Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Karl Marx - A Questão Judaica
Karl Marx - A Questão Judaica
A Questão Judaica
Karl Marx
1843
I
Bruno Bauer, A Questão judaica (Die Juden frage).
Braunschweig, 1843.
Ou, o que exigem os judeus é, por acaso, que se lhes equipare aos súditos
cristãos? Se assim é, reconhecem a legitimidade do Estado cristão, reconhecem
o regime de sujeição geral. Por que, então, lhes desagrada o jugo especial, se
lhes agrada o jufo geral? Por que se há de interessar o alemão pela emancipação
do judeu, se este não se interessa pela emancipação daquele?
O Estado cristão não pode, sem abrir mão de sua essência, emancipar os
judeus, assim como - acrescenta Bauer – o judeu não pode, . . . abrir mão de
sua essência, ser emancipado. Enquanto o Estado permanecer cristão e o judeu,
judeu, ambos serão igualmente incapazes: um de outorgar a emancipação, o
outro de recebê-la.
"Na França, a liberdade geral não chega a ser lei, a questão judaica
ainda não foi tampouco resolvida, porque a liberdade legal - a norma
de que todos os cidadãos são iguais - vê-se restringida na realidade,
dominada e cindida pelos privilégios religiosos e esta falta de liberdade
repercute sobre a lei e a obriga a sancionar a divisão dos cidadãos
livres em oprimidos e opressores" (p. 65) .
"O judeu, por exemplo, deixaria de ser judeu se sua lei não o
impedisse cumprir seus deveres para com o Estado e seus
concidadãos, de ir, por exemplo, à Câmara dos Deputados e tomar
parte nas deliberações públicas em dia de sábado. Seria preciso abolir
todo privilégio religioso em geral, incluindo, portanto, o monopólio de
uma igreja privilegiada e quando um, vários ou mesmo a grande
maioria se acreditasse na obrigação de cumprir seus deveres religiosos,
o cumprimento desses deveria ficar a seu próprio arbítrio, como
assunto exclusivamente privado" (p. 65). "Quando já não houver
religiões privilegiadas, a religião terá deixado de existir. Se suprimirmos
da religião sua força de exclusão, já não haverá religião" (p. 66). "Do
mesmo modo que o senhor Martin du Nord considera a proposta
encaminhada para suprimir da lei a menção do domingo como uma
proposta que visa a declarar que o cristianismo deixou de existir, com o
mesmo direito (direito perfeitamente justificado) a declaração de que a
lei sabática já não tem força de obrigação para o judeu, equivaleria a
proclamar a abolição do judaísmo" (p. 97) .
"É certo que a crença religiosa oferece garantias ao Estado; mas, a que
Estado? A que tipo de Estado?" (p. 97).
Bauer incorre em contradições, por não trazer o problema para este nível.
Apresenta condições que não se fundamentam na essência da própria
emancipação política. Formula perguntas que não envolvem seu problema e
resolve outros que deixam sua pergunta sem contestação. Ao se referir aos
adversários da emancipação dos judeus, Bauer diz textualmente que "seu erro
consistia somente em partir do pressuposto do Estado cristão como o único
verdadeiro e de não submetê-lo à mesma crítica que dirigiam ao judaísmo" (p.
3). Verificamos, aqui, que o erro de Bauer reside em concentrar sua crítica
somente no "Estado cristão", ao invés de ampliá-la para o "Estado em geral".
Bauer não investiga a relação entre a emancipação política e a emancipação
humana, fato que o faz apresentar condições que só se podem explicar pela
confusão isenta de espírito crítico entre emancipação política e emancipação
humana em geral. A pergunta de Bauer, dirigida aos judeus: "Tendes, do vosso
ponto de vista, direito a aspirar à emancipação política?", opomos o inverso:
"Terá o ponto de vista da emancipação política direito a exigir do judeu a
abolição do judaísmo e, do homem em geral, a abolição da religião?"
A questão judaica, dependendo do Estado em que vive o judeu, apresenta
uma fisionomia diferente. Na Alemanha, onde não existe um Estado político, um
Estado como tal, a questão judaica assume uma conotação puramente teológica.
O judeu está em contraposição religiosa com o Estado que tem por fundamento o
cristianismo. Este Estado é um teólogo ex professo. A crítica, aqui, é a crítica da
teologia, uma crítica que se desdobra em duas: em crítica da teologia cristã e em
crítica da teologia hebraica. Porém, aqui, continuamos a nos mover dentro dos
marcos da teologia, por mais que estejamos certos de atuar criticamente dentro
deles.
Só nos Estados livres da América do Norte - ou, pelo menos, em parte deles
- perde a questão judaica seu sentido teológico para converter-se em verdadeira
questão secular. Somente ali, onde existe o Estado político plenamente
desenvolvido pode manifestar-se em sua peculiaridade, em sua pureza, o
problema da atitude do judeu e, em geral, do homem religioso, diante do Estado
político. A crítica desta atitude deixa de ser uma crítica teológica tão logo o
Estado deixe de se conduzir de modo teológico em face da religião, tão logo
passe a se conduzir como Estado diante dela, isto é, politicamente. E, neste
ponto, onde a questão deixa de ser teológica, deixa a crítica de Bauer de ser
crítica. "Il n'existe aux Êtats-Unis ni religion déclarée celle de Ia majorité, ni
préeminence d'un cultè sur un autre. L'État est étranger à tous les cintes" (1)
(Marfe ou !'esclavage aux Êtats-Unis, etc., par G. de Beaumont, Paris, 1835, p.
214). E ainda mais, existem alguns Estados norte-americanos nos quais "la
constitution n'impose pas les croyances religieuses et Ia pratique d'un culte
comme condition des privilèges politiques" (2) (obra citada, p. 225). Não
obstante, "on ne croit pas aux Êtats-Unis qu'on homme sans religion puisse être
un honnête homme" (3) (obra citada, p. 224) . Assim, a América do Norte se
apresenta como o país da religiosidade, tal qual nos asseguram unanimemente
Beaumont, Tocqueville e o inglês Hamilton. Os Estados norte-americanos nos
servem, apesar disto, somente de exemplo. O problema está em saber como se
conduz a emancipação política acabada em face da religião. Se até num país de
emancipação política acabada nos deparamos não só com a existência da religião
mas, também, com a sua existência exuberante e vital, temos nisto a prova de
que a existência da religião não se opõe à perfeição do Estado. Todavia, como a
existência da religião é a existência de um defeito, não podemos continuar
buscando a fonte desse defeito somente na essência do Estado. A religião já não
constitui, para nós, o fundamento; apenas e simplesmente, constitui o fenômeno
da limitação secular. Explicamos, portanto, as cadeias religiosas dos cidadãos
livres por suas cadeias seculares. Não afirmamos que devam acabar com a
limitação religiosa para poder destruir suas barreiras seculares. Afirmamos que
acabam com a limitação religiosa ao destruir suas barreiras temporais. Não
convertemos problemas seculares em problemas teológicos. Depois da história
estar mergulhada na superstição durante séculos, dissolvemos a superstição da
história. O problema das relações da emancipação política com a religião
converte-se, para nós, no problema das relações da emancipação ,política com a
emancipação humana. Criticamos a debilidade. religiosa do Estado político ao
submetê-lo à crítica, prescindindo das debilidades religiosas de sua estrutura
secular. Humanizamos a contradição do Estado com uma determinada religião,
por exemplo o judaísmo, vendo nela a contradição do Estado com determinados
elementos seculares, humanizamos a contradição do Estado com a religião em
geral, vendo nela a contradição do Estado com suas premissas em geral.
Por isto, não dizemos aos judeus, como Bauer: não podeis emancipar-vos
politicamente se não vos emancipais radicalmente do judaísmo. Ao contrário,
dizemos: podeis emancipar-vos politicamente sem vos desvincular radical e
absolutamente do judaísmo porque a emancipação política não implica
emancipação humana. Quando vós, judeus, quereis a emancipação política sem
vos emancipar humanamente, a meia-solução e a contradição não residem em
vós, mas na essência e na categoria da emancipação política. E, ao vos perceber
encerrados nesta categoria, lhes comunicais uma sujeição geral. Assim como o
Estado evangeliza quando, apesar de já ser uma instituição, se conduz
cristãmente frente aos judeus, do mesmo modo o judeu pontifica quando, apesar
de já ser judeu, adquire direitos de cidadania dentro do Estado.
"A idéia dos direitos humanos só foi descoberta no século passado. Não
é uma idéia inata ao homem, mas este a conquistou na luta contra as
tradições históricas em que o homem antes se educara. Os direitos
humanos não são, por conseguinte, uma dádiva da natureza, um
presente da história, mas fruto da luta contra o acaso do nascimento,
contra os privilégios que a história, até então, vinha transmitindo
hereditariamente de geração em geração. São o resultado da cultura;
só pode possui-los aquele que os soube adquirir e merecê-los".
"E, do mesmo modo, não pode o cristão, como tal, conceder nenhuma
espécie de direitos humanos" (p. 19-20).
Déclaration des droits de 1'homme et du citoyen, (8) 1791, art. 10: "Nul ne
droit inquieté pour ses opinions même religieuses" (9) E a parte I da Constituição
de 1791 consagra como direito "La liberté à tout homme d'exercer le culte
religieux auquel il est attaché". (10)
Art. 2: Ces droits, etc. (Les droits naturels et imprescriptibles) sont: l'égalité,
Ia liberté, Ia súreté, Ia proprieté. (15)
Art. 6: "La liberté est le pouvoir qui appartient à l'homme de faire ce qui ne
nuit pas aux droits d'autrui", (16) ou, segundo a Declaração dos Direitos do
Homem, de 1791: "La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à
autrui".(17)
Art. 16 (Constituição de 1793) : "Le droit de propriété est celui qui appartient
à tout citoyen de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenues du
fruit de son travail et de son industrie". (18)
La égalité, considerada aqui em seu sentido não político, nada mais é senão
a igualdade da liberté acima descrita, a saber: que todo homem se considere
igual, como uma mônada presa a si mesma. A Constituição de 1795 define o
conceito desta igualdade, segundo seu significado:
E La süreté?
A revolução política que derrubou este poder senhorial, que fez ascender os
assuntos de Estado a assuntos do povo, que constituiu o Estado político como
incumbência geral, isto é, como Estado real, destruiu necessariamente todos os
estamentos, corporações, grêmios e privilégios que eram outras tantas
expressões da separação entre o povo e sua comunidade. A revolução política
suprimiu, com ele, o caráter político da sociedade civil. Rompeu a sociedade civil
em suas partes integrantes mais simples: de um lado, os indivíduos, de outro, os
elementos materiais e espirituais que formam o conteúdo de vida, a situação civil
destes indivíduos. Libertou de suas cadeias o espírito político, que se encontrava
cindido, dividido e detido nos diversos compartimentos da sociedade feudal;
unindo os frutos dispersos do espírito político e despojando-o de sua
perplexidade diante da vida civil, a revolução política fez com que viesse a se
constituir - como esfera da comunidade, da incumbência geral do povo - na
independência ideal em relação àqueles elementos especiais da vida civil. A
atividade determinada de vida e a situação de vida determinada passaram a ter
um significado puramente individual. Deixaram de representar a relação geral
entre o indivíduo e o conjunto do Estado. Longe disso, a incumbência pública
como tal se converteu em incumbência geral de todo indivíduo e, a função
pública, em sua função geral.
Bruno Bauer
Sob esta forma, Bauer trata a atitude da religião hebraica e cristã como sua
atitude frente à crítica. Sua atitude diante desta é o seu comportamento em
relação "à capacidade de ser livres".
Bauer pede aos judeus que rompam com a essência da religião cristã,
exigência que, como ele mesmo faz notar, não brota do desenvolvimento da
essência judaica.
Bauer concebe a essência abstrata ideal do judeu sua religião, como toda sua
essência. Daí concluir, com razão:
Ao contrário, para libertar-se, o judeu tem que levar adiante não só a sua
própria tarefa como, além disso e ao mesmo tempo, a tarefa do cristão, a Crítica
dos Sinóticos, da Vida de Jesus, etc.
"Eles mesmos devem abrir os olhos: seu destino está em suas próprias
mãos; a história não permite que ninguém se omita" (p. 71).
Fixemo-nos no judeu real que anda pelo mundo; não no judeu sabático,
como diz Bauer, mas no judeu quotidiano.
Qual é o culto secular praticado pelo judeu? A usura. Qual o seu Deus
secular? O dinheiro.
"é uma espécie de Laocoonte que não faz o menor esforço para livrar-
se das serpentes que o atormentam. Seu ídolo é Mammón, que adora
não só com os lábios, mas com todas as forças do corpo e do espírito.
A terra não é, a seus olhos, mais do que uma imensa bolsa, e estas
pessoas estão convencidas de não ter outra missão neste mundo senão
a de enriquecer mais que seus vizinhos. A usura quedou-se de todos os
seus pensamentos; sua única distração é ver como os objetos se
transformam sob a sua ação. Quando viajam, levam às costas, de um
lado para outro, por assim dizer, sua loja ou escritório, e só falam de
interesses e de benefícios. E ao afastarem, por um momento, os olhos
de seus próprios negócios, o fazem para saber o dos outros".
Início da página
Notas:
(1) Nos Estados Unidos não existe religião de Estado, nem religião declarada como da maioria,
nem a preeminência de um culto sobre outro. 0 Estado é alheio a todos os cultos. (retornar ao
texto)
(2) A Constituição não impõe crenças religiosas nem a prática de um culto como condição dos
privilégios políticos. (retornar ao texto)
(3) Nos Estados Unidos não se acredita que um homem sem religião possa ser um homem
honesto (retornar ao texto)
(4) Nota da Tradução Brasileira: O direito de voto estava condicionado a determinado teto. O
indivíduo que não possuísse o mínimo estipulado não podia ser eleitor. (retornar ao texto)
(9) A ninguém se perseguirá por suas opiniões, inclusive religiosas. (retornar ao texto)
(10) A todos é assegurada a liberdade de praticar o culto religioso a que se encontre vinculado.
(retornar ao texto)
(13) Constituição da Pensilvânia, art. 9, § 3.º: "Todos os homens receberam da natureza o direito
imprescritível de adorar o Todo Poderoso segundo os ditames de sua consciência; ninguém pode,
legalmente, ser obrigado a praticar, instituir ou sustentar qualquer culto religioso contra sua
vontade. Em caso algum a autoridade humana, seja ela qual for, -poderá intervir em questões de
consciência e fiscalizar as faculdades de alma-. (retornar ao texto)
(15) Estes direitos, etc. (os direitos naturais e imprescritíveis) são: a igualdade, a liberdade, a
segurança e a propriedade. (retornar ao texto)
(16) A liberdade é o poder próprio do homem de fazer tudo aquilo que não conflite com os
direitos de outro. (retornar ao texto)
(17)A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a ninguém. (retornar ao
texto)
(18) O direito à propriedade é o direito assegurado a todo cidadão de gozar e dispor de seus
bens, rendas, dos frutos de seu trabalho e de sua indústria como melhor lhe convier. (retornar ao
texto)
(19) A igualdade consiste na aplicação da mesma lei para todos, quando protege ou quando
castiga. (retornar ao texto)
(20)A segurança consiste na proteção conferida pela sociedade a cada um de seus membros para
a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades. (retornar ao texto)
(21) O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do
homem. (retornar ao texto)
(22) O governo foi instituído para garantir ao homem o gozo de seus direitos naturais e
imprescritíveis. (retornar ao texto)
(24) A liberdade de imprensa não deve ser permitida sempre que comprometer a liberdade
política. (retornar ao texto)
(25) Aquele que se propõe a tarefa de instituir um povo deve sentir-se capaz de transformar, por
assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que é por si mesmo um todo
perfeito, solitário, em parte de um todo maior, do qual o indivíduo receba até certo ponto sua
vida e seu ser, de substituir a existência física e independente por uma existência parcial e moral.
Deve despojar o homem de suas próprias forças, a fim de lhe entregar outras que lhe são
estranhas e das que só possa fazer uso com a ajuda de outros homens. (retornar ao texto)
(27) Esse que aí veis à testa de uma respeitável corporação começou como comerciante; falindo
seu negócio, fez sacerdote; este outro começou pelo sacerdócio, porém, ao dispor de certa
quantia, abandonou o púlpito pelos negócios. Aos olhos de muitos, o ministério religioso é uma
verdadeira carreira industrial. (retornar ao texto)
Inclusão 10/11/2004
Neste sentido, declara Thomas Münzer que é intolerável "que se tenha
convertido em propriedade a todas as criaturas, aos peixes na água, aos
pássaros no ar e às plantas na terra, pois também a criatura deve ser livre".