Área de Conhecimento: Educação

Avaliação do Protocolo de Pesquisa, segundo orientações da Resolução CNS nº 196/1996


Descrição e análise do Projeto:
Trata-se de um projeto de dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Educação
nas Ciências – Mestrado – da UNIJUÍ.
A pesquisadora justifica o trabalho mostrando que a formação do professor implica no
desenvolvimento de várias competências (comprometimento com valores estéticos, políticos e éticos,
compreensão do papel na sociedade, domínio dos conteúdos e seus significados, domínio do conhecimento
pedagógico, processos de investigação e desenvolvimento profissional) e que transcende ao domínio dos
conteúdos e aponta para um Ser-Professor. A hipótese formulada é de que a leitura constitui o caminho para
a formação do Ser-professor.
O problema investigado é o papel da leitura na formação dos sujeitos-professores nos cursos
normais de nível médio e pós-médio em Ijuí – RS.
As deficiências da formação técnico-científica e o dogmatismo das concepções humanistas são
discutidos na revisão bibliográfica, enfatizando o papel da leitura como ação crítica e reflexiva na formação
do professor.
A opção metodológica prevê uma pesquisa empírica (entrevista direcionada com questionário com
alunos dos cursos de magistério em nível médio e pós-médio) e uma pesquisa teórica. A análise das
informações das entrevistas será feita sob a luz dos “conceitos dos teóricos estudados”.

Aspectos éticos:
A forma de abordagem dos entrevistados não está clara, como também não está especificado o local
das entrevistas.

Considerações:
- A pesquisa tem como mérito científico a investigação do papel da leitura na formação do professor;
- A execução do projeto não apresenta riscos ou constrangimentos para a população pesquisada e não
envolve manipulação de materiais biológicos;
- O Termo de Consentimento Livre e Informado autoriza o uso integral ou parcial das informações
dadas pelos entrevistados à pesquisadora, nesta pesquisa ou em outras que possam vir a serem feitas
posteriormente; garantem a privacidade dos entrevistados, das escolas e alunos e a inexistência de riscos.
Porém, não explicita o caráter voluntário e a possibilidade de desistência da participação.
- Estão sendo cumpridas as exigências da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde –
Ministério da Saúde.

Parecer:
O Comitê de Ética em Pesquisa da UNIJUÍ é de parecer FAVORÁVEL à implementação da
pesquisa, com as seguintes recomendações:
1) Refazer o Termo de Consentimento Livre e Informado explicitando o caráter voluntário da participação e
a possibilidade de desistência
2) Especificar a forma de abordagem dos entrevistados, assim como o(s) possível(is) local(is) das
entrevistas.
Ijuí, 07 de outubro de 2005.

Telmo Rudi Frantz


Coordenador do CEP/UNIJUÍ
ANEXO C

UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO


SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS - MESTRADO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E INFORMADO

Declaro meu consentimento para que o conteúdo da(s) entrevista(s) concedida(s) por mim e
gravada(s) em áudio pela acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências - da
Unijuí, Adriana Kemp Maas, sirva de dados para pesquisa sobre o tema “A leitura como formação do
sujeito professor” e possa ser usado integral ou parcialmente na elaboração da dissertação de mestrado da
referida aluna, sob orientação da professora Claudia Luiza Caimi.
Declaro, ainda, conceder à pesquisadora o direito de dispor dos mesmos dados para outras
pesquisas que possa vir a realizar posteriormente.
Estou ciente, também, de que minha identidade será preservada, bem como a da(s) escola(s) em
que estudo ou estudei e/ou atuo e a de meus alunos e/ou quaisquer outras pessoas que eventualmente
possam ter sido citadas durante a(s) entrevista(s), bem como do compromisso assumido pela pesquisadora
no sentido de que o uso das informações por mim fornecidas não acarretará qualquer dano moral ou
material a mim e/ou a qualquer pessoa eventualmente citada.
Igualmente, declaro estar ciente de que minha participação na pesquisa tem caráter voluntário,
reservando-me o direito de desistir a qualquer momento, sem por isso ficar sujeito a prejuízo de qualquer
natureza.

Ijuí, _____ de ______ de 200__.

Nome:__________________________________________________________________________
RG: _____________________ Data de nascimento: _________________________________
Profissão: __________________________ Endereço: ______________________________
___________________________________ Telefone: ______________________________

Assinatura:_____________________________________________

Acadêmica Pesquisadora: Adriana Kemp Maas RG: 4058499064


Profissão: Professora Endereço: Rua 19 de outubro, 1290, Bairro São José – Ijuí – RS
Telefones: 055 3332 4475 e 8407 1606

Assinatura: _____________________________________________

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