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Adriana Kemp Maas
Adriana Kemp Maas
GRANDE DO SUL
Ijuí
2006
ADRIANA KEMP MAAS
Ijuí
2006
À Graciana e à Joana Maria,
Ao Gilberto, pelo apoio e dedicação, não só a mim, mas também às nossas filhas.
Ao meu nono, Ermindo Toso, pelo desejo de viver que tornou possível o que parecia
impossível: sobreviver a um grave acidente e driblar todas as suas seqüelas; o que me fez ver,
enquanto eu escrevia este texto, que a vida merece ser comemorada!
À Lenir Brum, pela amizade e pelas experiências compartilhadas numa das curvas
irregulares da minha vida.
Às colegas e aos colegas do Mestrado, turmas 2004 e 2005, com os(as) quais tive a
oportunidade de interagir durante os dois últimos anos, em especial, à Lala Marin e ao Airton
Almeida, também pela amizade e interlocução.
À professora Drª. Cátia Maria Nehring e ao professor Dr. Alfeu Sparemberger, pela leitura
atenta e pelas contribuições à qualificação do texto.
Ao professor Dr. Alfredo Veiga-Neto, pela lisura e pelo refinamento da apreciação que fez
do meu texto.
A todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram para que esta dissertação
pudesse ser escrita, em especial, àquelas que me emprestaram livros.
“Porque a palavra que se toma não se toma porque se
afirmando-se”.
(Jorge Larrosa)
RESUMO
The matter of this research concerns the implication of reading on the teacher education of
some subjects. Teacher education is discussed from the teachers´ subjectivity point of
view and its influences on the student’s subjectivity (subjectivation). For that, I start with a
problematization about what is to be a teacher, confronting and/or putting the notions
collected from the Brazilian legislation into a dialogue, from the former students´
testimonies of a teaching high school and college course existing in Ijuí-RS, and also with
the educator and education theorist Paulo Freire (1996), from whom a gather the concept
of education as a social practice committed to life, to the existential promotion of the
people. The proposition of treating teacher education as a subjectivity construction is
based on Tardif (2002), Bakhtin (1981), Foucault (1972, 1995 and 2004) and Larrosa
(1994), passing through the theoretical contributions by Bréal (1992) and Benveniste
(1995). Teacher education conceived as a subjectivity construction (with historical and
socio-cultural traces) of subjects in interaction with other subjects (intersubjectivity) points
to language as a condition for the human possibility, and, thus, for the dialogue as a basis
for education and subjectivity itself, also passing by power relations. Reading, as it is
promoted in most of the schools, works as a disciplinary technique, as a “formation” of the
subjects. Nevertheless, based on Larrosa (1996, 2001, 2002 and 2004), I conceive
reading as a possibility field for the intersubjective exercise, a meeting point of two broad
horizons. The possible contribution of this research is centered in the instigation to think of
another place for reading in teacher education; a central place, and, at the same time, an
open place; as a practice which does not privilege only the technical-instrumental aspect
of education, linked exclusively to the epistemological dimension as a source of
information and/or knowledge, or as instrumentalization for the teaching of certain areas
and/or contents. The perspective I aim at is to conceive reading as a space/time for the
subjects/readers/teachers´ subjectivity construction/transformation, which is able to
potentialize the integrated development of the three dimensions conceived as founding for
teaching: epistemological, social and personal dimensions, within a broad and complex
socio-historical and cultural context.
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 12
REFERÊNCIAS............................................................................................................. 106
ANEXOS........................................................................................................................ 111
INTRODUÇÃO
pensado, exige que sejamos capazes de pensar “por nós mesmos”. Nesse
movimento, somos interpelados por novas formas de pensar o já pensado, pois não
escrevemos a partir do nada; partimos de um lugar, que diz de nossos limites e cujas
meu modo de ver, juntamente com outras práticas, nos torna o que somos e nos
pouco original, pois ler é uma prática amplamente difundida nos processos
inclusive aqueles cujo objeto de estudo não versava sobre leitura, tinham no ato de
que eu tinha “alcançado” alguns saberes sem “aulas específicas” sobre eles e
como/por que outros, que eram objeto de alguma(s) disciplina(s) do curso, não
1
Entre esses estudiosos, destaco: TARDIF, M. Saberes Docentes e Formação Profissional. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2002; PERRENOUD, P. Ensinar: agir na urgência, decidir na incerteza. Porto
Alegre: Artmed, 2001 e MARQUES, M. O. Aprendizagem na mediação social do aprendido e da
docência. 2 ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2000.
14
curso de Letras, começou a se delinear para mim como responsável por muitas
“jeito de dar aulas”. Jeito este marcado pela instigação à prática da leitura como
interlocução.
supera 2 milhões de sujeitos; destes, 47,1% têm formação em nível médio, 51,2%
têm nível superior e 1,7% são leigos4. Esses dados são importantes à medida que
2
Refiro-me somente a professoras, no feminino, porque o grupo entrevistado é constituído
exclusivamente por mulheres.
3
As professoras ouvidas são egressas do Curso Normal de Nível Médio e Pós-Médio da Escola
Estadual Guilherme Clemente Köeller, que é hoje a única escola a oferecer curso normal no
município de Ijuí-RS.
4
fonte: http://novaescola.abril.com.br/ed/172_mai04/html/magisterio.htm. Acesso em 17/05/2005.
15
Quando comecei este estudo, sabia sobre o que e por que pesquisar,
mas não tinha respostas à questão sobre como desenvolver a pesquisa. E esse
curso, nas leituras experienciadas, nos diálogos, na interlocução com meus outros
levar mais longe, mas somos feitos também de limites. Foi necessário delimitar, abrir
mão, por ora, de uma parte do que me interpelava, exigindo uma abordagem, um
questões abertas sobre leitura e formação (anexo A). Esse roteiro, juntamente com o
magistério.
alunas e a prática como professoras, o que, bem sabemos, exige uma inserção no
Natália). Esses nomes são fictícios, com vistas a garantir o anonimato aos sujeitos
Saúde.
residência de cada uma das professoras, após explicitação das intenções e objetivos
esclarecido (anexo C), em duas vias. Depois de ler a transcrição de suas falas e
reconhecer a fidelidade da mesma àquilo que foi dito, cada uma das entrevistadas,
estudo e citá-las ao longo deste texto, assinando o referido termo, do qual também
reflexão a que me proponho acerca da temática desta pesquisa. Não tomo uma
teoria como base, mas não me furto a uma conceituação dos problemas tratados,
perguntar e ouvir as professoras; não para fazer análise de suas falas a partir de
determinado referencial teórico, mas para perceber nessas falas, que podem ser
5
A definição do local e do horário para os encontros sempre foi feita pelas entrevistadas, cabendo a
mim o deslocamento ao seu encontro.
18
concepções com as quais seja possível dialogar sobre essa formação. Não
docente, com recorte sobre suas práticas de leitura, estou lidando com
assumindo meu gesto de interpretação de seus textos, bem como das falas das
descontextualização e, até mesmo, de distorção do que foi enunciado; por isso, meu
abordagem constitui uma perspectiva, dentre outras possíveis, e pela qual sou
6
Cabe, porém, ressaltar que o singular também se constitui num campo cultural/coletivo. Conforme
Chartier (2005), é ilusório pensar que as experiências são muito originais, singulares, pessoais,
quando são, na verdade, freqüentemente, experiências coletivas, compartilhadas com as pessoas
pertencentes a uma mesma geração. Goulemot (1996), também nesse sentido, escreve: “Parece-me
evidente que, em grande parte, o que construímos como nossa história pessoal pertença, em boa
parte de seus aspectos, a uma narração cultural” (p. 110).
19
educador e teórico da educação Paulo Freire (1996). Com ele, destaco o caráter
para quê? Ou: a que fins serve a formação de professores(as)? Acolho desse autor
vista da subjetividade dos sujeitos docentes em sua interação com e “sobre” outros
Bakhtin (1981), Foucault (1972, 1995 e 2004) e Larrosa (1994), passando também
7
A partir de Foucault (2004), entendo que os discursos veiculam saberes que constroem verdades,
as quais são incorporadas/mobilizadas para a ação de disciplinar, controlar e docilizar os corpos. O
corpo, portanto, é um campo de saber e alvo dos mecanismos de poder (p. 132). O poder a que me
refiro aqui é o definido por Foucault como poder disciplinar, que “em vez de se apropriar e de retirar,
tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e
melhor” (p. 143). Trata-se de uma forma de poder que tem na disciplina sua técnica específica com
vistas a tomar os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. O
poder, em Foucault, não é triunfante, mas sim capilar, ou seja, ele emana de todos os poros da
sociedade, concretizando-se em relações de poder. Assim, quem se apropria do saber, das verdades
20
da formação docente? O que isso tem a ver com leitura? Essa discussão assume
2001, 2002 e 2004) e Benjamin (1983). A leitura, tal como é promovida na maioria
horizontes alargados.
reconhecê-la e promovê-la como uma prática que não privilegie somente o aspecto
9
A Resolução do Conselho Nacional de Educação – Câmara da Educação Básica nº 2/99, em seu
Art. 1º, rege: “O Curso Normal em nível Médio, previsto no artigo 62 da Lei 9394/96, aberto aos
concluintes do Ensino Fundamental, deve prover, em atendimento ao disposto na Carta Magna e na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDBEN, a formação de professores para atuar como
docentes na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, acrescendo-se às
especificidades de cada um desses grupos as exigências que são próprias das comunidades
indígenas e dos portadores de necessidades educativas especiais”.
10
Ao empregar o termo competência(s), no contexto desta dissertação, não estou me referindo ao
aspecto tecnicista que o conceito pode, por um lado, mobilizar e que implica apenas a conformação
da subjetividade dos(as) trabalhadores(as) aos “ideais progressistas” do capital. Estou acolhendo o
conceito de competências a partir da abordagem histórico-crítica desenvolvida por Werner Markert,
no artigo “Trabalho e Comunicação: reflexões sobre um conceito dialético de competência” (In:
Educação & Sociedade, ano XXIII, n. 79, ago. 2002). Esse autor pensa “um conceito integral de
competências, que reflete as relações complexas entre o mundo do trabalho e o mundo da vida” (p.
189). Emprego, também, o termo saber na mesma acepção a que me refiro a competência, ou seja,
as referências que faço a esses dois termos – competência e saber – não têm uma conotação
meramente funcionalista em relação às práticas cotidianas do(a) professor(a), e sim remetem ao
caráter essencialmente político e intersubjetivo dessas práticas.
22
elementos.
professor(a) com o objeto de saber que tem o compromisso de ensinar, bem como a
mediação que precisa estabelecer entre esse objeto de saber e os(as) alunos(as).
pelas dimensões social e pessoal, que dizem respeito à sua relação com os sujeitos
alunos e alunas e com a comunidade, mas também, à sua relação consigo mesmo,
11
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores(as) em cursos normais
constam da Resolução do Conselho Nacional de Educação – Câmara da Educação Básica nº 2/99.
23
Pós-Médio, por sua vez, recebem alunos(as) que já concluíram o ensino médio; no
entanto, têm apenas dois anos e meio de duração. O documento legal que
que:
tempos destinados a cada uma acabam por funcionar como potentes “bloqueadores”
Eu acho que em primeiro lugar tem que gostar muito do que tu faz,
ser professor. Porque se tu não gostar, não adianta, porque a área
da educação envolve muito da pessoa, tanto psicológico, como o
trabalho do dia-dia, porque o professor é muito sugado em escola,
ele sofre muito... (Luiza).
Porque te largam 30 anjinhos ali e tu tem que dar conta. E não pode
acontecer nada! A responsabilidade é toda tua. Existe uma grande
responsabilidade, uma criança cai, se machuca, o que tu vai dizer
pros pais?! (Luiza).
crianças, bem como com a afetividade. Sela-se uma espécie de compromisso afetivo
25
cuidado, não é só uma conseqüência, que resulta do contato diário com as crianças,
A gente enfrenta muita coisa ruim, pais relapsos, mães que não
estão nem aí pros filhos, crianças doentes que tem que dar jeito
porque os pais não dão. Mandam pra escola às 7 h da manhã pra
ficar até as 6h da tarde, sem fralda, sem roupa; tu que tem que dar
jeito. [...] Crianças que largam lá e saem correndo; aí tu vai ver a
criança, tá com quase 40 de febre; daí tu liga, não vão buscar; dali a
pouco dá uma convulsão, tu tem que sair correndo. Essas coisas são
do nosso dia-a-dia (Luiza).
risco social das crianças, em virtude da miséria e/ou da negligência dos pais ou
responsáveis, por outro, constituem uma exigência para que o próprio processo
dos(as) professores(as).
26
O financeiro é difícil... E daí eu acho que tem que gostar muito, e ter
muita paciência (Luiza).
[...] não dá dinheiro, não dá pra pensar assim ‘eu vou lá, dou aula
quatro horas e pronto’, porque não é assim; pra você ser professora
eu penso que precisa gostar, gostar muito daquilo ali que você vai
fazer, do trabalho que você vai fazer. Porque daí eu acho que o que
tu vai ganhar vai valer a pena, porque tu vai estar fazendo o que tu
gosta... (Marta).
23,5% lêem jornal apenas uma ou duas vezes por semana, 58,4% nunca usam a
Internet e quase 60% não têm correio eletrônico. A maioria, 74,3% tem como
financeiros para investir em sua formação continuada, que depende não apenas da
12
A referida pesquisa foi realizada pela Unesco no Brasil, em parceria com o Ministério da Educação
(MEC), o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o Instituto Paulo
Montenegro e a Editora Moderna, e apresenta “um retrato” dos(as) professores(as) brasileiros(as) de
ensino fundamental e médio em escolas públicas e privadas de todo o país. A pesquisa “O perfil dos
professores brasileiros: o que fazem, o que pensam, o que almejam..." (São Paulo: Moderna, 2004)
contempla características sociais, econômicas e profissionais e foi construída a partir de questionários
respondidos por 5 mil docentes em todas as regiões do país.
27
maneira mais ou menos radical, em algumas regiões brasileiras. Não cabe, contudo,
acerca desse ponto exigiria outro estudo, com outro enfoque e outros referenciais.
escolas não é determinada por preceitos e/ou exigências legais, mas sim pelos
sujeitos que fazem o dia-a-dia da educação, como destaca uma das professoras
ouvidas:
(p. 15). Esse autor começa sua reflexão convidando a pensar sobre as atividades de
em sua prática, Freire (1996) aponta para uma noção de experiência relacionada ao
a que se destina, que é ensinar. E a reflexão sobre a prática de ensinar, por sua
dessa prática, segundo o autor, implica uma experiência total, em todos os aspectos
da vida humana, em que a beleza deve andar junto com a decência e a seriedade.
pelo autor como a integração das três dimensões que descrevi anteriormente:
produção das condições em que aprender criticamente é possível” (p. 29). Cabe
ao(à) professor(a) não só ensinar conteúdos, mas ensinar, também, a ‘pensar certo’.
O conceito ‘pensar certo’ é definido por Freire (1996) como uma maneira de pensar
crítica13.
antes de mais nada, aprender a pensar. Essa necessidade também foi apontada por
estágio com alunos(as) que apresentavam muitas limitações na fala, que não
[...] as crianças... não é que não tenham (eu não gosto de dizer... os
livros até dizem assim ‘fala pobre’ ou ‘não têm fala’ ou coisa assim!),
não tenho outra palavra... mas é mais ou menos isso aí. Isso aí me
fazia ficar: ah, mas daí como é que eu vou fazer pra que eles
descubram que as coisas têm nome, que aquele coiso de fazer uma
coisa é uma coisa que tem nome? Então eu procurava trazer novas
palavras, dizer o nome pra eles dizerem, até pra ampliar; porque o
trabalho do professor é fazer com que o mundo deles seja ampliado,
né; pra que eles descobrissem que existem outras coisas que são
13
Quando me refiro à dimensão reflexiva e/ou crítica do exercício docente, no contexto desta
abordagem, não se trata da noção de reflexão típica da ordem racional, baseada no distanciamento
entre o sujeito pensante e o objeto pensado, mas sim como elemento constitutivo do próprio pensar;
concebo a reflexão como abertura à linguagem e a novas possibilidades de sentido. Assim também, a
noção de crítica que mobilizo não diz respeito à crítica de opinião, baseada no raciocínio lógico-
dedutivo, mas a uma dimensão de abertura do sujeito a novas possibilidades interpretativas.
31
importantes [...] eu podia ter pensado ‘vou fazer isso e pronto!’ Não!
Tem que esperar chegar lá, conhecer eles, ver o que eles não
faziam, eu jamais podia imaginar que tivesse crianças assim, 6 anos
que não soubessem pegar uma corda e pular! E eles não sabiam. Eu
não poderia imaginar que criança com 6 anos não saberia aparar
uma bola! E eles não sabiam. Então foi uma realidade assim... [...] a
importância que é, que você tem que valorizar, você não pode levar...
ah, mas esse livro14 diz que é pra fazer isso no pré. Nada do que os
livros do pré me diziam pra fazer eu podia fazer! No início eu fiquei
assustada, [...] tudo que eu olhei lá não dá pra fazer! Eu falava com a
coordenadora: eles não conhecem a letra; eu falava com a
professora... ‘Tu olha pra eles e pensa no que fazer!’. Então, no fim,
teve de ser só no PENSA! (Marta)
durante sua prática docente, para a qual não havia respostas prontas em nenhum
aproximada ao pensamento de Freire (1996) quando este afirma que, como seres
humanos, estamos no mundo e com o mundo e uma das belezas disso reside
aprender e pesquisar são atividades que lidam diretamente com esses dois
14
A professora entrevistada está se referindo aos livros que oferecem atividades didático-
pedagógicas a serem utilizadas em sala de aula, tomando como critério a divisão por séries escolares
(livros didáticos e manuais do professor).
32
aprender, exige pesquisa; não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Para
ele, o problema, no campo da educação, consiste no fato de que nem sempre o(a)
atividade docente. Segundo o autor, pensar certo é uma exigência que a abertura ao
dos educandos e educandas, partindo desses saberes para possibilitar aos sujeitos
realidade circundante, dos problemas que afligem os alunos e alunas, suas famílias,
Voltarei a essa pergunta ao final de minhas reflexões. Por ora, interessa-me avançar
reflexões propostas por Freire acerca desse aspecto da prática educativa aproximam
distância entre essas noções, não há ruptura, mas sim superação. Para ele, tanto os
curiosidade. “Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos
ele algo que fazemos” (FREIRE, 1996, p. 35). O autor enfatiza a função da
crítica15.
ele, somos seres éticos e estéticos e, por isso, a beleza e a decência, sem
discriminação. Pensar certo não significa ter certeza inabalável sobre o que se
15
Concepção de educação defendida por Freire, em contraposição à prática educativa fundada na
transmissão de conteúdos e no treinamento de algumas habilidades racionais, à qual Freire
denomina “educação bancária”, baseada no depósito de conteúdos, numa analogia com a prática dos
depósitos de valores monetários em instituições financeiras (Bancos).
35
aceitação do novo. No entanto, aceitar o novo também não significa acolhê-lo só por
ser novo. “O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou
marca uma presença no tempo continua novo” (FREIRE, 1996, p. 39). Pensar certo
p. 41).
durante a pesquisa:
Então isso eu acho que me ajudou bastante, eu tive lá uma fala, uma
realidade; daí vim pra cá, outra realidade16. [...] isso também
enriquece bastante, daí tu vê quem tá buscando estudar. E tu pensa:
mas essa não vai dar de jeito nenhum! Depois soube, conversando
com as colegas, que foi um excelente estágio e deu uma ótima
professora. Mas lá, na hora da formação, não parece. Espevitada,
parece assim, mas da onde que saiu isso, eu não deixaria meu filho
com essa professora de jeito nenhum. Tem essas histórias também;
então isso ajuda a pensar e enriquecer: quem são as professoras!?
(Marta).
Fazer uma troca, mostrar o projeto pra ver o que foi bom, o que não
foi. Isso era feito, há anos atrás isso era feito, mais pela Secretaria
16
A entrevistada está se referindo às duas escolas de formação que freqüentou, em cidades distintas.
36
17
Freire não se filia a concepções essencialistas ou fixas de identidade. Penso que é possível
entender identidade cultural em Freire (1996) a partir de Stuart-Hall (2005). Para este autor, nossa
identidade cultural surge de nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas
etc., que não são homogêneas, e sim híbridas, ou seja, que se caracterizam pela fusão entre
diferentes tradições culturais.
37
constitui-se de uma busca constante e ininterrupta, uma busca que vai além do
vida do sujeito-professor(a).
formação docente.
18
Refiro-me a espaço-tempo de aprendizagem; portanto, não se trata do espaço em si e do tempo
cronológico, mas de um espaço-tempo simbólico.
2 SUBJETIVIDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS)
interagir com outras subjetividades e agir sobre elas. Uma das professoras
diz:
Acho que é você ser curiosa, e além de você ser curiosa, você
projeta coisas. Porque na verdade, o aluno é aquilo que tu quer que
ele seja. Se você for crítico, você vai ter uma turma que vai ser
crítica, que vai ser questionadora (Natália).
alunos ou alunas. O(a) docente é apontado como alguém que “projeta coisas”,
alunos. Tem-se, então, no espaço pedagógico, para além do encontro entre sujeitos
em construção.
orientações teóricas, das quais Tardif (2002) destaca três: 1. pesquisas sobre a
2. pesquisas que estudam as histórias de vida desses sujeitos, seus próprios relatos
75), que “a questão da subjetividade é rica e complexa, e pode ser estudada através
41
somos se constrói nas relações com outros sujeitos, a partir de como eles nos vêem
mantém com outros textos - e dos contextos discursivos do qual emerge e no qual é
lido, também o sujeito constrói e têm construídas sobre si interpretações que não só
19
A edição original da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem é atribuída a Valentin N. Volochínov,
integrante do Círculo de Bakhtin. No entanto, a autoria é controversa; há estudiosos que atribuem ao
próprio Bakhtin a autoria desse e dos outros dois textos cujas edições originais são atribuídas,
43
utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto” (BAKHTIN
determinada pelo fato de que procede de alguém e se dirige a alguém, que são
mental dos sujeitos não são fatos individuais, e sim de natureza social. O autor
afirma:
Tudo o que se enuncia está ligado às condições de comunicação que, por sua vez,
que não possui representação exterior” (p. 118). Para Bakhtin, o sujeito é construído
linguagem.
não é apenas a comunicação entre pessoas colocadas face a face, “[...] mas toda
comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (p. 123). O princípio dialógico20 é
20
Conforme Zoppi-Fontana (1997), o conceito de dialogismo de Bakhtin se sustenta na noção de
vozes que se enfrentam em um mesmo enunciado e que representam os diferentes elementos
45
pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio
nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que, por sua
por Michel Bréal ([1897] 1992) e Émile Benveniste ([1966] 1995). O primeiro afirma
que o aspecto subjetivo é a parte mais antiga da linguagem. Para explicar o que
entende por “aspecto subjetivo da linguagem”, o autor recorre a uma analogia que,
na ação para nela misturar suas reflexões e seu sentimento pessoal [...] como nós
dos sonhos é uma forma metafórica de dizer que a linguagem é viva e, como tal,
(1992):
não é um acessório da linguagem, mas sim uma parte essencial, trata-se “sem
eu.
aos estudos lingüísticos, resgatou a fala como seu elemento essencial, propôs o
linguagem é uma faculdade que está na natureza: “Não atingimos nunca o homem
apropria da linguagem e se afirma nela e através dela. Conforme Dahlet (1997), não
indivíduo pela construção lingüística particular que ele usa, quando se enuncia como
si mesmo e, fazendo isso, propõe outra pessoa – o tu, que só existe em relação ao
entanto, não existe sem o outro, sem a relação de polaridade que se estabelece
entre as pessoas:
sociedade, e os define pela relação mútua. Penso que a subjetividade concebida por
por esse autor destaca a alteridade entre as pessoas como fundante do eu. Por sua
vez, Bakhtin oferece substrato teórico para pensar a linguagem como interação,
tem diante de si um “tu”, que passa a ser “eu” quando enuncia; em Bakhtin, a
partir do próprio sujeito como se este fosse um desde sempre aí22. A noção de
formação docente é perpassada pela idéia de que nos tornamos o que somos (e
estamos nos tornando continuamente – somos um vir a ser, pois nunca estamos
22
“algo sempre dado, como uma entidade que preexiste ao mundo social” (VEIGA-NETO, 2003, p.
131). No meu modo de entender, essa concepção – moderna e iluminista - de sujeito implica também
uma visão negativa da concepção de ideologia. O sujeito desde sempre aí é concebido como objeto
de influências externas – sociais, culturais, políticas, econômicas, educacionais – e, por isso,
manipulável. A noção de ideologia que subjaz a essa concepção liga-se fortemente à idéia de
alienação. Como se fosse possível libertar-se da ideologia e, daí sim, ter consciência da dominação
para poder ser livre.
51
transformação que os outros aplicam e que nós aplicamos sobre nós mesmos” (p.
processo constante e complexo em que não somos apenas influenciados por fatores
econômicos, educacionais – não são tão externos; eles nos constituem, nos
constitui por modos de subjetivação, isto é, por práticas que transformam os seres
não tem origem nele mesmo, e sim no campo discursivo em que está inserido. A
produzida por ela, sendo atravessada pelo inconsciente. Ao tratar das regras de
23
Foucault, no célebre texto O Sujeito e o Poder, no qual retoma sua obra e justifica sua dedicação
em estudar o poder em função de seu especial interesse pelas formas de subjetivação, refere-se a
“práticas divisoras” (na versão em língua portuguesa de Vera Portocarrero, 1995), e as define como
as práticas que dividem o sujeito no seu interior e em relação aos outros, ou seja, as práticas através
das quais é possível estabelecer as dualidades que são colocadas em oposição binária: “o louco e o
são, o doente e o sadio, os criminosos e os ‘bons meninos’” (FOUCAULT, 1995, p. 231).
52
alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma
estuda não é nem as idéias, nem os comportamentos, mas algo que, podendo ser
[...] nem uma história dos comportamentos nem uma história das
representações. Mas uma história da “sexualidade” [...] Meu
propósito não era o de reconstruir uma história das condutas e das
práticas sexuais de acordo com suas formas sucessivas. Também
não era minha intenção analisar as idéias (científicas, religiosas ou
filosóficas) através das quais foram representados esses
comportamentos [...]. Tratava-se de ver de que maneira, nas
sociedades ocidentais modernas, constituiu-se uma “experiência” tal,
que os indivíduos são levados a reconhecer-se como sujeitos de uma
“sexualidade” [...] O projeto era, portanto, o de uma história da
sexualidade enquanto experiência – se entendemos por experiência
a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de
normatividade e formas de subjetividade (FOUCAULT, 1984, p. 9).
fruto de uma complexa teia de discursos produzidos com base numa relação entre
saber e poder. A pretensa individualidade do sujeito não pode ser tomada, portanto,
afirmando que elas também podem ser colocadas em uma perspectiva histórica e/ou
[...] eu era a mais velha da turma; a maioria eram meninas [...]. Mas
isso também enriquece bastante, daí tu vê quem tá buscando
estudar. E tu pensa: mas essa não vai dar de jeito nenhum! Depois
soube, conversando com as colegas, que foi um excelente estágio e
deu uma ótima professora. Mas lá, na hora da formação, não parece.
Espevitada, parece assim, mas da onde que saiu isso, eu não
deixaria meu filho com essa professora de jeito nenhum. Então eu
ficava pensando... que as pessoas que não têm a postura que se
espera... por exemplo, essa menina, ela tinha piercing na
sobrancelha, piercing no nariz, piercing no umbigo, um monte de
colares [...] isso acabava por sustentar o que os professores diziam
‘tu não pode ir pra escola assim”. Na verdade, os professores que
estavam ali dando a formação diziam isso pras meninas: ‘não diz
palavrões, isso não é postura de professor’, porque elas são o
exemplo lá pras crianças. Tem essas histórias também; então isso
ajuda a pensar e enriquecer: quem são as professoras!? (Marta).
fazendo emergir uma “imagem ideal” desse sujeito24. Destaco esse depoimento por
entender que aponta para a noção de formação como subjetivação. Aquela aprendiz
Essa menina que eu imaginava que não tinha perfil, ela adorava as
crianças, eu cheguei a ver ela com a turma aqui no Um Real25, assim
apaixonada pelas crianças, na rua com a turma, ela deu aula lá numa
outra escola... [...] E realmente quando eu vi ela ali com as crianças,
ela não estava com piercing em lugar nenhum, estava com
pulseiras... Eu sempre ouvi isso, porque realmente sempre as
crianças quiseram copiar os professores, eles vão olhar a tua postura
24
Essa representação também se faz notar na prosa ficcional brasileira. Um exemplo é a personagem
principal do romance A Normalista, de Adolfo Caminha, publicado em 1893. Trata-se de uma moça
ingênua, de caráter excepcionalmente brando, educada em uma casa de caridade, com “vocação” ao
magistério.
25
A entrevistada está se referindo a determinada loja que comercializa produtos variados ao preço de
R$1,00 (um real), localizada no centro da cidade de Ijuí-RS, seguindo uma tendência de mercado que
começou a se difundir pelo país nos últimos anos.
55
e vão copiar. Então eu acho que a gente deve esforçar-se; não que
tenha um modelo: professor é assim, professor é assado. (Marta).
Então, por mais que tu não queira, tem uma coisa assim que é de
professor. Professor não pode vir sempre de salto alto, professor, ele
não pode estar vestido exageradamente, porque vai tirar a atenção
das crianças, então essas coisas que fazem um perfil do professor. E
muito mais das falas, eu acho muito importante, eu não consigo
imaginar um professor em sala de aula ficando irritado e dizendo um
palavrão, entende? Então essas coisas que eu pensava nessa
menina, porque se você tá acostumado, chega lá e pode escapar,
uma palavra que não... que você tá tentando passar pras crianças
que não deve, né!? (Marta).
no fazer pedagógico não são apenas saberes que servem à qualificação do ser
humano para sua atuação técnico-profissional nas mais variadas áreas. As práticas
atuação docentes. Isso me desafia a pensar acerca do papel que a prática da leitura
professor(a).
professores(as), bem como das reflexões tecidas neste tópico sobre a subjetividade,
penso que não é possível conceber a formação docente apenas como a preparação
sujeito, numa relação de alteridade com outros sujeitos, relação esta que tem na
26
A noção de experiência que norteia minha abordagem não se sustenta apenas na idéia de algo que
se adquire no exercício prático de uma atividade e que proporciona um aperfeiçoamento desse
exercício. Trata-se de algo estreitamente ligado ao Ser-Professor(a), que vai além do saber-fazer.
3 SOBRE LEITURA, ESCOLARIZAÇÃO E EXPERIÊNCIA
seu uso, seja em instâncias públicas ou privadas. Assim também a cultura escolar
em sua atividade cotidiana. Eles(as) fazem uso desses materiais de leitura e são,
inserção, especialmente das crianças e dos jovens, na cultura letrada. Para porções
tarefa de fazer com que suas crianças também se tornem aptas à leitura (MARINHO;
SILVA, 1998).
tendem a voltar-se para a escola e a prática docente. Pesquisas citadas por elas
“os professores tendem a citar como suas obras preferidas aqueles títulos que
que têm, por isso, boa entrada no mercado escolar” (MARINHO; SILVA, 1998, p.
46)27.
Freitas e Costa (2002), por sua vez, em outro livro que apresenta
27
As pesquisas a que se referem Marinho e Silva (1998) foram realizadas por Castanheira (1991) e
Costa Dias (1997); a primeira é um estudo, no estado de Minas Gerais, sobre as relações das
camadas populares com a escrita e a escolarização dos filhos; a segunda investiga as relações de
professoras de escolas do meio rural no Vale do Jequitinhonha – MG - com a leitura e mostra que
nesse ambiente fortemente marcado pela oralidade e por altos índices de analfabetismo, a escola e
suas professoras representam, para as populações envolvidas, um dos únicos espaços de contato
com a cultura letrada e com o mundo dos “outros”. As pesquisadoras integram o CEALE – Centro de
Alfabetização, Leitura e Escrita, ligado à Faculdade de Educação da UFMG – Universidade Federal
de Minas Gerais.
28
As pesquisas cujos resultados são mobilizados por Freitas e Costa (2002) resultam das atividades
do Grupo de Pesquisa “Linguagem, Interação e Conhecimento” (LIC), sediado na Faculdade de
Educação da UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora – MG, integrado por especialistas das
áreas de Educação, Lingüística e Psicologia. Os sujeitos das pesquisas são professores(as) das
redes particular e pública de ensino da referida cidade mineira e região.
60
Porque na hora que precisar vai vir à mente aquilo que você leu. E
na área do ensino eu acho que é assim também; se eu não tivesse
lido antes aqueles livros29, leituras às vezes um tanto forçadas,
porque você tá estudando, não era aquilo que você queria ler, você
queria ler uma outra área, quem sabe, uma área mais gostosa, mas
você teve que ler aquilo ali, ficou registrado: ah, ela falava sobre isso,
na hora de escolher a história, como que é, como que se escolhe a
história, ela falava, essa autora falava, então eu buscava lá. [...]
Então eu acho a leitura assim, sei lá, hoje se escuta muito falar que
dali se aprende e realmente tem um grande peso a leitura (Marta).
29
A entrevistada está se referindo aos livros ditos teóricos, especialmente filosofia da educação e
teoria literária.
61
teóricas distintas:
E se eu não tenho isso [leitura]... só um, ele não vai me dar subsídio
pra nada, tem que confrontar... (Natália).
precisam mobilizar para exercer sua atividade. Nessa acepção, a leitura acaba
como produzido por outros e buscado pelo(a) professor(a), sendo a prática da leitura
a sua principal via de acesso. Tanto naturalizando o saber, como se não fosse
da ação humana, essa “atitude” do(a) professor(a) acaba por colocá-lo à margem do
esterilizar a reflexão e a crítica que deveriam perpassar sua relação com os saberes
que colhi destaca também a leitura como dispositivo metodológico, como forma de
veicular saberes, fazendo-os chegar até os(as) alunos(as). Essa prática é apontada,
produzidos tanto aos docentes como aos discentes, funcionando como fonte de
que se sobressai, de acordo com essa noção, é a idéia de apreensão, que implica
conseqüentemente, reproduzido.
como prática social comprometida com a vida, como um esforço com vistas à
com essa perspectiva, a leitura não se limita a funcionar como fonte de saberes ou
será, portanto, fazer emergir a biblioteca vivida, quer dizer, a memória de leituras
algo. A leitura como prática de produção de sentidos é mais ampla do que a anterior:
presente tal como este nos é dado a ler nos discursos dominantes”30. Nessas
sujeito (leitor) e objeto (texto) e impede que se passe algo com o leitor durante a
30
Tradução livre. Todas as citações de trechos da obra de Larrosa (1996) apresentadas ao longo
deste texto são traduções minhas do original em espanhol.
64
leitura. Por outro lado, também a prática de leitura como produção de sentidos, se
ter bastante leitura para ser professor(a)?”, aponta para a perspectiva da abertura:
horizontes. E é interessante a forma como ela se refere a tais leituras, afirmando que
se as tivesse feito antes, teria tido essa chance de ampliar suas perspectivas. Na
seqüência da entrevista com essa professora, questionei sobre se ela acredita que,
se tivesse tido, mais cedo, acesso a essas leituras que fez durante o curso de
provocado nela esse mesmo “efeito”; se teria ela conseguido fazer essa mesma
ato de ler, que não está atrelado à mediação de alguém ou à interferência de um(a)
ficou por conta do encontro entre a leitora e os textos. Essa concepção me interessa
especialmente, à medida que vejo nela ressaltado o “lugar” do(a) professor(a) como
reflexões: o que é ler, quando não é uma fantasia trivial ou uma forma de ócio,
quando não tem que ver somente com a aprendizagem de algo exterior
importante não é o que nós pensemos do texto, mas sim o que desde o texto ou
portanto, voltar a atenção para o que é ler quando, ao fazê-lo, algo acontece com o
sujeito leitor.
Gadamer (1998). De acordo com ele, o ser humano está inscrito na linguagem e é
que nos capacite para tanto, mas é própria da condição humana31, ao passo que a
interpretação é demandada por aquilo que nos interpela, nos afeta, nos toma e
constitui uma abertura a novos horizontes de perspectiva. O mesmo autor afirma que
escondido a ser descoberto. Atrás de um véu, há sempre outro véu; atrás de uma
máscara, outra máscara; atrás de uma pele, outra pele” (p. 9). Penso que é possível
texto, mas de entender que os sentidos não estão para serem descobertos, e sim
inventados; não estão para serem apreendidos, e sim criados. O gesto interpretativo,
ao mesmo tempo em que desvela, também encobre algo, não havendo uma
interna. No entanto, é pertinente observar que o único modo de dizer algo é dizer de
um lugar sempre precário, provisório, ou seja, o lugar da interpretação não pode ser
31
Essa concepção tem seu fundamento na hermenêutica da facticidade de Heidegger. O conceito
heideggeriano de compreensão tem, segundo Gadamer (1998, p. 40), um peso ontológico: “A
compreensão também já não é mais uma operação que se deslocaria em sentido inverso e posterior
ao da vida constituidora, ela é o modo de ser originário da vida humana mesma”.
67
de sentidos.
era causado pela obrigatoriedade de ler e escrever sobre essa leitura e, ainda, ter de
relação com os textos, proporcionada por uma professora que lia histórias para ela e
bem sofrido. Imagina, tu ter que ler, tu ter que escrever!? E daí vem
uma outra pessoa fazendo a leitura, uma outra leitura... (Natália).
atuação docente e à forma como “tenta promover” a leitura, permite entrever uma
fazer como sua primeira professora, mas também não consegue romper com a idéia
dessa professora merece ser destacada como um aspecto positivo, pois geralmente
32
Savater (1998), discorrendo sobre o ensino de forma geral, cita algumas possíveis causas da sua
ineficácia, com destaque para o que denomina “pedantismo pedagógico”. Não se trata, conforme o
autor, de um “distúrbio psicológico de alguns, mas de uma doença profissional da maioria” (p. 144). O
pedantismo pedagógico consiste em uma pretensão de superioridade pela detenção de determinados
saberes, que impossibilita o(a) professor(a) de esboçar junto aos alunos as inquietações e tentativas
que levaram a estabelecer esses saberes, mas à explicação (imposição) dos mesmos, sem admitir
que os alunos podem não ter por aquela área ou por aquele tema o mesmo interesse que ele(ela)
tem.
69
tensionamento.
outra coisa que um suporte de idéias, sentimentos e, em geral, expressões, e ler não
é outra coisa que apropriar-se disso que a língua comunica” (LARROSA, 2004, p.
334). O sistema educativo que ainda concebe a linguagem como veículo, como
processamento de informações.
uma eficaz forma de controle sobre a recepção correta do sentido daquilo que se lê.
33
Os avanços nos estudos de linguagem, com a virada lingüística do pensamento filosófico do século
XX, fazem ver o ser humano como um ser da e na linguagem, ou seja, a linguagem como constitutiva
do humano, não mais admitindo, portanto, a concepção de linguagem como algo secundário no
conhecimento da realidade, mas, ao contrário, como constitutiva da própria realidade e do ser no
mundo - somos seres de linguagem e a realidade é interpretação pela linguagem (Sobre isso, ver:
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-Pragmática na filosofia contemporânea. SP:
Loyola, 1996). No entanto, à revelia desses avanços, na prática de muitas escolas ainda prevalece
uma concepção mecanicista de linguagem como mero instrumento de comunicação.
70
possibilidades de interpretação:
Eu não tinha mais idade pra estar na creche quando meus irmãos
foram pra creche; eu já tinha uns 9 anos. Mas como a gente era de
família muito pobre, elas34 aceitavam que eu ficasse um turno na
creche e no outro eu ia pra escola. Em troca disso, eu tinha que
ajudar, eu tinha que trabalhar. Então eu ajudava a cuidar dos bebês
[...] se elas saíam, eu ficava olhando; se alguém chorasse, eu tinha
que descer e chamar uma delas [...] eu descobri que no mesmo
andar do berçário, tinha uma biblioteca, com caixas de livros, que
não eram acessados às crianças; as crianças nunca pegavam livros
[...] Mas o que eu fazia? Eu pegava escondido! Já que eu tinha que
ficar com as crianças e, às vezes, as crianças estavam dormindo, eu
buscava. Foi onde eu li Soldadinho de Chumbo... eu lia, lia, lia! E eu
contava pro meu pai e meu pai dizia ‘mas ah, que elas te pegam!’
Não, eu ponho no lugar de novo! Eu ia trocando, os que eu já tinha
lido eu ia e devolvia. [...] Então foi ali, eu acho, que eu comecei a
tomar gosto. E eu contava pra minha mãe: ah, mas eu aprendi outra
história do Malazartes! Não eram aquelas histórias que a mãe
34
A entrevistada está se referindo às freiras que coordenavam a Creche, mantida por uma instituição
religiosa.
71
determinada fase de sua infância, são atravessadas por uma subversão crítica. Os
encontros que se davam entre ela e as histórias lidas constituíram-se, para ela,
história do Malazartes! [...] Ah, mas eu aprendi outras e outras nos livros de
professoras ouvidas no que tange às leituras exigidas delas durante seu processo
A filosofia... primeiro: ‘ah, faz de conta que não é nada, que tá ali, é
mais uma matéria a cumprir’, e depois tu vai traçando os paralelos
[...] Mas no início, quando te dizem a primeira palavra ‘aula de
72
filosofia’, pronto! [...] vai falar das histórias daqueles teóricos, fez
isso, fez aquilo, tu cansada, um dia inteiro de trabalho e tendo que ler
lá isso. E o cara chega e começa a falar e vai chamando tua atenção,
e vai questionando, então... Faz toda a diferença. Porque às vezes a
gente perguntava pra ele, porque tinha horas que a gente não tava
entendendo, e daí? Daí ele largava outra questão. E daí ia puxando,
em nenhum momento ele simplesmente respondeu uma questão, ele
fazia tu te colocar naquele lugar e dali procurar respostas. [...] é que
às vezes você não faz essa ligação no imediato, eu to fazendo tal
coisa porque isso vai dar resultado disso. Não! Mas depois quando tu
pára e repassa todo o trabalho que tu fez, daí que tu vai ver aonde
que tá... quando você vai fazer esse tipo de atividade é que você vai
ver o porquê; na hora às vezes você não consegue fazer a ligação,
depois ela vai acontecer! E isso foi a questão da filosofia (Natália).
Olha, assim... a gente não pode dizer que não ficou nada, mas... às
vezes coisas que te fazem pensar... mas... leituras assim que te
faziam pensar algumas coisas, de pensadores, e só! (Luiza) [grifo da
enunciadora marcado pela tonalidade da voz].
indicado e/ou exigido das três professoras as mesmas leituras, deixou em cada uma
depoimento desvela uma relação incipiente com as questões filosóficas, pelo menos
provocação ao pensar como uma coisa menor, sem importância, evidenciando que
mobilizar.
35
A literatura é manifestação cultural, entendendo-se por cultura “um corpo complexo de normas,
símbolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos,
orientam as emoções” (MORIN, E. Cultura de massas no séc. XX – o espírito do tempo. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1977, p. 15). O texto literário é objeto lingüístico e estético ao mesmo
tempo; caracteriza-se pela multissignificação; pela liberdade na sua criação em relação às tradições
lingüística, retórico-estilística e temática e pela ênfase no significante, ou seja, ao passo que a
atribuição de sentidos ao texto não-literário apóia-se no “plano do conteúdo” (significado), a atribuição
de sentidos ao texto literário implica “ler” também sua forma estética. Isso faz do literário um campo
discursivo que privilegia a criatividade e a imaginação, tanto de quem escreve quanto de quem lê. Por
isso, sua leitura não se restringe à transmissão de informações e/ou conteúdos, é potencialmente
mobilizadora da imaginação, dos desejos, da vontade, enfim, daquilo que nos subjetiva.
74
leitura dessas professoras parece constituir um ponto interessante para pensar como
filosófico e literário.
36
O termo ideologia, no contexto desta abordagem, significa visão de mundo. Acolho a definição de
Marcondes (2000), para o qual o conceito de ideologia pode ser entendido em um sentido descritivo,
que não parte do contraste entre aparência e realidade, nem supõe a caracterização da ideologia
75
e um recorte dessa área, marcados, por sua vez, por determinadas concepções de
referência feita por Larrosa ao literário como um campo privilegiado para a leitura
dos textos literários. Por outro lado, com Bakhtin (1981), entendo que a linguagem é
dialógica, o que significa dizer que todo texto remete a outras vozes e pode mobilizar
de múltiplos sentidos.
como “falsa consciência”, conforme expressão cunhada por Marx e Engels (In: Ideologia Alemã,
1962). O termo ideologia é tomado, portanto, como “a consciência de uma época, a maneira como
uma sociedade ou grupo concebe a si mesmo; ou, ainda, o conjunto de representações segundo o
qual se identificam” (MARCONDES, 2000, p. 123).
76
dos textos servem para evitar que o leitor se entregue é vá mais além de um
horizonte conhecido; servem para impedir que ocorra efetivamente o encontro entre
sujeito e demande dele um gesto interpretativo, pois quando isso ocorre não existe
consiste em:
eficiente quanto mais sutil, uma vez que o “perigo” de pôr em questão o que somos,
finalidade:
[...] pôr em questão o que somos é um meio para chegar a ser outra
coisa: para saber mais, para ser melhores, para aumentar nossa
sensibilidade, para conseguir um certo prazer sem conseqüências. E
tudo isso em um sentido já previsto. Perder-se seria, de algum modo,
uma forma de salvar-se, dissolver-se seria uma forma de reconstruir-
se ainda mais solidamente, desapossar-se seria somente uma forma
de modificar e fortalecer a autopossessão (LARROSA, 1996, p. 65).
que escapam sempre de qualquer controle e, sendo assim, todo texto pedagogizado
sistema de ensino, é reafirmada por Larrosa (1996). Ele exemplifica isso se referindo
morais formuladas fora dela. O que o próprio Platão defende em seus diálogos sofre
ensino é bem mais ampla do que o contexto concreto dessa transmissão. Nesse
seja, o encontro entre leitor e texto, dois horizontes amplos e distintos, não cabe na
três elementos que constantemente interferem entre si: primeiro, a vida concreta,
temos tomado como realidade. Não se constituem como forma de transmissão não-
conta (narrador) atenta para essa vida concreta, que, por um lado, tem de ser
comunicação, que acaba por colocar a primeira como algo fora do mundo da vida,
não para mantê-la separada da pedagogia, mas, ao contrário, para explorar essa
afastar a literatura da pedagogia com medo que esta “contamine” aquela, mas sim
sobretudo, como é que a literatura pode atuar desse modo? E constrói a resposta
por seus ataques simultâneos à literatura lúdica, segundo ele, meramente divertida,
expressam o seguinte:
para vários autores lidos por Handke. Autores cujo mérito essencial é oferecer ao
sujeito-leitor uma abertura à linguagem, a uma realidade ainda não pensada e ainda
realidade, que diz respeito não à subordinação da primeira à segunda, como lugar
arte), mas sim como produção humana “em relação com a realidade e com a
com uma noção de verdade diferente da noção metafísica, “uma verdade que não
existe a não ser enquanto vontade de verdade e com um pensamento que não é
outra coisa senão resistência aos conceitos que nos dão as coisas já pensadas e,
literatura que nos dá o mundo como algo já pensado, como um mero objeto de
essencial entre duas formas de logos pedagógico: o que faz pensar e o que
demais áreas de saber. Ou seja, a questão nodal, em educação, diz respeito a como
existência humana, à qual o texto possa dar lugar, ou qualquer influência que o
mesmo possa exercer sobre o leitor, todo texto (literário ou não) poderia ser
pedagógico, sem prejuízo de suas outras dimensões (LARROSA, 1996). Isso implica
encarar o aspecto pedagógico não como ensino moralizante e dogmático, mas como
coexistindo vários textos no espaço da sala de aula, acaba-se por estabelecer uma
mesmo espaço, por si só, não garante o diálogo entre os textos; é necessário que
diferentes perspectivas.
encontro tensionador e problematizador entre sentidos que são mobilizados por uma
37
No horizonte do leitor, tem-se toda a contingência de sua vida concreta: sua inserção social, sua
bagagem de leituras e outras experiências. No horizonte do texto, a perspectiva de seu autor, que é
também um sujeito situado social e historicamente; a expectativa de um leitor virtual; uma teia
discursiva heterogênea na qual o texto, uma vez enunciado, mergulha; a mobilização dos sentidos já
dados e/ou dos não admitidos etc. (Sobre isso, ver: ISER, Wolfgang. Ato da leitura. Vol. I e II, ambos
publicados pela Editora 34, respectivamente, em 1996 e 1999).
84
professora entrevistada está discorrendo sobre o que considera necessário para ser
professor(a):
[...] Eu acho que tem que ser coisas relacionadas às crianças, como
trabalhar, como fazer, idéias de atividades também são muito
importantes pra gente. Porque às vezes você gasta todos os
neurônios já, e daí aparece uma idéia nova: ah, isso é legal, vamos
fazer né! Então eu acho que é uma troca de experiências também
[...] E... e as didáticas eu achei bem importante, porque ali é que tu
mostra realmente pro aluno o que é ser professor, mas eu sinto
assim, como eu já tenho experiência, já tinha experiência, pra mim o
que elas deram foi suficiente, mas eu acho que pra quem não tinha,
foi pouco (Luiza).
é amplamente referendada nos cursos de formação, bem como nas pesquisas que
determinado tempo. Já no primeiro capítulo deste estudo fiz referência a essa noção
de tudo, um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O
radical é periri, que está presente também no termo periculum (perigo) e a raiz indo-
secundariamente, a idéia de prova. Por fim, a palavra experiência tem o prefixo ex,
mas que simplesmente ex-iste de uma forma sempre singular, finita, imanente,
experiência que perpassa a obra de Larrosa pode ser buscada em Benjamin. Este
entendida como algo que permite reviver, não apenas rememorando fatos ou
Para Benjamin, que escreveu nas primeiras décadas do século XX, sob
38
É algo difícil de conceituar; uma tentativa de apreender e expressar o sentido dessa presença-
ausente parece provocar um esvaziamento de linguagem; é como se somente fosse possível senti-la
e, tendo sentido-a, qualquer tentativa de verbalizar reduzisse a beleza e a abrangência dessa
experienciação e fosse incapaz de efetivamente dizê-la. É possível sentir essa atmosfera ao ler o livro
Sobre a leitura, de Marcel Proust (2003), publicado originalmente como o prefácio que o autor
escreveu, em 1905, para a sua tradução do livro Sésame et lês Lys, de John Ruskin. Proust,
referindo-se às leituras experienciadas na sua infância, mostra operar-se nele uma espécie de
resgate inconsciente daquilo que experienciou, à medida que é tomado pelas sensações que a leitura
provocava nele; são lembranças que trazem consigo as sensações experimentadas e tomam o
sujeito, dissolvendo-se a pretensa distância entre sujeito (leitor) e objeto (texto).
87
se afastam por sua vez da narração, que é uma das mais antigas
formas de comunicação. Esta não visa, como a informação,
comunicar o puro em-si do acontecimento, mas o faz penetrar na
vida do relator, para oferecê-lo aos ouvintes como experiência. Assim
aí se imprime o sinal do narrador, como o da mão do oleiro no vaso
de argila (BENJAMIN, 1983, p. 31).
tradição e ao novo; implica uma relação dialética entre tradição e novidade. A noção
de tradição, para Benjamin, está ligada à idéia de resgate. Para ele, a experiência
vale-se principalmente da memória involuntária, ou seja, daquilo que não foi vivido
narrativas (tradição oral), com os lugares que habita, com os objetos de arte, enfim,
com a cultura reduziu-se ao utilitarismo; mais que isso, trata-se de uma relação de
39
A memória, tal como a concebo nesta abordagem, não pode ser dissociada dos sentidos e da
linguagem; é atravessada pelo inconsciente, pelas questões que nos afetam; não é da ordem da
razão; resulta de uma complexa associação de elementos/forças conscientes e inconscientes (Ver
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago,
1997).
88
imposta aos homens. O autor afirma: “O intérieur burguês obriga seu habitante a
adquirir o máximo possível de hábitos, mais adequados a esse intérieur que ele
sob o modo da informação, como se aprender não fosse outra coisa que adquirir ou
(2004, p. 155).
Esse imperativo implica uma confusão da noção de crítica. É como se ser crítico
40
Nessa mesma perspectiva, que diferencia informação de conhecimento, discorre Miguel Ángel
Randón Rojas no artigo “Relación entre los conceptos: información, conocimiento y valor –
semejanzas e diferencias (Disponível em: <http://www.ibict.br/cienciadainformacao>).
89
fosse simplesmente ter uma opinião formada a respeito de algo, e como se essa
Larrosa denuncia:
Outro aspecto apontado pelo autor como algo que tem provocado o
fazendo com que passem por nós, mas não em nós e conosco.
em pacotes cada vez mais numerosos e mais curtos. Com o quê, também em
provocada exatamente por uma determinada maneira de relação com o tempo - que
que, somado aos anteriores, funciona como potente destruidor das condições de
nada tem a ver com o trabalho, mas que, mais ainda, o trabalho, “essa modalidade
seu estatuto de creche, mais ligada ao cuidado, para o de escola, mais ligada à
com as crianças também está perpassada pela idéia de trabalho, por determinada
noção de trabalho ligada à idéia de produtividade que, por sua vez, afasta-se da
que não intencionalmente, a essa dimensão na escola. Essa percepção alerta para
lado, como viabilizar condições dignas ao exercício docente sem se inscrever nesse
discurso da profissionalização?
tem vivência. No entanto, o autor deixa entrever, no final de seu texto Experiência e
(1983), concebe a experiência como algo ainda possível, sendo a leitura um “lugar”
para isso, porque mobiliza não a “dimensão racional”, no sentido cartesiano, mas a
penetra a alma: “Ao ler, permitimos que algo entre em nossa mais profunda
ambições” (LARROSA, 1996, p. 64). De acordo com ele, a leitura como experiência
é algo que nos afeta no centro do que somos. Ler, no sentido de uma experiência
93
“não há leitura se não há esse movimento em que algo, às vezes de forma violenta,
porque:
garantir seus efeitos sobre os sujeitos, adverte que a leitura, muitas vezes, foge ao
que sempre podem ser outros e, por isso, transformadora da própria subjetividade.
concepção de leitura como experiência. Segundo ele, a poesia nos faz sentir o que,
obrigado a não sentir, aquilo que, para ser o que somos, temos subjugado
La Poesia41
Verdad abrasadora,
¿a qué me empujas?
No quiero tu verdad,
tu inmensa pergunta.
41
O poema integra o livro Calamidades y milagros (1937-1947) e contém, na íntegra, onze estrofes.
Não apresento aqui a tradução dos versos citados em respeito à concepção do próprio Octavio Paz,
para quem “[...] toda leitura de um poema é uma tradução que transforma a poesia do poeta na
poesia do leitor”. Prefiro, portanto, que o leitor faça seu gesto hermenêutico do poema e não da
minha tradução.
95
poética. Assim como a palavra poética toma o sujeito e o expõe a si mesmo, diluindo
centro, uma essência; ao contrário, é dispersa e fragmentada. A leitura por sua vez,
que o encontro dialógico com essa linguagem proporciona vai muito além da
Larrosa; a leitura como “atravessamento”, não como algo que passa pelo sujeito,
ou significados que estariam contidos no texto a ser lido, prontos para serem
leitura como experiência funciona como um resgate do outro, não um resgate literal
podem estar presentes diferentes discursos e que nos permitem o resgate de uma
fui interpelada por inquietações que emergiram das falas das professoras e busquei
problematizá-las por meio do diálogo com as concepções teóricas que encontrei nos
professor(a).
que não significa dizer que tenham sido “esgotadas” suas possibilidades de
abordagem. E foi por perceber (e sentir) que uma outra possibilidade de abordagem
os, continuamente.
transmite não é tanto uma matéria de estudo, mas uma relação com uma matéria de
como abertura a outros horizontes, talvez possa abrir o caminho para uma outra
com vistas à abertura e não à identificação, que promove o embate entre sentidos
Por isso meu esforço em problematizar esses dois temas – formação docente e
leitura - e sua inter-relação. Nesse sentido, mais uma vez cito a fala de uma das
99
serem criados.
funcionou para ela como uma possibilidade de se libertar das amarras daquilo que
Ah, mas esse livro diz que é pra fazer isso no pré; nada do que os
livros do pré me diziam pra fazer eu podia fazer. No início eu fiquei
assustada [...] ‘tudo que eu olhei lá não dá pra fazer!’[...] Tu olha pra
eles e pensa no que fazer!. Então, no fim, teve de ser só no PENSA!
[...] quando eu tava estudando, a gente comentava que faltava mais
espaço, mais carga horária para as didáticas, da matemática, de
estudos sociais... E eu julgava que essas eram mais importantes: as
Didáticas! Só que eu penso que o que ajudou mesmo bastante [...] o
que me fez crescer bastante foi o referencial teórico; [...] essas
leituras me fizeram crescer... [...] essas da área da didática, não pude
nunca usar nada daquilo que os livros diziam [...] eu tive que
inventar, tive que bolar, de acordo com a realidade deles. [...] Uma
vez eu montei um girinário com eles. Porque eles tinham um mito de
que o sapo come a mão da gente... come a mão de criança que
mente, essas coisas assim [...] Então eu tive que buscar... não é que
se faça isso na pré-escola, mas a necessidade mostrou que era
importante, e eles não vão esquecer nunca. [...] a didática te diz isso:
nessa área se faz isso, mas tem que buscar. Todas as áreas são
importantes (Marta).
no exercício docente, o que ela percebe como efetivamente fundante de sua prática
para ela. E o caminho para essa busca foi traçado pelas leituras que ela
experienciou, leituras que lhe permitiram um diálogo com outras áreas, com outras
imprevisivelmente, imprescritivelmente.
cabe provocar para a sua prática; não há garantias de que ela se constituirá em
experiência; isso depende de cada sujeito, das outras experiências dele(a); de sua
pelos depoimentos das professoras e pela importância atribuída por elas aos
ensinariam a “dar aulas”. No entanto, o que cada uma “faz” com isso, a atitude de
cada uma diante desse instrumental não fica atrelada ao que o curso oferece ou
pode oferecer, tem a ver com as experiências anteriores, entre as quais se destaca a
leitura, a relação que cada uma manteve e mantém com a leitura. Quanto mais
saberes que o exercício docente mobiliza e tanto mais autônomas são as decisões
oralidade (histórias que a mãe contava), depois a partir dos encontros que,
velava o sono das crianças na creche onde trabalhava em troca de abrigo, marcam
de uma outra relação com a palavra escrita, a partir de uma professora que também
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lia, que tinha o prazer de contar histórias e, dessa forma, cativou-a para a leitura,
mostrando esta como uma abertura possível a um mundo simbólico. Para essa
Eu não sou muito... eu não classifico muito leitura. Pra mim, o que
vem, o que eu tenho em mãos, to sempre procurando, to lendo... [...]
O meu gosto é tão assim... eu gosto muito da literatura quando ela é
mais voltada para a psicologia. [...] eu sou daquelas assim que caiu
um livro eu quero ler. Não faço essa questão... eu gosto de romance,
disso ou daquilo. Eu leio de tudo. [...] Eu gosto de tudo... [...] Acho
que não tem leitura que tu faça e que tu possa dizer que isso não
tem nenhuma influência (Natália).
vista de que a leitura não deve ser obrigatória, marcado no discurso da professora.
O depoimento de Luiza, por sua vez, que revela: “Eu... eu não sou uma
leitora muito assídua das coisas”, mostra uma relação não estimulada, escassa, com
a leitura:
escassas e tardias que tenham sido, ela as relaciona com suas emoções, deixando
promover a leitura:
socialmente marcadas, isto é, são sujeitos constituídos pela linguagem, que, por sua
sujeito como objeto de estudo e de ação e o dizem como isso ou aquilo, e que,
partir das quais pensa e age sobre si mesmo, conforme Foucault (1984 e 2004). No
sujeito; pelo contrário, é sua “positividade” que me interessa marcar, ou seja, seu
linguagem como dialógica por constituição que concebo a leitura como formação do
para que o sujeito, mais do que acessar saberes e apreender sentidos, possa criar
Nessa perspectiva, a leitura, tal como a estou concebendo, constitui uma prática
docente para o exercício da prática educativa com vistas à promoção existencial das
pessoas; não porque veicula saberes, valores morais, verdades etc., mas porque
Larrosa (1996, 2001, 2002 e 2004), consiste no encontro entre leitor(a) e texto. Cada
leitura é um encontro entre horizontes distintos, que resulta noutro texto, que, por
de sentidos, que sempre podem ser outros. Os sentidos que cada sujeito produz em
sua leitura, nesse evento surpreendente que é a leitura, dizem de sua subjetividade,
que é singular e social ao mesmo tempo, dizem da perspectiva de seu olhar, daquilo
afeta. Não há como passar pela experiência da leitura sem que nada nos passe e,
ao dar por terminada esta escrita. A sensação que fica é de que não passou de um
percepções outras, mas que ao voltar à superfície e escrever sobre elas, trouxe
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1975.
ANEXOS
Aspectos éticos:
A forma de abordagem dos entrevistados não está clara, como também não está especificado o local
das entrevistas.
Considerações:
- A pesquisa tem como mérito científico a investigação do papel da leitura na formação do professor;
- A execução do projeto não apresenta riscos ou constrangimentos para a população pesquisada e não
envolve manipulação de materiais biológicos;
- O Termo de Consentimento Livre e Informado autoriza o uso integral ou parcial das informações
dadas pelos entrevistados à pesquisadora, nesta pesquisa ou em outras que possam vir a serem feitas
posteriormente; garantem a privacidade dos entrevistados, das escolas e alunos e a inexistência de riscos.
Porém, não explicita o caráter voluntário e a possibilidade de desistência da participação.
- Estão sendo cumpridas as exigências da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde –
Ministério da Saúde.
Parecer:
O Comitê de Ética em Pesquisa da UNIJUÍ é de parecer FAVORÁVEL à implementação da
pesquisa, com as seguintes recomendações:
1) Refazer o Termo de Consentimento Livre e Informado explicitando o caráter voluntário da participação e
a possibilidade de desistência
2) Especificar a forma de abordagem dos entrevistados, assim como o(s) possível(is) local(is) das
entrevistas.
Ijuí, 07 de outubro de 2005.
Declaro meu consentimento para que o conteúdo da(s) entrevista(s) concedida(s) por mim e
gravada(s) em áudio pela acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências - da
Unijuí, Adriana Kemp Maas, sirva de dados para pesquisa sobre o tema “A leitura como formação do
sujeito professor” e possa ser usado integral ou parcialmente na elaboração da dissertação de mestrado da
referida aluna, sob orientação da professora Claudia Luiza Caimi.
Declaro, ainda, conceder à pesquisadora o direito de dispor dos mesmos dados para outras
pesquisas que possa vir a realizar posteriormente.
Estou ciente, também, de que minha identidade será preservada, bem como a da(s) escola(s) em
que estudo ou estudei e/ou atuo e a de meus alunos e/ou quaisquer outras pessoas que eventualmente
possam ter sido citadas durante a(s) entrevista(s), bem como do compromisso assumido pela pesquisadora
no sentido de que o uso das informações por mim fornecidas não acarretará qualquer dano moral ou
material a mim e/ou a qualquer pessoa eventualmente citada.
Igualmente, declaro estar ciente de que minha participação na pesquisa tem caráter voluntário,
reservando-me o direito de desistir a qualquer momento, sem por isso ficar sujeito a prejuízo de qualquer
natureza.
Nome:__________________________________________________________________________
RG: _____________________ Data de nascimento: _________________________________
Profissão: __________________________ Endereço: ______________________________
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Assinatura:_____________________________________________
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