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As pulsões e seus destinos - Parte 1

Freud inicia seu argumento apontando que, no processo básico de descrição


fenomenológica da ciência, é inevitável que certas ideias abstratas sejam aplicadas ao material
que se observa, convenções mais ou menos indeterminadas que futuramente serão elaboradas
nos conceitos fundamentais daquela disciplina. Tal é o estatuto do conceito “provisoriamente
ainda um tanto obscuro” que introduz, a pulsão (Trieb).
Numa primeira tentativa de precisar o conteúdo do termo, Freud usa da fisiologia para
comparar um estímulo de um arco reflexo para o sistema nervoso com a pulsão, que poderia
ser entendida como um estímulo para a psique. Se no arco reflexo a incidência do estímulo
externo promove uma descarga da excitação que causou no organismo através de uma ação
motora, o estímulo pulsional requereria uma saída diferente, visto ter origem no interior do
próprio organismo, não havendo possibilidade de fuga tal como se pode fugir de uma fonte de
ruído ou calor, por exemplo. Dessa forma, uma outra denominação possível para tal estímulo
pulsional seria necessidade, que só pode ser suprimida pela satisfação. Seria justamente por meio
do contraponto entre estímulos externos, fugazes, dos quais se pode escapar com a atividade
muscular, e estímulos internos, constantes, contra os quais a atividade muscular de fuga
fracassa que o pequeno bebê desenvolveria um rudimento de distinção entre “dentro” e
“fora”.
Freud chama a atenção para o fato de que trabalha com o pressuposto fundamental,
presente desde sua primeira elaboração do aparelho psíquico no Projeto de 1895, de que o
sistema nervoso trabalha com a finalidade de reduzir os estímulos que lhe chegam ao menor
nível possível, tentando livrar-se deles em absoluto, ou, numa palavra, “dominá-los”. Dessa
maneira, os estímulos pulsionais introduzem problemas para tal funcionamento, visto exigirem
respostas muito complexas no mundo exterior a fim de saciar sua fonte interna, além de não
disporem de padrões hereditários como os instintos animais. Dado que o aparelho psíquico
está sujeito ao princípio do prazer, Freud hipotetiza que a sensação de desprazer decorra de
um aumento de estímulos, e a de prazer, de seu decréscimo. Ele termina o trecho com a
seguinte definição: “pulsão é um conceito-limite entre o somático e o psíquico, o
representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo, […] uma medida do
trabalho imposto à psique por sua ligação com o corpo.”
Em um segundo momento, Freud introduz quatro conceitos aplicáveis às pulsões:
impulso, meta, objeto e fonte.
• Impulso (ímpeto, pressão): A essência própria da pulsão, o que a põe em movimento,
a “medida da exigência de trabalho” que ela representa
• Meta: É sempre a satisfação. Pode ser obtida por diversos caminhos ou por meio de
metas intermediárias. É nesse sentido que se pode falar de “pulsões inibidas na meta”,

processos que são tolerados até certo ponto, mas logo inibidos ou desviados por outros
caminhos.
• Objeto: Aquele com o qual ou pelo qual a pulsão alcança sua meta. É o que há de
mais variável na pulsão, podendo ser um objeto externo ou mesmo uma parte do próprio
corpo. Um mesmo objeto pode satisfazer a várias pulsões, e uma ligação especialmente
íntima entre uma pulsão e seu objeto configura a “fixação”, frequentemente observada nos
estágios iniciais do desenvolvimento pulsional.
• Fonte: Órgão ou parte do corpo que gera o estímulo representado na psique pela
pulsão.
A seguir, Freud pergunta quantas e quais pulsões haveria de fato. Determina que se trata
de uma arbitrariedade, e sugere a diferenciação entre dois tipos de pulsão: as pulsões do Eu
(pulsões de autoconservação) e as pulsões sexuais. Justifica sua escolha com base em suas
observações frequentes de conflitos entre o Eu e as exigências da sexualidade na formação
dos sintomas neuróticos. Afirma tratar-se de pressuposto provisório, que de fato irá alterar em
1920 com a introdução do conceito de pulsão de morte. Tratará em seguida das pulsões
sexuais, das quais é informado pela observação de que “[a psicanálise] pôde observar nas
psiconeuroses, como se fossem isolados, apenas esse grupo de instintos”. Espera que
futuramente as psicoses possam esclarecer algo a mais sobre as pulsões do Eu.
As pulsões sexuais são numerosas, originam-se de múltiplas fontes orgânicas, são
inicialmente independentes (pulsões parciais) e apenas posteriormente se reunem em uma
“síntese mais ou menos organizada”. Sua meta inicial (a satisfação) é sempre o prazer do órgão
que as origina, e apenas posteriormente são postas a serviço da função reprodutiva.
Em seu surgimento inicial, as pulsões sexuais apoiam-se nas de autoconservação. Nesse
sentido, o bebê que se alimenta do leite materno sacia sua fome ao mesmo tempo em que
estimula prazerosamente seus lábios, ocorrendo apenas posteriormente o desligamento entre
prazer e necessidade. Freud aponta que uma parte das pulsões sexuais permanece a vida toda
associada às pulsões do Eu, “dotando-os de componentes libidinais”, o que se torna evidente
quando surge o adoecimento neurótico.
Freud caracteriza os quatro possíveis destinos das pulsões, que também podem ser
entendidos como formas de defesa contra elas, impedindo que sigam diretamente seu curso:
• Reversão no contrário
• Voltar-se contra a própria pessoa
• Repressão
• Sublimação

Nesse texto, tratará apenas dos dois primeiros:

A reversão no contrário pode ser subdividida em conversão da atividade em passividade


(alteração da meta), observada nos pares de opostos sadismo-masoquismo e voyeurismo-
exibicionismo (olhar/ser olhado, atormentar/ser atormentado), e inversão do conteúdo,
encontrada exclusivamente na transformação de amor em ódio.
Quanto ao voltar-se contra à própria pessoa, Freud o formula a partir da consideração
de que o masoquismo é uma forma de sadismo contra o próprio Eu, e de que o exibicionismo
inclui a contemplação do próprio corpo. A meta seguiria inalterada, havendo apenas mudança
do objeto pulsional.
Freud esquematiza o processo sado-masoquista, caracterizando uma dupla atuação dos
dois mecanismos anteriores: a) Inicialmente, o sádico pratica a violência contra outra pessoa
como objeto. b) Em um segundo momento, o objeto é abandonado e substituído pela própria
pessoa (atividade -> passividade). c) Busca-se, então, um terceiro que exerça o papel de sujeito
algoz contra si, constituindo propriamente o que se entende por masoquismo. Além disso, o
masoquista fruiria, também, a partir da posição sádica original, com o Eu passivo colocando-
se em sua posição ativa fantasmaticamente. Não haveria, portanto, um “masoquismo original”.
Freud hipotetiza que o neurótico obsessivo talvez faça tal percurso até o estágio b, onde se
configura algoz de si mesmo, sem a participação de um terceiro, “a ânsia de atormentar se
torna tormento de si mesmo”.
Por fim, Freud faz interessantes apontamentos sobre o envolvimento do causar e sentir
dor no sado-masoquismo. Diz ter todas as razões para supor que as sensações dolorosas e
outras sensações desprazerosas sejam capazes de excitação sexual e produção de prazer. O
sádico, dessa maneira, também poderia fruir a dor identificando-se com o objeto sofredor.
“Naturalmente, se frui, em ambos os casos, não a dor mesma, mas a excitação sexual que a
acompanha” -> gozo?.

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