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8761-Texto Do Artigo-30003-1-10-20230811
8761-Texto Do Artigo-30003-1-10-20230811
2023
ISSN 2358-8322
Palmas, v.10,n.04
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1A Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04
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2A Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04
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Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04
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Editorial
Esta é a edição inaugural e especial da Revista Inovação & Humanidades, que tem como eixo
temático a Psicanálise. De igual forma, é a primeira vez que nos reunimos com colegas do Núcleo
Psilacs (Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo), do Departamento de Psicologia da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, coordenado pela inquietante psicanalista Dra. Andrea
Guerra, integrantes do Núcleo de Pesquisas e Estudos - Interfaces em Psicanálise (Dúnia Ferreira
Maia) e profissionais do Grupo Unis-MG (Alessandro Messias Moreira e Carina Adriele Duarte de
Melo Figueiredo) para uma revista colaborativa.
Marcam este encontro os significantes “Inovação” e “Humanidades”, que traduzem o forte
desejo de contribuir para uma Psicanálise implicada com a sua época e, mais do que isso, crítica
aos seus próprios fundamentos e modos de operar. Desejo de transmitir uma Psicanálise viva,
advinda dos mais diversos lugares e com autores/pesquisadores que têm colocado em questão
o ideal colonialista, que por muitos momentos sufocou a prática psicanalítica brasileira. Ideal que
ensurdeceu os clínicos, empenhados em transpor para o sul global uma Psicanálise europeia,
freudiana ou lacaniana, desconsiderando o espaço que deveria convocá-los à reflexão e à construção
a partir de uma perspectiva brasileira.
Historicamente, no Brasil, a Psicanálise sedimentou-se enquanto uma prática feita pelas
elites e para as elites, franqueando formações inacessíveis ou tratamentos que repetiam a mesma
lógica em seu fazer. Evidentemente, à margem desse panorama, diversos foram os psicanalistas que,
questionando tais práticas reprodutoras de um funcionamento social, passaram a ocupar espaços
em instituições públicas e a exercer o seu mister junto às populações de maior vulnerabilidade
social.
A presente edição está organizada em sete eixos: I) A Psicanálise e outros campos do saber
em suas ressonâncias; II) Atualidades da clínica e política; III) Multi, Inter e Transdisciplinaridade
em ato e pensamento; IV) Teorética; V) A Psicanálise em suas interfaces com: educação, trabalho,
comunidade, políticas públicas, direito, criminologia, prisão, saúde mental, entre outras áreas de
atuação/intervenção; VI) Psicanálise e Interseccionalidades: etnia, classe, gênero; VII) Psicanálise
e sua articulação com a tecnologia. Reunindo trabalhos de psicanalistas brasileiros, advindos de
escutas em espaços como a rua, lugares distantes e situados às margens, como as favelas, bem
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GENESIS E O NOVO MUNDO: CORPO, PANDEMIA E
VIRTUALIDADE
Resumo: Através do olhar da psicanálise, o presente artigo busca analisar a intensificação da relação entre sujeito e
virtualidade advinda do processo pandêmico. Dessa forma, através da obra Genesis, de Alexander Schubert, pretende-se
discutir sobre a possibilidade de construção do laço social pela realidade das redes, problematizando sobre o que resta ao
corpo no espaço virtual, analisando, assim, sobre os desencontros entre o mundo analógico e o ciberespaço.
Abstract: Through the psychoanalytic perspective, this paper aims to analyze the intensification of the relationship between
subject and virtuality caused by the pandemic process. Thus, it is intended to discuss the possibility of building a social
bond through the virtual reality, questioning what is left of the body in the virtual space and analyzing the disagreements
between the analog world and cyberspace. In order to do that, the Alexander Schubert’s work Genesis will be used as a
reference for our discussion.
1 Mestre em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é docente do Curso de Psicologia da
Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9020350641622428. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-6877-9581. E-mail: vguimaraes091@gmail.com
“As pulsões são no corpo um eco do fato de que há um dizer” (Lacan, 1975/1976, p.18).
Introdução
A pandemia e o Estado
A pandemia da Covid-19 surge para a humanidade como um novo desafio a ser enfrentado.
Neste novo cenário marcado pela catástrofe, o sujeito é confrontado com uma realidade de
impossível apreensão, a própria morte. O vírus descortina a pretensão humana de domínio da
natureza, como aponta Birman (2020, p. 63), “um minúsculo agente biológico invisível que destruiu
de modo desnorteante nossa forma de vida, individual e coletiva, e nossos laços sociais”. Ante a nova
crise sanitária surgem diversos significantes nos variados meios de comunicação como: angústia,
morte, tragédia, calamidade, entre outros. A impotência humana é desmascarada pela ameaça do
agente invisível, trazendo um cenário de medo e desamparo. De acordo com Birman (2020),
os efeitos catastróficos da pandemia da Covid-19, pelas
múltiplas desconstruções que promoveu nas formas de
existência individuais e coletivas de modo sistemático,
implicaram a emergência histórica de um limite ostensivo
e flagrante na onipotência humana de se acreditar no Deus
1 Esse trabalho foi financiado pelo Programa Institucional de Apoio a Pesquisa da Universidade do Estado de
Minas Gerais - PAPq
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secularizado. A peste levou assim à efetiva humilhação
da pretensão do homem do domínio absoluto do mundo,
com efeitos ainda impossíveis de serem completamente
calculados, em toda a sua extensão e profundidade, no tempo
futuro (BIRMAN, 2020, p. 65).
Na mesma esteira, em 2020, a gravidade do vírus se tornou foco de uma disputa de poder.
Apesar das análises de especialistas, discursos midiáticos buscaram descreditar a voracidade
do agente invisível. Assim como no passado, o Estado se ausentou e produziu o sentimento de
insegurança na população. Tal condição pode ser pensada a partir de frases proferidas pelo então
presidente da república como: “é só uma gripezinha”. Assim, quando a figura que deveria promover
a segurança do sujeito o abandona, a sociedade é lançada em um abismo marcado pelo desamparo.
Dessa forma, “o terror, quando praticado pelo Estado, atinge inevitavelmente toda a sociedade.
Quando o agente regulador dos vínculos sociais se põe na ilegalidade, é a própria substância
normativa da sociedade que se dissipa” (ABRÃO, 2014, p. 16).
Ao inverter sua função, o Estado passa a provocar um mal-estar, trazendo para toda esfera
social os sentimentos de medo e terror. Para se pensar essa problemática, é possível ir ao encontro
do argumento de Vladmir Safatle no texto O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o
fim do indivíduo quando o autor apresenta que o Estado hobbesiano provoca o sentimento de
desamparo para se legitimar como indispensável para a população. Nas palavras do autor,
sendo o Estado nada mais que ‘a guerra civil constantemente
impedida através de uma força insuperável’, ele precisa
provocar continuamente o sentimento de desamparo,
da iminência do estado de guerra, transformando-o
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13A
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema,
para assim legitimar-se como força de amparo fundada na
perpetuação de nossa dependência (SAFATLE, 2016, p. 29).
De acordo com Souza e Henderson (2021, p. 5), a tese de Safatle salienta que “a função do
Estado de promoção do bem-estar não é absoluta, é antes regulada por seu próprio interesse de
autopreservação”, sendo este ancorado em uma estratégia de promoção de um terror controlado.
Dessa forma, “a política se transforma assim na gestão da fobia. Por isso, é fundamental que esse
objeto se perpetue, que ele permaneça como uma contínua ameaça a “aterrorizar” nossa segurança
e nossas possibilidades de controle social” (SAFATLE, 2016, p. 53). Assim, uma vez que o medo e o
desamparo são incorporados no discurso, o sujeito volta-se ao Estado em busca de amparo, o que
mantém a lógica de “gestão da fobia”. Tal política marca o processo pandêmico da Covid-19 no
Brasil. Conforme aponta Souza e Henderson (2021), ao se colocar a sobrevivência do Estado sobre a
vida, o laço social é rompido, “a psicanálise demonstra o risco de tal rompimento, pois o simbólico
desautorizado pelo Estado retornará em outros formatos, isto é, o Estado se torna produtor de
fraturas simbólicas de potencial traumático” (SOUZA; HENDERSON, 2021, p. 6).
Nessa direção, Birman (2020) apresenta uma discussão sobre o lugar ocupado pelo Estado
no processo pandêmico. Ao contrastar a relação entre a bolsa e a vida, o autor tece uma leitura sobre
as políticas negacionistas de governantes como Trump e Bolsonaro. Nesse sentido, o psicanalista
defende que ao se optar pela bolsa, ou seja, por uma política que valoriza a acumulação do capital,
o poder do Estado lança o sujeito rumo à catástrofe. Assim, o processo pandêmico escancara a
perversidade de um governo que reduz os sujeitos a corpos abjetos, demarcando quais vidas seriam
dignas de existir. Tal forma de política pública evoca uma reflexão sobre a noção da necropolítica2,
conceito analisado pelo filósofo Achille Mbembe, que irá demarcar as formas de segregação dos
corpos. Dessa forma, como aponta o filósofo, em nome da soberania do Estado algumas formas de
existência são sacrificadas em nome de outras. Tal problemática pode ser compreendida logo no
início do ensaio de Mbembe (2016) quando o autor busca explorar sobre o que se trata a tese da
necropolítica. Dessa forma, ele aponta que
este ensaio pressupõe que a expressão máxima da soberania
reside, em grande medida, no poder e na capacidade de
ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar
ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus
atributos fundamentais. Ser soberano é exercer controle
sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e
2 O conceito de necropolítica é proveniente da biopolítica de Foucault (2002) que através da noção do poder
disciplinar apresenta uma problemática do direito regulador das vidas.
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estamos lidando com dois desastres ao mesmo tempo: o
natural e o simbólico. O vírus é um desastre natural, um evento
externo, biologicamente e medicamente explicado. Diferente
das imposições advindas da violência de outro humano e
das instituições que supostamente lhe serviriam de amparo,
estas atingem o campo simbólico, aquele das instâncias em
que nos fazemos reconhecer em nosso sofrimento (SOUZA;
HENDERSON, 2021, p. 6).
A partir dessa breve análise, torna-se necessário discutir sobre os impactos subjetivos da falta
de sustentação simbólica promovida pelo Estado em um momento de crise. Para tanto, a noção de
trauma e desamparo apresentada pela psicanálise parece oferecer uma luz a tal questão, abrindo
possibilidades para se pensar sobre o processo de ressignificação, assim como, possibilitando um
caminho para a discussão sobre um tempo marcado por uma nova forma de produção subjetiva, a
virtualidade.
Freud (1905/1953) apresenta, dessa forma, que em um processo de análise o paciente pode
narrar sobre experiências reais, assim como, trazer uma fantasia, ambas experiências podem surgir
como uma cena vivenciada na infância. Com o prosseguir de sua obra, nos de 1920, ele apresenta a
teoria do trauma relacionada à compulsão à repetição. Para tanto, ele irá se pautar nas formulações
de seu segundo dualismo pulsional: Pulsão de Vida X Pulsão de Morte. Neste momento, Freud
compreende que o trauma seria um excesso de energia psíquica que se apresentaria sob a forma
do sintoma, assim, ele defende que aquilo que se encontra sem representação simbólica retorna
para o sujeito na forma de repetição. Tal noção é amplamente debatida em Além do Princípio e do
Prazer. Neste trabalho, Freud (1920/2010) irá analisar essa relação a partir dos sonhos traumáticos
de soldados que vivenciaram a guerra. Ele aponta que tais sujeitos repetiam as cenas de terror
apesar do desprazer que estas lhe causavam. Dessa forma, conclui que os sonhos traumáticos não
obedecem ao Princípio do Prazer, eles estão atrelados à cena insuportável e tentam promover
uma elaboração psíquica para o reestabelecimento de tal princípio. O trauma, aqui, passa a ser
entendido como a inabilidade do eu em lidar com alguma experiência vivenciada como excessiva.
De acordo com Ferrari, Junizzie e Guerra (2020, p. 573),
o princípio do prazer, princípio que rege as relações com a vida
e com o laço social, perde funcionalidade e, na medida em
que o psiquismo curto-circuita em sua economia pulsional, a
pulsão de morte se instaura. E a angústia, como ele escreve
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anos mais tarde, surge sinalizando para o perigo em causa,
diante da ameaça à vida, não mais simbolizável.
A partir da fala das autoras, é possível constatar que o trauma, que se apresenta como
uma ruptura, faz com que o sujeito retorne a uma determinada cena de horror para produzir a
angústia. Esta, por sua vez, conduz a produção de sintomas como forma de ordenar o que está
sem representação. Ainda nessa perspectiva, Freud traz uma análise sobre a brincadeira do Fort-
da. Neste jogo, ele observa que a criança lança um carretel e o puxa novamente, como em um ato
teatral de simular a presença e ausência da mãe. Dessa forma, a criança revive uma situação passiva
de forma ativa em uma tentativa de recuperar o que havia perdido. Pode-se observar que em ambas
situações, nos sonhos traumáticos e no Fort-da, há uma tentativa de se inscrever uma experiência
que não foi simbolizada no campo da linguagem. Ao retomar a noção da compulsão à repetição,
Lacan (1973/1988) aponta que o sujeito repete aquilo que ele nunca consegue encontrar, expondo
o ponto opaco da própria linguagem. Assim, no Seminário XI, ele apresenta que a repetição é uma
tentativa de se reencontrar o objeto perdido, pois na esperança do encontro de Das Ding, o sujeito
se volta a um campo da ausência na busca de encontrar o objeto real, porém, tal objeto nunca é
alcançado. Nas palavras do autor,
abordaremos o conceito de repetição, perguntando-nos como
concebê-lo, e veremos como é pela repetição, como repetição
de decepção, que Freud coordena a experiência, enquanto
que decepcionante, com um real que será daí por diante,
no campo da ciência, situado como aquilo que o sujeito está
condenado a ter em falta, mas que essa falta mesmo revela
(LACAN, 1973/1988, p. 42).
No processo pandêmico, o vírus parece evidenciar esse furo existente no simbólico, trazendo
a impossibilidade de elaboração de uma nova representação, descortinando a falta e escancarando
o desamparo primordial. Aqui é possível ir ao encontro de Freud em seu escrito Reflexões para os
tempos de Guerra e Morte, momento em que o pai da psicanálise apresenta uma discussão sobre
a relação do sujeito com a morte. Freud (1915/1996) expõe que existe uma impossibilidade de
representação da morte no inconsciente, porém no período da Grande Guerra, há uma mudança
na relação do sujeito com a morte, pois “somos forçados a acreditar nela. As pessoas realmente
morrem, e não mais uma a uma, porém muitas, frequentemente dezenas de milhares, num único
dia” (FREUD, 1915/1996, p. 329). Assim como na guerra, na pandemia o sujeito se viu obrigado a
Assim, como enfatiza a autora, o virtual marca uma nova forma do Eu estar no mundo, espaço
onde a lógica passa do “ser” para o “parecer”, ou como aponta Zizek (2020), a realidade do virtual
é vivenciada como uma realidade sem o ser. Dessa forma, como salientado por Barban e Tfouni
(2019), na lógica do parecer há uma tentativa de endereçamento ao Outro midiático, entretanto,
há um ponto de impossibilidade de ser como o Outro o que leva o sujeito a uma alienação na
incompletude do ciberespaço. Assim, “a demanda de atenção do Outro virtual, das redes sociais ao
sujeito, substitui seu desejo pela alienação pré-estabelecida da virtualidade, o sujeito alienado no
Outro virtual sabe que ele não é alvo real do seu desejo, mas, mesmo assim, ele o deseja” (BARBAN;
TFOUNI, 2019, p. 106). É necessário então se questionar: o que resta à dimensão do sujeito diante
do ilusório fascínio pela imagem? Para se pensar em tal problemática, a obra Genesis, do artista
multimídia Alexander Schubert, parece possibilitar novos contornos a tal inquietação.
A partir da fala Lévy observa-se que o virtual se apresenta como algo possível de realização.
Assim, na relação entre o jogador e o avatar existem efeitos concretos, apresentados na fala e ações
propostas para a criação do espaço social. Através da voz e do olhar as barreiras entre mundo real
e virtual são ultrapassadas. Como demarcado por Lévy (1996), tal desconstrução de fronteiras diz
da capacidade criativa e de expansão da realidade promovida pelo ciberespaço. Portanto, ao se
possibilitar que qualquer pessoa se conecte ao jogo a qualquer momento, Schubert desvela tal
potência, promovendo um deslocamento do tempo e do espaço, representando um devir. Como
argumenta Barban e Tfouni (2019), a virtualidade representa uma nova roupagem sobre a fantasia,
pois “uma vez que permite a seus usuários uma desterritorialização; ao se adentrar no espaço
virtual, o indivíduo deixa a realidade ‘em suspenso’. Essa supressão do tempo, da concretude
humana e do espaço geográfico é recriada nesse novo mundo, um mundo em potência” (BARBAN;
TFOUNI, 2019, p. 103).
É preciso se pensar sobre aquilo que se modifica nas relações humanas ao se suspender
sua materialidade. As construções subjetivas parecem se produzir de uma maneira particular na
dinâmica da rede, pois ainda que haja uma desconstrução de barreiras há um desencontro entre
corpo e tela que parecem produzir novos modos de gozo. Paula Sibília (2016) traz uma análise que
possibilita essa discussão. A autora apresenta que o contemporâneo é marcado pelo imperativo do
Entretanto, é preciso compreender o que seria tal processo de reinvenção. Seria uma
produção fantasmática ou uma desconstrução do invólucro imaginário? Dessa forma, é preciso
problematizar sobre o que sobra ao corpo no ciberespaço, ou seja, seria a virtualidade uma
saída para o sofrimento pandêmico ou uma nova forma de produção da angústia? Sobre tais
questões, José Bragança de Miranda apresenta a tese de que o corpo na contemporaneidade
perdeu sua inteireza. Neste novo contexto, o corpo passa a ser destituído de uma subjetividade
singular, se transformando em um objeto a ser aperfeiçoado. De acordo com o autor, “o corpo
como propriedade propulsou as tendências a intervir nele (...). Perversamente o proprietário está
a ficar sem propriedade. Fazendo com que o ‘corpo’ mal consiga sobreviver às forças à solta na
modernidade terminal que é a nossa” (Miranda, 2011, p. 257). Através de tal fala é possível se
constatar que o corpo, no tempo do virtual, se torna um campo de experimentação. Há, portanto,
um jogo marcado pela construção e desconstrução do invólucro da imagem.
Nessa direção, Lacan no trabalho O Estágio do Espelho como formador da função do Eu tal
como nos é revelado pela experiência psicanalítica, traz uma discussão que busca compreender os
processos que subjazem a constituição do eu e do corpo. A partir de pesquisas etiológicas e do
estudo de Henri Wallon, Prova do Espelho e a Noção do Corpo Próprio de 1931, Lacan atribui um
papel central à imagem no processo de constituição do Eu. Ele teoriza sobre o momento em que o
infante se torna capaz de discernir sua imagem no espelho mediante o processo de identificação
com a imagem do outro, definido pela “transformação produzida no sujeito quando assume uma
imagem” (Lacan, 1949, p. 97). Assim, o psicanalista demonstra que o Outro seria uma espécie
de “escudo narcísico” que permitiria a inserção de uma alteridade e separaria o sujeito do real.
Como aponta Greco (2011, p. 6) “a presença do Outro vem marcar indelevelmente o sujeito pelo
significante, descorporificando o eu − ou eu (moi) −, entra no discurso como forma de dar substância
ao sujeito- ou ao Eu (je)”. Lacan sustenta que o estádio do espelho seria o momento inicial para a
constituição de uma subjetividade, ou como aponta Quinet (2012, p. 14), como “um momento
de insight configurador”. Neste processo, o olho surge como o primeiro aparelho de organização
do sujeito no mundo. O olho seria aquilo que inicialmente forneceria ao infante a possibilidade
de se relacionar com seu espaço representacional. Dessa forma, o espelho não seria apenas um
simples objeto refletor, mas a base para o processo de identificação. Dessa forma, retomando
Genesis, é possível se perceber que o olho do avatar seria aquilo que promoveria essa primeira
identificação para o jogador, abrindo espaço para a produção de sentido e configuração do novo
Considerações Finais
20
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Referências
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BARBAN, Pedro Grisi Galvão; TFOUNI, Leda Verdiani. A virtualidade, a tela e o sujeito: Um exame
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FERRARI, Ilka Franco; JANUZZI, Mônica Eulália da Silva; GUERRA, Andréa Máris Campos. Pandemia,
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22
22A
NAS TESSITURAS DO RESTO E DA SOLIDÃO:
PENÉLOPE E O FEMININO
Resumo: O presente trabalho busca fazer uma análise da personagem Penélope, presente na obra Odisseia, de Homero.
Aposta-se na jornada do tecer, dentre outros artifícios utilizados por ela, enquanto dimensões que atestam o não-todo
do feminino, desse modo, para além dos cânticos homéricos, parte-se de uma revisão bibliográfica narrativa de autores
psicanalíticos, como Sigmund Freud, Jacques Lacan e comentadores. A partir desse aporte teórico, o texto apresenta como
questionamento “o que resta (h)À mulher quando destituída de seus aparatos fálicos?”. O que se entrelaça à figura literária
os conceitos como o falo, o objeto "a", o real e a solidão, enquanto fundamentais nos desdobramentos d’A mulher para
tecer, para além do falo, fio a fio, a si mesma.
Abstract: The present work intends to analyze the character Penelope, present in the work Odyssey, by Homer. It bets on
the journey of weaving, among other maneuver used by her, as dimensions that attest to the not-all of the feminine, thus,
aside the Homeric chants, it starts with a narrative bibliographic review of psychoanalytic authors, such as Sigmund Freud,
Jacques Lacan and commentators. Based on its theoretical contribution, the text poses the question “what remains (being)
The woman when deposed of her phallic apparatus?”. It is linked to the literary figure concepts such as the phallus, the
object "a", the real and loneliness as fundamental in the unfolding of The woman to weave, beyond the phallus, thread by
thread, herself.
2 Psicóloga e Psicanalista. Pós-doutora em Intervenções Clínicas e Sociais (pela PUC Minas), Doutora em Estudos Psicanalíticos - Conceitos
Fundamentais em Psicanálise e Investigações no Campo Clínico e Cultural (pela UFMG), Mestre em Psicologia – Processos de Subjetivação (pela
PUC Minas) e Especialista em Arte e Educação (pela UEMG). Atualmente docente do curso de Psicologia da Universidade do Estado de Minas
Gerais (UEMG) Unidade Divinópolis. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5464259294427621. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5905-3973.
E-mail: gesianni@terra.com.br
Introdução: O que resta (h)À1 mulher?
Sigmund Freud e Jacques Lacan evocam o feminino em suas obras. Em Freud (1908-1933),
a feminilidade é apresentada em diversos de seus livros, enquanto em Lacan (1972-73/1985),
podemos perceber o amadurecimento destas ideias freudianas em um conceito lacaniano sobre
o não-todo do feminino. A partir delas, apresentamos diversas pesquisas de comentadores
psicanalíticos que dialogam com a temática e com o nosso corpus analisado.
Dessa forma, este trabalho é conduzido pela metodologia da pesquisa bibliográfica narrativa
abordada por Roether (2007) e Gil (2017). Ela se caracteriza pela descrição e discussão do “estado
da arte”, ou seja, uma análise de literatura disposta em materiais como livros, artigos e análise
crítica pessoal do autor, e que, não permite a reprodução dos dados da pesquisa. Esse tipo de
pesquisa permite uma ampliação da investigação de fenômenos e propõe um desenvolvimento
exclusivamente pautado em fontes bibliográficas. Assim, retorna-se às obras prontas como
fundamento da discussão do tema na contemporaneidade (GIL, 2017). É cabível ressaltar que, a
análise criteriosa dos materiais bibliográficos exige uma avaliação atenciosa da sua produção para
que não se alinhe à propagação de dados coletados ou processados de maneiras equivocadas (GIL,
2017).
Com isso, objetivamos abordar o enlace entre o feminino, a invenção e a tessitura
representados na figura de Penélope, da obra literária de Homero, Odisseia (750-650 a.C./2014
d.C.). E apostamos em uma construção na companhia da personagem que busca tecer respostas
para a questão: o que resta (h)À mulher quando destituída de seus aparatos fálicos? Destas
possíveis inovações que se apresentarão perante ao enigma da feminilidade é que evidenciaremos
as articulações frente ao desamparo do significante da falta e do desejo do Outro. Assim sendo, o
percurso da tecelã, apresentar-se-á como signo do feminino, e também, como uma referência de
invenções sobre A mulher, a qual abordaremos a seguir.
A trama de Penélope:
[...] o sofrimento incontornável me domina
HOMERO, 750-650 a. C./ 2014, p. 33
A obra épica do autor Homero, Odisseia (750-650 a.C./2014 d.C.), narra os embates
travados por Odisseu em sua volta para casa em Ítaca após a Guerra de Tróia. Contudo, para além
1 A letra “h” foi incluída no intuito de demonstrar que “há mulher”. Apesar de inexistir no inconsciente, segundo
Lacan (1972/1973), ela existe nas invenções do um a um, no singular.
2 A morada de Hades: filho de Cronos, deus do além-túmulo; também denota o reino dos mortos (HOMERO, p.
751).
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24A
em diante, é vivenciado pelo leitor a sua perspicácia, onde o tecido feito durante o dia, era (des-)
tecido na escuridão da noite. Penélope, a tecelã, se encarregava de uma tessitura que não teria fim.
Vale ressaltar que, sua estratégia é descoberta e levada à sabedoria de todos por uma de
suas “aias” (empregadas, companheiras da rainha). O que lhe obriga a finalizar o tecido, mesmo
que a contragosto. No entanto, ela continua a tecer. Mesmo que tendo o seu plano interrompido e
com toda ausência de fios, a rainha permaneceu a (des-)tecer: outros panos, outros sudários, mas
sempre sustentando, entre véus, choros e lamentos. A eterna tecelagem.
Caras, ouvi-me.
O sofrimento que os olímpios me impingem as amigas desconhecem,
pois perdi primeiro o esposo.
(...) O turbilhão agora arrebatou-me o filho inglório.
HOMERO, 750-650 a. C./2014, p. 135, 137
3 Penisneid: Falo; falocentrismo; inveja; sexualidade feminina (ROUDINESCO; PLON, 1998). Termo empregado por
Sigmund Freud para designar a inveja do pênis no processo de desenvolvimento da menina.
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28A
necessário relembrar que o discurso do autor foi atravessado pelas formas de organização social
de sua época. Nesse sentido, Maria Rita Kehl (2018), mostrou-se potente em suas palavras no
posfácio Freud e as mulheres, ao elevar essa análise ao nível temporal e cultural. Assim, segundo a
pesquisadora:
(...) Não é preciso ser psicanalista para observar, hoje, o quanto
essa constatação de Freud (à diferença de incontáveis outras)
era exata – mas datada. Parece-me que, na primeira metade
do século XX (antes da segunda onda feminista e muito antes
dos movimentos de liberação sexual, racial e de gênero dos
anos 1960), o que se esgotava nas mulheres de 30 anos não
eram as forças nem a libido. Esgotavam-se as perspectivas de
construção de novos destinos para a libido, que até então, havia
se concentrado – na melhor das hipóteses - no amor conjugal
e na maternidade. (...) O que Freud percebeu (mas não pôde
compreender) a respeito da libido feminina, ainda viva e
pulsante no primeiro terço da vida, foi a completa ausência
de novos destinos depois da (muito provável) decepção do
casamento, do enclausuramento domésticos e dos prazeres
do aleitamento de incontáveis filhos (KEHL, 2018, p. 365).
4 Autre no idioma francês. Termo designado por Jacques Lacan para designar um lugar simbólico que determina o
sujeito (ROUDINESCO; PLON, 1998).
5 Amuro: neologismo lacaniano retirado do poema de Antoine Tudal para designar a existência de algo, uma barra
entre o homem e a mulher na relação amorosa. Retomado no Seminário, livro 20: mais, ainda (1972/1973) e em
demais obras do autor.
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30A
Mesmo assim, opera-se com o que vem do a, uma vez que, o vazio possibilita a criação do mundo
do ser na linguagem, proporcionando algo que vela esse buraco (CUNHA; LIMA, 2018).
Por conseguinte, dentro do discurso amoroso que é postulado por Lacan (1960/1998
p. 741), temos: “O homem serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro para
ela mesma”. Com base nessa afirmativa, demonstra-se que os desdobramentos de uma mulher
apontam para caminhos dela com ela mesma e com os seus pontos não totalizantes que impedem
a universalização e o fazer grupo.
Com isso, percebemos que Penélope demonstra uma íntima relação entre a destituição
fálica, o objeto a e o resto. Retomamos um importante questionamento feito por Lacan (1960/1998)
acerca da capacidade da mediação fálica em drenar tudo o que se manifesta de pulsional na mulher.
Uma vez que, é sabido que as amarrações fálicas contêm o sentido de mascarada para A mulher.
Isto é, defesas frente à ordem do real que se revela. Assim, cabe mencionar que, mais uma vez, o
frequente véu utilizado pela personagem, busca em tentativas que não são em vão, fazer função de
suporte e semblante frente ao que foge à simbolização.
Nas elaborações do Seminário, livro 20 (1972-73/1985), Lacan articulou o objeto a com o
pedaço de corpo que se esconde sob o véu da imagem. Tem-se, então, a aproximação do objeto
a ao corpo e ao resto. Já que, a possibilidade de um gozo é sempre fraturada, impossibilitada pela
lógica fálica.
Diante da afirmativa “O que faz aguentar-se a imagem, é um resto” (LACAN, 1972-73/1985,
p. 13). Entende-se que, aquilo que cai do processo de alienação e separação, demarca a divisão
constitutiva do sujeito. O que, ao mesmo tempo, é o que se insere na lógica de busca do desejo
pelo objeto faltante e o que escancara o que resta do processo existente entre ser objeto de desejo,
ser o falo e ser A mulher. Desse modo, cabe à psicanálise falar sobre os restos, do corpo e dos seus
excessos, do amor e de suas perdas (VICTOR, 2021). Tanto quanto, bordejar o não-dito e aquilo que
aparece enquanto resto para A mulher. Para além do falo, e que insiste em fazer marca.
Nesse sentido, ao abordar a inexistência da relação sexual, as elaborações lacanianas
(1972-73/1985) apontam para as diferenciações entre o que se alinha ao lado masculino na tábua
da sexuação e o que se alinha ao lado feminino na mesma tábua. Ao referir-se às questões de gozo,
Lacan pontuou que haveria do lado todo-fálico, a busca pelo objeto a, uma vez que, esse ocupa o
lugar do parceiro que falta. O que possibilita a instauração da fantasia no lugar do real. Contudo, do
lado d’A mulher encontra-se outra coisa que vem em suplência à relação que não há.
Desta forma, ao apontar A mulher pela busca em ser desejada, ela se aproxima em se fazer
de objeto a, ou seja, a causa de desejo. Ademais, Lacan, ainda nas elaborações do Seminário, livro
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31A
Para além do falo: dizer não e consentir com a falta
Até aqui, apontamos o percurso da primazia do falo desde Sigmund Freud até a elevação
deste ao estatuto de significante no ensino lacaniano. Contudo, é fato que o significante fálico
permeia também as propostas do Seminário, livro 20 (1972-73/1985). Sobretudo, no que se
relaciona às vias d’A mulher. Sabe-se ainda que, a mulher é não-toda na função fálica, ou seja, “ela
não está lá de todo. Ela está lá a toda” (LACAN, 1972-73/1985, p. 80). E com isso, existe um gozo que
está para além do falo que demarca a posição subjetiva na qual concerne ao feminino. Soler (2005,
p. 41) trouxe a contribuição substancial a isso quando disse: “[...] dizer que ela não será nada de
tudo que se possa dizer a seu respeito, que ela fica fora do simbólico, real no duplo sentido daquilo
que não se pode dizer e daquilo que se goza de não-fálico, com o Outro absoluto”.
Quando voltamos às entrelinhas homéricas, vemos que elas apresentam essa dupla
instância de Penélope. No sentido de estar inclusa no todo fálico ao mesmo tempo que não.
Assim ela, sem o marido e sem o filho, produz outros caminhos em busca de fazer suporte ao
seu desnudamento. O véu, não somente faz a função de encobrir seu rosto, mas também busca
esconder o que está por trás. O silêncio não demarca somente sua tristeza, mas também a angústia
frente à solidão e o não-dito. A sua tecelagem não demarca somente uma estratégia de fuga, mas
uma nova construção, fio a fio, de si. Seu percurso demonstra a relação com o falo e a destituição
dele. Frente a isso, essas tentativas de amarrações são evocadas.
O fato é que, essa trama demonstra a caída do todo fálico para o aparecimento do não-
todo fálico. Esse processo, como evidenciado pela personagem, não se faz sem um trabalho de luto.
Quando Landi (2017) abordou essa temática junto ao feminino, ela retomou tanto Freud quanto
Lacan para fundamentar a presença importante do trabalho de luto na dimensão constitutiva do
sujeito. O que possibilita compreender um atravessamento pela perda do objeto de amor, pela
visão freudiana, e a elaboração da perda do falo, pela visão lacaniana.
Assim, há de se fazer o luto pela perda do falo. Uma vez que perdê-lo, como nos apontou
Landi (2017, p. 142), é como cavar “um buraco no real, no qual se projeta o significante faltante”.
Isso se dá de tal forma que, nos dizeres da autora, a partir da castração, o objeto a vem ocupar o
lugar de causa de desejo. O que se encontra em Penélope é um longo trabalho de lutos: o luto pelo
objeto de amor, o Outro e o falo.
Há, portanto, uma insuficiência fálica em responder tanto o que resta de gozo no
desdobramento de uma análise como para dizer sobre a construção da feminilidade e sobre o gozo
Outro - o que implica em uma limitação do semblante fálico. Algo do semblante fálico cai e se esvai
Assim como nos mostra Penélope em conjunção com o exposto por Landi (2017), o cair das
articulações imaginárias e simbólicas fálicas atordoa e retira o chão do sujeito. Contudo, tem-se a
possibilidade de fazer outra coisa com a falta. Se o feminino possui um gozo suplementar para além
do falo, ele nos direciona para essa aposta: um trabalho de fiar para que ele (o impossível) possa
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32A
ser sustentado.
Sendo assim, o feminino, enquanto nome desse real que escapa à lógica fálica, se
apresenta como Outro absoluto, ou seja, como uma alteridade que visa o infinito do gozo. Tudo
pode ser imputado à mulher (LACAN, 1960/1998). Desta forma, na relação falocêntrica e na lógica
de linguagem do inconsciente, apresenta-se uma articulação simbólica e imaginária de confecções
de nomes para A mulher. Com isso, é no encontro com o que não se recobre pelo significante, com
as fraturas e, com os restos que escancaram o real, que se revela o que está por detrás do véu e que
torna possível articular um saber fazer com a dimensão Outra.
Nesse sentido, Penélope instaura a sua tecelagem através do que resta. Isto é, pela falha no
simbólico que aponta para a inexistência d’A mulher e da relação sexual. A personagem põe em
cena o ato. Em 2013, Caldas apresentou uma importante elaboração ao dizer que, após o ato, não
se pode mais apagar o registro. Desse modo, frente ao não saber, a personagem ateniense tece o
sudário ao mesmo tempo que tece a si mesma. Ela o faz na tentativa inventiva de escrever o que
não pode ser lido, o seu ser feminino.
Com isso, ainda se pode aproximar a tecelagem de Penélope ao estatuto da letra pois,
para Lacan (1972-73/1985), a letra é colocada como esse ajuntamento que constitui o inconsciente.
O que seria, portanto, o que recai no campo do real. Desse modo, a escritura do real em cada
sujeito determina sua gramática pulsional (CUNHA; LIMA, 2018). Pela primeira vez ao tecer, a
personagem busca promover ajuntamentos frente ao que se revelou no real, a partir das linhas.
Contudo, mesmo com o descobrimento do seu plano, Penélope continua a tecer outros sudários
e fazer desse emaranhado uma nova possibilidade de escritura. Ela busca tramar, entrelinhar e
costurar essa abertura do real. Dessa forma, o tecer de Penélope passa do estatuto de letra para
o de significante. Assim, o que antes não era passível de ser simbolizado se desenvolve como a
possibilidade de fazer com a falta, ou melhor, fazer com os restos dos retalhos e linhas.
Nesse ponto, percebe-se que Penélope diz não. Que ela não se assujeita à imposição
social de novos casamentos, e de que, não elege ou busca um novo objeto amoroso para fazer par.
Do mesmo modo, ela recusa a função de se incluir no desejo do Outro. Novos parceiros não são
escolhidos pela rainha, bem como, em seus aposentos, não há o uso do véu. Ela busca somente
tecer. É possível pontuar que, outra dimensão se revela nessa configuração, a de que, junto somente
à sua solidão, novos emaranhados são constituídos.
Torna-se crucial demarcar que, pelo olhar de outros personagens que se referiam à
Penélope na obra homérica, tem-se a repetição de dizê-la pela via da espera. A exemplo disso,
tem-se a passagem do porcariço, Eumeu, que é: “Garanto que ela espera com inquebrantável/
Têmpera no palácio. Os dias passam tristes,/Tão tristes quanto as noites, pois, só chora a cântaros”
Penélope, a destituição fálica e a solidão. Pela invenção, tece para poder existir e tramar
algo frente ao real. Azevedo (2010) aproximou a obra de Homero, Odisseia, ao percurso da análise,
mais precisamente ao “vir a ser psicanalista”. Ela discorreu que tanto Odisseu quanto Penélope
haviam mudado. Dessa forma, no decorrer dos 20 anos, ambos não eram mais os mesmos.
Freud (1933/2018, p. 338) apontou que o trançar e o tecer são invenções construídas pelas
mulheres que se apresentam na história cultural. Ele ainda destacou que, nesse trabalho, a mulher
“tecer-se-ia tentando adivinhar o motivo inconsciente dessa realização”. Enquanto que, Naves
(2012), ao referenciar essa passagem freudiana, relembrou que a tessitura se dava em torno de um
vazio impossível de ser preenchido. Assim, Penélope tece.
A tecelagem indica e pressupõe a irrupção de um gozo que está para além do falo. Em tom
de novas amarrações é que a personagem se dedica ao ato do “não-todo-tecido”. O que relembra
a duplicidade implicada na posição feminina. Com isso, Lacan (1967/2003, p.252) ao apresentar
a distinção entre o outro imaginário, como pequeno outro, e o lugar de operação da linguagem,
como o grande Outro, constatou que “nenhum sujeito é suponível por outro sujeito”. Assim, tem-
se a divisão do sujeito e as suas próprias elaborações às voltas com o seu resto. Nesse percurso, o
sujeito se depara com as decaídas de suas construções de fantasias que faziam frente ao real. O que
implica em uma posição de des-ser (LACAN, 1967/2003).
O caráter de des-ser da personagem se atrela com o enfrentamento do real e da sua
inexistência. Ainda assim, é por meio do resgate do tecer que se percebe a busca pela apreensão
simbólica para construir e inventar seu próprio nome. Massara (2014) ao se desdobrar nos estudos
sobre os extravios da mulher, pontuou que, ainda que extraviadas em relação ao campo simbólico,
é possível bordejar e nomear algo do Outro gozo que a princípio era impossível de contornar.
Em primeira instância, o processo de destituição fálica de Penélope apresenta a produção
de novas respostas diante do vazio. Porém, no decorrer de sua trama de 20 anos, adquire caráter de
se abrir para uma ausência que não comporta o Outro para suplantá-la. Desse modo, em articulação
com a letra tecida, escreve-se o Um, em solidão, sem extinguir a contingência do encontro com o
Outro, que inclui algo para além das amarrações imaginárias e simbólicas, e traz o encontro com o
real (LANDI, 2017, p.146). A autora ainda trouxe um importante questionamento: “E se uma mulher
faz o luto do falo, renuncia essa busca fálica, o que restará a ela, reconciliada com a privação real,
despojada do ter?”.
Dessa forma, Lacan (1972-73/1985) ao aproximar o Outro gozo do real, propôs a reflexão do
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Conclusões não-todas
Você deságua em mim, e eu
Oceano
Música “Oceano” - DJAVAN (1989)
Tanto Sigmund Freud quanto Jacques Lacan apresentaram dentre os seus ensinos,
impasses para com a figura da mulher. Nesse sentido, ambos possuem anos de elaborações que
se apresentam pouco a pouco em diversas produções. Assim, Freud (1933/2018, p.314) discorreu:
“Sobre o enigma da feminilidade, ruminaram os seres humanos de todos os tempos”. Esse ato de
ruminar também se apresentou nos dizeres lacanianos quando ele traz nomes de figuras femininas
como Ysé, Medéia, Antígona, Santa Teresa D’Ávila, entre outras que comportam um longo percurso
de estudos e, sobretudo, interrogações.
O percurso freudiano vai desde o período pré-edípico à maturação do desenvolvimento que
permite ao sujeito se intitular homem ou mulher. Já nos avanços lacanianos, com o suporte da
linguagem e da matemática, o feminino e o masculino se relacionam ao falo e às posições de gozo,
explicitando a diferença entre eles. Mesmo com articulações diversas, ambos convergem em um
ponto comum acerca da obscuridade e da não totalidade, sobre o que é e o que deseja uma mulher.
O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73/1985) apresenta importante contribuição
teórica a essa temática, incluindo a dimensão do real e da não significação para tentar capturar algo
do enigma presente na figura feminina. Conclui-se a não universalização d’A mulher e, assim, uma
única resposta sempre estará à deriva dessas questões.
Sobretudo, a construção do presente texto foi regida por Penélope. Desse modo, o nome d’A
mulher se fez presente, e além disso, suas invenções construíram sua nomeação. Freud, Lacan e os
demais comentadores foram tomados como fundamentais aos pontos discorridos neste trabalho.
No entanto, a tecelã foi quem nos permitiu evocar a ordem do que não se diz, mas se bordeja.
Assim como na música Oceano, do cantor brasileiro, Djavan, A mulher também possui uma
dimensão oceânica. Uma vez que, ela sempre possuirá esse a mais. Esse que se incluirá no seu
desejo, no seu laço com o Outro e na dimensão borromeana presentificando o real. A referida
composição, assim como Penélope, denuncia a falta do parceiro amoroso e põe em cena a solidão
do sujeito. Dessa forma, para além do falo, para além do Outro, para além do amor… algo se localiza.
No caso da personagem, localiza-se a si mesma e sua dimensão não-toda.
Elaborar uma análise totalizante da personagem Penélope e sua dimensão do feminino é
uma tarefa a revelar o impossível, como lembrado por Lacan (1972-73/1985). Contudo, é possível
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38A
O DELÍRIO E O POEMA NA PSICANÁLISE
Resumo: Este trabalho propõe retomar formulações de Freud e Lacan sobre a psicose, o delírio como tentativa de cura e a
função do significante na estruturação do sujeito, assim como adentrar nas considerações de Octavio Paz sobre a operação
de criação poética. O interesse é investigar as relações entre o delírio (a realização do verbo) e o poema (o delírio do verbo),
de modo a explorar suas estruturas e diferentes formas de subversão das normas e convenções da língua e, assim, entrever
possibilidades clínicas e implicações éticas. Entende-se o delírio não como poema propriamente, mas como uma expressão
poética, expressão do dinamismo da língua, de modo que sua construção sinaliza um empenho de reconstituição diante
do surgimento de alucinações. A posição do analista envolve não descartar sua produção, mas favorecer a construção de
narrativas em favor da compensação dos efeitos da foraclusão do significante Nome-do-Pai e do advir do sujeito.
Abstract: This paper revisits Freud’s and Lacan’s formulations on psychosis, delusion as an attempt at healing and the
function of the signifier in the subject structuring, furthermore, to investigate Octavio Paz’s considerations regarding the
process of poetical creation. The interest lies in investigating the relationship between the delusion (the realization of the
verb) and the poem (the delusion of the verb), and to explore their structure and forms of subversion of language norms
and conventions, and therefore peruse clinical and ethical possibilities. Delusion is understood not as poem itself, but as
a poetic expression, an expression of language dynamism, thus its construction indicates an attempt of reconstitution
when facing the emergence of hallucinations. The analyst must not discard its production but support the construction of
narratives in order to favor a compensation of effects of the foreclosure of the signifier the Name-of-the-Father and the
emergence of the subject.
1 Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB, Graduada em Psicologia pela UnB, Especialista em Teoria Psicanalítica pela Faculdade Inspirar.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (PsiCC-UnB), Brasília-DF, Brasil.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5405314969526867. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9130-7486. E-mail: giuliaconte.unb@gmail.com
2 Doutora e Mestre em Psicologia Clínica pela USP. Profa. do Departamento de Psicologia Clínica IP/UnB e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (PPGPsiCC/UnB). Membro do GT da ANPEPP: Psicanálise, Política e Clínica. Membro
da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - EPFCL-Brasil e Fórum Brasília. Brasília-DF, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/7151249685318679. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1413-2998. E-mail: maessomc@gmail.com
Do início
40
40A
É esta potência interpretativa, este olhar inédito para o mundo, o que inspira o diálogo
aqui proposto entre a construção delirante e o trabalho do poeta, este que trabalha com a licença
de fazer o verbo delirar (BARROS, 2010).
O percurso envolve retomar formulações freudianas e lacanianas a respeito da psicose,
assim como se debruçar sobre as ideias de Paz sobre a poesia, para assim refletir sobre as possíveis
consequências teóricas e clínicas para a psicanálise. Com o propósito de tratar das articulações
possíveis entre a constituição do delírio (processo que envolve a criação de uma narrativa de
reinterpretação do mundo) e a escrita poética, pretendemos refletir sobre as contribuições que o
poeta pode trazer ao psicanalista em sua escuta.
Acredita-se que essa leitura do funcionamento do delírio e da poesia é importante para
ressaltar que a psicose é um modo de estruturação que envolve o Outro da linguagem, confrontando
a acepção psiquiátrica de um transtorno que deve ter suas manifestações cessadas. A psicanálise,
da forma como foi conduzida por Lacan, considera o delírio como fenômeno de linguagem e dá um
novo salto, o da abertura a um outro lugar de destinação desses modos de organização, além de
possibilitar uma escuta das produções psicóticas desligada dos limites do campo do sentido, que
rege a psicologia clínica em geral.
Do método
Objetivos
O objetivo da pesquisa foi, a partir de uma investigação teórica, estudar o delírio enquanto
fenômeno de linguagem e suas relações com o poema, tendo na função do significante uma direção
para o percurso. Como objetivos específicos, destacamos: a) pensar a questão da linguagem em
Jacques Lacan, centrada na primazia do significante, junto às ideias apresentadas por Octavio Paz
sobre a poesia; b) explorar a relação entre as diferentes formas de subversão das normas da língua,
no poema e no delírio; c) verificar possíveis desdobramentos e consequências clínicas; d) enfatizar
as diferentes implicações éticas entre a escuta do delírio como loucura e a escuta como dizer do
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41A
sujeito numa expressão poética, resguardando as diferenças entre ambos.
O problema da psicose
A questão da psicose e seu tratamento se apresentou para Freud como um problema para
a psicanálise. Ele insistiu na impossibilidade de análise de pacientes psicóticos (FREUD, 1911/2010,
1915/2010, 1925/2011), baseado na constatação de que o investimento libidinal restrito ao
eu inviabilizaria o estabelecimento de relação transferencial, móbil do acesso ao inconsciente.
Haveria, ele supôs, uma predisposição à doença localizada na fixação ao narcisismo e que teria
como efeito uma rejeição do mundo externo, ou seja, um abandono dos investimentos objetais
e um sobreinvestimento no eu, resultando na incapacidade para a transferência. Embora tenha
se mostrado convencido de seu argumento, deixou ao encargo de seus sucessores a tarefa de
solucionar tal impasse (FREUD, 1925/2011).
Assim, formulou preciosas teorizações sobre a psicose aos psicanalistas que se dedicassem
ao tema no futuro e reconheceu que a psicose tinha muito a ensinar à psicanálise (FREUD,
1937/2019). Dedicou-se ao sistema delirante do presidente Schreber como um linguista se dedica
ao seu objeto e observou que o delírio representava a tentativa de restabelecimento do mundo
subjetivo, de modo “não mais esplêndido, é certo, mas ao menos de forma a nele poder viver”
(FREUD, 1911/2010, p. 94). Para ele, o trabalho do delírio consiste na reconstrução desse colapso
interno provocado pelo afastamento da realidade.
A leitura freudiana das formações delirantes representou grande rompimento com a
tradição médica que as entendia como meras manifestações da evolução da doença que deveriam
ser suspensas. Freud não somente percebeu que o delírio desnudava a lógica do inconsciente
como também viu nele a reconstrução do mundo como tentativa de cura (FREUD, 1911/2010). O
delírio foi tomado como uma produção que não deve ser detida, o que consistiu em uma tentativa
freudiana de retirar a psicose do conjunto nosográfico das anomalias, indicando ao clínico que evite
a ânsia pela cura (furor sanandi), bastante comum na prática médica, uma tomada de posição que
interromperia o trabalho delirante.
A peculiaridade da constituição subjetiva da psicose e de suas produções revelou para Freud
limitações em sua nascente psicanálise, mas teve a atenção de Jacques Lacan, que logo se dedicou
a demonstrar as relações estreitas com a linguagem. Atento às entrelinhas do que Freud deixou
por desenvolver, Lacan manteve vivo interesse pela psicose, abordando o problema sob a luz da
O delírio
A despeito das dificuldades, a indicação lacaniana é de que o clínico não deve recuar diante
da psicose, tampouco se restringir a deter suas produções. O delírio é uma importante tentativa
do sujeito de reconstituir seu mundo, aparecendo como uma verdadeira narrativa que traz algum
esclarecimento retroativo sobre o período alucinatório que havia obstruído seu lugar no mundo.
Muitas vezes, as condições de análise favorecem sua formulação.
O trabalho delirante consiste em erguer uma obra, surgida em um momento posterior
(uma posteridade lógica e não cronológica, deve-se ressaltar) ao do surgimento das turbulentas
alucinações, no qual o mundo está tomado por significação. No movimento do delírio, o crepúsculo
do mundo, caracterizado pela intensa confusão alucinatória, é sua fase constitutiva (LACAN,
1955-1956/1985). O delírio surge em um tempo pós-crepuscular e decorre da impossibilidade de
simbolizar algo, de recorrer ao complexo de castração para se defender da angústia, e, uma vez
construído, pode refazer esse período de crise e, eventualmente, tornar a existência suportável em
um mundo que lhe havia ficado tão estranho.
O surgimento das turbulentas alucinações exprime a ruptura do simbólico, o rompimento
da ligação entre as palavras, e o mundo está tomado por significação. A formação delirante é
uma verdade explicitada, oposta à ocultação ou ao ciframento neuróticos decorrentes de um
compromisso simbolizante, e contém em sua estrutura uma significação irredutível, que remete
somente a si própria e que funciona como um ponto de basta, sem possibilidade de deslizamento.
Sua especificidade está na inflexível certeza (a certeza delirante) e no neologismo, que cria uma
fórmula que se repete com insistência e que cria a interrupção na rede do discurso (LACAN, 1955-
O poema
Os anos de 1950, nos quais Lacan sustentava o aforisma do inconsciente estruturado como
uma linguagem, inspiraram outro importante pensador da língua a escrever sobre a linguística e
43
43A
sobre a linguagem como condição da existência do ser humano (o ser falante ou falasser [parlêtre],
para utilizar um termo lacaniano dos anos posteriores). Octavio Paz, importante poeta, ensaísta e
tradutor mexicano, é ainda celebrado e reconhecido pela poesia de alta qualidade formal aliada às
acuradas análises sobre a história, a política, a língua e a cultura da América Latina.
Suas ideias têm força tal que permanecem absolutamente vivas na cultura mexicana e
devem receber o reconhecimento que lhe é devido. Apresentou reflexões valiosas sobre o fazer
poético, sobre a criação e sobre a absoluta sujeição do humano ao sistema simbólico, pois o ser
humano é “um ser de palavras” (PAZ, 1956/1982, p. 36). O arco e a lira (PAZ, 1956/1982) é um
ensaio, um texto em prosa que não perde em nada a atmosfera poética que Paz exala, e culmina
em um rico diálogo com a linguística através de referências diversas à história latino-americana.
Concebido, curiosamente, no mesmo ano em que estava sendo desenvolvido o terceiro
seminário de Jacques Lacan, a obra de Paz é um tratado sobre o devir poético e traz observações
sobre a natureza da linguagem e o uso da língua em sua potência criativa e mágica. A coincidência
não se encerra na data. Os dois autores, geográfica e culturalmente distantes, beberam da prenhe
fonte da linguística e trataram de falar dela a partir de sua subversão, ou seja, de desenvolvimentos
que respeitosamente abriram novos horizontes, pensando suas problemáticas sem deixar de
exaltar suas ricas contribuições às ciências do humano e da cultura. Na subversão de seu campo
e de seu alcance, os dois pensadores puderam oferecer preciosas contribuições à psicanálise e à
poética, respectivamente.
Paz se serviu do universo simbólico para tratar do fazer poético e da função poética da
linguagem. O poeta, ciente da natureza da linguagem, recupera a originalidade primitiva da palavra,
uma reconquista que “afeta os valores sonoros e plásticos tanto como os valores significativos”
(PAZ, 1956/1982, p. 26). É próprio da palavra não caber em qualquer limite rígido da significação,
pois carrega uma pluralidade de sentidos.
Em seu estado natural, a palavra é repleta de polissemias, ambiguidades, nonsenses, enfim,
tudo o que indica que sua natureza vai muito além da sonoridade e da significação. A criação
consiste na transformação da matéria-prima em obra, na libertação da palavra de sua significação,
levando ao mundo uma infinidade de possibilidades simbólicas. A operação poética é oposta à
manipulação técnica: “A pedra triunfa na escultura, humilha-se na escada. A cor resplandece no
quadro; o movimento, no corpo, na dança. A matéria, vencida ou deformada no utensílio, recupera
seu esplendor na obra de arte” (PAZ, 1956/1982, p. 26). Bastante distinta da prosa ou de uma
argumentação lógica, em que há um comprometimento com as convenções da língua, um fascínio
pela razão e pela eliminação dos equívocos, a criação poética subverte leis naturais, e as normas
Revolucionária por natureza, a poesia transforma o mundo, e “em seu seio resolvem-se todos
os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem”
(PAZ, 1956/1982, p. 15). Pertence a todos os tempos, a todos os povos, pois é a forma natural de
expressão do humano.
A poesia, como a linguagem, preexiste ao sujeito. Não é um artefato humano; ao contrário, o
humano dispõe dela, está rodeado por ela, e cria a partir de sua existência. Há poesia sem poema,
44
44A
poesia em estado amorfo, que está aí, na natureza. O poema, por outro lado, é criação, obra, poesia
erguida. É entidade da poesia, um ser redutível dela, mas, ainda assim, distinto. O poema é o ato de
fabricar, produzir, criar, fazer nascer, fazer vir a ser, inventar, imaginar. Não é meramente uma forma
literária, mas uma das expressões do encontro entre o ser humano e a poesia.
Por esse motivo, um soneto ou uma obra construída de acordo com as leis da métrica pode
não conter poesia, pois as estrofes, as rimas e os versos devem ser tocados pela poesia. O essencial
é menos a forma que o encontro com o poético, e assim qualquer atividade verbal é suscetível de
se transformar em poema. A técnica (manipulação do utensílio, procedimento) e a criação não
coincidem. O poema, de acordo com Paz, é produto único do ato de criação, deslocamento no qual
a palavra é colocada em liberdade, recuperando sua propriedade de nada significar. O poeta é ser
brincante, e seu ato transforma a matéria-prima – à disposição de todos os falantes – em obra.
Alguns desdobramentos
A questão clínica
Deve-se conduzir o delirante a, como dizia o poeta, “saber errar bem o seu idioma”
(BARROS, 2010, p. 319). Tal é o ato da criação, a de conduzir a língua às suas errâncias próprias,
capazes de criar e recriar realidades.
Os fenômenos característicos da fase mais produtiva da paranoia devem ser considerados
51
51A
Fins
O percurso aqui introduzido visou colocar a ênfase devida aos esforços freudianos de não
relegar o delírio ao campo das produções patológicas disfuncionais que devem ser interrompidas
a todo custo. Freud insistiu em dar ao delírio a condição de tentativa de cura e de reconstrução
do mundo, dando ao psicanalista o encargo de se aprofundar na história de seu desenvolvimento.
Supondo na formação delirante um dizer, a condução de Lacan da teoria psicanalítica possibilitou ao
campo da psicose uma escuta e um tratamento, a despeito da tendência ainda atual da psiquiatria e
demais áreas psi a asilar o psicótico e fazer cessar suas manifestações. Retomar os ensinamentos de
Freud e Lacan intenta manter a chama de seus projetos viva, sem se deixar conduzir por caminhos
que silenciem o delirante.
Constituir um delírio, longe de ser entendido como a evolução de um padecimento, faz
parte de um esforço de reconstrução de um mundo despedaçado pela invasão imaginária sofrida
pelo sujeito, que surge como efeito de conteúdos inconscientes sendo lançados para o exterior ou,
na terminologia de Lacan, o reaparecimento no real do que é recusado na ordem simbólica.
A construção delirante se edifica mediante o grau de certeza que o significante adquire,
“um peso proporcional ao vazio enigmático que se apresenta inicialmente no lugar da própria
significação” (LACAN, 1957-1958/1998, p. 545). Trata-se de um efeito do significante, cuja estrutura
escancara o equívoco próprio à comunicação, efeito da fragilidade do mundo do sentido. Assim, o
delírio subverte as ordenações da língua e denuncia que a linguagem é, por excelência, incompleta,
e que no sujeito que a produziu subsiste um rombo análogo, uma impossibilidade inviolável de
sentido.
A criação poética é uma operação simbólica que intenta dar algum contorno ao vazio do
real. Criação de um sujeito impondo uma nova ordem simbólica com o mundo, o poema não rejeita
as incompletudes do sistema de comunicação humana, atestando que não se pode tudo dizer. Há
espaços deixados em vazio que a língua jamais poderá alcançar, há algo que sempre escapa, de
modo que eliminar o nonsense ou produzir sentidos inequívocos é uma pretensão irrealizável. Em
vez de se prestar a discursos inquebrantáveis, da maneira como idealizou o paradigma científico do
século XX – cuja expressão pode se dar, por exemplo, em um texto em prosa, mais comumente na
forma de argumentação lógica –, o poema dispõe da desordem do mundo e da natureza, brinca
com o sistema de leis da língua que tenta impor uma ordem impossível à natureza. Jogando com as
ressonâncias do sentido, o poeta desmonta de forma irremediável o signo linguístico.
Há um eixo, que esperamos ter ficado evidenciado, entre o delírio e o poema, que os deixa
52
52A
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54A
OS EFEITOS DO NÃO-DITO SOBRE A MORTE PARA A CRIANÇA
Resumo: O artigo tem como objetivo discutir os efeitos do não-dito sobre a morte para crianças, a partir de uma articulação
teórica sobre o (s) efeito (s) do não-dito, das histórias que não se contam sobre a morte na experiência clínica com crianças
enlutadas. Foi realizada uma pesquisa teórico-clínica fundamentada em conceitos psicanalíticos de base freud-lacaniana
interligados a reflexões sobre o tema em questão a partir de vinhetas clínicas de atendimentos psicológicos com crianças
que perderam uma pessoa amada. Conclui-se que, o não-dito em relação à morte estaria relacionado com a produção do
sintoma, como repetição, e que se apresenta pela via da angústia, da dificuldade de aprendizagem e de outras formas de
sofrimentos.
Abstract: The article has as its objective making a theoretical articulation about the effect (s) of the unsaid, of the stories that
are not told about death in the clinical experience with mourning children. A theoretical-clinical research was conducted,
based on Freud-Lacanian psychoanalytic concepts which, in turn, were linked to reflections on the subject in question,
sourced from clinical fragments of psychological care with children who lost a loved one. It is concluded that, the unsaid in
relation to death, by the child’s parent (s) or by those who play the role of caregiver, would be related to the production of
the symptom, as repetition, and that it is presented through the anguish, learning difficulties and other forms of suffering.
1 Mestre em Psicanálise e Cultura (UFU) e Residência Multiprofissional em Paciente em Estado Crítico (UFU). Psicóloga e psicanalista.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7102977476566605. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4127-1918. E-mail: leidiane_fdiniz@hotmail.com
2 Doutoranda em Psicologia Clínica (USP) e mestre em Psicanálise e Cultura. Psicóloga-psicanalista. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/5704282827188848. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7030-9511. E-mail: layla_r@hotmail.com
3 Mestre em Psicologia Clínica e Cultura (UNB). Psicóloga-psicanalista. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4447592710160020. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-5738-4143. E-mail: luziasantos.psicologia@hotmail.com
Introdução
Tantos assuntos proibidos. Essa foi a minha história. O fôlego
faltou e me achei autorizada para dizer qualquer coisa que não
o silêncio. Uma constante caça às palavras que construíssem
um enredo sobre os não-ditos que marcaram a ignorância da
minha origem. (SALUM, 2015, p.79).
Desde o início o mundo doeu em mim. Dentro, mas também
fora. Alguns creem que as memórias da primeira infância ou
são boas ou não existem, temerosos de que até o mito da
infância feliz lhes escape. São os que preferem não lembrar.
Eu lembro muito, sempre lembrei. E ainda hoje há noites,
muitas noites, em que acordo com o coração descompassado.
Sempre vou temer o retorno da escuridão, que para mim é o
mundo sem palavras[…]. A morte é mundo sem palavras[...]
(BRUM, 2014, p.12)
O primeiro fragmento acima foi retirado da tese de doutorado de Luciana Salum (2015),
intitulada Sobre o que se escreve de uma psicanálise (Isto é uma Tese). Nessa obra, a autora ressalta
como sua história foi atravessada pela morte silenciada, pelo não-dito, por histórias não contadas
ao outro, e, consequentemente, a deixou sem acesso à palavra para dar borda ao Real (Salum,
2015). De acordo com Lacan (2018/1973-1974), o Real refere-se ao inassimilável, ao impensável, ao
insuportável, ao não simbolizado.
Por sua vez, o segundo fragmento extraído do livro Meus desacontecimentos: a história
da minha vida com as palavras, escrito por Eliane Brum (2014), aborda como a morte simbólica,
concreta e real estava presente em sua vida antes mesmo do seu nascimento. Nas palavras da
autora, “nasci não de um, mas de vários túmulos. O primeiro deles foi o corpo da minha mãe,
assassinado pela morte da criança que veio antes. Uma menina, a primeira menina” (p.13). Assim,
para a autora, a irmã morta representava seu nascimento, mas, ao mesmo tempo, ela se sentia
mais morta do que viva, pois tornou-se a substituta da irmã morta e enganchada ao significante
morte (BRUM, 2014).
Trago esses fragmentos para falar como, desde cedo, minha história também foi habitada
pelo silêncio, por fatos não contados sobre significantes fundamentais para a constituição subjetiva:
como a morte, a origem do nascimento e, entre outros, os efeitos da falta de palavras, de articulação
de significantes no meu corpo. Como a maioria das crianças, também queria saber várias coisas
sobre a existência humana. Era bastante curiosa. Queria saber sobre o nascimento e sobre a morte.
Constituição subjetiva
Morte
Para Ariès (1977, apud PAIVA, 2014), a morte consistia em um tema frequente nas conversas
na Idade Média, mas a partir do século XV ocorreram grandes mudanças na forma de lidar com o
tema, isso porque ela foi transferida para o hospital e passou a acontecer de maneira mais solitária.
Para Kübler-Ross (1926/2017), a morte continua sendo assustadora. A mudança emergente com o
avanço da tecnologia e da medicina, foi a nossa atitude em relação ao assunto, haja vista que ela
passou a não ter lugar na sociedade, tornando-se sinônimo de fracasso e de impotência.
A fim de ilustrar, Kübler-Ross (1926/2017) em Sobre a morte e o morrer, apresenta suas
memórias de infância ao recordar a morte do fazendeiro: ela narra como ele caiu de uma árvore e
não tinha possibilidade de sobrevivência. Pediu para morrer em casa, e seu desejo foi aceito. Nos
seus últimos dias, realizou despedidas com seus familiares, amigos e Kübler-Ross e seus irmãos foram
incluídos também. O velório aconteceu na casa do morto, contando com a participação de seus
familiares, amigos e das crianças. Mesmo a morte sendo o “estranho-familiar”, o irrepresentável,
algo que nosso inconsciente não consegue simbolizar, neste período, ela era falada nas rodas de
conversas e as crianças participavam dos eventos de despedida. Na atualidade, porém, o velório
ocorre longe das casas dos mortos e o tempo de velar foi encurtado.
Kübler-Ross (1926/2017,p.10) nos apresenta:
A morte é encarada como tabu, onde os debates sobre ela são
considerados mórbidos, e as crianças afastadas sob pretexto de
que seria “demais” para elas. Costumam ser mandadas para a
casa de parentes, levando muitas vezes consigo mentiras não-
Em síntese, como já dito, o segredo é uma das expressões do não-dito. É aquilo que é
imposto pelo outro, nesse caso, pelas mães das crianças ou por quem cuida delas. Mas por que os
adultos se calam sobre a morte e sua causa para criança?
Diante desse questionamento, relato de forma breve a minha experiência com visitas
infantis em um Hospital Escola de Minas Gerais, principalmente na Unidade de Terapia Intensiva
(UTI) de adulto. Nos acolhimentos realizados com pais de crianças, percebi como eles manifestavam
grandes dificuldades em abordar o assunto sobre a morte com as crianças. Alguns diziam que a
criança “não entende”, ou é “pequena demais” para falar sobre a morte e sua causa, e tais fatos
produzem sofrimento, são traumáticos; e assim por diante. Sobre isso, recordo uma visita infantil
de um menino (oito anos) que chamarei de Angel. Seu avô estava morrendo e a sua mãe disse a ele
que o avô iria “viajar para o céu”.
Paiva (2011) aponta que a morte, geralmente, em nossa cultura ocidental, é compreendida
como um assunto assustador, doloroso e, sobretudo, representa sinal de fracasso, impotência
e derrota. Consequentemente, a morte se torna uma palavra interdita, um tabu, o não-dito,
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60A
especialmente, para a criança. Afinal, os pais costumam mentir, ocultar, fazerem uso de metáforas
e negar informações a respeito da morte de uma pessoa próxima à criança, com a justificativa de
protegê-la do sofrimento.
Nas palavras de Paiva (2011):
Os adultos costumam dizer que morte não é assunto para
crianças, porque é triste, como desculpa de que querem
protegê-las. Mas, na verdade, nós não sabemos como abordar
esse tema com as crianças. Para nos protegermos de nossa
própria ignorância e por recear as possíveis reações das
crianças, preferimos evitar o assunto, fazendo de conta que a
morte não faz parte do universo infantil (p.32).
Para Rosa (2003), os pais acham que podem perder o controle, a autoridade em transmitir
as normas, os valores, bem como acreditam que sua relação com o filho pode mudar, pois o efeito
desse falar não é previsível. Assim, imaginam: o que a criança vai pensar e fazer com o que sabe?
Além disso, há componentes de culpa, moral, dívidas e frustrações não trabalhadas pelos pais com
potencial de alterar sua relação e seu discurso com o filho. E mais, os pais evitam contar uma história
sobre as questões existenciais para a criança, isso também seria uma forma de não acessarem sua
ferida narcísica, também, de pensarem que o tema pode gerar sofrimento. Dessa maneira, eles
fazem suposições de como esses sofrimentos também ressoariam.
Voltando à criança, a autora aborda que ela é um ser com uma percepção aguçada, capaz
de adivinhar, intuir, mas não sabe o que é, pois falta nomeação, representação. Ela necessita da
articulação de significantes, das palavras advindas do outro que, aqui, seriam as dos seus genitores/
cuidadores. Quando ela encontra o silêncio, a falta de palavras, de significantes e outras espécies
de não-ditos, pode exprimir seu saber inconsciente pela via do sintoma, da angústia ou da inibição
(ROSA, 2009).
Kovács (1992) fala que desde cedo a criança experimenta situações possibilitadoras do acesso
à certa noção de morte. Ela percebe quando algo ocorre em seu redor, porém, muitas vezes, sente-
se confusa com relação à sua percepção. Omitir e ocultar a morte para a criança pode produzir mal-
entendidos, pois ela fica confusa por não ter alguém a fim de confirmar sua percepção.
A esse respeito, Raimbault (1979, p.93) afirma: “as crianças sabem. Elas lhe contam através
de desenhos, sem saber que contam. Elas sabem inconscientemente”. Ademais, a criança, bem
pequena, expressa esse saber pelas manifestações do seu corpo, necessitando da tradução das
expressões pelo cuidador, e ela descobre o mundo e a si mesma através dele (DOLTO,1989/1987;
Exemplifico com Matheus que repetia, na maioria das vezes no grupo de luto, uma
brincadeira com a casinha de brinquedos. Ao vê-la, logo dizia que “ela está muito bagunçada, as
coisas estão fora do lugar”. A partir daí começava a arrumar, arrumar... desarrumar e desarrumar
a casa. No decorrer da brincadeira, Matheus introduzia um fantoche, o nomeando “Pequeno
Senhor”... O Pequeno Senhor, de repente, desaparecia (uma das coordenadoras do grupo de luto
o escondia). A criança iniciava uma busca incessante à procura do fantoche, dizendo “cadê você,
Considerações Finais
Quando a criança se depara com o não-dito, com a omissão de dados das histórias, com o
não-elaborado em relação à morte e ao esclarecimento da forma como os pais morreram, como
vimos a partir da discussão teórica e da articulação de fragmentos de atendimentos clínicos, o
que emerge nela é a produção do sintoma – como repetição, podendo se apresentar por meio da
angústia, da dificuldade de aprendizagem, e de outras formas de sofrimentos psíquicos ou físicos.
O sintoma porta um enigma, uma interrogação, apontando que há uma história que não foi
contada, há lacunas ou dados omitidos pelo outro, que seria um dos pais das crianças ou cuidadores.
Nesse sentido, o sintoma estaria dizendo: decifra-me. Traduza-me. Escuta-me. Conte-me a verdade
sobre ou como meu pai morreu? Sinto que a mamãe oculta algo sobre a morte do meu pai, mas
não sei o que é. Por que mamãe esconde a história sobre a morte do meu pai?
Também percebi com a experiência como os pais têm dificuldades e receios de abordar o
tema. Apontamos, ainda, um despreparo para conversar sobre a morte com as crianças. Talvez,
não seja dito às crianças, pois foi sequer esteja elaborado, acessível simbolicamente pelos adultos.
Desse modo, como abordar, como falar para as crianças? Diante disso, o sintoma da criança estaria
relacionado ao sintoma dos pais. Portanto, é plausível dizer que não adianta realizar um trabalho
clínico apenas com a criança, mas também com seus pais. Para trabalhar com as crianças e os pais
precisamos de profissionais capacitados, preparados, que consigam trabalhar com a morte e com
o morrer.
A partir da minha experiência na Residência Multiprofissional no Hospital de Minas Gerais,
percebi que os profissionais, de modo geral, apresentam dificuldades de trabalhar com essa
temática. Inclusive, em minha experiência como residente, escutar e suportar o paciente falar
da morte, que aparecia também nas visitas infantis, foi difícil e desafiador. Nesse contexto, senti
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65
65A
RACISMO EPISTÊMICO E SECULARIZAÇÃO RELIGIOSA NA
PSICANÁLISE – ENTRAVES ÉTICOS PARA A FORMAÇÃO DE
PSICANALISTAS BRASILEIROS
Resumo: O artigo propõe uma análise crítica sobre a secularização do discurso religioso na conformação do discurso
científico moderno, bem como seus desdobramentos no interior da obra freudiana. Nos interessa sublinhar, em um primeiro
momento, que a racionalidade científica se estruturou a partir do recalque à alteridade, operando uma hierarquização
epistêmica que acompanhou a divisão racial do trabalho e organizou cognitivamente o capitalismo a partir de então.
Em seguida tomamos o processo de secularização do discurso religioso na epistemologia psicanalítica, marcada por um
projeto científico e por uma classificação valorativa dos conhecimentos terapêuticos que guarda importantes reflexões
sobre a sua atual restrição ao diálogo horizontal com saberes historicamente subalternizados em solo brasileiro. Sendo
esses saberes de matrizes africanas e indígenas, acusamos aí um racismo epistêmico. Tal análise busca contrapor a diretriz
ética da Psicanálise contemporânea aos discursos coloniais e capitalistas que a atravessam. Um esforço de descolonização
da formação psicanalítica brasileira.
Abstract: The article proposes a critical analysis of the secularization of religious discourse in the conformation of the
modern scientific discourse, as well as its consequences within Freud’s work. We are interested in underlining, at first, that
scientific rationality was structured from the repression of otherness, operating an epistemic hierarchical classification that
accompanied the racial division of labor and cognitively organized capitalism from then on. Next we take the process of
secularization of the religious discourse in psychoanalytic epistemology, marked by a scientific project and by an evaluative
classification of therapeutic knowledge interspersed with important reflections on its current restriction to horizontal
dialogue with historically subalternized knowledge in Brazilian soil. As this knowledge comes from African and indigenous
matrices, we accuse it of epistemic racism. Such an analysis seeks to oppose the ethical guideline of contemporary
Psychoanalysis to the colonial and capitalist discourses that permeate it. An effort to decolonize Brazilian psychoanalytical
training.
1 Doutor pelo Dep. de Estudos Latino-americanos da Universidade de Brasília (bolsa CNPq). Mestre em Sociologia pela Universidad Nacional
de San Martín (bolsa OEA). Pós-doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (bolsa Fapesp). Membro do Laboratório de
Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL/USP). ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1398-7230. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9561505664164215.
E-mail:raoni.mmj@gmail.com
2 Professora Titular do Instituto de Psicologia da USP. Coordena o Laboratório Psicanálise, Sociedade e Politica (PSOPOL/USP) e o Grupo Veredas:
psicanálise e imigração (IP/USP). Pró-Reitora Adjunta para Inclusão e Pertencimento da Universidade de São Paulo (2022/26).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9518-0424. Lattes:http://lattes.cnpq.br/3826964831651958. Email: debieux@terra.com.br
3 Professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Mestre em Clínica Transcultural e Doutor em Psicologia pela Université
Sorbonne Paris Nord. Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL/USP). Coordena e supervisiona o Grupo Veredas:
psicanálise e imigração (IP/USP). ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4908-9221. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9915572605264386.
Email: gabriel.binkowski@gmail.com
Introdução
1 Marilena Chauí (1981/2008) ressalta o caráter multifacetado da ideologia, mostrando ser esta “um conjunto
lógico, sistemático e coerente, de representações (ideias e valores) e normas ou regras de conduta que indicam aos
membros da sociedade o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer” (p.11) .
2 O conceito de “episteme” traz, em geral (em alguns dicionários da língua portuguesa), um conceito etnocêntrico,
associando-o com o conhecimento “real, “verdadeiro”, “científico”, “oposto às opiniões individuais, infundadas”,
etc. Mas teóricos do século XX, como Michael Foucault, Thomas Kuhn, Gaston Bachelard, Bruno Latour, entre
outros, trazem outros horizontes possíveis, menos etnocêntricos, para esse termo, entendendo-o mais ou menos
como um paradigma comum a vários indivíduos, como corpo organizado de conhecimento, o que não significa que
ele seja estático. Muito ao contrário, “revoluções” e “rupturas” parecem ser uma marca em comum das epistemes.
De qualquer forma, aqui nos referimos a esse termo de forma mais ampla, como elementos estruturais de uma
racionalidade moderna ocidental caracterizada pelo recalque à alteridade.
3 No caso do discurso religioso, não temos a intenção de desdobrar uma abordagem centrada no sujeito, para daí
pensar o papel das religiões. Apesar de estar em relação, o argumento aqui não pretende aprofundar a função
religiosa para os processos de simbolização e organização psíquica dos sujeitos; para produção de “reservadas
de sentido”; para o “desamparo originário e inevitável” em sua perspectiva de neurose projetiva; ou mesmo dos
possíveis paralelos entre o papel de cuidado e da dinâmica transferencial na religião e na Psicanálise ao lidar
com o desamparo constitutivo e com o mal-estar dissolvido no mundo psíquico e social, argumentos esses que
perpassam a obra freudiana e que são delineados, por exemplo, no texto “Cuidado religioso e cuidado psicológico:
uma questão de fronteiras”, de Paiva e Granato (2014).
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67A
relações. Tal trilha já fora apontada por Freud em textos seminais de sua abordagem do social,
como O futuro de uma ilusão (1927/1996) e Mal-estar na civilização (1930 [1929])/1996.
Num segundo momento, tentaremos perceber como o processo de secularização do discurso
religioso se apresenta como substrato de uma racionalidade científica requerida pela epistemologia
psicanalítica, desdobrando-se em uma hierarquização dos conhecimentos terapêuticos que, se
atualizado ao cenário brasileiro atual, guarda importantes reflexões sobre o hermetismo desse
campo e de sua restrição à escuta e ao diálogo horizontal com saberes historicamente subalternizados
sobre o sofrimento subjetivo. Sendo esses saberes de matrizes africanas e indígenas, acusamos aí
um racismo epistêmico. Tal esforço busca contrapor a diretriz ética da Psicanálise aos discursos
coloniais e capitalistas que a atravessam. Um esforço, portanto, de descolonização da Psicanálise
brasileira com incidência nos processos de formação de psicanalistas.
Qualquer análise sobre o capitalismo, em todas as suas fases, não deve prescindir de
uma perspectiva histórica de seu estabelecimento enquanto modus operandi do sistema-mundo
moderno (WALLERSTEIN, 2012). Referimo-nos ao período colonial e suas heranças na atualidade,
particularmente as que decorrem da escravidão e da organização racial do trabalho demandadas
pelo capitalismo moderno que, por sua vez, organiza-o cognitivamente.
Nesses termos, o conceito de raça se coloca enquanto um eixo cognitivo que estrutura o
capitalismo e a racionalidade moderna ocidental. Difícil seria ter uma conclusão definitiva sobre o
surgimento do racismo nos termos que hoje o concebemos. Talvez o racismo moderno, enquanto
doutrina ideológica que promove a organização produtiva em termos globais ainda na atualidade
seja mais uma demanda do capitalismo (expansão comercial, territorial e de acúmulo de riqueza)
do que a causa do sistema escravocrata que lhe serviu de motor. Essa visão materialista da história,
presente na obra de Eric Williams (2012)4, por exemplo, merece destaque aqui, muito embora não
caiba nos posicionarmos definitivamente sobre os impasses que a sua pesquisa suscita quanto à
datação do racismo.
Lélia Gonzalez (1988[2020]) identifica elementos de uma tradição etnocêntrica pré-colonial
que considerava absurdas, exóticas e irracionais as manifestações culturais dos povos “selvagens”,
o que reforçaria o ímpeto colonizador das metrópoles ibéricas e as formas como o racismo –
disfarçado ou por denegação - foi articulado nos países dominados5.
e a ideologia da democracia racial compõem um sofisticado tipo de racismo. Nesses países a luta antirracista teria
mais dificuldades de se articular, uma vez que as estratégias de dominação e a segregação são menos visíveis,
mas não menos perversas. Ao descrever o racismo aberto, característico das sociedades de colonização anglo-
saxônica, germânica ou holandesa, afirma que nessas sociedades a segregação é mais explícita, pois afinal o grupo
dos brancos, buscando manter a sua “pureza”, estabelece como negro aquele que tenha qualquer gota de sangue
negro nas veias. Nesses países, segundo a autora, a luta antirracista teria mais facilidades de se articular, uma vez
que a segregação explícita reforçaria a identidade racial da população negra, que nas sociedades de racismo por
denegação são minimizadas e invisibilizadas, expropriando os sujeitos de suas histórias, de suas identidades e de
elementos de fortalecimento comunitário.
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69A
Esse parece ser justamente o mecanismo pelo qual se instaura o mito, ou seja, no ponto exato
onde se deixa de considerar um lado concreto e sacrificado dos “fatos” que causam inconvenientes
à manutenção de uma determinada ideologia. Souza (1983[2021], p. 54) lembra que, enquanto
instrumento formal da ideologia, “o mito é um efeito social que se pode entender como resultante
de convergências e determinações econômico-político-ideológicas e psíquicas”.
No século XVI, vemos um fato ilustrativo da conjugação entre a questão racial, a religiosa e
a econômica: o Julgamento de Valladolid, em 1552. Naquele momento, a maior acepção histórica
do “ser” seria a alma, substância divinatória onde residiria a própria humanidade do sujeito.
Protagonizado por Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, o julgamento, que atendia
obviamente aos interesses da monarquia espanhola, “conclui” que os indígenas possuíam alma e
que não deveriam ser escravizados, mas sim convertidos em cristãos.
Em termos produtivos, isso significou a passagem da escravidão para outra forma de
coerção e trabalho imposto, denominado “encomenda” (na prática, outra forma de escravidão).
Os negros, por sua vez, eram considerados desprovidos de alma, sendo a mão-de-obra que deveria
substituir os indígenas no trabalho escravo. Tal decisão, absolutamente arbitrária pelo conteúdo
da matéria em si (uma superioridade entre seres a partir de uma característica fenotípica), parece
estar nevralgicamente relacionada com o argumento de Eric Williams (2012), sobre os custos de
uma escravização indígena diante da africana (ver rodapé 7). Trata-se de um episódio ilustrativo do
imbricamento entre o capitalismo, a escravidão racista e a naturalização de uma racionalidade sob
a base religiosa.
A Psicanálise nos ensina que o desejo de se munir da verdade enquanto signo justificador de
nossos atos implica o fundamento violento da sociedade (BINKOWISKI, 2021). Parece ser a partir daí
que o sujeito se autoriza ao afeto do ódio enquanto marcador da defesa narcísica àquela alteridade
que traz uma outra perspectiva, que ameaça por nos mostrar a nossa não totalidade, ou a nossa
falta primordial. Aqui vemos como se exprime a precariedade subjetiva, a partir de uma extimidade
religiosa – esse conhecido-estranho ou de um dentro-longe. O ódio racial parece ser o conteúdo
latente que se manifesta enquanto uma recusa estrutural à alteridade, garantindo socialmente a
naturalização de uma divisão racial da produção.
Assim sendo, a extimidade, noção forjada por Lacan a partir do conceito de estranho, de
Freud, arregimenta essa delicada economia entre o que está dentro e fora, nos contornos do outro
no qual se assume uma parte abjeta do sujeito. O outro-abjetificado a partir de uma maquinaria
ideológica que congrega religião e economia pavimenta caminhos para um tratamento brutal da
alteridade, retirando dela a possibilidade de um sentido e mesmo de uma legitimidade para com
Quijano (2007) diz que, a partir do século XVII, as relações sociais e intersubjetivas foram
elaborando um modo de produzir conhecimento que dava conta das necessidades cognitivas
do capitalismo. Tais necessidades passam por ajustes e reajustes éticos e perceptivos de modo
a justificar a manutenção de um tratamento de abjeto dado ao outro. Pois é desde então que a
questão racial foi secularizada em termos “científicos”, mantida, porém, mesmo após o chamado
“desencantamento do mundo” (WEBER,1982), a conotação com relação à “humanidade” ou
“não-humanidade” dos povos indígenas e negros, postos agora numa escala de humanidade
(meramente) biológica.
Mesmo que os binarismos maniqueístas de um temor a um deus tentem criar um
ordenamento social, eles não puderam aplacar o fardo civilizacional. Sendo essa uma condição do
sujeito em sociedade, as luzes da razão tampouco aplacaram tal desamparo originário, demandando
novos termos e discursos na tentativa de um nem tão novo ordenamento social. A racionalidade
ocidental hegemônica a partir da dominação colonial americana e, mais intensamente, do
Iluminismo, reificou sua lógica binária: Oriente–Ocidente; Europa–não Europa; primitivo–civilizado;
mítico/mágico–científico; irracional–racional; tradicional–moderno (GROSFOGUEL, 2016).
O monoteísmo enquanto eixo da noção de progresso dá forma a um discurso religioso que
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70A
antecipa o darwinismo social que encarna posteriormente o discurso científico. O lugar mais alto,
de onde se vê o mundo e de onde não se pode ser visto, é o elemento de secularização do discurso
religioso, tal qual o olhar celeste, onipresente, que enuncia a verdade.
O “Eu” cartesiano foi ganhando contornos próprios ao sujeito da ciência moderna, capaz de
produzir um conhecimento verdadeiro além do tempo e do espaço. Não há figura mais literal para
o suposto saber que o sujeito da ciência moderna, herdeiro que é da sabedoria divina. Essa é uma
transferência massiva que orienta os processos mais primitivos de subjetivação, de socialização e de
orientação do sujeito sobre si e diante do mundo. Para afirmar a existência de um “Eu” que produz
conhecimento equivalente à visão do “olho onipresente de Deus” são utilizados os argumentos
ontológico6 e epistemológico7. Esses, ao mesmo tempo em que auxiliaram na secularização do único
lugar de enunciação sobre a verdade, estabeleceram uma oposição razão-natureza e a tentativa
constante dos sujeitos de compreender as coisas ao seu redor para poder dominá-las e submetê-las
à lógica do sujeito pensante. Não se trataria apenas de um sujeito pensante (“ego cogito”), mas de
um “sujeito-conquistador-pensante” (“ego conquiro”)8.
Certamente, essa concepção cartesiana do sujeito teve um enorme valor para a forma
filosófica da psicologia moderna. As luzes da razão foram tomando a forma do “espiritu”, antes
entendido enquanto alma, agora sinônimo de consciência e de racionalidade. A ideia de uma razão
descolada do seu meio serviu de base para a concepção do sujeito liberal.
Nesse modelo, a intersubjetividade enquanto parte mesmo da constituição subjetiva é
comprometida, assim como a possibilidade de percepção das demandas narcísicas de quem
realiza tal obstrução. Assim, nasce uma concepção de consciência que atende aos desígnios de
uma burguesia iluminada pela razão e pela lógica do capital que tampona as contradições sociais
que lhe permitem uma existência concreta e um lugar de privilégio no período histórico. Se tal
entendimento de consciência não ocorre sem resistências e contrapontos mais recentes – seja com
Marx ou o próprio Freud9 –, ele termina por se estabelecer hegemonicamente.
É esse projeto de sujeito e de consciência, burguesa, que está na base da formação dos
Estados-nação latino-americanos, “conformados” pelos herdeiros dos colonizadores. A maioria
dos Estados atuais manteve uma ficção aparente de características monétnicas ou uninacionais
(STAVENHAGEN, 2001), tal qual um “truque óptico” de uma imagem parcial refletida pelo grande
Outro como total10.
Ampliando-se para um debate que remete à noção de identidade nacional, esta é forjada
por mecanismos de contraposição ao que é barrado da consciência que define as construções
identitárias e suas recusas e recalques11. Concretamente, isso tornou possível que os povos
A esta altura, talvez caiba afirmar que, no Brasil, dois dos maiores mitos sobre os quais se
erguem a lógica capitalistas e a desigualdade que lhe é pressuposta são o da democracia racial
12 Internamente à academia, o século XIX também foi marcado pelo processo de disciplinarização, entendido
como a institucionalização em profissões de um conjunto de práticas intelectuais distintas. Cada disciplina foi
criando o seu “território”, suas fronteiras, tradições e campos, solicitando “credenciais” aos possíveis interessados
em ingressar no seu território. A autonomia das disciplinas encontrou forma física nos edifícios, departamentos e
salas. A fragmentação cartesiana dos saberes ganhou forma física e até hoje mantém em grande medida as suas
fronteiras, sendo muito difícil romper os seus limites rumo à interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade.
13 Ver JARDIM (2016)
14 Ver GONZALES (1984)
72
72A
a necessidade do colonizado de refletir enquanto seus os traços do colonizador. A identificação
com o lugar do suposto saber torna crônico o desinteresse em articular a teoria psicanalítica com os
saberes difundidos no território em que estamos.
Psicanaliticamente, isso diz sobre a surdez sistemática de quem se propõe a escutar o
recalcado. Feita essa trajetória argumentativa, talvez possamos afirmar o desamparo discursivo de
amplas parcelas da população brasileira como parte do mesmo fenômeno sócio-histórico que fez
da universidade um local absolutamente limitado quanto à escuta daqueles excluídos dos muros e
ocultados da fundação da cidade letrada.
Dito isso, sustentamos que, em grande medida, o caráter mítico presente no discurso
hegemônico da ciência moderna se deve ao seu racismo epistêmico, assim como no discurso
religioso, ambos se afirmando por uma violenta negação da alteridade, construindo sub-versões do
“outro” que paulatinamente retiram sua legitimidade de ser.
A questão psicanalítica
A ética psicanalítica está interessada no furo do discurso, que revela elementos latentes,
políticos e ideológicos, em seu curso, como parte de sua possibilidade de incidir sobre as condições
sócio-históricas produtoras de desigualdades sociais e sofrimento para amplas parcelas da
população. Ademais, como aponta Rosa (2016), criam-se verdadeiras maquinarias sociais e políticas
de gestão dessa diferença pela via do desamparo discursivo.
Contudo, a ética psicanalítica também tem como vetor elementos teóricos e metodológicos
que incidem terapeuticamente sobre o sofrimento de um sujeito que lhe confia a fala. Esse vetor
diz respeito à posição do analista na estrutura social, onde se inscreve o seu percurso formativo e
sua amplitude de escuta.
Nesse esforço, podemos nos dar conta de um dado inicial: a epistemologia psicanalítica,
dado o seu lócus embrionário, não escapa a priori do eurocentrismo, o que se comprova em
pontos estruturais: a mitologia grega que serve de arcabouço simbólico operado como universal
para pensar o funcionamento psíquico; os casos atendidos por Freud oriundos de uma elite
vienense que serviram de base para a sua teorização; a adoção de credenciais científicas para o
seu reconhecimento e um desejo de se constituir enquanto epistemologia e técnica universal para
pensar a psicopatologia e o sofrimento psíquico.
Sobre esse último ponto, como bem recorda Althusser (1964[1978]), após anos de desprezo
Podemos ali ler o sintomático e recorrente hermetismo das instituições e dos próprios
psicanalistas como parte de um mecanismo de defesa a esse histórico contato com a margem
científica e as acusações de uma prática sem teoria, ou de uma teoria que reflete as regras da
prática.
Curiosamente, ao sair da marginalidade científica e se estabelecer academicamente, a
Psicanálise termina por se encastelar e erguer muros contra um diálogo horizontal com saberes
não-eurocêntricos, mantidos fora dos limites da ciência e da academia – ou tomando-os como
ponto de confirmação de hipóteses pré-existentes como o faz La Porta15, mesmo depois de Lévi-
Feita essa distinção fundamental, cabe retomar o propósito central desse texto e ir em
busca de algo menos visível que o método terapêutico em si. Vimos como a construção do edifício
epistemológico da ciência moderna é impulsionado por uma reivindicação de suposto saber que
opera sempre em oposição ao “outro da modernidade”, havendo nesse processo um recalque de
elementos míticos – ou que não dizem respeito ao conhecimento em si - para sustentação do que
é considerado conhecimento verdadeiro e o que não é.
Nesse trajeto, verifica-se a secularização do discurso religioso cristão e sua estrutura
epistemológica como forma de estabelecer um olhar sobre o mundo que atenda a um projeto
político-ideológico, agora sob parâmetros estabelecidos pela racionalidade iluminada pelo capital.
O que temos, então, pode ser lido como um emparelhamento da discursividade religiosa para com
todo um aparato colonizatório e capitalista. O pilar racial, por sua vez, aqui é um eixo cognitivo
16 Correspondente à ideia de que o indivíduo pode salvar a si mesmo por esforço e mérito próprio. Tal ideia
salvacionista é própria das religiões que rejeitam o mundo concreto a partir do misticismo e do ascetismo ativo, ou
seja, do controle sobre o corpo e o espírito - instrumento de Deus - que permite ao fiel significar a sua experiência
concreta em termos de uma promessa, esta sim de gozo e usufruto.
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76A
para as massas17; e a alquimia monetária18.
Mas para abordar uma tradição assim herdada, Freud, em Moisés e o Monoteísmo, introduz
um elemento dramático, biológico, como base dessa transmissão. Quer dizer, o herdado pelas
gerações mais novas o foi com base no “desenvolvimento biológico de caracteres adquiridos” (LO
BIANCO, 2007, p. 96), não necessariamente comunicados pelos mais velhos, não necessariamente
vivenciados pelo próprio indivíduo, mas trazidos pelo nascimento – uma “herança arcaica” feita de
“fragmentos de origem filogenética” (LO BIANCO, 2007, p. 94/p.103).
A passagem geracional e filogenética de um trauma - expresso no paralelo entre Totem em
Tabu e Moisés e o Monoteísmo, ou seja, o assassinato do pai da horda primitiva e o assassinato
de Moisés – também diz respeito a um desamparo constitutivo, sendo este também objeto da
Psicanálise, como já dito. Deparamo-nos aqui com um dos pontos mais nítidos da secularização
judaica, e sua tradição herdada, dentro da Psicanálise.
Se existe uma hierarquização evolutiva das religiões que toma o judaísmo como a sua
expressão mais alta, e se o judaísmo encontra pontes com a Psicanálise em sua busca ética e
racional por lidar com o desamparo primitivo e civilizacional, então, seguindo com o paralelo, quais
as psicologias correspondentes à tradição comunicada? Sim, parecem ser aquelas que buscam
repor o objeto perdido de forma mais imediata possível. Sobre as psicologias correspondentes às
chamadas religiões pagãs, aquelas de mais baixo nível na escala freudiana, bem, temos elementos
do olhar desse autor em obras como Totem e Tabu. Quais seriam as permanências dessa visão
hierarquizante no campo psicanalítico atual?
É certo que a hipótese filogenética está presente na obra freudiana em muitos momentos e
até mesmo de forma estrutural, quando de sua argumentação de que o desenvolvimento libidinal
geral dos indivíduos recapitula uma sequência de estágios da história da civilização. A questão é
que, aqui, isso aparece latente em uma hierarquização religiosa e de abordagens psicológicas sobre
o desamparo subjetivo de sujeitos em um mesmo tempo histórico, indissociáveis de elementos
territoriais, culturais e étnico-raciais.
Talvez nos sirva aqui uma sociogênese, como proposto por Franz Fanon (1952 [2008]),
sobre a questão racial implícita nessa escala evolutiva religiosa e psicológica atravessadas pela
filogenética na base da epistemologia psicanalítica. É possível que esse aprofundamento nos
revele o quanto o projeto científico freudiano herda elementos míticos em sua base; o quanto
o esforço pelo lugar de saber socialmente legítimo fez com que a Psicanálise precisasse aderir a
pressupostos epistemológicos hegemônicos de um discurso científico racista estruturados a partir
da contraposição ao “outro da modernidade”.
17 Relacionado à escalada de pastores enquanto proprietários de grandes meios de comunicação. O autor lança
o conceito de “homem-massa”, em uma correspondência religiosa ao “homem médio”, comum, que reproduz
em si um genérico. Enquanto peça de uma multidão ele é um homem-em-si, mas pelo seu esforço e o mérito
correspondente – operado pela ética da Teologia da Prosperidade – pode chegar a ser um homem-para-si,
tornando-se um sujeito diferenciado da massa amorfa de indivíduos da qual faz parte.
18 Quando essa moeda deixa de servir ao propósito inicial (comércio material) e passa a atuar enquanto moeda
divinatória, de salvação e de graça, o que leva o fiel a ofertá-la como sinal de fé. Fé esta não relativa à crença de
que o pastor ou a Igreja vão fazer um uso “público”, no sentido de reverter aos fieis o dinheiro ou prestar contas
do seu uso. Na realidade, tal prestação de contas retiraria a capacidade mágico-sacrificial do sacrifício – doação de
dinheiro – desarticulando a mitologia da salvação do homem-massa.
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77A
a Psicanálise possa assentar esse giro em sua transformação e fazer jus ao contemporâneo a serviço
da necessária luta antirracista.
No seio da Psicanálise brasileira, defendemos que o silêncio ou a precariedade de fala dos
subalternizados e dos desamparados faz parte do mesmo processo de surdez ou precariedade da
escuta do analista e da sua formação, tendo como intenção perceber que a recusa operada por uma
racionalidade científica moderna a outras gramáticas e pontos de vistas para nomear e manejar o
sofrimento psíquico de parcelas significativas da população brasileira ocorre como parte do mesmo
fenômeno de hierarquização dos sujeitos no seio de um sistema-mundo capitalista estruturado
pela divisão racial do trabalho, absolutamente vigente.
Trata-se de entender o racismo epistêmico da Psicanálise, aqui relacionada à secularização
do discurso religioso em seu interior, como um entrave à práxis de uma ética teórica e clinicamente
comprometida com o enfrentamento dos condicionantes socio-históricos postos pelo capitalismo,
e pelo racismo em suas raízes, especialmente em solo brasileiro.
Conclusão
No momento em que a Psicanálise brasileira passa a ser marcada por grupos que pretendem
operar a sua democratização, a dialetização de elementos de sua colonialidade eurocêntrica
encontra obrigatoriamente uma longa e diversa história de violências étnico-raciais recalcadas do
projeto de identidade nacional, invisibilizadas em grande parte das formações teórico-clínicas. Se
pretendemos considerar os determinantes sócio-históricos de produção do sofrimento psíquico,
será preciso lidar com a neurose que opera esse recalque, começando pela sintomática resistência,
ainda hoje, do campo psicanalítico em se abrir para diálogos mais horizontais com outras
epistemologias e saberes – de matriz africana e indígena – que lidam há séculos com o sofrimento
psíquico em outros termos, radicalmente diversos entre si e da Psicanálise.
Essa nos parece ser hoje uma tarefa fundamental a ser assumida como central na formação
de psicanalistas críticos no Brasil, que buscam escutar para além dos consultórios particulares.
A democratização do acesso à escuta psicanalítica demanda a democratização epistêmica da
formação do psicanalista.
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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.
Aceito em 08 de fevereiro de 2023.
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80A
A METAPSICOLOGIA DA PULSÃO DE APODERAMENTO:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA
Antonio Trevisan 1
Denise Sousa Lira Bertoche 2
Resumo: Parte-se do princípio que a metapsicologia ainda constitui um dos campos mais obscuros da epistemologia
psicanalítica. Diante disto, esta proposta resgata a pulsão de apoderamento, apontando suas expressões num bloco
de ações psíquicas, nomeadas aqui de Metapsicologia da pulsão de apoderamento, sendo primeiro, o apoderar-se
do mundo para constituir-se, e depois a dominação, ambas operacionalizadas pelo amor e ódio. Para tal empreitada
retorna-se à obra de Freud, atravessando os impasses intérpretes-tradutórios referente ao termo que origina a tradução,
o Bemächtigungstrieb, atentando-se às observações de Piera Aulagnier. Como resultado, o estudo fornece uma posição
teórica para releitura das forças originárias articuladas pelo amor e ódio, vias pelas quais tornam-se evidentes os aspectos
da potência da pulsão de apoderamento.
Abstract: It is assumed that metapsychology still constitutes one of the most obscure fields of psychoanalytic epistemology.
In view of this, this proposal rescues the drive for empowerment, pointing out its expressions in a block of psychic actions,
named here Metapsychology of the drive for empowerment, being first, taking over the world to constitute itself, and
then domination, both operationalized by the love and hate. For such an undertaking, we return to Freud’s work, crossing
the interpreter-translator impasses regarding the term that originates the translation, the Bemächtigungstrieb, paying
attention to Piera Aulagnier’s observations. As a result, the study provides a theoretical position for re-reading the original
forces articulated by love and hate, ways in which aspects of the power of the drive to seize become evident.
1 Doutorando em Psicologia Clínica e Cultura (pela UnB). Mestre em Psicologia (pela UFMS). Graduado em Psicologia (pela Unigran – Centro
Universitário da Grande Dourados – MS).Lattes: http://lattes.cnpq.br/8066157849991456. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8251-0183.
E-mail: netogarcia8@mail.com
2 Mestranda em Psicanálise, Saúde e Sociedade (pela UVA - Universidade Veiga de Almeida – RJ). Graduada em Psicologia (pela Unigran Capital –
Centro Universitário de Campo Grande – MS). Especialista em Psicanálise e Saúde Mental (pelo SEPAI- Instituto São Zacharias-RJ). Lattes: http://
lattes.cnpq.br/5262583447821450. ORCID https://orcid.org/0000-0001-6918-6075. E-mail: deniselirabertoche@gmail.com
Introdução
Partimos do campo freudiano conhecido como o bloco da Metapsicologia para revisitar
a especificidade do conceito de pulsão de apoderamento. Entretanto, esclarecemos que a
Metapsicologia é abordada aqui, num conjunto de observações conceituais a respeito do aparelho
psíquico, que Freud esboçou desde 1895 formalizando em 1915, e que versam sobre as pulsões, o
funcionamento do prazer, dentre outros aspectos.
Em nosso recorte, consideramos que a maior complexidade da Metapsicologia se encontra
nas definições de Eros e de pulsão de morte, principalmente no modo como elas se relacionam no
inconsciente. Entendemos que este eixo continua apresentando inquietações, principalmente ao
tratar-se desta última.
Cabe marcar que a pulsão de morte nos interessa inicialmente, para esclarecimentos
quanto ao impasse conceitual do termo, Bemächtigungstrieb, que origina a tradução de pulsão
de apoderamento. Sobretudo, porque houveram interpretações teóricas, como Cardoso (2002),
Caropreso (2013), Efken (2017), que a compreendem numa espécie de versão da pulsão de morte,
isto é, estaria em semelhança, posição da qual, assim como Trevisan, Vivès e Maesso (2022a) não
compartilhamos
A divergência conceitual e tradutória encontra-se presente na escassez de teorização a
respeito, o que nos levou a formular esta revisão, numa tentativa de fornecer mais esclarecimentos.
Entretanto, sublinhamos que não foi sem razão, que o apoderamento foi ligado à pulsão de morte,
já que foi abordado por Freud (1905/2016), como não sexual, deixando margem para deslocá-la ao
vetor de Thanatos.
Por tais razões, retornamos ao pensamento de Freud, num exame mais cuidadoso, utilizando
as contribuições da psicanalista Piera Aulagnier, pois entendemos que, a partir de seu postulado,
é possível aprofundar as investigações sobre a pulsão de apoderamento, recorrendo às noções
do amor e do ódio. Em consequência desta retomada, firmamos uma posição conceitual, distinta
do modo como a questão foi observada até o momento, cujo caráter exclusivo é a dominação,
incluindo em seu uso, a forma de pulsão de dominação.
Partindo deste ponto, apresentamos a Metapsicologia da pulsão de apoderamento: a qual
consiste em ações das quais participam a apropriação/rejeição, a incorporação, a dominação, cujas
operações são realizadas pela via do amor e do ódio, criando condições para o advento do sujeito.
Nesta perspectiva, evidenciamos o quanto o trabalho do apoderar-se distingue-se da noção da
pulsão de morte, da qual esta última, segundo Freud (1920/2020), seria uma força empenhada
A abordagem construída por Aulagnier, constitui uma extensão das concepções freudiana,
servindo de apoio para a Metapsicologia, neste caso, do apoderar-se. Além destes postulados, tal
posição reafirma a noção deixada por Freud (1905/2016) quanto ao ódio, e isso nos interessa à
medida que demonstra a atividade da pulsão em questão.
O trabalho de Aulagnier (1975/1979) permite visualizar os processos que Freud não
esmiuçou, dada à complexidade dos conceitos que desenvolvera. Embora os aspectos da
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ambivalência pulsional, conjugados nas ações em construir e desconstruir, proteger e agredir, entre
produzir a vida e a aniquilá-la, não tenham sido tão enfatizadas, encontramos por meio deles a
expressão mais clara da força pulsional operatória na constituição do psiquismo.
Mais precisamente, localizamos tanto para Freud quanto para Aulagnier, o ódio como
primícia na vida psíquica, ou seja, no nascimento do sujeito psíquico. Mas porquê? Primeiro,
porque neste tempo da vida ainda caótica e informe, o corpo biológico experimenta as oscilações
do mundo e de sua instabilidade, o que produz a sensação de desprazer, ao elevar os níveis de
excitabilidade interna.
Ainda num exame mais detalhado do processo de metabolização, sublinhamos que “o
trabalho solicitado à psique consistirá em metabolizar um elemento de informação que vem de um
espaço que lhe é heterogêneo, em um material homogêneo” Aulagnier (1975/1979, p. 42). Com
agudeza na definição do ódio temos, então, a seguinte lógica: o ódio é uma forma de preservar o
material homogêneo, ou seja, com isso exercer domínio e estabilidade, incluindo a característica de
erradicar qualquer apresentação que faça com que ele tenha que buscar outra coisa.
Sobre estas afirmações situamos o ódio radical, o desejo e a pulsão de morte. O ódio, então,
se revelaria ao apego de manter-se na condição apaziguada, longe das excitações e riscos que os
objetos, por sua fissura, apontam ao movimento de ter que desejar. O desejo de não desejo é a
máxima freudiana nomeada por Aulagnier, (1975/1979) que evidencia a proposta de Freud sobre a
tendência da vida pulsional, isto é, o desejo de retorno ao inorgânico, lugar desertificado de objeto
e, portanto, sem representantes de desejo. Nesta tarefa pode até surgir a dimensão secundária do
ódio, em sua tendência destrutiva, mas motivado por seus fins, ou seja, extinguir o desejo.
As ordenações que Aulagnier propõe sobre o funcionamento do ódio e do amor, operando no
originário, revelam o trabalho do apoderamento. O avanço da autora permite, não apenas visualizar
a ação da incorporação, como meio de apoderar-se, mas também os aspectos da dominação.
Freud introduz o amor e ódio elucidando a dinâmica das oposições pulsionais, servindo para
investigar sua montagem, afirmando que “a transformação ocorre por meio de um deslocamento
reativo do investimento, quando se subtrai energia do impulso erótico e se introduz energia no
impulso hostil” (FREUD, 1923/2011, p. 54). Mas porque haveria um câmbio nesse investimento? O
que organiza a troca de adição ou subtração dos impulsos? Algo da forma de existir coloca-se em
jogo.
Para mais esclarecimentos quanto a essa questão Freud, recorreu aos estudos de A.
Weisman o qual afirmou que a substância viva possui uma metade mortal e uma imortal. Na
interpretação freudiana, a mortal refere-se ao corpo, ou seja, a soma, sujeita à morte natural, mas
Assim como Freud, Aulagnier também utilizou como guia na explanação da constituição
da psique, quando se refere ao empréstimo somático e outras expressões similares, ou mesmo a
noção de metabolização. Freud (1920/2020) ao deparar-se com a suposta oposição das pulsões,
ou seja, com suas metas contraditórias, destacou sua ação na fisiologia. Recorrendo à teoria de
E. Hering, para retratar os processos construtivos, anabólicos, e os destrutivos, catabólicos, numa
ação demonstrativa das pulsões, de vida e de morte, respectivamente. Freud (1923/2011) fez
menção do campo orgânico, onde atuam as forças psíquicas, sobretudo, enfatizando o próprio
órgão. Atentemos para a colocação de Freud:
A cada uma dessas duas espécies de instinto estaria associado
um processo fisiológico especial (assimilação e desassimilação
anabolismo e catabolismo, em cada fragmento da substância
viva estariam as duas, mas em mistura desigual, de modo que
uma substância poderia assumir a principal representação de
Eros. Ainda não podemos conceber de que modo os instintos
das duas espécies se ligam, se misturam, amalgam uns com os
outros, mas que isto sucede regularmente e em larga medida
é uma suposição inescapável de nosso contexto (FREUD
1923/2011, p. 53).
Compreendendo a priori, que o ódio está posto a serviço da conservação, e num segundo
momento que ele poderá funcionar de outro modo, mais avizinhado à pulsão de morte, a qual dará
diversos sinais sob o nome de desejo de destruição, retorno ao inorgânico, a extinção da vida. Para
aprofundar a ação deste ódio radical, operando a favor da vida, Aulagnier, afirma que:
Daí resulta originário, a atividade psíquica forjará duas
representações antinômicas da relação entre o representante
e o representado, cada uma conforme a realização de uma das
metas do desejo. Uma primeira, na qual a realização do desejo
comporta um estado de reunificação entre o representante e
o objeto representado e será esta união que aparecerá como
causa de prazer vivido. Uma segunda, a qual a meta do desejo
será o desaparecimento de todo objeto que possa suscitá-lo,
o que faz com que toda a representação do objeto aparece
como causa de desprazer do representante (AULAGNIER,
1975/1979, p. 40).
Para além da revisão teórica, incluímos as incidências desses pressupostos na práxis analítica,
e que seriam fragmentos das origens que constituíram o sujeito, apresentando diretamente sua
montagem pulsional para existir na relação com o outro. Na prática clínica do tratamento das
neuroses, observamos os fenômenos do amor, principalmente naquele que se configura como
paixão.
Nesta modalidade, a posição do sujeito amante é colocar o outro no lugar do objeto, para se
fazer-ser, isto é, apassivando e apaziguando suas exigências de satisfação, realizando na tendência
de incorporar, devorar, controlar o outro, na qual constitui expressão da pulsão do apoderamento,
em sua vértice adoecido, na condição do excesso (FERREIRA, 2004). Nisto está a face da paixão
que faz surgir o ódio como uma ligação, às avessas, quando o controle ou seu poder não se efetiva
sobre o outro, isto é, não pode aprendê-lo.
Por tais razões é frequente nos consultórios psicanalíticos as queixas devastadoras quanto
aos desencontros amorosos, e as relações afetivas, cuja tragédia se desenha nas repetições, nas
violentas insistências, e na impotência do Eu, implicando numa degradação, ao preço devastações
imensuráveis, caso permaneça a impossibilidade ou falha nessa tarefa.
Torna-se possível, interpretar nesses casos amorosos, caracterizados por investimentos
libidinais extremistas, a evidência do desejo de posse do outro, como uma reativação de se-fazer
sujeito, tomando o outro para si, que é uma expressão rudimentar do apoderar-se, noticiando sua
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89A
ação pela via amorosa.
No entanto, sublinhamos que tal dimensão é predominantemente multifacetada pelo
imaginário, onde se pratica a crença da existência do objeto inalcançável, lógica aproximativa da
alucinação, uma vez que, cria a realidade psíquica produzindo uma volta a si. Nesta perspectiva,
o que se almeja é tornar-se sujeito acoplando a si o ser objetalizado do Outro, assim o neurótico
determinado em sua busca de satisfação encontra via de extensão de seu domínio.
Nossa hipótese para a metapsicologia da pulsão de apoderamento, verifica-se naquilo que
Freud (1913/2010) anunciava já na característica herdeira da experiência oral. O autor metaforizou
no mito do canibalismo, uma condição para que o sujeito possa vincular-se ao outro, onde é
necessário tomar para si partes dele, ou seja, este é o trabalho da pulsão.
Nossa formulação sobre amor-paixão não visa apontar somente a conectividade do sujeito
com o mundo, por sua posse ou incorporação do objeto, e parte do outro. Neste dispositivo teórico,
o Eu assume o protagonismo e passa a nutrir-se desse objeto a fim de, como tentáculos, evitar
qualquer tentativa de perder o controle como se pode ver, o Eu fortalecido evita encontrar o espaço
do vazio, revelando as direções de Eros e Thanatos, na qual a perda imaginária, deixa o sujeito
desbussolado em sua existência.
A guisa de conclusão
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92A
PSICANÁLISE NOS ESPAÇOS PÚBLICOS: ESCUTA E TRANSMISSÃO
PSICANALÍTICA NA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
Christiane Carrijo 1
Resumo: O trabalho apresentado é fruto de dois projetos de extensão universitária executados por coordenadora e por
discentes para populações vulneráveis, crianças, adolescentes, usuários de serviços públicos do Centro de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS) e do Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi). O objetivo é discutir
alguns dos vértices teóricos, metodológicos e considerações parciais advindas da execução de ambos, de maneira a propor
bases para uma psicanálise comprometida com espaços públicos e com a escuta das pessoas vulneráveis e invisibilizadas.
Os resultados apontam como a psicanálise dos espaços públicos, feita na práxis universitária, auxilia na construção de
dispositivos potentes para uma clínica ampliada e na psicanálise como operador político, levando em consideração
fenômenos complexos da realidade social. Por propiciar o acolhimento e a circulação livre das palavras e das brincadeiras,
marca o lugar do outro como testemunha das histórias narradas.
Palavras-chave: Psicanálise. Espaços Públicos. Clínica Ampliada. Extensão Universitária. Transmissão Psicanalítica.
Abstract: The work presented is the result of two university extension projects carried out by the coordinator and students
for vulnerable populations, children, adolescents, users of public services at the Specialized Reference Center for Social
Assistance (CREAS) and the Psychosocial Care Center for Children and Adolescents (CAPSi ). The goal is to discuss some
of the theoretical and methodological vertices and partial considerations arising from the execution of both in order to
propose bases for a psychoanalysis committed to public spaces and to listening to vulnerable and invisible people. The
results show how the psychoanalysis of public spaces, carried out in university praxis, helps in the construction of powerful
devices for an expanded clinic and in psychoanalysis as a political operator, taking into account complex phenomena of
social reality. By providing hospitality and free circulation of words and games, it marks the place of the other as a witness
to the narrated stories.
Keywords: Psychoanalysis. Public spaces. Extended Clinic. University Extension. Psychoanalytic Transmission.
1 Professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências - UNESP/Bauru-SP. Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São
Carlos-UFSCar/SP. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP. Membro do NEEPPSICA - Núcleo de
Estudos, Extensão e Pesquisa em Psicanálise da FC/UNESP. Membro do Observatório de Educação em Direitos Humanos - OEDH-FAAC/UNESP.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8543191018207911. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1486-7006. E-mail: christiane.carrijo@unesp.br
Introdução
Metodologia
As bases teóricas e metodológicas para pensar e fazer uma Psicanálise em Extensão ou,
como diria Françoise Dolto, um trabalho de “psicanalistas na cidade” (DOLTO, 1977/2019), são
encontradas em artigos freudianos. É possível assumir essa escuta e identificar as manifestações
clínicas das crianças sem qualificar esse trabalho como sendo exclusivamente psicoterapêutico. Mas
fica o questionamento: como caracterizar as intervenções de psicanalistas em espaços públicos e
quais os alcances possíveis dessa atuação?
Broide (2019) aponta que a clínica não é restrita ao consultório particular e defende o
trabalho psicanalítico exercitado nas situações sociais críticas: atendimento de população que vive
nas ruas, prisões, nos morros e as vítimas de violências, por exemplo. Ele defende uma experiência
psicanalítica cuja intervenção solicita a colocação do próprio corpo do analista no trabalho,
pois exige a escuta do outro no território da cidade, onde não existe o controle do dispositivo
analítico como o classicamente realizado no consultório. Ele nos auxilia com a compreensão de
uma transferência, despertada nesses dispositivos, que nos remete ao desamparo e a fragilidade.
Também diríamos que esta é uma transferência que nos toca, comove e que pode provocar uma
sensação de impotência.
Uma prática de clínica ampliada para espaços públicos, e com compromisso com a
realidade, leva em consideração que o psicanalista precisa voltar sua escuta para as questões
mais urgentes do sofrimento mental da população brasileira. Dessa forma, discussões teóricas e
clínicas, empreendidas em eventos científicos, que abordam contextos e realidades muito diversas
da nacional, e com intenção de aprofundar ou descrever conceitos psicanalíticos, na verdade
produzem efeitos de 1) nos deixar receptivos à produção psicanalítica, muitas vezes europeia; e 2)
nos afastar, em parte, de nossas raízes e de uma produção própria e original da psicanálise. Esse
cenário pode ser observado se considerarmos o período dos anos 1980 até meados de 2014, no
qual se tornou comum, nos congressos da área, muitas conferências e comunicações orais que
abordavam o holocausto vivido na Segunda Guerra Mundial. A população vítima de genocídio fazia
parte das falas dos psicanalistas, a grande maioria brasileiros, e era citada para descrever conceitos
teóricos ou clínicos, como trauma; neuroses traumáticas; clínica do testemunho; pulsão de morte;
e compulsão à repetição, por exemplo.
Podemos pensar a ampliação da escuta e do olhar para a clínica psicanalítica com referenciais
brasileiros, ou da América do Sul, como um processo com contradições, no qual as questões
A partir do livro Améfrica ladina, de MD Magno (MACHADO DIAS, 1980), Lélia Gonzalez
(2018) formulou a ideia de uma América Africana ou Amefricana, baseada na concepção de que
a especificidade do Brasil era a participação africana na sua formação cultural e social; e não na
reiterada evocação a uma latinidade. A autora proporá a assimilação da cultura africana a partir da
figura da mãe preta, que realizou a função materna para as crianças brasileiras e tornou possível a
assimilação da língua, crenças e costumes, dizendo que aqui no Brasil se fala é o pretuguês. Então,
se pensamos em português, brasileiro e pretuguês, qual a nossa clínica?
Escutar populações vulneráveis e descolonizar a psicanálise se tornou uma realidade cada
vez mais presente, tanto nos territórios públicos e privados quanto nos espaços teóricos e clínicos.
Passamos a ter experiências em vários projetos de extensão universitária, com professores e
discentes exercitando uma psicanálise extramuros, diretamente em espaços públicos, e também
profissionais que passaram a exercer consultórios de rua com escuta psicanalítica gratuitamente.
As experiências nestes dispositivos psicanalíticos, com escuta psicanalítica e a práxis dos
psicanalistas na cidade, e que conta com a colaboração de professoras e professores, de discentes
de graduação e pós-graduação e profissionais, nos fornecem, também, a descrição de suas vivências
e das bases teóricas e clínicas da psicanálise nos espaços públicos.
Assim, descrevendo alguns exemplos, temos a Extensão da Residência Integrada em Saúde,
Os projetos de Extensão desenvolvidos tanto para o CREAS quanto para o CAPS Infantil,
tiveram suas bases descritas, até o momento, com inspiração na fundamentação teórica e clínica
da Psicanálise de Françoise Dolto, especificamente no modelo da Maison Verte, da França (THIS,
2007), que é um lugar de brincar, conversar e contar histórias. Outros dispositivos com a mesma
inspiração foram desenvolvidos no Brasil, como a Casa da Árvore (MILMAN; BEZERRA JÚNIOR,
2008), no Rio de Janeiro, e a Casa dos Cata-Ventos (GAGEIRO et al., 2019), em Porto Alegre – ambos
também alicerçados em buscar soluções para o atendimento à infância vulnerabilizada.
Esses espaços partem da compreensão que o brincar é por si só terapêutico, pois por
intermédio das brincadeiras, a criança relaciona o seu ambiente social e cultural com seu mundo
interno, o que a leva a desenvolver sua criatividade; ressignificar traumas; desenvolver suas funções
simbólicas; e elaborar um projeto de vida. Nos Projetos de Extensão, focados na Psicanálise de
territórios da cidade – fora dos consultórios e dialogando com outros campos do conhecimento –
são construídos dispositivos de escuta psicanalítica nos espaços públicos.
Esse espaço possível do brincar, conversar, contar histórias ou do ateliê de contação de
histórias, teve como cerne propiciar aos pacientes ferramentas para a construção de recursos de
simbolização e elaboração das vivências traumáticas, ou mesmo no campo de fala e de brincadeiras
– sempre com o acolhimento e testemunho do outro. Jacintho, Kupfer e Vanier (2019) comentam
como o trabalho de desenvolvimento da Casa Verde auxiliou na construção de outros dispositivos
de acolhimento psicossocial na França. Eles ressaltam, entretanto, o quanto a marca de Dolto se
fez a partir de uma posição específica de escutar o que faz insistência e sem a proteção de um
101
01A
Cabe a eles falar e opinar, já que estão interagindo em um
espaço social. Trata-se de um falar modesto, mas eficaz, que
atua justamente no ponto de surdez dos pais em relação a
seus filhos, e que se transforma, para a criança, num meio
de encontrar um lugar entre os humanos, um lugar próprio,
inspirado nos pais, mas ao mesmo tempo distinto do deles.
[...] cada profissional fala de si, de sua opinião, com um lugar
e uma palavra relativizados pela presença de tantos outros
que ali trabalham. A fala que circula não é definitiva nem
aprisionadora [...] (MILMAN, 2008, p. 4-5).
Dessa maneira, como recorte ilustrativo da execução de um dos nossos projetos de extensão,
descreveremos brevemente o trabalho realizado no CAPSi, onde foi formado um grupo de cinco
crianças entre oito e 11 anos de idade. Eram quatro meninos e uma menina, que participaram
de um grupo de contação de histórias com escuta psicanalítica; foram sete encontros, de duas
horas cada, realizados na sala do CAPSi; e mais duas reuniões com a equipe multidisciplinar. A
ação foi organizada e desenvolvida pela professora/coordenadora, duas estudantes de graduação
em Psicologia, um mestrando e uma profissional/psicóloga. A organização das atividades e as
supervisões semanais para discussão dos trabalhos foram feitas nas dependências da Clínica Escola
da Universidade (CPA/UNESP), e algumas vezes ocorreram nas dependências do próprio Centro.
Essa clínica ampliada possibilitou a compreensão de alguns importantes processos psíquicos
e dos sofrimentos mentais da população atendida. Ela também fomentou ideias e considerações
para a escuta e práxis de clínica ampliada no CAPSi, as quais compartilhamos com a seguinte
síntese: 1) A contação de histórias como argumento para o encontro com o outro e o Outro; o
ateliê permite lidar com a presença/ausência do outro; 2) A contação de histórias como dispositivo
desenvolvido em CAPSi precisa ter um enredo com início e fim no mesmo dia – histórias longas
devem ser evitadas; 3) Crianças com profundos sofrimentos psíquicos precisam de margens/bordas
materializadas como regras mínimas e algumas destas construídas na execução do dispositivo,
como, por exemplo, as que foram feitas pelas crianças e extensionistas do projeto: escrever o nome
e sobrenome; se alguém bater/agredir o outro ou quebrar coisas, se interrompe e finaliza o ateliê
de contos daquele dia; não falar palavrão; não pegar o que é do outro sem permissão; não destruir o
que é do outro; 4) as margens/bordas materializadas em regras e ação produzem traços de inscrição
no psíquico, realizando uma contenção da agressividade; 5) para o trabalho ser psicoterapêutico é
necessário a liberdade lúdica e discursiva com associações livres, assim, qualquer proposta fechada
de trabalho que obrigue as crianças a uma atividade forçada não permite a escuta psicanalítica e
Considerações Finais
Diante das reflexões sobre uma clínica com escuta psicanalítica nos espaços públicos
exercitada na Extensão Universitária, continua a pergunta: como a Psicanálise, em interface com a
Saúde Mental e a Assistência Social e realizada em territórios de políticas públicas (CAPSi e CREAS),
pode ter propostas de atenção à infância e juventude e também ser um dispositivo criativo e efetivo
102
02A
do ponto de vista clínico e político?
Percebemos o limite da nossa ação, em virtude da complexidade dos fenômenos da
realidade social vividos pelas crianças e suas famílias (sociais, econômicos, políticos e culturais), que
são problemas de ordem estrutural e que precisam encontrar respostas na ação efetiva do Estado
em atender direitos constitucionais indispensáveis para a garantia da igualdade e da dignidade
humana.
Um dos riscos da psicanálise em extensão, e no exercício de uma clínica ampliada, é
de psicologizar ou, como colocou a equipe da Casa dos Cata-ventos “de se incorporar a um
discurso competente, técnico, questões e problemas que são de ordem existencial, política ou
socioeconômica” (GAGEIRO et al., 2015).
Pensamos que a aposta é propiciar um espaço de acolhimento para a circulação das palavras
e brincadeiras, tendo o outro como testemunho que valida à história e o sentir da criança/sujeito.
Se existe um efeito clínico e político na ação, o resultado aparece apenas a posteriori. Esta clínica
ampliada e psicanalítica se faz pela tentativa de abrir um campo para a escuta do inconsciente
e para as palavras circularem livremente, e não pelo objetivo estrito de gerar um efeito clínico e
político. O psicanalista, com sua escuta e ação nos espaços públicos, dá visibilidade a desigualdade
da experiência da violência nas diferentes classes sociais e precisa resgatar para a sua prática a
apropriação do conceito de interseccionalidade (CRENSHAW, 2002). Ou seja, todos nós somos
afetados pelas experiências de forma desigual e de acordo com nossa classe, gênero, grupo étnico,
orientação sexual, religião, idade e outros eixos de identidade que interagem em níveis múltiplos e
muitas vezes simultâneos. A interseccionalidade que:
[...] trata especificamente da forma pela qual o racismo,
o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam
as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e
outras. [...] trata da forma como ações e políticas específicas
geram opressões que fluem ao longo de tais eixos [...]
(CRENSHAW, 2002, p. 177).
A partir de uma reflexão sobre as propostas de Miriam Debieux Rosa (2016) e de Jorge
Broide (2019), pensamos que a clínica psicanalítica ampliada mantém vínculo com o desamparo
discursivo desses sujeitos invisibilizados – que são seu público –, e se depara cotidianamente com
a problemática do sujeito excluído do modelo neoliberal. Consideramos que esta é uma clínica
marcada pela violência da exclusão e por uma transferência impactada pela fragilidade e dificuldade
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05A
O CASO JONATAN*A PRÁTICA DIAGNÓSTICA
E O INVESTIMENTO PÚBLICO NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL
Sonia Alberti 1
Gilliane Rodrigues 2
Adriana Bastos 3
Resumo: Concomitante a articularmos assistência no hospital, a importância de debater os diagnósticos e a formação acadêmica
com a clínica, tecemos algumas considerações sobre dois temas que se revelam extremamente importantes no que tange à
condução do tratamento de crianças e adolescentes. Aparentemente dizendo respeito a problemáticas diversas, os temas na
realidade convergem no que tange à direção do tratamento em saúde mental quando trabalhados pela psicanálise: de um lado,
as formas discursivas atuais e suas consequências para o estabelecimento do diagnóstico e do tratamento; de outro, o incentivo
financeiro aos equipamentos de saúde mental que depende dos discursos que lastreiam as políticas públicas voltadas para a
saúde. Fato é que, na última década, todo o campo da saúde mental no país sofreu importantes revertérios. O caso Jonatan, de
que trataremos, nos serve aqui de exemplo da situação que tanto trabalhadores quanto pacientes e seus familiares vêm vivendo.
Abstract: Concomitantly with articulating hospital care, the importance of discussing diagnoses and academic training, we
consider two critical topics concerning conducting the treatment of children and adolescents. Apparently concerning different
issues, the themes actually converge regarding the direction of mental health treatment referred to psychoanalysis: on the one
hand, the current discursive forms and their consequences for the establishment of diagnosis and treatment; on the other hand,
the financial incentive for mental health equipment, which depends on the discourses that support public policies aimed at
health. The Jonatan case will serve as a guiding thread. As a matter of fact, in the last decade, the entire field of mental health in
the country has suffered important reversals. The case Jonatan that we will deal with here serves as an example of the situation
that both mental health workers as well as patients and their families have been experiencing.
*Nome fictício.
1 Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pesquisadora 1B do CNPq. Membro do GT “Psicanálise, política e clínica” da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia. Membro do Colegiado do Programa de Pós-graduação em Psicanálise (Mestrado
e Doutorado) e do Colegiado da Residência em Psicologia Clínica Institucional, ambos da UERJ. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano (A.M.E.). Autora e organizadora de vários livros e de artigos. Lattes: https://lattes.cnpq.br/4603633364355463. ORCID:https://
orcid.org/0000-0002-5120-5247
2 Psicóloga formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e residente (R1) de psicologia no Programa de Residência Multiprofissional em
Oncologia do Hospital Central do Exército. Lattes:http://lattes.cnpq.br/9348082164855955. ORCID: https://orcid.org/0009-0002-4125-1490
3 Pós-doutoranda em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pelo do Programa de Pós-graduação em Psicanálise
da UERJ. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (UERJ). Especialista em Psicologia Clínica Institucional(residência) pela UERJ. Especialista em
Psicologia Clínica pela PUC-RJ. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Atuou como Psicóloga da Secretaria Municipal
de Saúde de São Gonçalo - Saúde Mental - Serviço de atendimento a usuários de álcool e drogas de 2005 à 2018. Psicóloga concursada HUPE/
UERJ, na Unidade Docente de Assistência de Psiquiatria - UDA/HUPE. Professora convidada do Curso de Especialização em Psicologia Hospitalar
HUCFF/UFRJ. Professora convidada na Pós-graduação em Psicanálise: teoria e práxis da Universidade de Vassouras. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/4099603447830937. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3158-2635?lang=pt
Introdução
Jonatan nasceu em 2007 e tem hoje 15 anos de idade. Desde seu segundo ano de vida era
acompanhado pela pediatria do hospital universitário e, a partir de encaminhamentos feitos nela,
foi sendo acompanhado também pelas neuropediatria, fonoaudiologia, genética e psicologia do
ambulatório de pediatria. Aos 5 anos, recebeu um quinto encaminhamento, desta feita para o setor
de psiquiatria. Sempre com a mesma queixa principal – conforme o diagnóstico psiquiátrico, de
transtornos do desenvolvimento –, a qual sustentou uma miríade de diagnósticos, em que nunca
faltaram as referências à agitação e à agressividade.
Na época em que foi encaminhado à psiquiatria do hospital, inseria-se nela um Serviço de
Psiquiatria da Infância e Adolescência (SPIA), que acolheu o caso em 2012, para um trabalho em
oficinas, atendimento psiquiátrico, assistência aos familiares em função da construção de um projeto
terapêutico orientado para a particularidade do caso. Durante os quatro anos em que permaneceu
ali atendido, foi possível um trabalho cujos frutos se mostraram inclusive nos relatórios que a
escola encaminhava. Mas em 2017, o SPIA fechou as portas, consequência da insustentabilidade
da situação do Estado.
Tratando-se de um hospital universitário, a troca de médico ocorre com o final do tempo de
residência, por isso cada vez que um novo médico passa a ser o assistente do caso há, na maioria
das vezes, uma nova anamnese. O médico que o atendeu até abril de 2019 terminou a residência,
deixando o retorno marcado para junho de 2019, época em que seria encaminhado a um novo
médico. Algo aconteceu que Jonatan não veio a essa consulta e essa passagem não se fez.
Quando a estagiária de psicologia assumiu o caso em 2019, a única interlocução com o
Setor de Psiquiatria se dava com a psicóloga que ingressara por concurso no hospital, em 2018.
Ocorre que não havia mais staff-médico da psiquiatria com especialização no atendimento à
infância e adolescência, e os atendimentos de crianças e adolescentes ficaram muito prejudicados,
submetidos ao mesmo funcionamento que aquele dos adultos.
Nas reuniões clínicas, a passagem a outro residente ou especializando é feita durante a
supervisão médica. A psicóloga concursada, integrante da equipe multidisciplinar, pôde acompanhar
o momento da passagem para um novo médico residente em 2019, depois que o residente anterior
se formou. Ela esteve presente quando Jonatan veio acompanhado de seu pai. Este, ao mesmo
tempo em que dizia do comportamento agressivo do menino e das demandas da escola, também
1 Conceito psicanalítico introduzido por Jacques Lacan que engloba a alteridade de um sujeito. O Outro o pré-
existe e o determina simbolicamente. No caso da neurose, conforme a teoria, ele é barrado, em se tratando de
psicose, o Outro é sem barra, o que impede ao sujeito de experimentar uma separação dele. No início da vida, o
Outro é encarnado por aqueles que acolhem a criança e lhe transmitem a linguagem, a cultura, o desejo.
109
09A
o que, depois do fechamento do SPIA, não mais ocorreu. Levantamos a hipótese de que isso acabou
por promover uma resistência da própria instituição que, apesar de manter os atendimentos, pelos
motivos já citados acima, o fazia com desconforto, por não haver um profissional especializado
no atendimento a crianças e adolescentes, e a demora em se cumprir a promessa de que eles
chegariam e que o SPIA seria retomado, o que acabou por gerar uma descrença.
Antes da pandemia de Covid-19, os atendimentos com a estagiária em psicologia eram
realizados em uma sala do ambulatório da psiquiatria destinada ao público infanto-juvenil e por isso
contava com diversos jogos, instrumentalizando o trabalho terapêutico com diferentes recursos
do jogar. De fato, foi naquele contexto de jogo, especificamente a partir do futebol de botão,
que Jonatan pôde começar a tratar de questões suas e não das questões de seus pais. Não sem
abandonar a desconfiança, mas abrindo-se um pouco mais para o estabelecimento de um vínculo.
A interação no futebol de botão permitiu a Jonatan identificar suas sessões não mais tanto como
um “os psicólogos querem saber de minha vida”, e sim, um lugar em que dois jogadores disputam
com as mesmas peças um jogo. Talvez o futebol de botão tenha permitido a Jonatan desidentificar
sua terapeuta no lugar de um Outro onisciente e querendo todo saber para si, e isso permitiu com
que trouxesse um discurso próprio, com novidades a cada semana.
Não foi sem percalços que este caminho se deu. A posição desconfiada de Jonatan gerava
atitudes difíceis de contornar. Desde o primeiro atendimento, quando entendia que lhe eram
dirigidas perguntas em demasia, bloqueava a psicóloga no celular. Ao longo de todos os meses
iniciais do atendimento, ainda antes da pandemia, em que sempre foi tomado o cuidado de
confirmar as sessões seguintes por WhatsApp, frequentemente Jonatan bloqueava o celular do
pai através do qual lhe eram enviadas tais mensagens de confirmação. Isso às vezes impedia o
contato por várias semanas. Somente no final do atendimento de Jonatan conosco, quase três anos
depois, ele nos esclareceu: “lembra que já no primeiro atendimento eu te bloqueei? É porque você
perguntava muito, tanto a mim quanto a meu pai”.
Reconhecemos a importância de tais atitudes ao pensar nelas como tentativas de barrar o
Outro. Lacan, ao analisar o caso Schreber escrito por Freud (2010), se utiliza de um termo jurídico,
foraclusão – a tradução que Lacan faz do termo freudiano Verwerfung normalmente traduzido por
rejeição –, para conceituar o mecanismo específico e estrutural da psicose (LACAN, 1955-1956/2008).
Trata-se da não inscrição do Nome-do-Pai no simbólico, cuja inclusão permitiria o surgimento da
falta no campo do Outro, castrando-o, barrando-o. A consequência da ausência dessa operação,
da inscrição da falta no Outro, para o psicótico, é a experimentação de um Outro avassalador,
não barrado, diante do qual o sujeito não tem como se proteger e que se presentifica de diversas
Quisemos iniciar contando-lhes de nosso trabalho com Jonatan, quisemos falar de Jonatan
pois entendemos que dar lugar ao sujeito é nossa função nas instituições em que trabalhamos,
quando estamos sustentados na psicanálise. Ela se contrapõe tanto à falta de investimentos na
sustentação do que promovia a Reforma Psiquiátrica promovida no Brasil nos anos que inauguravam
o século XXI, quanto se opõe ao furor taxionômico com o qual tantas vezes nos deparamos no
exercício de nossa prática. Quisemos iniciar falando de Jonatan e, portanto, não de seus diagnósticos.
Mas não podemos não falar de seus diagnósticos, pois, se queremos testemunhar a importância
de dar lugar ao sujeito que é o paciente que nos é encaminhado no hospital, não podemos evitar
de denunciar essa prática que está longe de acabar, de classificações conformes a modismos e
manuais, que por um lado excluem o sujeito e, por outro, acobertam as falhas tanto na formação
da prática clínica quanto aquelas dos investimentos do Estado a que já nos referimos. Passemos,
pois, aos diagnósticos de Jonatan.
No mesmo ano em que iniciou o tratamento no ambulatório de psiquiatria quando tinha
5 anos, em 2012, a pediatria registrava no prontuário: “Menor com quadro de agressividade
e agitação intensa (CID-F99)”2, ou seja, “Transtorno mental, sem outra especificação (SOE)”,
referência ao texto da OMS (1993, p. 283). Da anamnese de 2013 na Psiquiatria, constam as
hipóteses diagnósticas dadas pela neurologia infantil e pela pediatria, respectivamente “retardo
mental leve com agitação” e F84, “Transtornos invasivos do desenvolvimento”, referência ao texto
da OMS (1993, p. 246). No laudo da psiquiatra daquele mesmo ano, o diagnóstico baseado no
CID-10 é F-70, isto é, “Retardo mental leve” (OMS, 1993, p. 221). Menciona-se ainda que, perante
a palavra “não”, ficava “muito agitado, mordendo e batendo a cabeça na parede” e, talvez por isso,
Se um dos primeiros diagnósticos de Jonatan dado pela pediatria foi Transtorno Mental sem
Especificação, já o diagnóstico dado pela neuropediatria foi Atraso global do desenvolvimento,
seguido pelo de retardo leve e moderado que, na sequência, também foram hipóteses diagnósticas
levantadas pela psiquiatria. Seguiram-se o de Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, e a
hipótese de Transtorno do Desenvolvimento da Fala e da Linguagem também foi aventada. Sempre
marcando o desvio do comportamento e a agitação/agressividade, o que inicialmente aparece
como Transtornos Hipercinéticos e, mais tarde, renomeados com hipótese diagnóstica Transtorno
Opositor Desafiador com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TOD + TDAH). No
DSM-V, todo esse pot-pourri diagnóstico se encontra dentro de um item denominado Transtornos
do Neurodesenvolvimento (APA, 2014, p.75),
um grupo de condições com início no período do
desenvolvimento. Os transtornos tipicamente se manifestam
cedo no desenvolvimento, em geral antes de a criança
ingressar na escola, sendo caracterizados por déficits no
desenvolvimento que acarretam prejuízos no funcionamento
pessoal, social, acadêmico ou profissional. Os déficits de
desenvolvimento variam desde limitações muito específicas
na aprendizagem ou no controle de funções executivas até
prejuízos globais em habilidades sociais ou inteligência.
É frequente a ocorrência de mais de um transtorno do
neurodesenvolvimento; por exemplo, indivíduos com
transtorno do espectro autista frequentemente apresentam
deficiência intelectual (transtorno do desenvolvimento
intelectual), e muitas crianças com transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade (TDAH) apresentam também um
transtorno específico da aprendizagem. No caso de alguns
transtornos, a apresentação clínica inclui sintomas tanto de
condição em que “a criança não está se desenvolvendo e/ou não alcança habilidades de
acordo com a sequência de estágios pré-determinados” (DORNELAS et al. 2015, p. 90). No Brasil,
o termo começou a ser utilizado como diagnóstico para crianças na década de 1980. A partir da
década de 1990, para qualquer criança que manifestasse algum tipo de atraso do desenvolvimento
(APA, 2014, p.85).
A ausência de padronização nos Transtornos do Neurodesenvolvimento gera confusão
entre profissionais da saúde desnorteando principalmente os pais que, no final das contas, não
compreendem o diagnóstico. A falta de consenso tem por consequência o fato de que uma
miríade de termos aparece vinculada ao diagnóstico: atraso do desenvolvimento, atraso do
desenvolvimento neuropsicomotor, retardo mental, retardo do desenvolvimento neuropsicomotor,
atraso do desenvolvimento global. Apesar de não terem o mesmo significado, muitas vezes são
usados de maneira semelhante. O uso indiferenciado do termo pode ser aplicado tanto a uma
criança com atraso leve como a uma criança com grave comprometimento.
Discutindo diferentes trabalhos publicados que contêm referência ao diagnóstico, Dornelas
114
14A
et al. (2015) concluíram sua pouca fiabilidade. Para Petersen, Kube e Palmer (1998), o termo
Developmental delay é usado para identificar crianças com atraso no cumprimento dos marcos
anátomo-fisiológicos do desenvolvimento; para Bataglia e Carey (2003), o mesmo termo é usado para
diagnosticar crianças abaixo de 5 anos de idade com suspeita de retardo mental. Mais abrangente
ainda é o campo proposto por Moeschler e Shevel (2006), ao incluírem como possibilidade
diagnóstica na referida síndrome, nada menos do que a seguinte lista de determinações: causas
hereditárias (razão de os autores julgarem necessária a presença de um geneticista ao exame clínico
e provável encaminhamento do Jonatan para essa clínica quando bem pequeno), dismorfismos,
comprometimentos neurológicos, casos na família e desordens metabólicas que possam ser
verificadas em tomografias e/ou ressonâncias magnéticas do crânio.
É interessante destacar que, nas conclusões às quais chegam Dornelas et al. (2015), foi
notado que internacionalmente há um movimento pela definição padronizada do termo e do
uso dele em situações específicas até os cinco anos de idade. As autoras o apontam como um
movimento necessário para a melhora na comunicação entre profissionais de saúde. No entanto,
em publicações nacionais, sugestões como essas não foram acatadas. Vimos ocorrer o contrário
no caso Jonatan, inserido no que já ficou conhecido como um esperanto psicopatológico (DOUTEL;
KATUNDA, 2017; PEREIRA, 2000; QUINE, 2009, p. 11; SAUVAGNA et al., 2012, p. 25;). A unificação
pragmática apenas enfraquece o conjunto, observa Pereira (2000), e o efeito é que já “não
sabemos mais se o DSM classifica o que é visto ou se ele cria os tipos que ele pretende classificar”
(SAUVAGNAT et al., 2012, p. 25). Se isso já foi bastante observado para com a psiquiatria de uma
forma geral, inclusive interpretado como uma tentativa de “terminar com o mal-entendido próprio
à comunicação” (QUINET, 2009, p. 11), o que acompanhamos hoje na clínica com crianças é ainda
bem mais grave por estigmatizá-las definitivamente no momento em que estão se constituindo
sujeitos.
O caso de Jonatan demonstra, a partir dos diversos diagnósticos recebidos ao longo do
tempo, como o diagnóstico baseado nos manuais psiquiátricos, mais especificamente no DSM e no
CID-10, ao excluírem o sujeito, excluem a própria psicopatologia, que “perde progressivamente seu
papel de fundamento das práticas psiquiátricas, cedendo lugar a um convencionalismo nosográfico
que busca responder aos ideais de uniformização de linguagem nesse campo (PEREIRA, 2000, p.
119).
Quinet (2006, p.11) afirma que a substituição das “doenças próprias da psiquiatria por
transtornos” significa a prevalência da opção de se fazer circular de forma consensual entre
os pares de profissão os fenômenos, em detrimento de “uma clínica em que cada caso seja
Já em 2013 Kamers nos alertava para o fato de que os “encaminhamentos realizados pelas
diversas instâncias que demandam tratamento para a criança consistem em um ciclo repetitivo: a
escola, confrontada com as dificuldades de aprendizagem ou indisciplina da criança, solicita à família
uma intervenção” (p.154). Ao se considerarem insuficientes os recursos da “intervenção parental”
para a contenção do comportamento de seus filhos ou de sua dificuldade de aprendizagem, outras
instâncias são acionadas: “neuropediatra ou psiquiatra infantil, ou aciona o conselho tutelar,
alegando negligência familiar” (idem). É a escola, finalmente, que regula a “inclusão/exclusão da
criança no domínio do saber médico”, bem como a medicação como principal forma de “responder
às demandas sociais realizadas, fundamentalmente, pelas instituições de assistência à infância”
(idem). Por outro lado, e em consequência, a medicalização da infância provoca uma “destituição
dos educadores e a consequente apropriação médica da educação” (KUPFER, 2011, p.143). Em
verdade, segundo a autora, houve mesmo uma apropriação da educação pela própria psicologia
com seu discurso dos transtornos de aprendizagem. Kamers (2013) sugere que o que sustentaria
essa apropriação seria a própria demanda da educação, de que a psicologia venha a “preencher
a lacuna de seu saber a respeito do psiquismo do aluno, podendo assim salvar educadores e pais
do mal-estar inerente ao ato educativo” (p.144). Ao tentar tamponar o mal-estar inerente ao que
há de impossível no educar, conclama-se o arsenal de drogas capaz de fazê-lo calar, mas o que
acaba sendo calado é a própria educação e a criança. Consoante nosso próprio questionamento,
como essa nova forma discursiva direciona o tratamento, “Trata-se de constatações que nos levam
a refletir sobre a função que a medicalização da criança – entendida como dispositivo médico-
disciplinar – vem cumprindo para as instituições de assistência à infância na atualidade” (KAMERS,
2013, p.154).
Com a proliferação de diagnósticos (BERNARDINO, 2011; CORIAT, 2011; PÉREZ DE PLÁ, 2011;
VORCARO, 2011), diríamos mesmo um furor diagnóstico em oposição ao furor sanandi criticado
por Freud em sua época, já não se considera mais a possibilidade de encontrar nesta criança, e
naquela, e ainda naquela outra, sujeitos que poderiam vir a se exercer nas suas singularidades de
sujeitos, vindo a contribuir na construção de um futuro diferente, novo e, talvez, melhor do que
nosso presente. Diante das “demandas sociais a ele endereçadas”, o médico diagnostica o “desvio
comportamental”, para pretensamente responder àquelas demandas, consertando o desvio. Ora,
Afinal, o DSM, que constrói tantos transtornos quanto se produzem medicamentos, recebe
financiamento da indústria farmacêutica (ROSA et al., 2015), orientando inclusive os médicos a
demandarem a retirada de crianças e adolescentes de seus tratamentos psicanalíticos, a serem
substituídos por terapia cognitivo-comportamental. E nessa orientação,
Constatamos que os discursos sobre a infância e adolescência
na atualidade não são homogêneos, mas transitam entre
a judicialização para uns, a medicalização para outros e a
mercantilização para todos. A depender das circunstâncias,
117
17A
nossa sociedade dirá: “crime, bandido, cadeia e morte”
ou “doença, criança/adolescente, tratamento”, contudo,
todos serão atravessados pela mercantilização, seja como
consumidor ou como produto (ROSA et al., 2015, p. 228).
Freud (1913/2006), ao contrário: quando ele se ocupa com o diagnóstico é para dele se
servir como índice para a direção do tratamento – diferente quer o sujeito seja psicótico ou neurótico
–, ainda que o diagnóstico não exclua, muito ao contrário, a singularidade de cada sujeito, o que faz
com que o tratamento se reinvente a cada novo analisante. Freud imaginava ser possível trabalhar
com a psiquiatria, pois “na natureza do trabalho psiquiátrico não há nada que pudesse rebelar-se
contra a investigação psicanalítica” (FREUD, 1916-17/2006a, p. 233). É por sermos freudianos que
mantemos essa expectativa, de podermos trabalhar com a psiquiatria, apesar do que constatamos
no discurso que atualmente sustenta sua prática, agenciado pelo discurso do capitalista. Cabe
sempre estar tão atento quanto Jonatan diante da tentativa de um Outro querer todo saber para si.
Concluímos que o diagnóstico serve para o tratamento do outro, nesse caso, das crianças
e adolescentes, de acordo com o agente do discurso que o sustenta. Perguntamos, então, se a falta
de investimentos nos serviços de atenção psicossocial destinados às crianças e adolescentes, bem
como de outros serviços de garantia de seus direitos pelo Estado, não se coadunam, atualmente,
à fabricação da loucura denunciada por Kamers, a partir de um mesmo discurso? No que tange
o caso de Jonatan, como de muitos outros sujeitos em sofrimento psíquico, a dessubjetivação
promovida pelos manuais de psiquiatria objetaliza o sujeito de tal forma que não se pode mais
identificar uma psicose infantil. O desinvestimento em equipamentos de saúde mental primários e
secundários, por seu turno, implica, por um lado, a desassistência ao sofrimento infantil; por outro
lado, cria uma demanda enorme aos serviços terciários, que por esse motivo não conseguem dar
conta da demanda que lhes seria adequada.
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120
20A
O LUGAR DA MULHER NEGRA E O DA ANALISTA NO BRASIL: UM
ENSAIO CLÍNICO-POLÍTICO DA FUNÇÃO NEGRA DA ESCUTA
Resumo: Trata-se de um ensaio clínico-político que tenciona as articulações históricas do Brasil concernentes ao lugar da
negritude, em especial, da mulher negra. Através da forma como Gonzalez utiliza a noção de memória trazendo à tona
materialidades atuais do cotidiano racista brasileiro também o faz a psicanálise na clínica com diversos conteúdos de teor
histórico-inconsciente. Podemos endereçar o lugar da mulher negra brasileira como a analista no Brasil. Sua posição e
as possibilidades transferenciais com ela desenvolvidas, produzem uma escuta material quanto as subjetividades, todas
atravessadas pelo mito relativo a essa mulher. A mulher negra é objeto a, assim como deve ser a posição do analista. Ela
está na centralidade do Édipo Brasileiro e, também, no erotismo da cultura. Endereçar questões analíticas a ela que, em
sua exterioridade, sustenta a fantasia da identidade do povo brasileiro, produz efeitos de rememoração e ressignificação
para um Brasil que pode se descobrir e ser outro.
Abstract: This clinical-political essay intends to strain the historical articulations of Brazil concerning the place of blackness,
in particular, of the black woman. Through the way in which Gonzalez uses the notion of memory, bringing up current
materialities of the Brazilian racist daily life, also psychoanalysis in the clinic does so with various historical-unconscious
content. We can address the place of the black Brazilian woman as the analyst in Brazil. Her position and the transference
possibilities developed with her, produce a material listening regarding subjectivities, all crossed by the myth of this
woman. The black woman is object a, just as the analyst’s position should be. She is in the centrality of the Brazilian
Oedipus and, also, in the eroticism of the culture. Addressing analytical questions to this woman who, in her exteriority,
sustains the fantasy of the identity of the Brazilian people, produces effects of remembrance and resignification for a Brazil
that can discover itself and be another.
1 Psicóloga, psicanalista, mestre e doutora em psicologia pela USP, especialista em gestão em saúde pública pela UNICAMP. Pós doutora pelo
Instituto de Psicologia da USP. Atualmente é professora e supervisora da Residência em Rede da prefeitura de São Paulo, co-coordenadora do
GITS (Grupo de Investigação de Territórios e Subjetividades) da USP e membra do projeto sobre Mal estar colonial do Rede de Redes (UFMG).
Professora credenciada no Programa de Pós-Graduação de Educação Sexual da Universidade Estadual Paulista (UNESP) campus Araraquara.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4025775678638356 . ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4881-7725 . E- mail: claricepp@gmail.com
2 Mulher negra, periférica, psicóloga graduada pela Universidade Federal Fluminense, campus de Volta Redonda. Pesquisadora no tema Psicanálise,
gênero, raça e saúde mental. Integrante do Coletivo Nacional ENEGRECER. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5356862910858208. ORCID: https://orcid.
org/0000-0003-0356-1009. E-mail: psi.andrade.barbosa@gmail.com
Introdução: Das relações múltiplas do registro histórico com a
psicanálise
1 A noção de letra, depreendida de Lacan em seu seminário livro XX, (1985) se apresenta como um litoral entre
saber e gozo, realizando uma separação entre esses dois domínios, delimitados a partir de uma marca, decalque.
2 Para mais desenvolvimentos sobre a noção de clínica-política: ROSA-DEBIEUX, Miriam A clínica psicanalítica em
face à dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Editora Escuta, 2017.
122
22A
história para que exista direção do tratamento, dado que é a partir destas possíveis articulações
historiográficas que será possível viver narrativas apontadas para o futuro.
Sigamos, agora, essas pistas historiográficas em território brasileiro. Nos anos 2020, a
historiadora e romancista Micheliny Veruschk (2022) afirma que, ao realizar sua pesquisa para a
produção do romance: “O som do rugido da onça (2021) deparou-se com o documento deixado por
Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), botânico alemão, que registrou os biomas brasileiros,
tal como os conhecemos até hoje e registrou, também, a população nativa, categorizando-a como
fauna. Juntamente com sua catalogação da natureza brasileira, produziu um diário de campo e
um romance de auto-ficção, que continha cenas de suas relações com uma indígena nativa,
apresentadas de forma ambivalente: eróticas e paternas, ora de cuidado ora de exploração.
Podemos observar que Martius realiza, nessa articulação, dois feitos fundantes: um
tripé de uma subjetividade científico-ocidental que consiste em um estudo do meio (empírico),
uma descrição de seus processos (dinâmico) e uma narrativa, constituída a partir do encontro e
desencontro entre personagens (historiográfico), formando o que entendemos por contexto, até
os dias de hoje. Realiza esse feito dentro de uma perspectiva colonial, evidenciando as referências
centrais de civilidade, organização e progresso nos desenvolvimentos europeus da época. Além
disso, sua ficcionalização, realizada de forma ambivalente, traz notícias do lugar do sexual e do
infantil nos corpos em território brasileiro, perspectiva que será desenvolvida mais adiante neste
texto.
Devido a este trabalho, ainda hoje, no Brasil, temos o Prêmio Von Martius de sustentabilidade,
que registra e autoriza, assim, a memória e história do país, calcadas nesta escrita da fauna e flora
brasileira, longe da civilização e de qualquer traço de humanidade: um prêmio que sustenta a
história oficial do Brasil de que “não havia vida civilizada e humana, antes dos europeus chegarem
aqui” (VERUSCHK, 2022). A historiadora ainda continua, ao afirmar que se a tese de Von Martius é
a que fundamenta a história do Brasil, entende-se, por conseguinte, o lugar dos corpos brasileiros
na atualidade e a forma como tratamos a diversidade de povos existentes no território. Veruschk
afirma, então, que a história do Brasil é “lacunar e criminosa” (2022).
Refletindo sobre as condições que fundam a história do Brasil atual, calcadas no
eurocentrismo e no apagamento constante de nossas origens criando, inclusive, monumentos que
O borralho, tido como esse lugar da cozinha e das cinzas, é também de onde renasce a fênix,
afinal, ele remete às cinzas que ainda produzem calor e podem voltar a queimar. Ao longo dos anos
1990, nas novelas brasileiras, o lugar do borralho era o lugar da cozinha, relegado a mulher negra
como personagem que assumia todo o trabalho reprodutivo de uma casa (grande)9. Ao longo de
tais novelas, sempre haviam cenas nas quais uma mulher branca, a “boa sinhazinha” entrava na
cozinha, lamentando-se, falando de todas as suas questões amorosas, os seus problemas com o pai,
a sua angústia quanto a ocupar um espaço público como mulher10 e a mulher negra, a empregada,
9 Essa personagem encontra-se desde os clássicos infantis tal como o Sitio do Pica-Pau Amarelo, em tia Anastácia,
como em novelas como A Indomada, O rei do gado, Terra Nostra, dentre outras produções culturais e evidencia,
historicamente, o lugar da mulher negra nos núcleos rurais e urbanos das novelas e seu significado na cultura
brasileira.
10 Importante marcar: evidentemente, questões que se escutam em uma análise.
11 Mais recentemente na versão do Big Brother Brasil em 2023, em um dos “rachas” da casa, um grupo de
mulheres brancas apelidou, carinhosamente, a mulher negra que se colocava pertencente ao mesmo grupo
que elas de “mummy” (mamãe). A repetição deste significante quando associado a essa mulher não diz de uma
coincidência ou novidade, mas de um lugar estruturalmente constituído na história do país. Para mais informações 125
e análises: https://www.instagram.com/p/CqDT6TeOxqJ/?utm_source=ig_web_copy_link
25A
cotidianos e explicitará uma atividade pouco apresentada ao redor do globo em outras elites: a
prática do cafuné na cabeça das sinhazinhas pelas mucamas, ritual analisado pelo antropólogo
como índice da relação homossexual recalcada entre mulheres e dos traços de convivência em
uma sociedade escravocrata, na qual a mulher negra, excluída da sua condição de cidadã e relegada
ao lugar de objeto, era, então, objeto sexual de ambos os brancos: senhor de engenho e sinhazinha.
Essas práticas, ritualizadas em nossa cultura, deixam lastro nas relações transferenciais com a
posição da mulher negra: desejada (e excluída) e acolhedora. Nas palavras do sociólogo:
Esse gesto, o cafuné, é então ritualizado, segundo o autor, por uma mulher específica: a
mulher negra, que ao ser colocada nessa posição, na cultura, estabelecerá, portanto, relações
transferenciais a partir desta posição. Outra antropóloga, um pouco mais adiante, Rita Segato (2021)
em “O Édipo Negro” afirma sobre o lugar da ama de leite e suas derivações para ama seca e babá
como fundantes da constituição edípica brasileira sendo a exclusão sobre esse reconhecimento
a partir do discurso higienista, sem abster-se da necessidade elitista do exercício dessa função,
segundo a autora, o principal causador do racismo e da misoginia em nosso país, dado que a mulher
negra é necessária e desejada, porém, sem participar das gramáticas de reconhecimento que a
A analista (mulher negra) ocuparia, então, tanto o lugar evidenciado por Segato (2021) da
mãe preta quanto o da mucama, apresentado por Bastide (2016). Ela sustentaria, dentro do lastro
histórico do Brasil, a mãe preta e seu lugar de acolhimento e sabedoria e, também, o da mucama,
126
26A
causa de desejo e fundadora de certo erotismo brasileiro, calcado na mulata como objeto de
desejo, tão bem apresentado por Gonzalez (1984). Vemos nessa ficcionalização do lugar do corpo
da mulher negra na cultura brasileira que ele ocupa o lugar de objeto a como semblante (LACAN,
1992), suturando as relações entre trabalho e reconhecimento, obliterado aqui pela ideia de “boa
vontade”. Esse semblante é constituído pela articulação entre a História e a história vivencial, que
produz repetições contínuas e não consequentes destes aspectos da cultura: as coordenadas
conjecturais não se apresentam tornando essa articulação, de certo modo, imune às relações de
contingência. A relação imaginarizada, calcada na cultura que produz esse efeito sobre o corpo da
mulher negra apresenta a construção de um suposto saber no horizonte, se articulado a história
conjectural, ou seja, as fissuras dessa imagem: uma mulher que sabe das origens infantis e da
sexualidade, uma mulher que sabe sobre o inconsciente brasileiro, que, porém, quando destituída
desse saber, torna-se fetichizada.
Essa dupla inscrição (vivencial e Histórica) produz uma clínica conduzida por mulheres
negras que é intensa e que lida de forma mais crua e direta com as histórias de abuso e construções
fantasísticas de analisantes: é comum o acesso a relatos de opressão e violência de forma mais
direta, a apresentação e a abertura ao traumático se encontram mais rapidamente: poderíamos
dizer que o universal (territorializado) da escuta se encontra em ouvidos negros: o trauma,
as fantasias primordiais, a sexualidade infantil e o hereditário freudiano se encontram mais
rapidamente ali. Deste modo, o material clínico apareceria de forma mais contundente e direta
e isso pode ser resgatado também em nossa cultura, quando vemos as representações que estas
mulheres ocupam nas telenovelas brasileiras, principalmente até o início dos anos 2000.
A mulher negra, em sua presença, demarca a fundação desse inconsciente calcado no
recalque primordial da negritude e do escravagismo no Brasil produzindo um entrelaçamento
Histórico e vivencial: Real e Imaginário, se quisermos. Esse entrelaçamento constitui o vínculo
(ZYGOURIS, 2003) basal através do qual irá alicerçar-se a transferência, introduzida por esse corpo:
O que sustenta as palavras? O tecido do vínculo é o real entre
dois organismos humanos. Trata-se, antes de tudo, de uma
característica da espécie humana, uma realidade feita de
“sentires” (fellings), emoções, em sua maioria inconscientes,
mas também conscientes, de sensorialidades que nada têm
de especificamente analíticas, inclusive na sessão analítica. O
que faz vínculo entre dois humanos são os alicerces de uma
presença [...] É a partir desses alicerces que um se liga ao outro
e que o vínculo se estabelece ou não. É aí que a transferência
127
27A
Trabalho, enegrecimento e reconhecimento: a função da analista e a
mais-valia
Podemos nos perguntar, a partir dos rastros deixados para além e com os nossos documentos
de fundação do país: quantos ouvidos olvidados são necessários para formar uma escuta no Brasil?
Qual miscigenação ocupa nossa história e produz ruídos em nossos ouvidos que os capacitem a
escutar a verdade? Vemos que o lugar histórico da verdade – relegada ao apagamento – no Brasil
demarca também onde se ampara o lugar psíquico do brasileiro: essa entidade que vai de Gilberto
Freyre a Clovis Moura, que transita entre as brasilidades e constitui esse curioso caso do brasileiro
– não racista, que reconhece o racismo; não machista, mas que sabe da violência de gênero –
observando aqui a hiância, que se apresenta como uma cisão entre enunciado e enunciação,
entre o que é dito e o que fica por dizer e que, de alguma forma, constitui a nega-ativa12 no dito.
A negritude compõe o que dizemos às avessas do nosso dizer. Para além da negritude e como
condição anterior do estabelecimento desta, os povos originários da América também fazem parte
desse olvido, esse lugar que, no Brasil, nós mal sabemos onde está e, por isso, expropriamos (sem)
saber onde nos posicionarmos nessa terra de alguém, alguém não reconhecido.
A subjetividade brasileira foi, assim, desenvolvendo-se a partir da negação da negritude
como constituinte de suas origens. O apagamento dessa presença acontece, inclusive, dentro do
campo da saúde mental: o pioneirismo negro de Juliano Moreira (SANTOS, 2021), Neusa Santos
Souza (AIRES; TAVARES, 2021) e de Fanon, amplamente citado por Basaglia, porém tardiamente
integrado aos preceitos da reforma psiquiátrica no Brasil (PASSOS; MORAES, 2021) são exemplos
desse apagamento. Porém, como mencionado acima a partir de Bastide (2016) e Segato (2021), a
presença da negritude, especificamente da mulher negra, é fundante na cultura e subjetividade e,
consequentemente no lugar transferencial ocupado pelo profissional de saúde mental no Brasil,
dado que esse lugar representa o lugar do cuidado: assim, um caso curioso acontece no país – o
encontro de uma certa condição psicanalítica europeia à uma certa condição de subalternidade do
trabalho fazem laço no território.
A analista no Brasil vem de além-mar, constitui o que Lélia Gonzalez nomeou como Améfrica
Ladina (1988), aquele lugar onde o recalque consolidou-se em uma pele – a negra, em uma cultura
– as diversas africanas que nos compuseram, em uma sociedade – a escravocrata. Ela tem sangue e
leite negros pelas suas diversas ocupações trabalhistas – os ditos trabalhos reprodutivos, tal como
colocou Rita Segato (2021), e que constituem a base de toda e qualquer atividade humana – cuidar
de uma casa, dos filhos – seus e dos outros – de uma cultura e educação – mas, que a elite brasileira
12 Gonzalez (1984) fará uma brincadeira com a noção de negativa em psicanálise e a nega-ativa, ao afirmar sobre
a verdade que se evidencia na construção do lugar da mulher negra no Brasil.
13 O termo identitário aqui está sendo utilizado de forma irônica a fim de evidenciar o paradoxo existente entre
um conceito – o de valor, que é dialético – e a noção de identidade, muitas vezes remetida a uma certa fixidez de
posição quando entendida, dentro do discurso capitalista, como propriedade.
14 A homologia entre mais-valia e objeto-a encontra-se estabelecida por Lacan em seu seminário, Livro XVI: De
um Outro ao outro (2008)
15 Aqui podemos nos remeter a todo o espectro de branquitudes, que podem ser melhor analisados em: BENTO, M.
A. Branqueamento e branquitude no Brasil disponível em: https://www.nupad.medicina.ufmg.br/arquivos/acervo-
cehmob/foruns/racismo-institucional/Caderno-Racismo.pdf; GUERRA, A. Branquitude e Psicanálise: segregação
128
28A
sujeito. Trabalho e propriedade se articulam aqui evitando a construção de um saber inconsciente
sobre a nossa história. Saber que é vivenciado pelo corpo da mulher negra e que, ao ser estabelecido
como conjectural, pode vir a produzir retificações subjetivas.
Seu trabalho, não reconhecido porque escravo, inviabiliza que seja reconhecida como
cidadã, dado que “não trabalha” e sim, é submetida, o que se relaciona de modo peculiar com o
funcionamento da psicanálise no país, dado que seus desenvolvimentos se dão por regimes de filiação
e não de regulamentações públicas, sejam elas estatais ou não16 (PAULON, 2022). Os trabalhadores
são identificados aos imigrantes europeus, que chegam após a abolição da escravatura no Brasil e
este apagamento, inclusive, produz rachaduras na própria composição sindical do país e no termo
“trabalho” – subentendido como algo temporário no tecido social, ao qual você se endereça por
um tempo para que, um dia, não mais precise trabalhar e se torne “empreendedor”17: trabalhar
continuamente é submeter-se e escravizar-se no Brasil (o retorno ao lastro escravagista apagado)
e esta questão não tem correlato direto em países cuja desenvolvimento do Estado de Bem Estar
Social se efetivou: trabalhar no Brasil é enegrecer.
Em outra das análises empreendidas auscultamos o apagamento desse trabalho e seu
aprisionamento em objeto. Ao formar-se médica, o peso das antepassadas encontra-se em seus
ombros e a analisante negra lembra das marcas do sutiã deixadas nos ombros da avó, que se queixava
do peso de seus seios. Identifica-se (e é identificada) à enfermeira do ambulatório e não consegue
discutir casos com seus professores. É necessário pegar mais plantões para ajudar nas contas de
casa: duplas jornadas, muito diferentes das possíveis jornadas médicas e pavor ao peso que o erro
pode causar em seu percurso profissional a acompanham. Quando a história deixará de ser peso
nos ombros e se tornará motor de transformação aos descendentes de pessoas escravizadas?
A mais-valia, que não pode ser reconhecida, vira uma espécie de abuso sobre esse corpo,
ao acessá-lo pelo ouvido ao invés do olvido, talvez a retificação subjetiva se faça presente nos
processos de análise, dado que é a extração desse excesso de gozo que a analista irá operar, para
fazer emergir o desejo e a construção do saber inconsciente. A analista enquanto propulsora
deste objeto causa de desejo irá operar justamente nesse excesso, podendo, pelo trabalho de
transferência, construir essa ponte entre passado, presente e futuro, removendo assim as amarras
do destino18, possibilitando a transmissão de um saber geracional e histórico.
A mulher negra está, portanto, em muitas posições transferenciais na cultura brasileira. Ela
faz parte da nossa história como empregadas domésticas, com babás, como amas de leite, como
trabalhadoras que sustentam um lar, sendo colocadas em um lugar mítico, que a impede de tornar-
se cidadã. Ela é entendida como esse lugar da escuta sem barreiras ou julgamentos, aquela que
19 Figura topológica que, pela torção de uma das bordas que une um círculo, apresenta o continuum-torcido entre
dentro e fora.
130
30A
diferenciado e capaz de autonomia, faz com que uma
parte dela se adapte a posição a ela atribuída, mesmo que
permaneça um resto que não caiba inteiramente em seu papel
na ordem vigente, um algo mais, uma livre-agência, um desejo
outro que não o da submissão. A mulher, nesse sentido, é uma
posição híbrida, um anfíbio da ordem do status e da ordem do
contrato, com uma inserção dupla no sistema total de relações
(SEGATO, 2003, p. 145) (tradução livre).
Segato diz da mulher em suas diversas raças e etnias nesse texto. Essa posição híbrida que
se traduz como externalidade ambivalente conduz toda uma relação do feminino com o desejo, a
demanda, o gozo e suas relações. No caso da mulher negra, entretanto, para além da ambivalência,
a mesma autora (SEGATO, 2021) irá afirmar de sua foraclusão na sociedade e cultura brasileiras,
constituindo, como efeito, a nossa branquitude como misógina e racista.
Foraclusão, termo que diz de um apagamento que é irretornável na simbolização, que
só aparece a partir de um ato, de uma ação, de algo que se sustenta na existência, diferente do
recalque, simbolizável, dito, articulável, interpretado – na foraclusão um dos registros falta para
que possamos consolidar uma significação para além da nossa epiderme, ou seja, do nosso registro
concreto e literal. A antropóloga nos propõe essa leitura a partir da análise histórica no Brasil do
apagamento das amas de leite, amas secas e babás, e, assim, de nosso traço afetivo também,
como já citado neste ensaio. Um apagamento que diz da nossa verdade: não conseguimos encarar
mulheres negras sem dizer de onde somos: do encontro da tradição com o borralho.
A mulher negra, então, foracluída e, a partir dessa foraclusão, compondo com os processos
de subjetivação brasileiros, faz parte das transferências horizontais e verticais das constituições
vinculares do país. Em termos de transferência vertical como a mãe preta, apresentada por Segato
(2021), em termos de transferência horizontal como a mucama, apresentada por Bastide (2016). Ela,
ainda, nas elucidações de Gonzalez (1984) permanece na posição de objeto a, na cultura brasileira,
dado que representa o recalque. É essa mulher que é desejada – “a mulata tipo exportação” e
ao mesmo tempo que é rebotalho, lixo – segundo as palavras da autora (GONZALEZ, 1984), por
estar em trabalhos minorizados, de sobrevivência – um desejo recalcado que se institui, pela nega-
ativa. Pela negação de sua verdade. Vemos, então, materializada nas condições de existência e
corporais dessa mulher um entrelaçamento de transferências, desejo e rebotalho – construção
que sustentaria o que chamamos de função do analista (LACAN, 1998): a função de colocar em
movimento a construção de um saber inconsciente e, para isso, sustentar, no corpo, a possibilidade
de divisão subjetiva para a emergência do sujeito em análise.
Quem nos afirma essa liga é Lacan (1998) que diz sobre a escuta estruturada pela linguagem
e desenvolta a partir da experiência, essa, que não se encontra apenas no registro do imaginário,
mas compõe a cena enunciativa de toda e qualquer história conjectural-vivencial com pitadas de
20 É a partir da memória e das possibilidades de ressignificação que a história apresenta como lastro simbólico
que os horizontes do futuro podem se alterar, evitando a repetição do traumático. Essa constatação é clínica e
também política.
131
31A
repetição e aberturas transformativas. Dizia ele que o analista deve situar-se como semblante de
objeto-a do analisante – diríamos nós, a partir das elucidações de Lélia Gonzalez (1984), que o
analista ocupe esse lugar de desejável e deplorável – tal como a autora nos diz sobre a mulher negra
na cultura brasileira.
É como objeto-a que conseguimos nos constituir como essa escuta em ato para a “sinhazinha
boa” e a “sinhazinha má” – a escuta sem barreiras . É desse lugar de rebotalho-desejo que a verdade
pode enunciar-se. No caso do Brasil: a verdade negra de sua brancura. Dita, lá no primeiro hospital
de alienados de Dom Pedro II, dita nas falas higienistas, dita, sem dizer, em uma limpeza étnica que
teme enunciar sua verdade: O Brasil não é europeu. O Brasil é ladino. O Brasil é amefricano.
Se, voltando ao início deste ensaio, não nos havermos com a História (Geschichte) em sua
conjectura, nossas constatações estarão sempre no plano da história vivencial juntamente com a
História: baseadas na presentificação do recalque e no apagamento do reconhecimento de nossas
origens. Um país que não reconhece a sua história, nunca poderá avançar rumo ao desejo e sim
ficar nos olhos daqueles patriotas como a grande esperança que nunca foi fundada – sempre mítica,
ideal e irreconhecível: porque não somos (europeus).
Para uma análise desse caso brasileiro é necessário resgatar os traços do seu passado. É
necessário negritar-se. O sintoma brasileiro, essa construção entre a foraclusão de Segato (2021) e
o recalque de Gonzalez (1984) só conseguirá ser olvida – e aí sim, colocada em seu lugar de justeza
no tempo – quando auscultada por ouvidos enegrecidos: relegar o negreiro ao passado e abraçar a
negritude do nosso território. Quando reconhecermos o cheiro e o suor negros na nossa história e,
só aí, poderemos dizer de um país: latino, brasileiro, verdadeiro. É necessário negritar nossa escuta.
A mulher negra sustenta ao mesmo tempo em que é excluída a fantasia de subjetivação
e identidade do povo brasileiro. O papel do analista se relaciona com isso na medida em que
deve escutar em ausência, presentificando o discurso do inconsciente: deve escutar as amarras
significantes para que o sujeito possa posicionar-se a partir delas (LACAN, 1988). No entanto, para
este trabalho, é necessária uma presença que faça barra. Presentificar a mulher negra na escuta
clínica é qualificar essa escuta na medida em que se presentifica um signo cultural brasileiro
recalcado/ foracluido que, no entanto, compõe, em ausência, sua presença. Importante que seja
negritado aqui que não é porque a psicanálise trabalha e lida com o campo da fantasia, inclusive
possibilitando uma historiografia das produções inconscientes, sobre processos e posições das
pessoas na cultura, que essa análise deve ter o efeito de ratificar posições. Pelo contrário, é a
partir do retorno desse conteúdo de memória recalcado que ele pode se ressituar e, então, ser
transformado.
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VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
134
34A
PERTO DO FOGO – O QUE SE ESCUTA DE UM TRAUMA?
Resumo: Este trabalho articula a função da dor e da distribuição da libido com o advento do trauma que indica um mais
além do princípio de prazer. Esses aspectos, no caso aqui descrito, culminam em um acontecimento de corpo. O objetivo
principal é avançar em um saber teórico que possa nortear o fazer clínico que suscita questionamentos sobre como
engendrar o deslocamento do campo do gozo ao campo da palavra. Com a escuta atenta à incidência do trauma, permite-
se que algo surja no discurso, oportunizando que o sujeito reescreva sua história a partir do surgimento de um significante
capaz de estruturar todo um campo de significado. O presente trabalho se insere em um espaço mais amplo e permanente
de investigação que busca refletir acerca da tese lacaniana do sintoma como acontecimento de corpo.
Abstract: This work articulates the function of pain and libido’s distribution concerning the advent of trauma that indicates
beyond the pleasure principle. These aspects culminate in an event of the body to the presented case. The main objective
is to advance the theoretical knowledge that can guide clinical practice, which raises questions about how to engender the
displacement from the field of enjoyment to the words. With attentive listening to the incidence of trauma, something is
allowed to appear in the discourse, allowing the subject to rewrite his story from the emergence of a signifier capable of
structuring a whole field of meaning. This work is part of a broader and more permanent space of investigation, to reflect
lacanian thesis of the symptom as a body event.
1 Docente da UEMG/Unidade Divinópolis. Pós-doutorado em Processos de Subjetivação, linha de pesquisa Processos Psicossociais pela PUC Minas.
Doutora em Estudos Psicanalíticos, linha de pesquisa Conceitos Fundamentais em Psicanálise e Investigações no Campo Clínico e Cultural pela
UFMG. Mestre em Psicologia pela PUC Minas. Especialista em Arte e Educação. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5464259294427621. ORCID: https://
orcid.org/0000-0001-5905-3973. E-mail: gesianni.goncalves@uemg.br
2 Docente do Curso de Psicologia da UEMG / Unidade Divinópolis. Pós-doutorado em Clínica psicanalítica do sujeito e do laço social pela Université
de Toulouse-II, França. Doutorado e mestrado em Linguística pela Unicamp. Graduada em Psicologia pela UFMG. Psicanalista membro do Parlêtre
Divinópolis. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5587813480385289. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1634-4866. E-mail: claudia.leite@uemg.br
Introdução
O ato inaugural de Sigmund Freud fundou um modo de tratar a dor e o adoecimento pela
via da palavra. Desde então, o corpo que interessa à Psicanálise é aquele que sofre os efeitos do
dizer. O que sustenta a clínica, por sua vez, é a possibilidade de uma escuta que eleve o sintoma ao
estatuto de enigma. Entretanto, alguns acontecimentos rasgam as configurações do sujeito e, com
isso, novas elaborações teóricas devem ser formuladas, tal qual a elaboração de Lacan, ao final do
seu ensino, sobre o acontecimento de corpo.
Apresentamos, neste artigo, algumas elaborações que percorrem os elementos fundamentais
dispostos por Freud para tratar o sintoma e avançam até a proposição lacaniana sobre acontecimento
de corpo. Tais discussões foram recolhidas de uma pesquisa teórica, de caráter qualitativo, que foi
desenvolvida por meio de estudos bibliográficos estabelecidos por marcadores conceituais extraídos
das obras de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Aos desdobramentos conceituais, articulamos uma
pontuação clínica que interroga o saber teórico e nos permite questionar os elementos que se
estabelecem ao engendrar o deslocamento do campo do gozo ao campo da palavra. Contamos,
ainda, com a contribuição de autores que escreveram a respeito das incidências do sintoma no
corpo, da dimensão radical do trauma e do acontecimento de corpo. Essas temáticas mantêm sua
importância no campo clínico e teórico e nos permitem avançar nas elaborações e pesquisas em
Psicanálise.
Em Além do princípio de prazer (1920), Freud se refere à energia pulsional, que é transferida
para o corpo, como o último recurso capaz de conter o transbordamento de excitações no psiquismo.
Articulamos as ideias apresentadas por ele nesse texto à noção lacaniana de acontecimento de
1 Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia (c2021), herpes-zóster é um vírus que resulta da reativação
do vírus da varicela-zóster, causador da catapora. O que faz o vírus ser reativado é geralmente desconhecido, em
alguns casos, a reativação ocorre quando uma doença ou medicamento enfraquece o sistema imunológico. A dor
é o sintoma mais importante no herpes-zóster. Ela costuma preceder o aparecimento das lesões e pode persistir
por várias semanas ou meses após a resolução das lesões. Estas consistem em vesículas dispostas em trajeto
linear, acometendo frequentemente o tronco, a face ou os membros. O diagnóstico costuma ser clínico. No estágio
pré-lesão, pode ser confundido com outras causas de dor localizada; no entanto, quando a erupção aparece, o
diagnóstico é quase sempre óbvio.
137
37A
corpo (LACAN, 1979), destacando as referências freudianas sobre o trauma. Nesse momento de
sua obra, Freud examinou a questão relativa à transferência da energia pulsional para o corpo com
base na distinção entre a dor física e o trauma. Para configurar essa distinção, ele vincula trauma e
acontecimento2. Consideremos o que Freud escreveu a respeito disso.
Um acontecimento como um trauma externo está destinado
a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento
da energia do organismo e a colocar em movimento todas as
medidas defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio
do prazer é momentaneamente posto fora de ação (FREUD,
1920/1980, p. 45).
A dor seria uma efração do escudo protetor em área limitada e o trauma seria uma ruptura
em grande extensão. A respeito desse último, Freud comenta: “descrevemos como traumáticas
quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o
escudo protetor” (FREUD, 1920/1980, p. 45). O psicanalista está em busca de compreender o que
ocorre nos casos que contradizem a dominância do princípio de prazer, e o trauma parece ser um
fator capaz de lançar luz à questão, dado que, nas situações traumáticas, o princípio de prazer é
desativado. Dessa maneira, o desprazer do sofrimento físico resulta de um alto investimento de
energia que desconhece o princípio do prazer. Conjecturamos que, tal qual os sonhos que repetem
traumas vividos não estão a serviço do princípio do prazer, mas sim contribuindo para executar
outra tarefa (elaboração de um luto, por exemplo), também a dor tem aqui uma função que está
para além desse princípio e que surge em obediência à compulsão à repetição.
No caso anteriormente mencionado, “o desprazer específico do sofrimento físico” (Freud,
1920/1980, p. 45), resultante do atravessamento de estímulos pelo escudo protetor, teria a função
de uma defesa contra o excesso de energia advinda do acontecimento traumático (a morte súbita
do filho) que, por sua vez, é capaz de provocar um acontecimento no corpo: a dor que queima como
o fogo, o mesmo fogo que carbonizou o filho. Desse modo, o princípio do prazer é posto fora de
ação, cedendo lugar a um “além do princípio do prazer” e indicando que as neuroses traumáticas
são facilitadas por um conflito no eu. Freud detalha esse mecanismo considerando que
Não há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental
seja inundado com grandes quantidades de estímulos; em
vez disso, outro problema surge, o problema de dominar as
quantidades de estímulo que irromperam, e de vinculálas,
O surgimento do problema parece ser a solução, ou seja, a dor exerce o poderoso efeito
de redistribuição da libido e de vinculação a um sentido psíquico como modo de dominar uma
superexcitação, um investimento libidinal muito grande. Portanto, a função da dor, ao exigir “uma
hipercatexia narcisista do órgão prejudicado” (FREUD, 1920/1980, p. 49), vincula o excesso de
excitação dando-lhe um destino. Sendo assim, o trauma é pensado por Freud, nesse texto, por uma
perspectiva econômica, isto é, de moção de libido, aproximando-se do modo como ele explicou
a dor no texto Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Conjuga-se, assim, a função da dor,
de distribuição da libido e vicissitude da pulsão, com o advento do trauma, que indica um mais
além do princípio de prazer. Todos esses aspectos, no caso aqui descrito, culminam em um sintoma
no corpo, na manifestação da dor psíquica em uma dor orgânica que pode ser considerada um
acontecimento de corpo.
Seguiremos a trilha freudiana no texto Além do princípio de prazer (1920), que marcou
profundamente a prática clínica psicanalítica. Freud afirma que “vinte e cinco anos de intenso trabalho
tiveram por resultado que os objetivos imediatos da psicanálise sejam hoje inteiramente diferentes
do que eram no começo” (FREUD, 1920/1980, p. 31). Reiteramos o valor dessa obra que apresenta
conceitos e noções tão heterogêneos quanto importantes para a Psicanálise contemporânea. O
2 A língua alemã usa as palavras geschehen e vorkommnis para designar o acontecimento. No texto original Freud
utilizou vorkommnis.
138
38A
texto, que apresenta um limite ao princípio do prazer como regulador da vida sexual, possibilita-
nos extrair noções caras à clínica, como a pulsão de morte e os paradoxos da repetição, e fazer uma
atualização da teoria do trauma, deixando a porta aberta para os desdobramentos lacanianos como
o gozo e o real.
Retomamos aqui a questão do trauma, com a função da dor, por compreender que essas
noções fornecem diretrizes clínicas importantes. Examinemos o que Freud menciona a respeito do
dano físico causado pelo trauma:
[…] moléstias poderosas e febris exercem um poderoso
efeito, enquanto perduram, sobre a distribuição da libido.
Assim, por um lado, a violência mecânica do trauma liberaria
uma quantidade de excitação sexual que, devido à falta
de preparação para a angústia, teria um efeito traumático,
mas, por outro lado, o dano físico simultâneo, exigindo uma
hipercatexia narcisista do órgão prejudicado, sujeitaria o
excesso de excitação (FREUD, 1920/1980, p. 49).
Zizek (2017, p. 9) mostra que um acontecimento é “o efeito que parece exceder suas causas –
e o espaço de um acontecimento é aquele que é aberto pela brecha que separa o efeito das causas”.
Pensar o acontecimento como um efeito que excede suas causas traz de volta a multiplicidade
Pela perspectiva de Lacan, podemos reportar a esse caso pela via de uma noção por ele
inventada: o Real, que ele indica da seguinte maneira: “Mas quanto ao que chamo de real, eu
inventei, porque se impôs a mim” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 128). Para esse autor, a realidade
humana e o direcionamento da clínica estão marcados por três registros: Imaginário, Simbólico e
Real. Lacan introduz esse ternário no campo analítico durante sua conferência pronunciada em 8 de
julho de 1953, na abertura das atividades da Sociedade Francesa de Psicanálise (Société Française
de Psychanalyse). As dimensões Real, Simbólico e Imaginário se constituíram ao longo do ensino
de Lacan, ultrapassando a aparição desse ternário em 1953 e transpondo sua articulação sobre os
nós no Seminário 22, R.S.I. (1974-1975, inédito). Lembramos que, nesse seminário, Lacan se dedica
a falar do R.S.I., Real, Simbólico e Imaginário, manipulando o nó borromeano. Ele nos indica que
Já não seria essa definição apresentada por Freud, cinco anos antes, o indicativo de um mais
além do princípio do prazer e que viria a possibilitar os desdobramentos lacanianos a respeito do
corpo e do gozo? Bem, essa é uma questão para outro momento, por ora, deixemos o sintoma no
que ele é: um acontecimento de corpo.
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143
43A
O DESAMPARO: DAS IMPOTÊNCIAS DO SUJEITO A UM LUGAR
DE POSSIBILIDADES
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre as vivências de desamparo, visando identificar, a partir das experiências de
sofrimento, as frágeis amarras do sujeito pós-moderno frente às demandas do social. O trabalho, de cunho bibliográfico,
percorre a noção de desamparo em Freud, pela investigação rigorosa de seus escritos e seleção de alguns importantes
textos, perpassando também discussões teóricas formuladas sobre o tema. Parte-se da etimologia do termo desamparo
no alemão Hilflosigkeit, com elaborações sobre as vivências de satisfação, medo, perda do amor, culpa e mal-estar,
formuladas por Freud em sua obra. Demonstra-se que, apesar de persistirem na pós-modernidade arranjos discursivos
que sustentam um amparo imaginário, o desamparo, na qualidade de elemento constitutivo do sujeito, aponta para o
limite e a possibilidade de edificação do laço social, enquanto lugar possível de cuidado, num mundo onde não há, nem
nunca houve, quaisquer garantias.
Abstract: This paper proposes a reflection on the helplessness’s experiences, aiming to identify, from the experiences of
suffering, the fragile ties of the post-modern subject in the face of social demands. The article has a bibliographical nature,
covering Freud’s helplessness notion through a rigorous investigation of his writings, a collection of some important texts,
and theoretical discussions formulated on the subject. It combines the etymology of the term helplessness in German
(Hilflosigkeit), with amplification on the experiences of satisfaction, fear, loss of love, guilt, and discomfort, expressed
by Freud in his work. It is shown that, despite the persistence of discursive arrangements in post-modernity that sustain
imaginary support, helplessness, as a constitutive element, points to the limit and the possibility of building the social bond,
as a possible place of care, in a world where there has never had any guarantees.
1 Graduanda de Psicologia (UNIS). Graduada em Direito (FADIVA). Atua profissionalmente como servidora pública do TJMG. Membro do Interfaces
em Psicanálise - Núcleo de Pesquisas e Estudos. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9607336444335263. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1469-3616.
E-mail: dunia.aia@alunos.unis.edu.br.
2 Graduado em Psicologia (UNIFENAS). Mestrado em Psicologia (UFSJ). Professor do Grupo Unis-MG e Coordenador da Pós em Psicanálise do Unis-
MG e do Interfaces em Psicanálise – Núcleo de Pesquisas e Estudos. Colabora no Instituto Internacional de Psicanálise (IIP). Lattes: http://lattes.
cnpq.br/1126366899756942. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3965-0564. E-mail: janilton.gabriel@unis.edu.br.
3 Graduado em Psicologia (UNIFENAS). Doutor em Educação (UNIMEP). Professor do Grupo Unis-MG no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Gestão e Desenvolvimento Regional. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5303526458310366. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8120-6219.
E-mail: alessandromoreira@unis.edu.br.
4 Graduado em Psicologia (UEMG) e em Filosofia (UFLA). Doutor em Psicologia (UFMG). Pós doutor em Psicologia Clínica (USP). Professor da Pós
em Psicanálise do Unis-MG e Psicanálise e Saúde Mental da Faculdade Pitágoras (Divinópolis). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9753508439908716.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6042-7546. E-mail: roberto.mendonca@professor.unis.edu.br.
Introdução
O presente artigo propõe uma reflexão sobre a vivência de desamparo, intrínseca à condição
humana, com a qual os indivíduos hão de se deparar em vários momentos da vida, experimentando,
muitas vezes, intenso sofrimento. Sofrimento este, que revela o mal-estar citado por Freud
(1930[1929]/2020), presente no convívio social como marca inevitável da existência.
Pensar a inevitabilidade do mal-estar decorrente da renúncia às pulsões, que permite a
inscrição no laço social, é fundamental para compreender a relação de codependência entre os
indivíduos numa dimensão mais ampliada, dimensão de desamparo, condição indelével do existir.
Assim, caberá percorrer parte da obra freudiana, em busca da construção da noção psicanalítica
de desamparo, como também trazer à tona as discussões teóricas e elaborações de alguns outros
autores sobre tão importante temática.
Além de um convite à reflexão, este estudo de revisão bibliográfica almeja analisar qual o lugar
do desamparo na vida humana, enquanto marco do limite e espaço de possibilidade, revelando-
se como motivação primordial para o enlaçamento entre os indivíduos e o estabelecimento das
relações sociais. Vale ressaltar, a construção do presente trabalho, elaborado durante a pandemia
de COVID-19, permitiu observar que o desamparo constitutivo do sujeito desponta de modo a
também exigir deslocamentos capazes de situá-lo frente a mais esta contingência.
A experiência que nos remete a estas reflexões neste momento histórico, a vivência
da pandemia de Covid-19, é da ordem do trauma e daquilo que Lacan denominou como Real
(KAUFMANN, 1996, pp. 444-445). O perigo, situado num inimigo invisível e impalpável, pegou de
surpresa toda população mundial, ainda sem defesas imunológicas suficientes e sem protocolos
terapêuticos seguros (BIRMAN, 2021). Enquanto o terror da morte assolava a humanidade, foram
necessárias medidas imediatas de isolamento e distanciamento social, a fim de lidar minimamente
com a doença desconhecida.
Fato que indubitavelmente reativou, em muitos casos, o desamparo originário do sujeito,
que necessitou apelar às instâncias alteritárias, que poderiam lhe proteger da doença com potencial
mortífero (BIRMAN, 2021). Nos países em que a resposta das autoridades instituídas mostrou-se
unívoca e confiável, a angústia dos cidadãos pôde ser relativamente apaziguada e estancada por
contornos palpáveis e tangíveis (BIRMAN, 2021). Já na experiência brasileira, cujo desgoverno da
Considerações Finais
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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.
Aceito em 08 de fevereiro de 2023. 155
55A
A COMPOSIÇÃO DA ESCUTA PELOS PROFISSIONAIS DA REDE
SOCIOASSISTENCIAL A CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
SEXUAL*
THE COMPOSITION OF LISTENING BY PROFESSIONALS OF THE SOCIAL
ASSISTANCE NETWORK TO CHILDREN IN SITUATIONS OF SEXUAL
VIOLENCE
Luciane De Conti 1
Débora de Bitencourt Fél 2
Marjorie Dariane da Silva Machado 3
Laura Mirapalhete Graña 4
Resumo: Trata-se de uma pesquisa-intervenção que se constituiu na aposta de interfaces fecundas entre a psicanálise e
as políticas públicas. O estudo teve como objetivo investigar os efeitos que a oferta da escuta a crianças em situação de
abuso sexual produz nos profissionais da rede socioassistencial. Para isso, participou da pesquisa a equipe de um serviço
de referência da política de Assistência Social. Como metodologia de trabalho, propusemos a construção do caso, em que
se realizava o relato das situações de violência e a discussão dos casos. Os resultados apontam vários pontos de tensão no
trabalho da equipe decorrentes do acompanhamento e do cuidado realizados junto a essas crianças e suas famílias. Como
conclusão, destaca-se a importância de se constituir grupos de discussão que tenham as práticas de trabalho como foco de
reflexão e a necessidade de qualificar o fluxo das informações entre os serviços da rede socioassistencial.
Abstract: This is a research-intervention that was constituted in the betting of fruitful interfaces between psychoanalysis
and public policies. The study aimed to investigate the effects that the offer of listening to children in a situation of sexual
abuse produces in the professionals of the social assistance network.To this end, the staff of a reference service of the Social
Assistance policy participated in the research. As a work methodology we proposed the construction of the case, in which
the situations of violence were reported and the cases discussed.The results point to several points of tension in the staff’s
work arising from the monitoring and care provided to these children and their families. As a conclusion, we highlight the
importance of setting up discussion groups that have the work practices as a focus for reflection and the need to qualify
the flow of information between the services of the social assistance network.
* O presente artigo faz parte do projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq intitulado A
tessitura da escuta a crianças em situação de violência/abuso sexual pelos profissionais na rede de assistência (Edital MCTI-CNPq No. 14/2014
Processo nº456818/2014-6).
1 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela
UFRGS. Docente e pesquisadora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e
Cultura, Instituto de Psicologia, Serviço Social, Saúde e Comunicação Humana da UFRGS. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1172756538624937. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-6022-9259. E-mail: luciane.conti@ufrgs.br
2 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise:
Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, sob a orientação da primeira autora. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/5615353353205730. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3633-2931. E-mail: deborabfel@gmail.com
3 Graduada em Psicologia pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI e Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, sob a orientação da primeira autora. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/1572645042258768. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8574-904X. E-mail: marjorie.psique@gmail.com
4 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi bolsista de Iniciação Científica – PIbic/CNPq/UFRGS no projeto A
tessitura da escuta a crianças em situação de violência/abuso sexual pelos profissionais na rede de assistência (Edital MCTI-CNPq No. 14/2014
Processo nº456818/2014-6), sob a orientação da primeira autora. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7088376063993472. ORCID: https://orcid.
org/0009-0005-6138-9659. E-mail: lauramgrana@gmail.com
Introdução
Rosa (2002, p. 12, grifo nosso) coloca que “[...] nas situações de extrema angústia e perda
de referenciais identificatórios prevalece a importância da oferta da escuta [...]”. Aliás, a ênfase na
escuta parece ser um dos aspectos privilegiados do profissional psi no contexto das políticas públicas,
seja na saúde ou na assistência social. Scarparo e Poli (2008), refletindo sobre as contribuições da
psicanálise no campo da assistência social, concluem que a possibilidade analítica de lidar com
situações-limite está no oferecimento de uma escuta que possibilite uma enunciação, tematização
e ressignificação de todos esses desamparos, até onde for possível tomar outra posição diante
Percurso metodológico
Para atingir o objetivo do nosso estudo, foi necessário compor uma rede de produção de
dados que colocasse em cena os discursos produzidos pelos profissionais da rede de atendimento
nos (des)encontros realizados com crianças em situação de abuso sexual e seus familiares e/ou
responsáveis. A configuração dessa rede foi tecida pouco a pouco, pois, como aponta Figueiredo
(2004), era preciso construir uma transferência de trabalho entre o grupo de pesquisa e a equipe
profissional do serviço onde realizamos nosso percurso investigativo. Essa transferência, segundo
Figueiredo (2004), seria a condição de estabelecimento de um laço produtivo entre pares visando à
produção de um saber a partir do fazer clínico.
Nesse sentido, Figueiredo (2004) afirma que recolher os traços significantes como
indicadores do “sujeito” é fundamental para a instalação de uma clínica do sujeito no coletivo, a
qual irá se constituir a partir dos fragmentos cotidianamente recolhidos no trabalho da equipe. A
autora coloca ainda que a clínica do sujeito no coletivo se constrói para além do “saber” do técnico,
pois é fruto da experiência renovada com os dispositivos já existentes a partir dessa convocação do
sujeito ao fazer, mas também ao dizer, a tomar posição nas mínimas situações, por mais precárias
que sejam.
Dessa forma, a construção da rede de trabalho se deu de forma singular. Iniciamos nosso
percurso em agosto de 2014, entrando em contato com gestores e profissionais da Fundação de
Assistência Social e Cidadania (FASC) a fim de definirmos em conjunto o contexto em que seria
proposta a produção da nossa pesquisa. No município, a FASC é o órgão gestor e executor dessa
política, trabalhando na perspectiva do acesso da população à promoção e à garantia de direitos e
cidadania. No momento da pesquisa havia 9 CREAS e 22 Centros de Referência de Assistência Social
(CRAS) no município, além dos demais serviços de média e alta complexidade, como centros para
atendimento da população adulta em situação de rua, abrigos, repúblicas, casas-lares e albergues.
Cada um desses serviços encontrava-se em diferentes níveis de organização e qualificação, sendo
alguns deles dos próprios centros e outros conveniados com instituições não governamentais.
1 Na sequência, em julho de 2015 apresentamos o projeto para análise ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da
Universidade, sob o número CAEE 47029915.6.1001.5334, cuja aprovação se deu em 09/08/2015.
2 Para manter a confidencialidade da identidade dos participantes da pesquisa, optamos por não identificar o
CREAS onde o estudo foi realizado.
160
60A
acompanhamento. Esse momento serviu como disparador da discussão dos casos para, a partir
disso, seguindo a inspiração dada por Figueiredo (2004), recolhermos os fragmentos de saber
produzidos no cotidiano dos atendimentos e fazer circular seus efeitos na equipe, pondo-a na direção
do trabalho compartilhado. Com isso, apostamos que seria possível tecer reflexões acerca das
intervenções ou ações da equipe nos atendimentos às crianças e seus familiares, perpassadas pelas
(im)possibilidades de escuta do discurso desses sujeitos pela equipe, sendo essas impossibilidades
descritas anteriormente. Conforme coloca Figueiredo (2004, p. 80),
As discussões realizadas em equipe sustentam o funcionamento
de nosso método e remetem mais a um trabalho de construção
do que de supervisão, ainda que no seu desenrolar tangenciem
a experiência de supervisão. No entanto, diferem tanto do
modelo do aprendiz/aluno quanto do praticante e, mesmo,
de uma supervisão em grupo (intercontrole), já que não se
trata de chegarmos à última palavra sobre qualquer conceito
ou fenômeno. Convém lembrar que, decidir absolutamente
sobre a verdade deste ou daquele caso estaria, por princípio,
em contradição com uma supervisão verdadeiramente
analítica. Porém, ao contrário da supervisão, a discussão não
se encerra ao término da sessão, ela continua e remete-se ao
pesquisador/analista que apresentou o caso. Num primeiro
tempo, ocorre um retorno sobre ele em sua condição de sujeito
(até aí não difere exatamente da supervisão). Num segundo
tempo, trata-se da reapropriação do saber pelo analista
na condição de pesquisador. Finalmente, este saber que é
depositado é um produto. Este produto é o ponto de basta
feito pelo pesquisador na condição de analista/praticante. O
entrelaçamento das funções de sujeito, pesquisador, analista
rompe qualquer fixidez de posição diante do saber. Portanto,
sustentamos a construção – e não a super-visão – manejando
os impasses que atravessam o cotidiano de nossa prática,
apostando na formalização possível de seus princípios.
Resultados
Nesse percurso, um dos problemas identificados pela equipe diz respeito à configuração de
uma rede de acompanhamento a esses casos. Isso porque, na maioria das vezes, os encaminhamentos
para o CREAS são dados diretamente “na mão” das famílias, deixando a cargo delas essa procura
[...] o que vem pra nós do CRI é um breve relato, nada mais
que isso... nem é um relato dirigido pro CREAS [...] É para o
Ministério [...] Tanto que não é nem um parecer, né. É um
comunicado de acolhida no CRI. E às vezes eles veem, a família
e a criança, uma única vez.
162
62A
Nessas discussões de caso, notamos que as questões que movimentam a equipe em
relação às situações de violência sexual por ela trabalhadas apresentam aspectos comuns, os quais
denominamos “pontos de tensão”. O primeiro ponto de tensão aponta para certa morosidade que
tangencia a composição da rede de assistência (motivada por diferentes fatores). Essa morosidade
acaba por reproduzir a violência/exclusão que essas famílias em situação de vulnerabilidade
já vivenciam. O que se explicita com as narrativas é que essa forma de encaminhamento pelos
serviços da rede produz uma quebra no acompanhamento a esses sujeitos que, na maioria das
vezes, acabam chegando até o CREAS meses depois via judiciário, dado que outro encaminhamento
do CRI é a notificação ao MP. Porém, a equipe pondera que o número de atendimentos realizados
pelo CRI é grande, dado que o serviço é referência para situações de violência em todo o estado.
A equipe adverte, também, que as diversidades regionais nos fluxos de atendimento a essas
situações e as mudanças ocorridas de governo a governo em torno das políticas públicas – de
assistência social e também da saúde – acabaram produzindo rupturas nos processos que vinham
ocorrendo e, com isso, formas de intervenção que terminam, muitas vezes, tornando-se confusas.
Ou, no mínimo, uma questão muito confusa, qual era a
situação demandada ali. Também porque tem, não em Porto
Alegre, mas eu sei que tem alguns municípios que os CREAS
começaram como serviço especializado de atendimento em
abusos sexuais. Então teve alguns municípios que tinham
serviços, que o CREAS ficava com esse serviço especializado
de atendimento e tem, também na história, o Sentinela, que
foi um programa específico que foi criado num determinado
momento que se situava dentro do serviço de assistência,
mas era uma equipe contratada especificamente pra isso.
[...] E então teve diferentes momentos em diferentes lugares,
né, e isso é muito comum nos serviços: ora tu constrói um
determinado fluxo, aí daqui a pouco aquilo se perde de novo
[...] (Narrativa da equipe).
Enfim, o que podemos escutar nessas narrativas é que há um ponto de tensão inicial
no acompanhamento aos casos de violência sexual, motivado pelo próprio fluxo nos e entre os
serviços, pois, como aparece na narrativa da equipe, “[...] parece que cai na rede e meio que se
perde ali muito... assim, é a coisa da composição da rede que é... que tem muito êxito mas também
tem muitos percalços... Tem um furo às vezes muito grande, a malha da rede é muito grande [...]”.
Nomeamos esse tópico como considerações quase finais, visto que muitas interrogações
se abriram na direção do que podemos considerar acerca de uma clínica em situações sociais
críticas, de um trabalho de escuta voltado para os profissionais que acolhem sujeitos em situações
de violência sexual nas políticas de assistência social e das interrelações entre as políticas de
assistência, de saúde e o sistema judiciário.
A análise das vias de construção dos casos configurada pela equipe do CREAS e associada
à discussão dos resultados da pesquisa, que realizamos posteriormente com a equipe, permite-
nos enunciar que os casos que envolvem abuso sexual na infância/adolescência apresentam-
se, quase invariavelmente, como situações nebulosas. Neles, algo parece sempre “escapar” ao
“entendimento” do que “efetivamente” se passou, o que exige um longo e angustiante trabalho de
Enfim, nosso trabalho acompanhando essa equipe por vários meses nos permite afirmar o
quão essencial é, para os profissionais que trabalham com situações tão extremas, compor espaços
de narração das vivências experimentadas em seus cotidianos de ação. Tal experiência mostrou-se
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169
69A
A CONVERSAÇÃO ATIVA COMO PROPOSTA DE ABORDAGEM
METODOLÓGICA EM PSICANÁLISE: UMA ESCRITA EM DOIS
TÓPICOS
Resumo: O presente artigo apresenta e discute o dispositivo da conversação ativa como método de pesquisa e intervenção
psicanalítica nas instituições. A discussão considera especialmente o uso desse dispositivo para tratar de uma questão que
nasce das demandas de educadores relativas a alguns usos da internet por adolescentes e aos impasses deles decorrentes,
como, por exemplo, a formação de sintomas e adoecimentos. Descreve a forma como as conversações são realizadas e
sugere uma chave de leitura que se baseia na teoria lacaniana dos discursos para analisar o material fruto dos encontros.
Abstract: The article in question presents and discusses the device of active conversation as a method of research and
psychoanalytic intervention in institutions. The discussion especially considers the use of this device to deal with an issue
that arises from the demands of educators regarding some uses of the internet by adolescents and the resulting impasses,
such as the formation of symptoms and illnesses. It describes how the conversations are carried out and suggests a reading
key that is based on the Lacanian theory of discourses to analyze the material resulting from the meetings.
1 Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorado e mestrado em psicologia pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Atua em pesquisas voltadas para a área de interlocução entre psicanálise e educação desde 2007. Atualmente é pesquisadora do
Laboratório de Psicologia e Educação do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais e do Laboratório de pesquisa Além
da Tela: psicanálise e cultura digital. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1372716622012772. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0557-169X.
E-mail: jutassara@hotmail.com
2 Doutoranda em Psicologia pela UFMG, Mestre em Psicologia - Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Psicóloga pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduada em Educação Especial Inclusiva pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia. Pesquisadora do Além da Tela Psicanálise e Cultura Digital. Atuação
como psicóloga/psicanalista no atendimento clínico a crianças, adolescentes e adultos. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7470-9907.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8009737890995945. E-mail: pgpsicologa@gmail.com
3 Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Doutorado e Mestrado em Educação pela UFMG, e Graduação em Psicologia pela UFMG.
É professora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Coordena o grupo de pesquisa: Além da Tela: psicanálise e cultura digital, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. É
autora do livro: A escrita virtual na adolescência: uma leitura psicanalítica (Editora UFMG), e co-organizadora de vários livros. Ênfase na produção
acadêmica e profissional junto aos temas: psicanálise e cultura digital, psicanálise e educação, clínica psicanalítica com crianças e adolescentes.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7949-0169. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9516537449598946. E-mail: nadia.laguardia@gmail.com
Introdução
Freud acrescenta que cabe ao psicanalista a tarefa de adequar a técnica às novas condições.
Assim, ele se debruça sobre as vicissitudes da vida na pólis, considerando a indissociabilidade entre o
psíquico e o social e destacando o compromisso político do psicanalista. A orientação freudiana nos
serve de guia para a aposta em dispositivos que permitam operar o inconsciente na transferência,
nos diversos espaços sociais e institucionais.
É preciso considerar, ainda, a indissociabilidade entre pesquisa e clínica em psicanálise. Em
Dois Verbetes de Enciclopédia (1923), Freud enuncia que
Psicanálise é um nome de: (1) um procedimento para a
investigação de processos mentais que são quase inacessíveis
por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa
investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e
(3) um conjunto de informações psicológicas obtidas ao longo
dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova
disciplina científica. (FREUD, 1923, p. 287)
A pesquisa em psicanálise diferencia-se das pesquisas oriundas das ciências sociais por
incluir a dimensão inconsciente. A técnica de investigação psicanalítica é, desde Freud, baseada
na escuta clínica, mais precisamente na escuta orientada pela associação livre. Freud (1912/1989)
afirma, inclusive, que a associação livre é, pelo menos para ele, a única técnica de investigação
psicanalítica viável. Vale acrescentar que ele inclui aí o inconsciente do próprio psicanalista, que,
a partir da atenção flutuante, “deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na
direção do inconsciente transmissor do paciente” (FREUD, 1912/1989, p. 154). Assim, a produção
de saber em psicanálise é determinada e regida pelo inconsciente. Para Mezan (1998), mesmo um
texto psicanalítico feito por encomenda1 não estaria isento das influências inconscientes do autor.
1 Mezan (1998) descreve os textos produzidos por encomenda como aqueles cujo propósito é atender a uma
demanda específica, como, por exemplo, discutir um determinado tema de um evento ou de uma publicação. Este
texto é fruto de duas pesquisas distintas de doutoramento.
171
71A
Para ele, tais influências não se furtam na escrita, ao contrário, habilmente escapam no conteúdo
do texto, ora pelos caminhos do tratamento da questão, ora por seus destaques ou omissões a
determinadas ideias. Vale ainda lembrar que, para a sua escrita, ou para a sua prática, cada
psicanalista carrega consigo a sua “teoria portátil”:
É essa teoria portátil que, ancorada nos e amalgamada
com os resultados da sua própria análise, irá funcionar
pré-conscientemente como instrumento de apreensão do
que lhe disseram seus pacientes, e como instrumento de
formulação para suas intervenções, bem como lhe permitirá
eventualmente retomar tais intervenções e submetê-las a
alguma forma de exame crítico. (MEZAN, 1998, p. 60)
2 Segundo dados divulgados pelo IBGE (16/09/2022), 51,4% das crianças e adolescentes de 10 a 13 anos de
idade contam com celular para uso pessoal no Brasil. As conclusões integram um módulo da Pnad Contínua
(Pesquisa Nacional por amostra de domicílios contínua). Segundo a pesquisa TIC Kids on-line Brasil, do Comitê
Gestor da Internet no Brasil, “93% das crianças e adolescentes do país entre 9 e 17 anos são usuárias de internet,
o que corresponde a cerca de 22,3 milhões de pessoas conectadas nessa faixa etária” (CRUZ, 2022, online). No
entanto, enquanto crianças e adolescentes das classes sociais privilegiadas acessam a internet por uma série de
dispositivos tecnológicos, mais de 50% das crianças e adolescentes das classes sociais mais baixas acessa a internet
exclusivamente pelo telefone celular.
173
73A
Uma proposta de abordagem metodológica
Apresentada a questão, qual seria o caminho metodológico para buscar respostas pertinentes
e ao mesmo tempo produzir efeitos éticos a partir da demanda? Aqui, cabe um esclarecimento
inicial: os relatos mencionados foram obtidos na prática de um projeto universitário de pesquisa
e extensão que responde com a oferta de escuta à demanda dos educadores sobre problemas
relativos ao uso inadequado e abusivo das redes sociais pelos adolescentes.
A oferta que o grupo faz à escola parte da recusa de oferecer um modelo vertical de
intervenção. Frequentemente, pede-se em auxílio que sejam ministrados cursos, palestras e
capacitações sobre o tema para os envolvidos. Todavia, seguindo uma ética de trabalho, o grupo
faz uma aposta: a criação de espaços de fala dialógicos como via de acesso aos jovens no âmbito
da instituição escolar.
Freud, ao abordar a posição do analista nas instituições, em Linhas de progresso na
psicoterapia psicanalítica (1918/1989), destaca o valor da psicanálise aplicada a formas de
tratamento diferentes da clínica tradicional dos consultórios. O psicanalista ressalta a importância
de sua utilização em instituições como forma de não restringir o tratamento psicanalítico às classes
sociais mais favorecidas economicamente. Ele já adianta aí que o tratamento psicanalítico terá que
assumir novas formas, ainda desconhecidas, e que essas novas formas de aplicação da psicanálise
serão efetivas desde que seus ingredientes sejam “aqueles tomados à psicanálise estrita e não
tendenciosa” (FREUD, 1918/1989, p. 211).
Na mesma perspectiva, Lacan, em Proposição de 9 de outubro de 1967 (2003), retoma a
discussão sobre a aplicabilidade da psicanálise nas instituições ressaltando que ela não se desvincula
da psicanálise pura, didática ou em intensão. Nesse sentido, é possível ao psicanalista sustentar o
discurso psicanalítico em outros contextos que não o consultório. Como salienta Macêdo (2011),
a psicanálise é um tratamento do impossível, onde quer que operem seus dispositivos. Em suas
palavras:
Ao ofertarmos a psicanálise, ofertamos um discurso e,
também, um dispositivo. Ao convidarmos o sujeito a falar
o que lhe vem à mente, ao ofertarmos a associação livre,
estamos ofertando um dispositivo, e um dispositivo é um fato
instituído, instituinte, institucional! (MACÊDO, 2011, online).
Como salienta Rosa (2018), o método psicanalítico vai do fenômeno ao conceito e constrói
uma metapsicologia não isolada, mas fruto da escuta psicanalítica, que não enfatiza ou prioriza a
interpretação, a teoria por si só, mas integra teoria, prática e pesquisa. O psicanalista não aplica
teorias, não é o especialista da interpretação, nem mesmo da fantasia, posto que não é só aí que
o inconsciente se manifesta; o psicanalista deve estar a serviço da questão que se apresenta. A
observação dos fenômenos está em interação com a teoria, produzindo o objeto da pesquisa, não
dado a priori, mas produzido na e pela transferência.
178
78A
Nesse esforço de produção de saber, estamos cientes da impossibilidade de qualquer
categoria simbólica recobrir o real, e de que todo esforço de classificação não dá conta dos desafios
da clínica. O saber é sempre não-todo. Não há uma solução universal para suportar a não relação
sexual que exila os seres falantes uns dos outros (DEWAMBRECHISE-LA SAGNA, 2020).
A proposta de escuta dos adolescentes parte de um não saber: o saber sobre a adolescência
está ao lado do adolescente. Para Mezan (1993), os ditos produzidos a partir da prática clínica
devem ser tratados de uma forma que se preocupe menos em dar uma interpretação adequada e
mais em traduzir em forma de conceito aquilo que se ouviu e o que se fez ouvir desta ou daquela
forma:
O dito pelo paciente é considerado como o elo final de um
processo, e a abordagem teórica consiste em determinar com
algum grau de probabilidade, o tipo de processos que podem
estar em jogo para produzir tal ou qual fenômeno (MEZAN,
1993, p. 58).
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82A
CARREIRA E PSICANÁLISE NA CONTEMPORANEIDADE
Resumo: Este artigo integra uma abordagem no desenvolvimento de uma pesquisa de mestrado e objetiva compreender
como os conceitos de carreira e psicanálise se relacionam na contemporaneidade. Reflete como o sujeito é afetado na
construção identitária e no direcionamento das pulsões ao trabalho. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, através de
uma revisão de literatura sobre o tema. A relevância dessa reflexão encontra-se na premissa de que relações de trabalho
ajudam compreender como configuram-se os sujeitos e suas relações sociais, assim como a psicanálise contribui nessa
compreensão e nas influências que o trabalho exerce no sujeito. Trabalhar constitui fonte de satisfação e gozo, é um dos
elementos da vida que prende os sujeitos à realidade e concede um lugar no mundo, mas pode ser fonte de sofrimento.
Concluiu-se que produtividade e performance são importantes na contemporaneidade, porém, trabalho não se limita a
isso, e que é necessário espaço para ressignificar esses conceitos.
Abstract: This article integrates an approach in the development of a master’s research and aims to understand how the
concepts of career and psychoanalysis are related in contemporary times. It reflects how the subject is affected in the
construction of identity and in the direction of impulses to work. It is bibliographic research through a literature review
on the subject. The relevance of this reflection lies in the premise that work relationships help to understand how subject
and their social relationships are configured, just as psychoanalysis contributes to this understanding and the influences
that work exerts on the subject. Working is a source of satisfaction and enjoyment, it is one of the elements of life that
holds individuals to reality and grants them a place in the world, but it can be a source of suffering. It was concluded that
productivity and performance in contemporary times are legitimate, but work is not limited to that and spaces for other
meanings are necessary.
1 Mestrando em Gestão e Desenvolvimento Regional pelo Centro Universitário do Sul de Minas - UNIS, Psicanalista Clínico pela Associação Mineira
de Psicanálise Contemporânea, Especialista em Gestão Executiva de Negócios pela PUC-MG e Controladoria e Finanças pela Universidade Federal
de São João Del Rei, Bacharel em Administração pela Universidade Federal de São João Del Rei. Professor Visitante no Centro Universitário do Sul
de Minas - UNIS. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0967-6950. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6475981162099182. E-mail: fernando.carvalho@
alunos.unis.edu.br
2 Doutora em Educação: Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Docente/Pesquisadora no Mestrado em
Gestão e Desenvolvimento Regional do Centro Universitário do Sul de Minas – UNIS. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4670-4735. CV Lattes
http://lattes.cnpq.br/1121250347999409. E-mail: maria.avila@professor.unis.edu.br
3 Doutor em Educação pela Universidade São Francisco – USF, Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso - Universidade do Vale do
Rio Verde - UNINCOR – MG, Especialização Lato-Sensu Docência na Educação a Distância no Centro Universitário do Sul de Minas – UNIS/MG,
Licenciatura em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas/SP. Secretário Geral do Centro Universitário do Sul de Minas - UNIS-MG
e do Grupo Educacional UNIS. Docente nos cursos de graduação e no Mestrado em Gestão e Desenvolvimento Regional no Centro Universitário
do Sul de Minas –Unis/MG. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4582-1913. CV Lattes: https://lattes.cnpq.br/7632740026678426. E-mail: ari@
unis.edu.br
Introdução
184
84A
Trabalho, carreira profissional e psicanálise
Para Bauman (2001), o vocábulo “trabalho” (labour), no sentido de um esforço físico
destinado a atender às necessidades materiais da sociedade, foi registrado, pela primeira vez, em
1776. Ao longo do tempo, devido ao desenvolvimento do sistema capitalista e às mudanças sociais
em curso, o conceito de trabalho passou a adquirir novas conotações e significados.
Ferreira e Dutra (2013) observam que, a partir da década de 1980 (assim como aconteceu
no início do século XX), houve um retorno das discussões sobre trajetória profissional e carreira,
causado por significativas mudanças estruturais nos campos: social, político, tecnológico e
econômico. Tais fatos demandaram dos sujeitos que desempenham suas atividades profissionais
uma nova forma de observar suas carreiras e a relação com as novas organizações.
Carreira, em uma perspectiva psicológica, segundo Bacelar, Campos e Cappelle (2021),
engloba as experiências vivenciadas pelos sujeitos a medida em que suas próprias trajetórias
são desenvolvidas, do surgimento de papéis sociais e do desenvolvimento pessoal. Os autores
afirmam, também, que a pesquisa sobre ocupações em estudos organizacionais tem se
concentrado mais nas ocupações como atributos estáticos e menos na dinâmica processual
do desenvolvimento da carreira. Compreender a carreira de um indivíduo com base em uma
perspectiva processual envolve compreender suas trajetórias e dinâmicas de trabalho que se
desenvolvem e afetam as dimensões individuais ao longo da vida.
Conforme Anjos (2019), a inserção no meio profissional, a escolha de uma carreira
(quando há de fato a possibilidade de uma escolha) e a realização de um ofício constituem formas
fundamentais de entrada e permanência na comunidade. O autor afirma que não trabalhar tende
a colocar o indivíduo em oposição aos demais membros da sociedade. Isso também se aplica, em
alguma medida, a indivíduos que escolhem formas de trabalho alternativas ao modelo capitalista
empresarial tradicional, muitas vezes sendo criticados. Enfim, não se trata, apenas, da inserção ou
não no mercado de trabalho, mas da maneira pela qual esse processo ocorre. E espera-se, ainda,
que o sujeito se posicione de forma competitiva.
Nesse sentido de pertencimento social, Freud (1920–1923/2013) expõe que o fato de o
sujeito abandonar sua peculiaridade em meio aos membros de uma sociedade implica que estes o
sugestionem, e que aquele age dessa maneira porque precisa estar de acordo e não em oposição
aos demais, talvez por amor a eles.
Freud (1930–1936/2010), afirma que a civilização quer unir também libidinalmente os
membros da comunidade. Favorece meios e caminhos para estabelecer identificações entre eles,
187
87A
A construção identitária do sujeito pulsional e a direção de suas
pulsões nas relações de trabalho contemporâneas
Para iniciar essa reflexão, é fundamental apresentar o conceito do termo “contemporâneo”.
Em sua significação literal, se refere ao momento atual; portanto, contextualizar tal reflexão à
contemporaneidade significa observar características e fatores sociais que influenciam, direta
e indiretamente, as significações que os sujeitos fazem de sua existência. Conforme Guimarães
(2014), não se tem intenção de levantar polêmica sobre o significado ontológico dos termos:
moderno, pós-moderno, hipermoderno ou modernidade tardia, especialmente porque o emprego
destes não encontra um consenso entre os próprios pensadores. Porém, contextualizar é observar
o ambiente, é buscar entender como as vidas dos sujeitos são afetadas pelo campo social, como as
relações de trabalho são afetadas por mudanças e pressões e que efeitos tem na vida do sujeito, na
sua subjetividade e na sua saúde mental.
Segundo Safatle, Silva Junior e Dunker (2019, p.7), “uma sociedade pode ser analisada
como um sistema de normas, valores e regras que estruturam formas de ação e julgamento em
suas aspirações de validade”. Bauman (2007) observa que a perfuração e a quebra de fronteiras
designadas como globalização permitiram maior abertura às sociedades, com poucas exceções.
Abertas nos sentidos intelectual e material. O sociólogo reforça que, se a ideia de “sociedade
aberta” era fundamentalmente alinhada com a ideia de uma sociedade livre que esperava essa
abertura, agora traz à mente dos sujeitos nela inseridos uma experiência “aterrorizante de uma
população heterônoma, infeliz e vulnerável, confrontada e possivelmente sobrepujada por forças
que não controla e nem entende totalmente” (p.13).
Segundo Bauman (1999), para abrir caminho nesse cenário denso e desregulamentado da
competitividade global e chegar ao centro da atenção pública, os bens e serviços devem despertar
desejo, portanto devem seduzir os consumidores e afastar seus competidores. O sociólogo
completa que, ao conseguirem, devem rapidamente abrir espaço para outros objetos de desejo.
Ou seja, observa-se, nessa sociedade contemporânea, uma forte obsolescência programada dos
bens e serviços, muitas vezes definindo as identidades dos sujeitos com base no que consomem e
no que acumulam.
Roudinesco (2000) observa que tal sociedade se interessa pelo sujeito para contabilizar
seus sucessos e objetiva classificar o sujeito sofredor como uma vítima. Concolatto, Oltramari e
Santos Filho (2016) afirmam que é esperado do trabalhador atual que seja produtivo e eficiente. O
trabalho requer tarefas e atividades, pois é o objetivo legítimo o alcance de resultados. No entanto,
Considerações Finais
Buscou-se, neste artigo, refletir sobre as contribuições da psicanálise em relação à
compreensão da carreira e trajetória de vida dos sujeitos na contemporaneidade. Qual o ponto de
encontro entre os conceitos de carreira e psicanálise? Qual o diálogo possível entre esses conceitos?
Como a psicanálise pode contribuir para a compreensão da carreira do sujeito contemporâneo?
Para conseguir responder tais questões, desenvolveram-se os seguintes eixos de análise: a) como
se relacionam os conceitos de carreira profissional com os pressupostos da teoria psicanalítica? b)
Como o cenário contemporâneo tem afetado o sujeito pulsional em sua construção identitária e no
direcionamento de suas pulsões às relações de trabalho à luz da psicanálise?
Por que não referenciar os pressupostos psicanalíticos para a compreensão do sujeito
contemporâneo em sua trajetória profissional? A psicanálise, por colocar o inconsciente, a morte
e a sexualidade no cerne da psique humana, parece ser, ainda mais, atacada na atualidade por ter
conquistado o mundo pela singularidade de uma experiência subjetiva. A sociedade contemporânea,
inscrita no movimento de uma globalização econômica, que transforma os homens em objetos,
resiste em querer ouvir em culpa, sentido íntimo, consciência, desejo e inconsciente, o que reforça
ainda mais a lógica narcísica, mais distante posiciona-se da ideia de subjetividade.
Considera-se que os pressupostos psicanalíticos como inconsciente, desejo, pulsão, libido,
190
90A
sublimação, pertencimento e tantos outros são objetivamente fundamentais para se compreender
o sujeito na contemporaneidade. A aproximação entre psicanálise, organizações e gestão costuma
gerar preconceitos por parte daqueles que acreditam não ser de interesse da área esse tipo de
discussão. Isso ocorre porque, na maioria das vezes, o potencial da psicanálise é desconhecido para
a compreensão dos fenômenos sociais e para a transformação das atitudes das pessoas e dos grupos
perante a própria realidade. Para aqueles que desenvolvem atividades relacionadas à subjetividade
humana, é de fundamental importância que se atentem às ferramentas de pensamento para
refletirem sobre o sentido, e as influências do trabalho na vida humana.
Entre tantas atividades da vida, o trabalho constitui o locus onde o sujeito vivencia grande
parte de seu tempo. Isso constitui fonte de satisfação especial, de gozo, se for livremente escolhida,
por meio da sublimação. É, também, um dos elementos da vida que prende os sujeitos firmemente
à realidade e concede um lugar no mundo e na comunidade humana. A atividade profissional
desempenhada pelo sujeito produz efeitos na sociedade na qual está inserido. Da mesma maneira,
as condições sob as quais um determinado ofício é realizado impacta, direta ou indiretamente, na
vida de outras pessoas, sempre de modo significativo.
Ao mesmo tempo, esse campo pode ser fonte de angústia e sofrimento. Pressão por
produção, performance, alto desempenho, assédio, desemprego, relações precarizadas, incentivo
às práticas intensas que estimulam a competitividade, sem considerar a subjetividade dos sujeitos
envolvidos, corroem os laços fraternos, conduzindo, muitas vezes, à desumanização.
Ser produtivo, performar, gerar resultados é o que de mais importante se espera do
trabalhador. O trabalho requer que isso seja executado, é legítimo que se busque esse resultado.
Contudo, é necessário observar que ele não deve se esgotar nisso, e, na contemporaneidade, há
riscos em reduzi-lo ao alcance de resultados e à banalização das consequências disso, sem que seja
possível a abertura de espaços para pensar o que tal situação significa para o sujeito, como afeta
sua vida e suas consequências.
Como forma de intervenção no campo organizacional, não é objetificada a eliminação do
sofrimento, mas a implicação em proporcionar a elaboração de condições em que os trabalhadores
possam administrar seu próprio sofrimento em benefício de sua saúde e, portanto, de sua
produtividade. Assim, do ponto de vista psicanalítico, o sujeito tem a liberdade e a oportunidade de
olhar para si mesmo e para suas necessidades físicas e psicológicas.
Finalmente, ao refletir sobre a aproximação dos conceitos de carreira com os
pressupostos da psicanálise no presente artigo, ressalta-se a importância de serem desenvolvidos
estudos, aproximando, ainda mais, esses conceitos, com a finalidade de compreender o sujeito
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192
92A
Aceito em 08 de fevereiro de 2023.
Recebido em 16 de Janeiro de 2023.
193
93A Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04
CONTRIBUIÇÕES DA ÁREA PSI PARA O CONCEITO JURÍDICO DE
CAPACIDADE
CONTRIBUTIONS OF THE PSI AREA TO THE LEGAL CONCEPT OF
CAPACITY
Resumo: O artigo pretende conectar o Direito com as áreas Psi, assim consideradas a Psiquiatria, a Psicologia e a Psicanálise,
visando oferecer subsídios para uma melhor compreensão do conceito jurídico de capacidade. Com a mudança do Código
Civil (CC), operada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) em 2015, a capacidade passou a ser regra geral no
ordenamento legal brasileiro. A revisão bibliográfica de orientação psicanalítica dará a sustentação para os argumentos
apresentados no texto, levando a considerações de que o Direito, sozinho, não fornece elementos suficientes para a
compreensão do que é ser capaz ou incapaz, devendo colher, de outras ciências e saberes, meios que auxiliem o operador
jurídico a definir, no caso concreto, a extensão da vontade, do discernimento, da responsabilidade e da vulnerabilidade.
Abstract: The article intends to connect Law with the psi areas, thus considered Psychiatry, Psychology and Psychoanalysis,
aiming to provide subsides for a better understanding of the legal concept of capacity. With the change of the Civil Code
(CC), operated by the Statue of Persons with Disabilities (EPD), capacity became a general rule in the Brazilian legal
system. The psychoanalytically oriented bibliographic review will support the arguments presented in the text, leading to
considerations that the Law, alone, does not provide sufficient means for the understanding of what it is to be capable or
incapable, needing to acquire from other sciences, elements that help the legal operator to define, in the concrete case, the
extension of the will, of the discernment, responsibility and vulnerability.
1 Mestrando em Instituições Sociais, Direito e Democracia (FUMEC-MG). Especialista em Direito Constitucional (UNIFOR-CE). Especialista em Teoria,
Clínica e Articulações Psicanalíticas (UNIS-MG). Juiz de Direito em Minas Gerais. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6915342265671270. ORCID: https://
orcid.org/0009-0009-0775-487X. E-mail: bessa.marcio@hotmail.com
2 Doutor em Educação (UNIMEP). Graduado em Psicologia (UNIFENAS). Atualmente é professor do Grupo Unis-MG no Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Gestão e Desenvolvimento Regional. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5303526458310366. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
8120-6219. E-mail: alessandromoreira@unis.edu.br
3 Mestrado em Administração (UFLA). Graduação em Psicologia (UFSJ). Professor e coordenador do curso de Psicologia no Grupo Unis-MG. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6063005535270998 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4793-8648. E-mail: ernani.junior@unis.edu.br
4 Mestrado em Psicologia (UFSJ). Especialista em Teoria e Clínica Psicanalítica (UNIFENAS). Especialista em Teoria, Clínica e Articulações
Psicanalíticas (UNIS-MG). Graduação em Psicologia (UNIFENAS). Professor do Grupo Unis-MG e coordenador do Interfaces em Psicanálise.
Colaborador do Instituto Internacional de Psicanálise. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1126366899756942. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
3965-0564. E-mail: janilton.gabriel@unis.edu.br
5 Doutor em Psicologia pela UFMG. Pesquisador e coordenador do LaPSICC - Laboratório de Psicologia: Clínica, Ciência e Cultura. Professor e Chefe
do Departamento de Ciências Sociais e Humanidades da UEMG - Unidade Cláudio e professor no Centro Universitário de Formiga/MG - Unifor-
MG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5533451489175747. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7069-4608. E-mail: mardemls@yahoo.com.br
Introdução
195
95A
O Novo Conceito de (In)Capacidade no Direito Brasileiro
O conceito jurídico de capacidade não é desarvorado da história das ideias. Entre os gregos,
ele surge em meio às reflexões políticas a respeito da ação humana e suas aptidões, ou faculdades
(dynamis). Em grego, a noção de capacidade vem do verbo dýnamai: “posso, sou capaz” (Gobry,
2007, p. 47) e denota a capacidade do agente de passar à ação, se refere à potência de agir sobre o
outro (poieîn) ou ainda de sofrer sua ação (páskhein).
A capacidade passa a ser faculdade (facultas), capacidade que o sujeito dispõe de fazer aquilo
que ele pode fazer, e se correlaciona com o conceito de virtude (areté). Na República de Platão
(2006) essas faculdades da alma seriam em número de três: racional, concupiscível e irascível.
Aptidões que facultariam assumir os direitos e deveres em torno da res publica, da coisa pública.
Essas aptidões, em Aristóteles (2006), em seu De Anima, correspondem às partes vegetativa,
sensitiva e intelectiva da alma.
Já em Kant (2003), o conceito de faculdade (Vermmögen) pode ser interpretado como
recurso para se realizar algum fim. Kant faz a distinção entre faculdades da alma e do conhecimento,
e aqui o conceito de capacidade (Fähigkeiten) fica mais explícito, e traduz o modo como se ordena
nossa capacidade de representação do conhecer e do apetecer, da distinção e do conhecimento
necessário para o juízo e consentimento entre a boa e má ação.
No hodierno, do ponto de vista jurídico, a capacidade1 é atributo essencial para que se
adquiram direitos e se imponham deveres, tanto que a principal lei civil do país, o Código Civil de
2002 (BRASIL, 2002) inicia seu texto concedendo a “toda pessoa”, sem distinção (Art. 1º), tal como
fazia ainda em 1916, com o Código Civil de 1916 - CC/1916 (BRASIL, 1916). Ao fazê-lo, todavia,
refere-se à capacidade de obtenção (ou de direito), posto que a capacidade de exercício (ou de
fato), é tratada em seguida, nos Arts. 3º e 4º, sendo uma limitação à regra geral do Art. 1º.
Sobre a diferença entre os conceitos, não é demais lembrar, com Amari; Gediel (2020, p.
33), que a capacidade de fato “depende da ordem jurídica, e disciplina se o titular do direito pode
exercê-lo, autonomamente, sem que, para a validade de seus atos, requeira a representação ou a
assistência de outro sujeito dotado dessa capacidade”, dependendo de “gradações estabelecidas
em lei com base no grau de discernimento das pessoas”. Como se vê, gravitam, em torno do
conceito, as categorias autonomia e discernimento, noções extremamente fluidas, mormente
quando examinadas à luz da Psiquiatria, da Psicologia e da Psicanálise, conforme se verá adiante.
No entanto, a noção de capacidade de fato, então fixada pela redação original do CC/2002
(BRASIL, 2002), foi extensamente alterada. Realmente, por meio do Decreto do Poder Executivo n°
1 A palavra “Capacidade”, em sua etimologia, vem do Latim CAPACITAS, “largura, amplidão, capacidade”, de
CAPAX, “o que pode abranger muito”, de CAPERE, “tomar, pegar” (HOUAISS, 2009).
2 BRASIL, 2015.
196
96A
Um quadro comparativo demonstra melhor a mudança:
Observa-se que, com relação ao art. 3º, deixou de existir a categoria de “absolutamente
incapazes”, com exceção única dos menores de 16 anos – embora, mesmo para esses, sobretudo
a partir dos 12 anos, são garantidos diversos direitos, dentre os quais os de participar da decisão a
respeito de aspectos existenciais3.
Os antigos incisos II e III do art. 3º, que tratavam de “enfermidade ou deficiência mental”,
“discernimento” e expressão da “vontade” foram retirados dessa categoria dos “absolutamente
3 V.g. Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), art. 28, §2º, que exige o consentimento do/a
adolescente, em audiência judicial, a respeito da colocação em família substituta; e art. 45, §2º, da mesma forma,
quanto à adoção.
4 A saber: Art. 228, §2º (capacidade de testemunhar); Art. 1.550, §2º. (possibilidade de casamento); Art. 1.557,
III (erro essencial sobre o outro cônjuge); Art. 1.775-A (nomeação de curador); Art. 1783-A (tomada de decisão
apoiada) e Art. 1.963 (deserdação em caso de desemparo)
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97A
A afirmação espanta, mas não é para menos: com o EPD (sobretudo pelo art. 84)5, a
capacidade de fato passa, assim como a de direito, a ser regra6, e não mais exceção, de tal maneira
que, em princípio e em geral, todos são capazes – inclusive aqueles que, outrora, eram tidos por
deficientes – mormente com relação aos aspectos existenciais (não patrimoniais).
Essa conclusão, ademais, é retirada do art. 85 do EPD que, embora trate de curatela, oferece
diretrizes aplicáveis a todas as leis e relações jurídicas em que o deficiente participe:
Em outras palavras, a partir do EPD, a regra é que todos são capazes, inobstante deficientes
(mesmo mentais); a incapacidade somente é prevista para aspectos patrimoniais (e, ainda assim,
em caráter excepcional (§2º do art. 85), mas não para os existenciais (§1º).
Todavia, “com o objetivo de conceder autonomia às pessoas com deficiência, o Estatuto
gerou, também, problemas jurídicos”, surgindo a “necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio
entre proteção e autonomia” – quer dizer, “parece que o Estatuto desregulou a balança entre
autonomia e proteção, porque desconsidera os diversos graus de deficiência para escolher a via
única da capacidade” (Amari; Gediel, 2020, p. 60). A mesma perplexidade é compartilhada por
Gozzo e Monteiro (2019).
Um desses “problemas jurídicos” é, certamente, aquele relacionado às pessoas portadoras
de sofrimentos mentais graves (“deficientes mentais”), ou seja, aqueles que, fisicamente hígidos
ou não, possuem dificuldade, por desarranjos puramente psíquicos (ainda que decorrentes de
condições fisiológicas), de entender a objetividade do mundo, compreendendo, praticando e se
responsabilizando por seus atos civis, perante si mesmos e a outrem.
Doravante, debruça-se sobre o tema.
5 Art. 84: “A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade
de condições com as demais pessoas”.
6 Remanesce, no inciso III do art. 4º, somente a limitação decorrente de “causa transitória ou permanente”, que
venha a impedir a pessoa de “exprimir sua vontade”
7 Cf. https://www.who.int e https://www.un.org/en/about-us/un-system, acesso em 26/07/2022, às 13:09h.
8 Cf. https://www.who.int/standards/classifications/international-classification-of-functioning-disability-and-
health, acesso em 26/07/2022, às 13:10h.
9 A tradução é de Diniz (2012, p. 48), a partir de documentos obtidos junto ao site da OMS na internet. No original:
“ICF defines Disability: as functioning in multiple life area; Disability is seen as a result of an interaction between
a person (with a health condition) and that person’s contextual factors (environmental factors and personal
factors; Disability covers a spectrum of various levels of functioning at body level, person level and societal level.
198
98A
No Brasil, foi o EPD que trouxe, legalmente, o seguinte conceito:
Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou
mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva
na sociedade em igualdade de condições com as demais
pessoas (BRASIL, 2015, p. 8).
Não obstante o texto legal referir-se a “pessoa com deficiência”, o termo atualmente
mais usado pela academia é “deficiente”, e não mais “pessoa com deficiência” ou “pessoa com
necessidades especiais”, expressões utilizadas nos últimos anos: nesse sentido, Diniz (2012, p. 11),
para quem “o movimento crítico mais recente, no entanto, optou por “deficiente” como uma forma
de devolver os estudos da deficiência ao campo dos estudos culturais e de identidade” e, citando
Oliver e Barnes, diz que “a expressão ‘pessoa com deficiência’ sugere que a deficiência é propriedade
do indivíduo e não da sociedade, ao passo que ‘pessoa deficiente’ ou ‘deficiente’ demonstram que
a deficiência é parte constitutiva da identidade das pessoas, e não um detalhe” (Diniz, 2012, p. 21).
Historicamente, os estudos sobre a deficiência, sobretudo a mental, são disputados entre a
Medicina e as chamadas ciências da psiquê (por excelência, modernamente, a Psicologia), ainda que
os saberes possam conjugar-se para serem criadas outras vertentes (vg. Psiquiatria e Psicanálise).
Nas últimas décadas do século XX, também a Sociologia tem contribuído para a definição, em
especial através do “conceito social da deficiência” (DINIZ, 2012, p. 29) 10, tema a ser explorado em
outra oportunidade.
No âmbito do Direito, no entanto, tais discussões aparentemente não têm influenciado no
estabelecimento de categorias jurídicas como capacidade, discernimento, insanidade, culpabilidade,
deficiência, vulnerabilidade e responsabilidade, levando a um empobrecimento não só do debate
como da prática, uma vez que, sem o manejo adequado de certas categorias fornecidas por outras
ciências, dificilmente se chega a um consenso mínimo de significado, com o qual as decisões dos
tribunais (jurisprudência) possam se pautar.
O atual estado da arte dos estudos da deficiência mental decorre de um longo caminho
histórico, em que, como se verá, alternaram-se e amalgamaram-se duas principais visões sobre a
Disability denotes all of the following: (a) impairments in body functions and structures (b) limitations in activity
(c) restriction in participation”. Cf. https://www.un.org/esa/socdev/enable/rights/ ahc8docs/ahc8whodis1.doc,
acesso em 26/07/2022, às 17:29h. Ainda: “The International Classification of Functioning, Disability and Health
defines disability as an umbrella term for impairments, activity limitations and participation restrictions. Disability
is the interaction between individuals with a health condition (e.g. cerebral palsy, Down syndrome and depression)
and personal and environmental factors (e.g. negative attitudes, inaccessible transportation and public buildings,
and limited social supports)” (Cf. www.emro.who.int/health-topics/disabilities/index.html, acesso em 26/07/2022,
às 17:36h)
10 Diniz (2012) traz os seguintes contornos: “1) a ênfase nas origens sociais das lesões; 2) o reconhecimento das
desvantagens sociais, econômicas, ambientais e psicológicas provocadas nas pessoas com lesões, bem como a
resistência a tais desvantagens; 3) o reconhecimento de que a origem social da lesão e as desvantagens sofridas
pelos deficientes são produtos históricos, e não resultado da natureza; 4) o reconhecimento do valor da vida dos
deficientes, mas também a crítica à produção social das lesões; 5) a adoção de uma perspectiva política capaz de
garantir justiça aos deficientes” (p. 29)
199
99A
a loucura como uma doença sem corpo (ainda que, sobre ele, recaiam consequências, ou dele
venham causas, como sons e sensações irreconhecíveis) – ou seja, uma doença eminentemente
mental; e, a segunda (organogênese), trata a loucura com um corpo doente que hospeda, em
consequência, uma mente disfuncional: uma doença eminentemente corporal11.
De uma forma bastante didática, mas já com parâmetros do século XXI, Feldman (2015, p.
456) resume esses olhares e suas vertentes, classificando-os através do nome de “perspectivas”.
Assim, de acordo com a “perspectiva médica”, “supõe que, quando um indivíduo apresenta
sintomas de comportamento anormal, a causa principal será encontrada em um exame físico do
indivíduo, o qual pode revelar um desequilíbrio hormonal, uma deficiência química ou uma lesão
cerebral”, ou seja, adota-se a mencionada visão biológica, fisiológica ou orgânica (o que leva, diga-
se de passagem, à excessiva “medicalização da vida”).
Na “perspectiva comportamental”, Feldman (2015, p. 456) encara “o comportamento
em si como o problema”, e não como um reflexo, tal qual se observa nas perspectivas médica e
psicanalítica; ou seja, “para explicar por que ocorre o comportamento anormal, precisamos analisar
como um indivíduo aprendeu-o e observar as circunstâncias nas quais ele é exibido”. Em seguida,
na “perspectiva cognitiva”, o mesmo autor afirma que “supõe que os pensamentos e as crenças das
pessoas são um componente central do comportamento anormal”, quer dizer, o tratamento visa
“ensinar formas novas e mais adaptativas de pensar” (FELDMAN, 2015, p. 457).
Por fim, na “perspectiva humanista”, é enfatizada “a responsabilidade que as pessoas têm
pelo próprio comportamento, mesmo quando esse comportamento é anormal”, uma vez que
“encara as pessoas como tendo consciência da vida e de si mesmas que as leva a procurar significado
e autovalorização” (FELDMAN, 2015, p. 457), enquanto que, na “perspectiva sociocultural”,
defende-se que “o comportamento das pessoas – tanto normal quanto anormal – é moldado pela
sociedade e pela cultura em que elas vivem”, tendo sido observado em pesquisas que “alguns tipos
de comportamento anormal são muito mais prevalentes entre certas classes sociais do que em
outras”, a exemplo da esquizofrenia, que se conecta com condições socioeconômicas precárias
(FELDMAN, 2015, p. 457-458).
Feldman (2015, p. 456) refere, ainda, à perspectiva psicanalítica, afirmando que “supõe
que o comportamento anormal provém de conflitos infantis com oposição a desejos referentes a
sexo e agressividade”. Por outro lado, cabe descrever que Freud, ao formular sua pesquisa, coloca
em cena uma rachadura que aponta para uma não naturalidade da sexualidade no sujeito, pois
este é afetado pela linguagem. Assim, a construção da sua teoria foi feita a partir de conceitos
desenvolvidos por seus contemporâneos, porém com subversão do sentido. Este movimento pode
Feldman (2015, p. 455) explica que, “durante boa parte da história humana, as pessoas
vincularam o comportamento anormal a superstição e bruxaria. Os indivíduos que apresentavam
comportamento anormal eram acusados de estar possuídos pelo demônio ou por algum tipo de
entidade maligna”. De fato, o ser humano é uma Espécie fabuladora (Huston, 2010), que confere
valor a tudo o que vê e sente, sobretudo aquilo que, por não ter meios de elaborar uma explicação,
atiça seu imaginário, fazendo do real uma ficção e, esta, realidade.
11 A inspiração vem da p. 29, em capítulo que trata no interrogatório e da confissão como meio com que a
Psiquiatria, no início da Idade Moderna, tentava descobrir a origem do transtorno mental, ampliando o espectro
de análise até a família do indivíduo.
200
00A
Com Pessotti (1994), vê-se que, na Antiguidade, os desarranjos mentais foram inicialmente
retratados pela literatura de Homero, na “Ilíada”, em que predominam justificativas mitológicas
e teológicas, em especial porque a loucura é tida como castigo dos deuses a comportamentos
socialmente inadequados ou desafiadores. Homero nos faz considerar a base judiciária da noção de
loucura ao fundamentá-la na desmedida (hýbris), uma ação que deveria estar pautada pela justiça
(Dike), mas que não considera a alteridade do direito alheio, e recai em uma “violência desmedida
de quem, incapaz de pôr à sua ação um freio decorrente do respeito pelos direitos do outro” daquilo
que seria a “consciência do justo, da piedade; nas relações com o próximo, friamente ou com ira,
passa dos limites do que é reto, desembocando voluntariamente na injustiça” (REALE, 2014, p.
129). A hýbris evoca a vingança (Nemesis) dos deuses, que antes enviam a loucura (áte) a cegueira
da razão para punir toda desmedida, tal como se lê nas páginas da Ilíada.
Ainda na literatura grega, Eurípedes introduz um novo olhar, menos místico, “pouco apegado
a transcendências e a justificações religiosas ou mitológicas para os êxitos e desventuras humanas”
(PESSOTTI, 1994, p. 28), no qual os conflitos interiores, ainda meramente psicológicos, exercem um
papel preponderante: o bem e o mal, o certo e o errado, a paixão e a norma, a razão e o instinto.
Mas é com Hipócrates, no século V a.C. que, pela primeira vez, a loucura passa a ser vista
como “desarranjo da natureza orgânica, corporal do homem. E os processos de perda da razão
ou do controle emocional passam a constituir efeitos de tal desarranjo” (PESSOTTI, 1994, p. 47).
Relembre-se que Hipócrates ainda se utiliza de uma metafísica ao apoiar suas pesquisas e conclusões,
através de elementos essenciais (calor, frio, secura e humidade) e humores (sangue, pituíta, bílis).
Não obstante, o pai da Medicina inaugura uma nova forma, mais objetiva, de examinar os estados
mentais anormais, atribuindo-os a condições fisiológicas – o “organicismo”.
Essa teoria veio inclusive a influenciar Galeno, outra grande referência médica da Antiguidade,
cujas ideias, no entanto, “preparam o caminho para uma fisiologia menos mecânica; a formulação
do conceito de ‘pneuma’ psíquico institui a identidade de funções psíquicas”, semeando a existência
de um “aparelho psíquico” (PESSOTTI, 2014, p. 77) de que se valerão os cientistas nos séculos XIX e
XX, como será abordado mais à frente.
As visões de Hipócrates e Galeno perduraram por muitos séculos – até meados do século XIX,
obstando o desenvolvimento de uma psicologia mesmo arcaica que desse conta de aspectos que
fugiam ao “soma” (corpo). Tanto que, na Idade Média, em um certo retorno ao início da Antiguidade,
predomina a “doutrina demonista”, que associa ou identifica a loucura à possessão diabólica, ideias
aperfeiçoadas por séculos de dominação cristã, na voz de seus “doutores” (Agostinho de Hipona
e Tomás de Aquino). O cume dessa ideologia é a obra-base Malleus Maleficarum (“O martelo das
12 Garcia-Roza (1985), identifica o século XVII como “aquele que realizou a partilha entre a razão e a desrazão;
foi o momento de emergência da loucura, ou melhor, foi o momento em que a razão produziu a loucura” (p. 26).
201
01A
econômico-sociais, escuta da “história” do paciente), vai precipitar a grande revolução do século
XIX, com o surgimento da Psiquiatria e da Psicologia modernas, além da Psicanálise.
E o século XIX começa, então, com o “Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental”,
de Philippe Pinel, obra que é considerada inaugural para o surgimento da Psiquiatria como
especialidade médica. Do título já se destaca a mirada filosófica, que vai caracterizar a Psiquiatria
nascente que, embora centrada na organogênese, não perde a psicogênese dos problemas
mentais: em outras palavras, sem descartar as condições fisiológicas prévias ou concomitantes a tais
problemas, aposta sua origem e desenvolvimento em questões relacionadas ao comportamento
(sobretudo moral) do indivíduo, por excesso ou exageros. Daí porque o tratamento deveria passar
por pedagogia ou reeducação moral, ênfase nos “bons costumes” e no redirecionamento social da
vida da pessoa (PESSOTTI, 1994).
Porém, a partir da 3ª. edição do DSM (DSM-III), nos Estados Unidos, em 1980, veio a lume
a aludida psiquiatria biológica, em uma tentativa, bem-sucedida, de trazer contornos da ciência
clássica ao diagnóstico e tratamento dos desarranjos mentais, a partir de “padrão metodológico
dominante na medicina, onde só tem validade o que puder ser descrito e observado de maneira
objetiva, para ser testado empiricamente através de métodos estatísticos e quantitativos” (Aguiar,
2004, p. 23).
No que concerne à Psicologia, enquanto ciência, tem menos de 140 anos, uma vez que o
marco de seu surgimento é a instalação, por Wilhem Wundt, em 1879, do seu “Laboratório de
Psicologia Experimental”, em Leipzig, na Alemanha (Bock et al., 2008, p. 32). No entanto, como
14 Para Cottingham (1999), “O nome de René Descartes é sinônimo de nascimento da Idade Moderna. Os “novos”
filósofos”, o nome pelo qual ele e seus seguidores eram chamados no século XVII, inauguraram um deslocamento
fundamental no pensamento científico... toda explicação científica, insiste Descartes, precisa ser expressa em
termos de quantidades precisas e matematicamente definidas” (p. 11)
15 Importante destacar que essa noção de “experiência subjetiva” vai influenciar sobremaneira a Ciência do
Direito, possibilitando o advento da noção de dignidade da pessoa, que por sua vez permite que se abram duas
vertentes, sendo a primeira, de caráter público e tradicionalmente ligada às relações da pessoa com o Estado, a qual
se denomina de “direitos fundamentais”; a segunda, de caráter privado e regente das relações entre particulares,
conhecida então como “direitos da personalidade”.
16 Embora não o seja para a Antropologia: Cf. Lévi-Strauss (2017)
203
03A
A colocação do Inconsciente no palco das investigações mentais promove uma grande
revolução na forma de abordagem e tratamento dos transtornos psíquicos. Realmente, de um
lado, inverte o olhar médico-terapeuta, pois são os próprios pacientes, como seu discurso e
sua história (em especial como discursam sobre sua própria história), que elaboram sua teoria
e seus diagnósticos “a respeito de seus sintomas e seu mal-estar” (Roudinesco e Plon, 1988, p.
604) – ainda que, nesse processo, contem com o inafastável concurso do terapeuta, através de
uma interação viva que se chama “transferência”17. De outro lado, faz decair a autoimagem do
sujeito da modernidade, fundada na razão e na consciência, que busca na “verdade”, que a ciência
supostamente traria, sua redenção.
De fato, ao valorizar o material inconsciente como verdadeiro motor da existência humana, a
Psicanálise “aponta a consciência não como um lugar da verdade, mas da mentira, do ocultamento,
da distorção e da ilusão” (Garcia-Roza, 1985, p. 21), fazendo cair o véu da perspectiva ideal de ser
humano moldada pelo racionalismo.
Assim...
Quando a psicanálise sublinha que o psiquismo não é só a
consciência; quando valoriza nossas produções psíquicas,
como sonhos e fantasias, tidas até então como bobagens,
promove uma reviravolta na abordagem do psiquismo, que
implica simultaneamente uma subversão na visão tradicional
da vida e do mundo [...] (Maurano, 2003, p. 25).
Muitas décadas depois, com o legado de Freud já consolidado, revisto e recriado, Joyce
McDougall, ao se questionar sobre o que é, enfim, normalidade, sai em defesa da “anormalidade”,
mesmo porque “a normalidade elevada ao plano de um ideal é uma psicose bem compensada”
e “a predominância exagerada do ego social, razoável e adaptado, seria tão indesejável quanto o
domínio absoluto por parte de forças pulsionais descontroladas” (Macdougall, 1983, p. 182)18.
Como se percebe, a Psicanálise trabalha, em princípio, com as categorias de neurose e
17 Jacques Lacan (1901-1981) coloca a transferência ao lado do inconsciente, da repetição e da pulsão como os
quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Conceitualmente, transferência é “um processo constitutivo do
tratamento psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando concernentes a objetos externos
passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses diversos
objetos” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 766-7)
18 Diz mais a mestra neozelandesa: “a normalidade [...], aproxima-se cada vez mais do “anormal”, na medida
em que essa qualidade do Ego, esse bom senso que sabe distinguir o exterior do interior e o desejo de sua
realização, distancia-se do mundo imaginário para orientar-se unicamente em direção à realidade externa, factual
e desafetada, podendo assim criar um obstáculo para a função simbólica e abrir a porta para a explosão do
imaginário do corpo no sujeito” (p. 181-182)
204
04A
psicose. Com a intenção de tentar explicar tais conceitos, é preciso lembrar, de início, que todos
nós – loucos e normais – transitamos entre um estado e outro ao longo da vida e, em nossas
vivências, saboreamos o enigmático universo da loucura19. De um modo geral, tem-se sucesso em
elaborar as vicissitudes, ainda quando elas fazem emergir o material recalcado do início; em outros
momentos e para outras pessoas, os “pensamentos impensáveis” invadem a psique de forma mais
aguda, desencadeando estados mentais incontroláveis temporária ou permanentemente. Crises
neuróticas e psicóticas se revelam20.
Observe-se que viver é uma constante negociação com a realidade, intermediada pelo corpo
e expressa, sempre de forma tentada e nunca exitosa, pela linguagem. De fato, os seres humanos,
em sua breve existência, lutam diariamente para encontrar uma forma de explicar e organizar aquilo
que apreendem e julgam ser importante reter, elaborar e utilizar – sendo que é por meio da busca
dessas respostas (o desejo) que o ser humano procura preencher seu vazio profundo e inexplicável.
Seguindo a visão de Winnicott (1896-1971), em um primeiro momento, ainda sem perceber-
se como ente dotado desse corpo – através do qual chegam sensações desconhecidas, que somente
depois poderão ser elaboradas, pela linguagem, mas nem sempre com o sucesso esperado – estamos
todos indivisos com o corpo da mãe. À medida que amadurecemos e descobrimos a separação,
psique (mente) e soma (corpo) procuram integrar-se em uma harmonização permanentemente
difícil, e o resultado dessa relação descortina nossos modos de ser.
É que, conforme Dias (2017, p. 80)), “no início do processo [de amadurecimento], contudo,
a “relação” tem um caráter sui generis, devido ao fato de o bebê não ser ainda uma unidade: a
unidade é a dupla mãe-bebê, sendo que a mãe é sentida pelo lactente como parte dele, ou seja,
como objeto subjetivo”. Segue-se, então, que o bebê, para constituir as bases fundamentais da
existência, ou seja, os alicerces da personalidade e da saúde psíquica, envolve-se em três tarefas: “a
integração no tempo e no espaço; o alojamento gradual da psique no corpo e o início das relações
objetais, ou seja, do contato com a realidade”.
O resultado comumente esperado é que consigamos controlar o fluxo entre os pensamentos
e as sensações corporais, fluxo esse de duas mãos. Conforme Dias (2017, p. 109):
O ponto importante da teoria é o seguinte: é somente a partir
da não-integração que as várias formas de integração podem
se produzir (...) Fosse a integração dada, e o ser humano
não seria tal qual é, uma vez que, tanto a saúde quanto as
dificuldades e os distúrbios que são próprios dos humanos
são estados relativos ao sucesso ou ao fracasso das tarefas
Atingido um relativo sucesso (que sempre será relativo)21, aprender-se-á a conhecer e dominar
as sensações do corpo e harmonizá-las com o pensamento, ainda que seja não propriamente para
dar-lhes (às sensações) liberdade; mas também, e talvez principalmente, recalcá-las. De tal possível
repressão também não se espere perene calmaria: de repente, por um estímulo qualquer, psíquico
ou somático, a sensação retorna de uma outra forma – o sintoma22. Eis a neurose, cujo núcleo é o
19 De fato, para Wilfred Bion (1897-1979), conforme lecionam Gerber & Figueiredo (2018), “há em todos os
psiquismos um núcleo psicótico e um núcleo neurótico, coexistentes. (...) Nesses momentos [psicóticos],
perdemos contato com a realidade, pois recorremos a fortes identificações projetivas – o modo predominante de
funcionamento do núcleo psicótico – que confundem nossa percepção com nossos desejos e grandes ansiedades,
e apagam as fronteiras nítidas entre nós, os objetos e o ambiente” (p. 78-79).
20 Gerber & Figueiredo (2018), baseando-se em lições de Bion, asseveram que “o sujeito, sobrecarregado de
pensamentos impensáveis, pode não tolerar a pressão e a angústia e os evacua sobre o mundo, sobre seu corpo,
sobre, inclusive, sua mente, destruindo-a em sua precária funcionalidade” (p. 83).
21 Ou seja, “numa apreensão global, o amadurecimento pode ser descrito como uma jornada (journey) que parte
da dependência absoluta, passa por um período de dependência relativa, chega às etapas que estão no rumo
da independência, até chegar à independência relativa, que é o estado em que o indivíduo saudável se mantém
regularmente ao longo da vida” (Dias, 2017, p. 80).
22 A palavra sintoma tem um sentido especial na Psicanálise: “expressão de um conflito inconsciente, geralmente
a de um desejo proibido sofrendo um recalcamento de uma instância repressora, que só permite a manifestação
indireta do desejo, camuflado e disfarçado sob a forma do sintoma, de forma análoga ao que se passa no fenômeno
do sonho” (Zimerman, 2001, p. 388).
205
05A
conflito com a norma.
Entretanto, nem sempre é assim. Por alguma deficiência ambiental, que pode ou não ser
associada a uma condição fisiológica, a integração psique-soma não se opera de forma harmoniosa
e a psique-mente passa a criar mecanismos de defesa primitivos que dominam essa relação23.
O resultado é a criação de estados paralelos (fictícios, embora “reais” para a pessoa), que não
correspondem às sensações do corpo ou, ainda, naqueles em que as sensações do corpo não são
adequadamente elaboradas pela psique. Num e noutro caso, experimenta-se a desintegração que
ora leva à criação, pela psique-mente, de sensações corporais não verificáveis fisicamente; ora
levam a uma interpretação errônea dessas sensações: assim, sentem-se dores, partes do corpo
parecem faltar, outras abundar, ouvem-se vozes – eis a psicose24, que desconhece a norma, pois
não a internalizou à medida que não aceitou a interdição (limites do corpo e da linguagem) que
decorreria da harmonia se tivesse sido realizada25.
Cabe ainda considerar as consequências da proposta lacaniana para o âmbito jurídico da
ação do sujeito, posto que é Lacan (1966/1998, p. 873) quem vai fazer avançar a perspectiva de
análise do ato e da ação do sujeito sob o fundamento lapidar de sua responsabilidade frente ao
real de seu próprio destino: “por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”. Segundo
Forbes (2012) em seu livro Inconsciente e responsabilidade, o que está em jogo é uma mudança de
paradigma frente ao ato, uma passagem da atribuição de sentido à atribuição de consequências.
Enquanto na psicanálise de matriz freudiana imperava o dístico: “Freud explica” – uma interpretação
que emprestaria sentido ao ato, na psicanálise de matriz lacaniana, por sua vez, prevalece a máxima:
“Lacan implica” – uma interpretação que emprestaria consequência ao ato. A passagem de uma
abordagem analítica, interpretativa e hermenêutica para uma abordagem analítica e responsiva,
sugere que a escuta analítica visa engajar seu sujeito nas consequências de seu sintoma, de seu
gozo, capacidade ou incapacidade, fazendo-o responsável pela dinâmica de seus desdobramentos,
posto que para Lacan (1966), o sujeito é responsável pelo seu próprio inconsciente, ou por seu
próprio desejo ou gozo. Em outras palavras, qualquer incapacidade, ou capacidade, ou habilidade,
será escutada à luz de uma respons(h)abilidade da parte de seu sujeito.
Considerações Finais
O redesenho do instituto da capacidade, operado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência,
seguindo os ditames da Convenção de Nova Iorque, trouxe uma perplexidade para o Direito: a
capacidade como regra quase absoluta, comportando poucas e fluidas exceções, sempre ligadas a
23 Nas palavras de Dias (2017): “A partir desse ponto, estando constituídos os alicerces, o indivíduo pode vir a
sofrer de distúrbios psíquicos, mas não padece mais do risco de tornar-se psicótico” (p. 81); porém, “sendo [os
estágios iniciais do bebê] anteriores à estruturação do eu como uma unidade, se houver um padrão de falhas no
ambiente, ainda há risco de psicose” (p. 201).
24 Donald W. Winnicott considera que são as psicoses, e não as neuroses, o paradigma do adoecer humano
(Dias, 2017 p. 3), pois, “é a experiência de lidar com essas tarefas do amadurecimento e o sucesso na resolução
delas que constitui os fundamentos da saúde psíquica. A psicose consiste exatamente no fracasso em realizá-las e,
neste caso, não haverá nem ao menos um indivíduo que, respondendo por um eu, possa enredar-se em conflitos
intrapsíquicos” (p. 274).
25 No mesmo sentido, na caracterização da psicose, é a posição de Bion: “o sujeito, sobrecarregado de pensamentos
impensáveis [aqueles que o aparelho de pensar não aprendeu a elaborar], pode não tolerar a pressão e a
angústia e os evacua sobre o mundo, sobre seu corpo, sobre, inclusive, sua mente, destruindo-a em sua precária
funcionalidade. É o uso excessivo da identificação projetiva – mecanismo assim nomeado e teorizado por Klein –
que está na base deste distúrbio de pensamento, característico do pensamento psicótico. Mas em boas condições,
em vez de evacuação de pensamentos intoleráveis e impensáveis, o sujeito os tolera e começa a desenvolver sua
capacidade de pensar pensamentos, organizá-los, significá-los, representá-los e usá-los”. (cf. Gerber & Figueiredo,
2018, p. 83)
206
06A
Conceitos como autonomia (patrimonial e extrapatrimonial), capacidade, responsabilidade
e vulnerabilidade (e, sobretudo, vontade e expressão da vontade, de que trata o inciso III do Art. 4º
do CC), que são colocados, na doutrina e na jurisprudência, como prontos e acabados, na verdade
estão calcados em posições caducas, resultando em imensas dificuldades em operar o direito na
diuturna multiplicidade de casos inéditos. Assim, é essencial que o Direito receba influxos de outras
ciências humanas, revisitando suas bases, ampliando seu alcance e criando paradigmas novos, com
o que se evita o mero manejo burocrático das normas jurídicas, pois a mera subsunção já não basta.
Nessa senda, observa-se que as ciências e os saberes da área Psi – Psiquiatria, Psicologia e
Psicanálise – podem contribuir sobremaneira nesse mister, posto que desenvolveram, ao longo de
seus respectivos percursos históricos, diversas ferramentas que auxiliam na compreensão do ser
humano em suas relações mais essenciais. No entanto, ainda que com todo avanço tecnológico
e desenvolvimento das ciências, ainda não é consensual uma visão do ser humano pelas ciências
Psi, haja vista as divergências dentro da própria psicologia expressa por suas diferentes concepções
teóricas ou abordagens. Assim, aspectos biológicos, mentais/psíquicos e sociais estão associados
aos diversos comportamentos (normais e anormais), não definindo uma origem única. Porém, a
falta desse consenso não desabona suas contribuições à compreensão do que seja a incapacidade.
Essa contribuição fica mais rica quando é estudada a loucura, ou a dicotomia normalidade-
anormalidade, possibilitando uma percepção mais abrangente sobre o que pode ser a velha
categoria jurídica de “capacidade de fato”: seus limites e possibilidades. É então que se percebe
como os profissionais do Direito precisam avançar no exame acurado da autotomia das pessoas, já
que, como bem canta o cancioneiro popular: de perto ninguém é normal.
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30 de março de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, 10 jul. 2008.
207
07A
BRASIL. Decreto do Poder Executivo n° 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados
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209
09A
MÉTODO APAC DE RECUPERAÇÃO DE CRIMINOSOS E SUA FACE
RELIGIOSA: O QUE FREUD TERIA A DIZER?
Resumo: Este artigo partiu de uma dissertação de mestrado com o objetivo de construir uma análise do método APAC, uma
metodologia de recuperação de criminosos baseada na religião cristã e aplicada em instituições prisionais endossadas e/
ou financiadas governamentalmente. Utilizou a perspectiva freudiana acerca da religião como chave de leitura a partir
de suas facetas psíquicas, políticas e institucionais. Como resultado, trouxe que a APAC apresenta um projeto político de
reafirmação do status quo ao mesmo tempo em que se encontra integrada à massa religiosa. Mas, enquanto instituição
prisional, busca influenciar sujeitos historicamente negligenciados e violentados pela sociedade num processo de
recuperação difícil e doloroso, mas que seria recompensado pela vida eterna.
Abstract: This article started from a master’s thesis with the objective of constructing an analysis of the APAC method, a
methodology for the recovery of criminals based on the Christian religion and applied in prison institutions endorsed and/
or financed by the government. It used the Freudian perspective on religion as a key to reading it from its psychic, political
and institutional facets. As a result, it brought that APAC presents a political project of reaffirmation of the status quo at the
same time that it is integrated into the religious mass. But, as a prison institution, it seeks to influence subjects historically
neglected and abused by society in a difficult and painful recovery process, but which would be rewarded by eternal life.
1 Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/Minas). Integrante do Laboratório de Estudos e Pesquisa em
Psicanálise e Crítica Social (LAPCRIS) da PUC/Minas, Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7421041957782111. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-7877-6808. E-mail: biancaferreira025@gmail.com
2 Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com estágio pós-doutoral no Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra, Portugal (CES/UC). É Professor no departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ),
Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1417280605571645. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8071-0907.E-mail: fuadneto@ufsj.
edu.br
3 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É Professor no departamento de Psicologia da Universidade Federal de São
João del-Rei (UFSJ), Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1498920976592034. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2368-0080. E-mail:
camilo@ufsj.edu.br
Introdução
O presente artigo parte das análises realizadas numa dissertação de mestrado, que teve
por objetivo mapear os impasses e os pontos de tensão que se colocam a partir da tentativa de
recuperar criminosos por meio da terapêutica penal denominada método APAC – sigla cujo
significado atual é apresentado enquanto “Associação de Proteção e Assistência aos Condenados”,
mas que foi reconhecida inicialmente por “Amando ao Próximo Amarás a Cristo”, conforme
apontado pelo Centro Internacional de Estudos do Método APAC (CIEMA, 2020, s.p.). Tal mudança
de nomenclatura é emblemática, porque apresenta a dupla vocação da metodologia apaqueana,
espiritual e jurídica, presentes desde o seu surgimento pelas ações do cursilhista e advogado Mário
Ottoboni. Os Cursilhos da Cristandade, nesse sentido, se apresentam enquanto uma possível
inspiração para o método, uma vez que são movimentos da Igreja Católica, que estimulam um tipo
de religiosidade com funções terapêuticas, voltado predominantemente para uma análise interna
do homem, de sua ordem moral, psicológica, afetiva ou intelectual (DANA; GODOY, 2019).
Para aqueles que não o conhecem, faz-se importante uma breve introdução acerca do
método APAC e da história do seu desenvolvimento. Este surgiu enquanto um apostolado cristão
em 1972, após a participação de Ottoboni em um Cursilho da Cristandade, em 1969, quando ele
relatou ter surgido o desejo de se realizar como cristão atuando em favor daqueles mais necessitados
(OTTOBONI; MARQUES NETTO, 1976). Em seguida, foi evoluindo, com o passar dos anos, para uma
metodologia de recuperação de criminosos baseada na aplicação da doutrina e pressupostos da
religião cristã às instituições penais. Desde a criação de uma “escala de recuperação” (OTTOBONI,
1984a, p. 20) com um dos elementos correspondendo à “religião como fator básico da emenda”
(OTTOBONI, 1984b, p. 24), até a definição mais atual, que descreve a APAC como “um método
de valorização humana, portanto de evangelização” (OTTOBONI, 2006, p. 29), vemos o quanto a
religião é central à teoria e prática apaqueanas. Entretanto, como aponta seu próprio criador:
Diante das dificuldades que foram surgindo para o
desenvolvimento do trabalho de assistência aos presos, viu-se
forçado a transformar o trabalho, que era apenas de Pastoral
Penitenciária, em uma entidade civil de direito privado, com
finalidade definida, mantendo os objetivos. Essa providência
veio propiciar condições de defesa da própria equipe,
que passou a valer-se do remédio jurídico adequado para
defender-se e para que fossem respeitados os direitos dos
212
12A
Desenvolvimento
214
14A
A massa apaqueana: criminosos não, recuperandos
Em outras palavras, e retomando o percurso realizado até aqui, pode-se dizer que a APAC
integra a massa religiosa advinda do cristianismo e utiliza a figura de Cristo enquanto líder supremo,
que une e iguala os sujeitos sob seu comando a partir do amor que lhes dispensa. Ser recuperando
se torna, assim, fator de identificação e união grupal. A organização institucional se encarrega de
reforçar essa união, a exemplo do que ocorre na Igreja e que leva muitos a identificarem a APAC
Neste ponto, retoma-se brevemente o aspecto judiciário do método APAC, já que não
se pode esquecer dos seus elementos, que são considerados positivos em relação ao Sistema
Penitenciário Nacional, como: a descentralização dos presídios; a municipalização do cumprimento
de pena; o menor número de condenados juntos; as instalações adequadas; a manutenção da
ordem e a ausência de ociosidade; e a possibilidade de escolarização e capacitação profissional
(ANDRADE, 2014). De fato, um dos acontecimentos que projetou as APAC mineiras à visibilidade
nacional foi a visita da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) Carcerária, realizada entre 2007
e 2008. No relatório da CPI, elas figuraram em primeiro lugar no ranking das melhores unidades
prisionais do país, sendo apontadas como “a grande alternativa para a ressocialização de quem
pratica uma infração penal” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2009, p. 445).
No entanto, assim como Massola (2005), pode-se dizer que a metodologia APAC é dependente
dos estabelecimentos convencionais na medida em que justifica sua existência para os presos mais
216
16A
perigosos ou para aqueles que não se adaptarem às exigências morais e comportamentais que
realiza. Vargas (2011, p. 205), também, reflete acerca disso e aponta como, ainda que as APAC “se
apresentem como um outro dentro do sistema prisional hegemônico, fazem parte dele e nele se
referenciam”. Além disso, Soares (2011) utiliza uma experiência francesa de gestão carcerária, com
o objetivo de demonstrar que a metodologia apaqueana não é inovadora pela ausência de policiais,
armas de fogo e violência ou pelo fato de delegar aos presos as chaves das próprias celas. Para o
autor, o atrelamento à igreja católica seria o elemento inédito em questão, mas este seria não
somente dispensável, como uma contradição evidente ao estado democrático de direito.
De acordo com a Lei de Execução Penal – Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (BRASIL,
1984), a assistência religiosa, com liberdade de culto, é um direito dos presos e internados, que lhes
permite a participação em atividades de cunho espiritual organizadas no estabelecimento penal
assim como a posse de livros com teor religioso. Porém, “nenhum preso ou internado poderá ser
obrigado a participar de atividade religiosa” (BRASIL, 1984, s.p.). Exigência que não é percebida nas
instituições apaqueanas, como foi observado durante a pesquisa de Rodrigues (2018) e por Silva
Júnior (2013, p. 90), que teve a oportunidade de conversar com a presidente da APAC de Alfenas:
“Segundo essa presidente, as normas dessa APAC obrigam a que o preso participe da missa ou do
culto. Diante disso, um preso que se declarava ateu acabou ‘tendo que escolher’ um deles”.
Nesse sentido, questiona-se acerca dessa obrigatoriedade de se expressar uma religião,
ainda que seja possível notar que alguns recuperandos buscam saídas possíveis a ela, como
retratado ainda por Silva Júnior (2013, p. 88): “É certo que vários deles [...] apenas ‘mexiam a boca’
para, externamente, parecerem orar aos dirigentes. Outros sequer balbuciavam as palavras; antes,
se entreolhavam e riam nas orações”. Paralelamente, Rodrigues, Kyrillos Neto e Rosário (2019)
apontam que, ao proporcionar aos recuperandos um espaço de livre circulação da palavra, sem
interferência direta da instituição, surgia, muitas vezes, um discurso sobre a mulher, sobre as suas
diferentes versões: mãe, periguete, patricinha e certinha. Conforme os autores, a recorrência ao
tema da mulher nos encontros realizados demonstra como a tentativa de imposição de normas
e adaptação social a partir da moral religiosa esbarra no desejo, naquilo que nos constitui como
sujeitos.
Para Freud (1927/2014), em O futuro de uma ilusão, a insegurança com relação à vida faz
com que os homens se unam socialmente, a fim de proibir aos indivíduos o assassinato, reservando
esse direito à comunidade, que pode, então, punir os que desrespeitarem a proibição. Mas, essa
fundamentação racional não é compartilhada. Antes, afirma-se que Deus ditou essa proibição.
A figura de Deus assume, assim, um caráter paterno, que legisla, mas também protege
Diante disso, questiona-se: se o céu não custa barato, qual o preço a se pagar? Nesse
sentido, e retomando a visão freudiana da religião enquanto uma ilusão, derivada dos nossos
maiores desejos, percebe-se o quanto o método APAC parece se valer desses desejos, a fim de
influenciar sujeitos historicamente negligenciados e violentados pela sociedade. Um Deus paternal
tão difundido e bem aceito diz muito de um país que estima mais de 5 milhões de estudantes
sem o registro do pai nos documentos de identificação (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015).
Mas, essa existência terrena seria mesmo de dor, sofrimento e renúncias, tudo em prol de uma
ilusão de vida eterna no paraíso, quando, finalmente, estariam frente a frente com o pai amoroso e
benevolente.
Assim, a metodologia apaqueana, valendo-se de uma leitura do cristianismo, constrói um
ideal de homem: adaptado socialmente, moralmente orientado e temente a Deus. Por reconhecer
de antemão a existência de indivíduos que fogem a esse padrão, é inserida a figura do criminoso:
insolente, imoral, inescrupuloso e ignorante quanto às questões divinas. O criminoso se constitui,
então, como motor que impele o projeto, enquanto o condena a nunca alcançar o sucesso, porque
sempre haverá criminosos, sempre haverá trabalho a ser feito.
Mas, disso, o método já sabe. O que ele desconhece, ou tenta desconhecer, é a dimensão
assustadora, radicalmente desumana, presente em cada sujeito e conceituada por Freud
(1920/1996) como pulsão de morte; ou seja, o fato de que cada sujeito possui em si uma tendência
a buscar o retorno ao inorgânico, derivando daí a repetição de experiências dolorosas, réplicas
Considerações Finais
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222
22A
MO(VI)MENTOS DE (RE)SIGNIFICAÇÃO DA POSIÇÃO DE
PROFESSOR
Resumo: Este artigo apresenta alguns resultados de uma pesquisa de intervenção com orientação clínica em um curso de
Letras, licenciatura em Língua Inglesa. O objetivo é discutir os efeitos de ações formativas que apostaram na metodologia
da conversação, sob a perspectiva da relação psicanálise e educação. Foram propostos espaços de palavra em disciplinas
de caráter prático da licenciatura, visando mapear os pontos de identificação que delineavam a constituição identitária
dos professores em formação. Por meio de pontuações na conversação, foram feitas intervenções, de modo a ensejar a
desestabilização da ancoragem do sujeito à rede significante, bem como movimentos de investimento subjetivo de sua
ressignificação. Alguns dos efeitos da oferta da escuta e da circulação da palavra nos espaços mencionados são analisados
neste artigo, a fim de problematizar a implicação subjetiva na formação inicial desses professores de inglês.
Abstract: This article presents some results of an intervention research based on clinical orientation in a Modern Languages
course, degree in English Language. The objective is to discuss the effects of formative actions which relies on the
methodology of conversation, according to the articulation between psychoanalysis and education. Speech spaces were
proposed in practical subjects, aiming to spot the identification points that outlined the identity constitution of teachers
in training. In these spaces, interventions were made in order to give rise to the destabilization of the subject’s anchorage
to the significant network, as well as movements towards its resignification due to subjective investment. Some of the
effects of heeding the subject and of the circulation of the word in the spaces mentioned are analyzed in this article, so as
to problematize these English teachers’ subjective implication in the initial training.
1 Doutora em Linguística Aplicada pela Unicamp e em Ciências da Linguagem pela Université de Franche-Comté, França. Professora na Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3374501725288665 . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5156-0150 .
E-mail: carlatav@ufu.br
Introdução
Ao longo das últimas décadas, artigos que abordam o tema do fracasso no ensino-
aprendizagem de línguas nos níveis fundamental e médio têm sido recorrentes, em especial
no âmbito do ensino público (CARMAGNANI, 2013; BRITO; GUILHERME, 2014). O conjunto de
trabalhos aponta para um imaginário sobre o processo prenhe de discursividades1 que cristalizam
a representação de que na escola, especialmente da rede pública, o ensino de línguas é ineficaz e a
aprendizagem não acontece.
Acreditando no radical caráter de engodo e de aprisionamento que esse imaginário produz
sobre os professores, em particular de língua inglesa daquele contexto, propusemos um projeto
de pesquisa de caráter intervencionista2 que promove uma dialeticidade entre a experiência de
formação inicial e continuada. As ações de pesquisa visavam ensejar a interrogação e, talvez, a
suspensão de discursividades cristalizadas que, muitas vezes, obstaculizam o laço social necessário
para a instauração de uma relação com o saber, fundamental no processo formativo e educativo. A
pesquisa investigou a (re)tomada da posição de professor de língua inglesa e os efeitos de processos
formativos sobre ela que se propunham não apenas do lugar do Mestre ou da Universidade, da
perspectiva da teoria dos discursos proposta por Lacan (1969-70/1992), mas a partir do saber
inconsciente.
Valemo-nos do jogo implícito no uso dos parênteses para problematizar o movimento
constante do sujeito na tomada de uma dada posição discursiva. Nesse sentido, tanto professores
em formação inicial pré-serviço quanto em formação continuada enunciam a partir de uma cadeia
de significantes que pode legitimá-los (ou não) na posição docente. Assim, ainda que a expressão
“professor em serviço” se refira a pessoas que exercem a docência no contexto educacional direta
ou indiretamente, alguns deles encontram-se destituídos ou se destituíram dessa posição e podem
se sentir convidados a retomarem-na diferentemente.
Os pressupostos norteadores preconizam que a chance de um professor empreender
alterações nos modos de ocupação da posição docente depende de que a rede significante que o
sustenta identitária (no campo social) e subjetivamente (no campo do sujeito) sofra fragmentação
e enseje uma ressignificação do que seja ser professor e do que seja ensinar-aprender. Ora, uma
condição fundamental para que isso ocorra reside no exercício da palavra, especialmente colocado
em ação pelas quatro lógicas discursivas (LACAN, 1969-70/1992). Propiciar deslocamentos da posição
discursiva em que se encontravam os professores participantes, por meio de desestabilizações nos
enquadres discursivos dos quais enunciavam, foi o objetivo da pesquisa, da qual recortamos alguns
1 Discursividade é entendida “como efeitos linguísticos materiais na história que reverberam no dizer” (PÊCHEUX,
1982/1994).
2 Intervenções são compreendidas, no escopo da psicanálise, como ações linguageiras com o potencial de
instaurar brechas nos discursos de impotência prevalentes nas situações discursivas.
3 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da Universidade à qual nos filiamos, sob
o n.º 22720319.1.0000.5152, mediante parecer n.º 4.224.516.
224
24A
de palavra visavam refletir sobre a relação teoria-prática e mapear os pontos de identificação que
delineavam a constituição identitária de professores. Sempre que possível, intervenções eram
feitas, de modo a ensejar desestabilizações na ancoragem do sujeito à rede significante, bem como
movimentos de investimento subjetivo na direção de, possivelmente, ressignificá-la. Assim, foi
possível discutir alguns dos efeitos da oferta da escuta e da circulação da palavra sobre a formação
de professores de línguas, de modo a problematizar a implicação subjetiva nesse processo.
A orientação clínica e intervencionista norteou metodologicamente a pesquisa, resultando
em uma análise interpretativa do corpus, constituído por notas do diário de campo das observações
e dos espaços de palavra, relatórios de observação elaborados pelos professores pré-serviço,
propostas pedagógicas de intervenção, relatórios finais e trocas de mensagens por WhatsApp.
A análise dessas intervenções é tecida por meio do que denominamos “relato de experiência”,
referindo à noção de experiência já aludida. Nele, empreendemos os gestos de análise sobre os
mo(vi)mentos subjetivos dos professores durante os espaços de palavra.
Este artigo recorta dos resultados da pesquisa a experiência formativa (BONDÍA, 2002), do
Professor Doss, codinome escolhido por aludir ao personagem principal do filme “Até o último
homem”4, que luta com o risco da própria vida para salvar o maior número possível de soldados
em uma batalha crucial em Okinawa, durante a II Guerra Mundial. O ponto em comum entre o
professor e o personagem reside na defesa de seu território subjetivo5, marcada pelo conflito
constante e a “insistência”6 de não abrir mão da posição docente. Antes do relato de experiência,
porém, os pressupostos teóricos balizadores da análise são apresentados.
Fonte: Da autora
S1= significante mestre
S2 = rede de significantes já articulada como saber
$ = sujeito dividido
a = objeto mais de gozar
8 Larrosa (2011) grafa o pronome demonstrativo indefinido “isso” em itálico para referenciar o real, registro do
inapreensível e não representável pela linguagem, que retorna atravessando o sujeito e sua relação com o mundo.
227
27A
Entretanto, frequentemente, em vez de fazerem-se semblantes de saber, os professores
ocupam essa posição de dois modos aparentemente contraditórios (PEREIRA, 2016). Por um lado,
investem-na com o narcisismo, insistindo em enunciar sob a lógica do Mestre e da Universidade.
A posição de professor carrega consigo vários ideais sedutores, que, muitas vezes, aprisionam o
professor em uma fantasiosa potência imagética. Nesta posição, o professor pode assumir uma
postura assertiva, iludir-se com a expectativa de um ensino completo e apr(e)endido termo a
termo, depender demasiadamente do outro como balizador de suas propostas, recusar encarar as
falhas e furos como constitutivas do processo de ensino-aprendizagem.
Ao mesmo tempo, porém, a docência encontra-se, atualmente, desvalorizada, tanto
socialmente quanto no imaginário docente. Observa-se nos professores uma deposição de si,
como provável consequência da impotência narcísica (PEREIRA, 2016)9. Eles aderem facilmente a
discursividades que os rebaixam, questionam sua autoridade e a eficácia do ensino na educação
(em especial, a pública); encouraçados sob o discurso da Histérica, mortificam-se com justificativas
que normalmente atribuem ao outro a causa de seu dissabor com a docência.
Embora aparentem apontar para direções opostas, esses modos de ocupação da posição
docente podem conduzir o professor a afogar-se no lago da impotência, tal como aconteceu com
Narciso, seduzido por si mesmo diante de inviabilidade de tantos ideais, da rigidez das auto-defesas
histéricas e consequente (auto)deslegitimação. Como instituir brechas no aprisionamento da
impotência docente, de modo a viabilizar ao professor caminhos para o exercício da mestria que se
valessem do impossível da educação?
A saída por meio dos espaços de palavra propôs fazer circular a palavra, prover-lhe uma
escuta e endereçá-la novamente ao sujeito sob a forma de uma interpelação, o que ensejaria a
lógica discursiva do analista, representando outros enlaces do sujeito ao saber. Assim, no tópico
seguinte, apresentamos como se deram os gestos de análise na escrita de relatos de experiência
(TAVARES, 2020), tecidos como uma narrativa, sob uma orientação clínica psicanalítica.
Diferentemente de uma concepção descritiva de práticas ou experimentos empíricos, o
relato de experiência, neste trabalho, é a materialização dos gestos de interpretação sobre o corpus
da pesquisa, uma escrita que busca incorporar os efeitos da divisão subjetiva do pesquisador e dos
participantes, ao bordejar o real por meio da imbricação do simbólico e do imaginário (TAVARES,
2020). A narrativa busca trilhar a experiência delineada na formação de alguns professores, bem
como os indícios de implicação subjetiva na ressignificação da posição docente como possíveis
efeitos das intervenções que tiveram lugar durante a pesquisa. As notas do diário de campo
dos espaços de palavra e das observações das aulas, os relatórios de observação, as propostas
Doss é um professor experiente, fluente na língua inglesa, com vivência no exterior, outra
graduação na área de saúde e um mestrado em uma terceira área diferente. Atua no Ensino
Fundamental II público há muito tempo. Ao ser convidado para participar como professor parceiro
do projeto de pesquisa descrito, Doss rapidamente concordou. Ressaltava que seria uma grande
oportunidade de aprendizagem e de troca de ideias. Repetia que precisava “sair de suas caixinhas”
e se reinventar como professor.
Três aspectos quanto aos modos de Doss ocupar a posição de professor foram mais
recorrentes nas observações e discutidos nos espaços de palavra, durante o primeiro semestre: os
professores em formação ressaltavam a qualidade de sua prática docente, a relevância das aulas e
o que foi denominado pelos professores em formação por “exclusão”.
Em relação aos dois primeiros aspectos, eles não são pouca coisa, considerando o imaginário
de ineficiência associado ao ensino-aprendizagem de inglês, especialmente na rede pública,
9 Pereira (2016) refere-se à ausência tácita de saberes referidos à sociedade contemporânea, educação moderna e
pós-moderna, às políticas públicas e educacionais, diversidade cultural e, em um âmbito mais circunscrito à esfera
de atuação dos docentes, o saber sobre a escola, infância, adolescência e as formas de subjetividade.
228
28A
conforme assinalado na Introdução. A participação dos alunos nas aulas e o conhecimento que
tinham de inglês indicava que as aulas de Doss eram planejadas, despertavam algum interesse
e promoviam a aprendizagem, o que foi observado com admiração por parte de professores em
formação: “Nossa, no meu tempo só tinha bagunça na aula de inglês”; “Eu não aprendi nada nas
aulas de inglês da escola além do verbo to be”; “Os meninos sabem muita coisa!”, exclamaram
três deles. Minha atenção foi capturada pelo funcionamento discursivo10 marcado pela comparação
entre o imaginário de aprendizagem dos professores em formação e a observação das aulas. Havia
duas imagens contraditórias delineadas por essas discursividades: a de um ensino fracassado e,
portanto, atravessado pela impotência, remetido à experiência de aprendizagem dos professores
em formação; e outra, de um ensino produtivo, que valia-se, em certa medida, do impossível da
educação para produzir um pouco de possível11.
A evidência do resultado de seu trabalho suscitou em Doss um reconhecimento disfarçado:
“Vocês acham mesmo? Nossa, eu acho que minhas aulas são tão chatas! Eu tenho sempre a
desconfiança de que eles não aprenderam nada”. Apesar da aparente surpresa e insegurança
diante dos elogios dos professores em formação, Doss dá sinais de uma certeza subjetiva dos
efeitos de sua docência. Além do reconhecimento de seus pares quanto à sua dedicação, ele falava
com entusiasmo das conquistas de alguns alunos, demonstrava compromisso com nosso projeto e
preocupação em “ensinar algo da língua” de um “jeito meu [dele]”. A constatação da aprendizagem
da língua e o interesse de grande parte dos alunos nas aulas validados pelos professores em
formação, bem como o compromisso de Doss com a docência assinalavam que um laço entre
sujeito e saber se configurava nas aulas.
Em relação ao terceiro aspecto, a “exclusão”, ela causou certo incômodo por parte dos
professores em formação. Referia-se à postura de Doss de “ignorar” os alunos classificados como
indisciplinados e com dificuldades de aprendizagem e focar seu ensino nos que participavam mais.
Tal como aconteceu com os elogios, Doss também se reconheceu na crítica, mas justificava sua
postura reivindicando a impossibilidade de atingir a todos e a responsabilidade que sentia com “os
que querem aprender”.
A captura do professor na imagem composta pelas discursividades vindas do campo do
Outro, materializada nos dizeres dos professores em formação durante os espaços de palavra,
realçou três pontos constitutivos da rede significante sobre a docência, a saber: a desapropriação
da posição de professor de língua inglesa, a busca por aprovação como indício de legitimação e uma
postura defensiva de sua posição.
Recorremos, então, a uma metáfora que remete ao codinome dado ao professor e
10 Por funcionamento discursivo entendo a articulação entre o linguístico, o sócio-histórico que atravessa as
práticas linguageiras e a subjetividade ali em jogo (PÊCHEUX, 1978/2009).
11 A respeito dos efeitos da elaboração do ideal imaginário de fracasso e de sucesso na formação de professores,
ver Tavares (2020).
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29A
listas de vocabulário, explicações gramaticais, valorização da apresentação do conteúdo na lousa
e da postura do professor como detentor do conhecimento. Entretanto, em várias ocasiões esse
modo de ocupação da posição docente era amenizado em favor de contemplar o saber dos alunos,
por meio da valorização das participações deles.
Contudo, os vários modais deônticos também parecem indiciar um compromisso com a
finalidade última do mestre, que, segundo Lajonquière (2013), consiste em fazem semblante de
que sabe e de que algum dia seu saber será, também, do aprendiz, como o autor assinala:
Dessa forma, como todo mestre foi alguma vez aprendiz, ele
não passa de um devedor. Pois bem, por que o mestre ensina?
Aquilo que ensina é uma amostra de que e do que deve.
Em outras palavras, aquilo que o mestre mostra, para assim
educar o aprendiz de plantão, é a prova de seu dever. O mestre
ensina porque afinal de contas esse é seu dever. Ensinar é de
fato sua própria e justa sina (p. 461).
Talvez uma das razões de circunscrever seu ensino ao “vocabulário” e a algumas estruturas
gramaticais, dando a elas tanta ênfase e centralidade, seja a manutenção de uma ilusão tanto
da posse de um conhecimento sobre “algo da língua” quanto uma certa evidência de ensino-
aprendizagem.
O apego à estrutura da língua como signo de sua aprendizagem é uma representação comum
no imaginário docente e do alunado (TAVARES, 2004; 2005). O “algo” da língua acaba ganhando
contornos de todo, pretensamente único acesso dos alunos a ela. O professor, imaginariamente,
se coloca como detentor do caminho do saber, para me valer da metáfora que dava título a uma
cartilha muito popular de alfabetização nos anos 70. No lugar de fazer semblante de saber, portanto,
Doss, muitas vezes, se colocava como o portador do saber da língua, o caminho para ela, indiciando,
assim, o predomínio das lógicas discursivas do Mestre e da Universidade. Garantir essa posição
parece ser uma estratégia de legitimação subjetiva para nosso professor.
O terceiro aspecto flagrado nos espaços de palavra, a dita “exclusão”, elucida essa estratégia.
“Deixar de lado” os alunos indisciplinados ou com graves dificuldades de aprendizagem foi um
modo encontrado pelo professor de delimitar, de certo modo, o terreno no qual Doss investia: “Eu
vou atrás de quem me dá mais prazer de ensinar”.
Questionado diretamente por uma das professoras em formação quanto à exclusão, Doss
reagiu da posição do Mestre: “vocês precisam excluir”. A réplica não era uma desculpa para sua
postura quanto aos que ele ignorava; ao contrário, ela elucida uma das vias encontradas por Doss
12 Não há, no uso dessa palavra, alusão aos trabalhos foucaultianos sobre os processos de regulação da vida
dos indivíduos pela via da norma colocada em operação pelo poder disciplinar. Entretanto, na democratização da
escola, no objetivo de atingir a todos, já resida um efeito disciplinador e regulador em si mesmo.
230
30A
a promoção de karaokês em sala de aula -, além de ser respeitado e querido por seus colegas e
pela maior parte dos alunos. Em meio à suspensão das aulas durante a pandemia de covid-19, em
2020, por iniciativa própria alimentava o site da escola com atividades em inglês relacionadas ao
seu plano de ensino e outras por ele pesquisadas na internet, mesmo antes da regulamentação das
atividades remotas de ensino.
A defesa do território subjetivo como professor é marcada por um modo bastante
narcísico de exercer a docência, mas que, ainda assim, o sustenta nessa posição. O narcisismo
marca o exercício da docência, ainda mais na sociedade contemporânea, na qual busca-se a
correspondência, a todo o custo, com uma imagem idealmente perfeita (BIRMAN, 2012). A posição
narcísica, no ensino-aprendizagem, é, muitas vezes, ancorada em uma pretensão de onipotência
calcada na suposição de poder-tudo-saber. Ela alia-se à hierarquia autoritária advinda daí. Soma-se
a ela o ideal constitutivo da docência, que assinala ao professor uma missão impossível, carregada
de grande potência simbólica: a transmissão, idealmente sem perdas, do conhecimento legitimado,
referenciado nos grandes mestres, capaz de transformar indivíduos em cidadãos críticos, civilizados
e produtivos na sociedade13.
Entretanto, o narcisismo na docência está, também, na base da sedução pedagógica, que
consiste em buscar a aprovação do outro pelo prazer, a fim de promover o enlace do aprendiz com
o saber em jogo na relação pedagógica. A posição narcísica sustenta uma parcela dos investimentos
subjetivos de grande parte dos professores em seu ofício, pelas vias da pulsão escópica e invocante14.
Estar à frente de uma sala de aula repleta de alunos nos quais supõe-se uma demanda de saber
requer um modo de gozo orientado pelo prazer de ser olhado e escutado e, nesse movimento,
fazer-se desejar. Logo, nesse jogo entre sedução e autoridade, parecem incidir dialeticamente tanto
o discurso da Histérica como o do Mestre, por meio do saber-fazer-se-desejar e do saber-fazer o
outro fazer (PEREIRA, 2016), o que parece indiciado no exercício de docência de Doss.
A questão que se colocava nos espaços de palavra, entretanto, alertava que, sob a
égide excessiva do narcisismo, o professor pode passar por alto a castração, materizalizada na
impossibilidade constitutiva de sua prática (FREUD, 1937/1996) e restar aprisionado na impotência
de seus investimentos subjetivos em si mesmo. Porém, embora uma posição narcísica marcasse
em grande parte a docência de Doss, não acarretava a impotência, como em grande parte dos
professores que se demitem subjetivamente diante da incongruência entre o ideal da mestria e o
contingente de sua prática (PEREIRA, 2016). Doss parecia ser atravessado por uma razoável parcela
do princípio de realidade do qual Freud (1920/2010) trata, devido aos efeitos de seu trabalho, já
aqui elencados. Ora, o sintoma deve ser entendido tanto como “o que não vai bem” no sujeito,
13 Freud (1930/2010) problematiza em que medida a ciência e, consequentemente, o conhecimento por ela
produzido, se coloca como uma das muitas figuras imaginárias produtoras das condições da civilização.
14 As pulsões escópica e invocante são indiciadas no prazer derivado de olhar e ser olhado, e de chamar e se fazer
chamar, respectivamente.
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31A
e comunicativismo15. Confessando sua aposta no insucesso de algumas dessas iniciativas no
seu território, o Prof. Doss expressou sua aposta no fracasso: “Eu encostei na parede e disse pra
mim mesmo: Quero ver no que isso vai dar”. Mas logo admitiu sua surpresa: “E deu! Ele [um dos
professores em formação inicial] fez adaptações, mas os alunos leram algo em inglês”. O grifo no
pronome indefinido chama a atenção para essa recorrência associada à língua no dizer do nosso
professor. Marcelo e Bella estavam, como Doss, ensinando esse algo da língua, outros “algos”, de
outros modos, apontando para a impossibilidade de um ensino abarcar o chamado “conteúdo”
completo sobre o objeto de saber e a viabilidade de outros caminhos pelos quais se pode ensinar
a língua inglesa.
Nesse mesmo dia, no espaço de palavra, Doss afirmou: “Vocês têm uma coisa que eu preciso
resgatar em mim: a insistência”. “Insistência?”, interrompi. A princípio, a insistência remetia em
trazer para a sala de aula as tais estratégias típicas de escolas de idiomas. Eram práticas creditadas
pelo professor como impossíveis de caber nas suas “caixinhas” (“Eu NUNCA faço isso!”), percebidas
como “inovadoras”, se comparadas ao que ele fazia na escola: listas de vocabulário, cópias no
caderno, exercícios gramaticais, tradução. Práticas enxergadas como “legais”, talvez, porque
ensejavam um saber da língua, possibilitador, mesmo que timidamente, de uma mínima mediação
da relação do sujeito com o mundo. Afinal, dificilmente alguém aprende uma língua para saber
sobre suas regras, caminho no qual Doss insistia. O desejo da língua outra convoca o sujeito a se
dizer por ela e a nela se inscrever, bordejar o enigma subjetivo de cada um de outra discursividade,
na qual o interdito da língua materna não se coloca do mesmo modo (REVUZ, 2001; TAVARES;
QUINTINO, 2019).
Entretanto, insistir poderia, também, remeter a não ceder do desejo de professor, que,
apesar de parecer animar Doss em alguma medida, ficava frequentemente elidido sob práticas
pedagógicas que não convenciam muito a ele próprio da relevância e do potencial motivador do que
propunha. Diante do espanto dos professores quanto à participação de um aluno com dificuldades
de aprendizagem, sempre apático nas aulas, perguntei ao grupo, durante o espaço de palavra: “O
que vocês acham que aconteceu, para ele participar?” Antes de eu terminar, Doss respondeu: “EU
SEI! Primeiro, que não sou eu! Vocês criam uma certa leveza na sala, vocês são mais acessíveis.
Como eu estou ali, a sala de aula é como uma zona de guerra mesmo, uma zona de confronto, os
meninos te veem como uma ameaça”. Esse dizer alude explicitamente à metáfora trilhada neste
relato: a sala de aula como campo de batalha. Na continuação, a comparação que ele estabelece
entre os modos como ele ensina e os de duas professoras em formação configura dois opostos. Os
resultados obtidos pela “leveza” e “frescor” da prática do outro são a razão atribuída à participação
15 Na medida em que as escolas de idiomas aparecem no imaginário social como os lugares legitimados social
e discursivamente para que se aprenda uma língua estrangeira, valer-se de estratégias de ensino comuns a esse
campo, supostamente, valida a prática de um professor na escola regular.
232
32A
um agrupamento classificatório no qual vigora uma recusa da incompletude e pouca incidência
da exceção e do furo da linguagem que causam o sujeito. Desse lugar, ela se queixava justamente
de momentos no processo educacional com o potencial de fazer a castração vigorar, a saber, o
desacordo, o desencontro, o confronto. Apesar de aparentemente estar em uma posição antagônica,
Doss também estava seduzido pela completude de uma imagem, a que tinha de si como professor.
O professor lamentou: “Nesse caso, eu precisava de defesa mesmo”.
Desvelam-se, aqui, outros aspectos do jeito Doss quanto à apropriação e à defesa que faz de
sua posição de professor. Primeiro, uma posição histérica que consiste em ofertar-se insistentemente
ao Outro como objeto recusado, para dele obter seu amor. O Outro, aqui, funciona como um mestre
do qual o professor se vale para ser dele objeto de gozo (LACAN, 1969-70/1992). Khel (2015, p.
211) enfatiza que na posição histérica o sujeito visa ser “resgatado pelo Outro como objeto de um
amor inquestionável, que vale mais que a própria vida”. Passar pelo “teste” da aprovação do Outro
poderia representar esse sinal do amor que, por vezes, atravessa uma relação pedagógica, bem
como ratificar sua posição. Segundo, o risco dessa posição, sustentada na sedução como estratégia
pedagógica. Conforme Cifali (1994, p. 198, 199), o professor fantasia a possibilidade de viver em
uma harmonia perene e se esquece que a sedução é inseparável da confrontação com a castração:
“Prefere-se viver na estética de uma sedução mútua, não ser jamais o mau que constrange, que
marca os limites16”. O terceiro aspecto refere-se a uma tendência de negação da castração. É
impossível ser tudo para o Outro, promessa insustentável na qual algumas estratégias de sedução
pedagógica se baseiam. Semelhantemente, não há relação com o saber que possa derivar de um
ensino-aprendizagem norteado unicamente pelo prazer e aprovação. Se a sedução na relação
pedagógica insiste nessa direção, o Outro se torna um álibi do narcisismo do professor e passa a ser
a “razão” de sua docência, como Cifali parafraseia, tornando sua a voz de um professor (1994, p.
195): “Necessidade de seu olhar que me confirme em meu poder; necessidade de seu apego para
me sentir a salvo da morte; necessidade de uma garantia constante, inesgotável que se servirá dele
para mim mesmo17”.
Algumas pontuações nos espaços de palavra parecem ter assumido a função de intervenção,
além daquela configurada pela via especular analisada inicialmente, e que assumem o valor de uma
pontual conclusão.
16 Tradução livre do original: “On préfère vivre dans l’esthétisme d’une séduction mutuelle, n’être jamais le
mauvais qui contraint, qui marque les limites”.
17 Tradução livre do original: “Besoin de son regard qui me confirme em mon pouvoir; besoin de son attachment
pour me sentir preservé de la mort; necessité d’une réassurance constante, inépuisable, qui usera de lui pour moi.”
233
33A
e, quem sabe, dela se deslocasse. Recortar da fala de Doss o adjetivo “chata” e devolvê-lo a ele, de
modo a interrogá-lo sobre o que desse significante realmente concernia-lhe, parece ter permitido
que o professor percebesse o quanto se identificava aos modos como exercia sua docência.
No decorrer dos espaços de palavra, o dizer de Doss indiciou os efeitos desses momentos
em sua movimentação na direção de investir subjetivamente a docência de outros modos,
nem melhores, nem piores, apenas diferentes, ainda que minimamente. Destacamos algumas
formulações que podem sugerir essa direção. No último espaço de palavra, a conversa assumiu o
efeito de uma avaliação sobre as ações. Seu território tinha sido desestabilizado: “Quando vocês
tiverem na sala de aula de vocês e alguém chegar e disser assim: olha, esses meninos aqui [os
alunos], eles não são mais seus. Gente, é uma perda! Não é porque é doloroso, mas é porque você
é professor. Eu sou extremamente egocêntrico: eu, eu, eu, presta atenção em mim, faz isso. E aí
nos seus relatórios vocês falam que eu preciso mudar, que eu preciso ser mais gentil. Eu preciso me
esvaziar e me fazer de novo! A gente cresce se espetando. É doloroso ouvir isso, mas é necessário”.
Destaco, dessa espécie de confissão, os efeitos subjetivantes das intervenções quanto à
percepção do professor de si mesmo, de seu narcisismo, dos limites de seu território, do alcance
de sua atuação e do reconhecimento da dor de ter suspenso o engodo de uma imagem à qual se
encontrava identificado. Daí em diante, o sujeito teria de responder ao caráter interrogativo do
confronto com os significantes aos quais se encontrava submetido.
De certa forma, Doss respondeu. No semestre seguinte ao término da pesquisa na escola,
durante a pandemia de covid-19, ele foi chamado a gravar uma videoaula como parte da ação
contingencial da Prefeitura quanto à retomada das aulas no município. Pelo WhatsApp, ele me
enviou a videoaula. Cumprimentando os alunos em inglês, em vários momentos praticou a
pronúncia em inglês das palavras do vocabulário, deu explicações sobre algumas particularidades,
dicas de estratégias de aprendizagem e valeu-se de recursos visuais associados a um aplicativo que
ele recomendou aos alunos. Parece que havia recuperado a insistência, desta vez, trazendo um
pouco do frescor do outro para sua docência.
A investigação dos efeitos de processos formativos de professores de línguas que se
proponham abertos à escuta e à circulação da palavra do sujeito para além de simplesmente
circunscreverem-se à esfera da aprendizagem e reprodução de conhecimentos sobre a docência
permitiu confrontar o imaginário cristalizado sobre o ensino-aprendizagem na escola pública e
apontar saídas subjetivas para viabilizá-lo. A proposta de intervir na formação inicial e continuada de
professores de língua inglesa por meio da dialeticidade da construção de um saber compartilhado
sobre essas posições e da circulação da palavra sobre essa experiência possibilitou circunscrever as
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237
37A
“NÃO QUERO SAIR DA RUA”: PSICANÁLISE EM SERVIÇOS DE
ATENDIMENTO A PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
Resumo: O presente artigo apresenta a pesquisa sobre a escuta do não de quem diz não querer sair da situação de rua
a partir da clínica psicanalítica na política de assistência social. O método utilizado é o estudo clínico (RODULFO, 2004),
com análise a partir do Traço do Caso (DUMÉZIL, 1989), tomando o não como traço que atravessa diferentes casos. Foram
levantados dois planos de análise: plano de quem enuncia “Não quero sair da rua” e plano de quem escuta essa negação.
A psicanálise possibilita a subversão do não, que é ser acolhido e escutado em sua potência como denegação ao carregar
a dubiedade: negação e afirmação. Essa clínica aponta para a construção de formas de transitar na política pública pelo
acolhimento à singularidade. Conclui-se que é necessário um acompanhamento que acolha diferentes formas de existir no
social, escutando o sujeito que enuncia o não.
Abstract: This article aims to present the research carried out on listening to the no of those who say they do not want to
leave the street situation from the psychoanalytic clinic in the Social Assistance policy. The clinical study method was used
(RODULFO, 2004), and the analysis was carried out based on the Case Trace (DUMÉZIL, 1989), taking the no as a trace that
crosses different cases. Two levels of analysis were raised: the level of those who say “I don’t want to leave the street” and
the level of those who hear this denial. Psychoanalysis makes possible the subversion of the no, which is to be welcomed
and heard in its power as denial when carrying dubiousness: denial and affirmation. This clinic points to the construction
of ways to move in public policy from the reception of singularity. It is concluded that an accompaniment that welcomes
different ways of existing in the social is necessary, listening to the subject who enunciates the no.
1 Mestra em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS), Especialista em Saúde Mental Coletiva (UFRGS), Graduada em Psicologia (UFRGS).
Atualmente é professora do curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Gravataí, RS, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/1486106510063962. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1254-0875. E-mail: mayara.janovik@gmail.com
2 Doutora em Psicologia (UFRGS), Professora Associada do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Programa de Pós-graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2022735757785516. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9189-6994. E-mail: djambo.sandra@gmail.com
Introdução
O presente artigo é fruto de uma dissertação de mestrado que abordou a escuta psicanalítica
de pessoas em situação de rua no contexto de atendimento em serviços do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS). A investigação se deu a partir da inserção profissional de uma das autoras
em dois equipamentos: Centro de Referência Especializado em População em Situação de Rua
(Centro Pop) e Acolhimento Institucional para Adultos (também conhecido como albergue).
De acordo com o Decreto 7.053/2009, considera-se população em situação de rua aqueles
que possuem as seguintes características: pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou
fragilizados e inexistência de moradia convencional regular, utilizando áreas públicas e degradadas
como espaço de moradia e sustento, seja de forma temporária, seja de forma permanente.
A condição de habitar a rua traz diversos riscos à integridade física e mental dessas pessoas,
levando-nos à possibilidade de questionar os motivos de algumas delas optarem por permanecer
nessa condição e negarem-se a sair da rua. Tal compreensão se faz necessária para que se possa
produzir uma escuta sensível, acolhedora e transformadora do ponto de vista clínico nos serviços
que atendem a esse recorte populacional.
Escutar o não de quem diz não querer sair da situação de rua extrapola o entendimento
do conteúdo enunciado, desde que este não seja tomado em sua concretude de negação. Para
que essa escuta possa contemplar as diferentes dimensões da negação, parte-se do entendimento
de que os sintomas ganham novos contornos nos contextos sociais marcados pela exclusão, de
maneira que essas pessoas, que não aderem à lógica do consumo, podem ser escutadas como
objetores ao discurso hegemônico (BROIDE, 2014). Há, portanto, um indicativo de que aquele que
está em situação de rua possa cumprir uma função de furo em uma lógica que se quer padronizada
e hegemônica.
Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo apresentar a pesquisa realizada sobre
a escuta do não de quem diz não querer sair da situação de rua. Busca-se também refletir sobre as
balizas que fazem o contorno da clínica psicanalítica na política de assistência social ao debater o
lugar do psicanalista nas instituições que atendem a essa população.
A pesquisa foi conduzida de maneira concomitante ao trabalho clínico desenvolvido por uma
Não é denegação
241
41A
Não é um caso de sucesso?
O Desenhista é um homem negro, de meia idade, que dizia não querer sair da situação de
rua.
Possuía familiares, mas não queria se aproximar deles. Tinha trajetória importante de
trabalho, mas não demonstrava firmeza quanto ao seu interesse em voltar a trabalhar. Passou
tempos dormindo em determinado local na rua da cidade, supondo estar seguro onde ficava. Além
disso, tinha companheiros com quem fazia uso de álcool nesse local.
Esse uso era considerado problemático pela equipe. Sobre isso, o Desenhista dizia que
queria se divertir enquanto não possuía nenhum compromisso sério. Aos poucos, fomos tendo
notícias de que o motivo de seu desemprego estava relacionado ao uso de álcool, assim como o
afastamento da família.
No início, os atendimentos semanais pareciam não fazer sentido ao Desenhista. Ele buscava
o acolhimento institucional para pernoitar, sendo chamado para o atendimento individual – o que
consistia em uma oferta ativa do espaço de escuta. Por certo tempo, era como se o desejo de que o
Desenhista não dormisse ao relento fosse mais de quem o atendia do que dele.
Para que os atendimentos acontecessem, era necessário buscar o Desenhista, convidá-lo à
fala, ofertar persistentemente o espaço de escuta, num trabalho de “busca ativa”. Há quem diga
que isso pode implicar uma problemática inversão de demanda. No entanto, sustentamos que
a demanda de análise só pode se produzir se for antecedida pela oferta do analista, sendo uma
condição primordial (SOLER, 2013). Logo, a oferta vem como um convite ao sujeito de que possa
falar livremente, sem censura.
Após algum tempo de atendimento, ele começou a demonstrar interesse em trabalhar no
mercado formal, mas não conseguia sequer procurar por emprego. Vale enfatizar que o Desenhista,
assim como grande parte das pessoas que estão em situação de rua, trabalhava com catação de
materiais para reciclagem. Com a renda obtida, alimentava-se e sustentava seu uso de álcool.
Quando um familiar começou a buscar aproximação com o Desenhista, incentivamos
o contato, pois a família parecia fazer despertar um outro Desenhista: pai de família cuidadoso,
filho querido, primo atencioso. Em decorrência do uso de álcool, foram realizados diversos
encaminhamentos ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mas o Desenhista nunca cumpria com
o que combinávamos.
Dessa forma, chegou um momento em que os argumentos nos atendimentos individuais
para a redução do uso de álcool se esgotaram. Nenhum encaminhamento realizado se consolidava,
Casos semelhantes ao do Desenhista aparecem com alguma frequência: dizem não querer
sair da situação de rua, mas buscam o Acolhimento Institucional para pernoite eventualmente.
Essas são situações que questionam o funcionamento da instituição. Portanto, escutando o não
como Traço dos Casos, as considerações realizadas a seguir a respeito do Desenhista podem ser
colocadas também para outras situações.
A escuta do não na presente pesquisa conduziu a análise sustentada em dois planos: o plano
de quem enuncia e o plano de quem escuta. A respeito do plano de quem enuncia, é levantada a
dubiedade do não: uma negação (o não é não) e uma afirmação (o não é mais do que não). Quanto
ao plano de quem escuta, é explorado o lugar do psicanalista na instituição.
Considerações Finais
O caso do Desenhista traz importantes questões à clínica com pessoas em situação de rua.
Em especial, destaca-se o não presente em seu discurso e no de tantos outros que dizem não querer
sair da situação de rua.
Propomos que, a partir de uma escuta singularizada e contextualizada no caso a caso, esse
não possa ser escutado como denegação, ou seja, tomado como negação e afirmação ao mesmo
tempo. Portanto, envolve tomar a associação produzida que só pôde ser expressa pela sua via
negativa, assim como reconhecer a potência do não como uma afirmação de sujeito que se nega a
seguir um roteiro do qual não se percebe autor.
Assim, nos serviços da assistência social, é imprescindível uma posição de escuta que inclua o
acolhimento do sujeito, considerando a situação social. A sustentação da possibilidade de invenções
singulares de viver ganha relevância nesse contexto, de maneira que as pessoas atendidas pela
política pública de não devem se submeter a protocolos padronizados de formas ideais de viver em
decorrência de sua condição social. O lugar da psicanálise, nesses contextos, é o de sustentação do
espaço de escuta, no qual a singularização do desejo torna-se central na clínica.
Quanto ao Desenhista, a escola tornou-se uma referência organizadora, um importante lugar
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250
50A
CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O RACISMO
BRASILEIRO: UMA HISTÓRIA FEITA POR MULHERES NEGRAS
Resumo: Este artigo se propõe a discutir as principais contribuições psicanalíticas para os estudos sobre o racismo no Brasil,
demonstrando que se trata de uma história construída sobretudo por mulheres negras. Destaca o trabalho de Virgínia
Bicudo como antecessora dessas contribuições, que se desdobram posteriormente em três tempos: o primeiro tempo é
representado pela obra de Neusa Souza, que destaca as incidências coloniais e subjetivas do racismo no inconsciente; o
segundo tempo é situado a partir de Lélia Gonzalez, que estabelece um contraponto teórico, focando nas figuras da mãe-
preta e seu papel na transmissão da lalíngua amefricana, uma dimensão da negritude que resiste à dominação colonial.
O terceiro tempo é remetido ao atual momento de retomada dos estudos raciais pela psicanálise brasileira, como um
tempo de coletivização da produção e de compromisso político com o resgate das perspectivas de crítica do racismo e de
afirmação da negritude.
Abstract: This article proposes to discuss the principal psychoanalytical contributions to the studies on racism in Brazil,
demonstrating that it is a history built mainly by black women. It highlights the work of Virgínia Bicudo as the predecessor
of these contributions, which later unfold into three periods: the first period is represented by the work of Neusa Souza,
that calls attention to the colonial and subjective incidences of racism in the unconscious; the second half is based on
Lélia Gonzalez, who establishes a theoretical counterpoint, focusing on the figures of the black mammy and its role in the
transmission of Amefrican lalangue, a dimension of blackness that resists colonial domination. The third period refers to
the current moment of resumption of racial studies by brazilian psychoanalysis, in a time of collectivization of production
and political commitment to the rescue of the perspectives on criticism of racism and the affirmation of blackness.
1 Doutor em Psicologia e Pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor
Adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7078731129867747. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0488-6163.E-mail: fabio.bispo@ufes.br
2 Pós-doutoranda Sênior da FAPERJ pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2046000937874008. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3106-9321.
E-mail: marianamollica@gmail.com
3 Mestre em Psicologia Institucional pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4189874092423894. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3106-9321. E-mail: biaoliveira.md@gmail.com
Introdução
O pioneirismo de Virgínia Bicudo, em um campo ainda inexistente no Brasil, faz dela uma
antecessora. A psicanálise mal existia no país, e um estudo psicanalítico acerca do racismo era
impensável. Ela opta, então, por abordar o tema a partir da sociologia, recorrendo a produções
que, na época, abriam uma linha possível de investigação acerca das relações raciais. “Queria o
curso de sociologia porque, se o problema era esse preconceito [de cor]”, declara a própria autora
em depoimento, “eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado
ao nível sociocultural” (BICUDO, 1994 apud MAIO, 2010, p. 23).
Podemos supor que essa via sociológica não se deu somente pela ausência de possibilidades
a partir da psicologia e da psicanálise. Seu depoimento demarca uma hipótese acerca daquilo que
Fanon (1952/2020a) chamará mais tarde de sociogenia, dimensão que ele buscará articular com
a psicanálise, ao lado da ontogenia1. Se ele buscou, em um ensaio que se anuncia psicológico e
clínico, circunscrever o fator social da colonização, podemos dizer que a dissertação de Virgínia
Bicudo, sendo um trabalho sociológico, não perde a sensibilidade para a experiência subjetiva. De
acordo com Maio (2010), a pesquisa foi bastante influenciada pela experiência como visitadora
psiquiátrica, que expôs a autora a tensões, preconceitos e violências que atingiam crianças de
camadas populares. Ele relata que a autora combina análise sociológica com psicologia social,
valendo-se também de seus estudos e experiências no campo da psicanálise.
A pesquisa foi realizada entre 1941 e 1944, no período da Segunda Guerra Mundial. Foi,
portanto, anterior a três movimentos importantes que impactaram a psicanálise e revitalizaram seu
vigor crítico e subversivo: os movimentos críticos e políticos advindos do pós-guerra, culminando
no Maio de 68; a releitura de Freud empreendida por Jacques Lacan, que nas décadas de 50 e 60
formulou, em diálogo com o estruturalismo e movimentos pós-estruturalistas, esquemas lógicos de
leitura do impacto das estruturas discursivas no inconsciente e no corpo falante; e, principalmente,
a produção de Frantz Fanon, que convoca a psicanálise – ao lado do existencialismo e do marxismo
(FAUSTINO, 2015) – para se debruçar sobre as especificidades da experiência vivida pelo negro e o
lugar da violência colonial na concepção clínica e epistemológica da psicopatologia.
Virgínia Bicudo descreve de forma precisa o caráter precursor de seu trabalho, logo no
primeiro parágrafo: “um estudo preliminar que visa ilustrar a aplicação de um método e uma técnica
na coleta de dados e abrir caminho para pesquisas posteriores” (BICUDO, 1945/2010, p. 63). Se a
dimensão metodológica e técnica guarda ainda a influência da sociologia americana, e se a própria
referência da psicologia social, sustentada na noção de “atitudes”, ainda participa de uma psicologia
1 Sociogenia é um conceito evocado por Fanon para destacar a importância da dimensão social na gênese da
psicopatologia e outros fenômenos subjetivos. Para o autor, a psicanálise teria substituído a filogenética – que
remete a transmissões biológicas ou genéticas vinculadas à espécie – pela perspectiva ontogenética, que prioriza a
história do indivíduo. “Além da filogenia e da ontogenia, existe a sociogenia” (FANON, 1952/2020a, p. 25).
253
53A
rejeitado em certas esferas sociais, rejeição que o traumatiza e
desenvolve a consciência de cor (BICUDO, 1945/2010, p. 158).
Na parte final, onde a autora propõe um resumo e “hipóteses para pesquisa posterior”
(p. 157), é possível encontrar uma referência sucinta e descritiva a problemáticas que serão
posteriormente aprofundadas e abordadas em conexão com a psicanálise, tais como: a constituição
de um Ideal do Eu branco, retomada também com a noção de branquitude (BENTO, 2022);
a construção do mito negro (SOUZA, 1983/2021), ou da razão negra (MBEMBE, 2018a) como a
constituição de uma categoria da qual todos buscam se afastar; o paradoxo da ascensão social, que
descortina o mito da democracia racial e da meritocracia, forçando uma “consciência de cor” que
funciona como um imperativo compensatório de uma suposta inferioridade (BICUDO, 1945/2010);
dentre outros elementos. A estratégia da autora de pesquisar um movimento coletivo da negritude
também permite antecipar uma linha de investigação que buscará os movimentos de resistência e
enfrentamento político.
A “Associação de Negros Brasileiros”, segundo Bicudo (1945/2010), representou uma
tentativa de pretos conscientes para lutar contra as restrições do branco, despertando a consciência
de grupo, desenvolvendo um programa definido de reivindicações referentes aos aspectos
econômico, social e político. As dificuldades para conseguir reuni-los e a indiferença de pretos e
mulatos das classes sociais intermediárias revelam a intensidade com que os ideais e conceitos do
branco foram incorporados.
Neusa Souza (1983/2021) posteriormente destacou, em suas conclusões, a militância
como saída para a superação do sofrimento psíquico advindo do racismo. Da mesma forma, Lélia
Gonzalez (1983/2020a) e a historiadora Beatriz Nascimento (1985/2021) se debruçaram sobre o
papel das lutas e invenções do povo negro para a reversão do impacto das violências, ponto de
ênfase também retomado pelas psicanalistas negras contemporâneas. Virgínia Bicudo também
já apontava as limitações e riscos que a luta coletiva comporta, na medida em que pode ser
atravessada pela lógica colonial, se não se considera o trabalho subjetivo de cada um.
O pensamento de Neusa Santos Souza é o que melhor retoma as teses de Frantz Fanon para
formular uma construção psicanalítica sobre os modos de subjetivação da violência colonial. Apesar
2 A noção de necropolítica é utilizada por Achille Mbembe (2018b) para discutir as formas contemporâneas em
que o poder político “faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto” (p. 6).
3 Essa expressão é usada para designar o ponto em que o sujeito é atravessado por seu ato. Ela se conecta com a
noção de acting out ou atuação, que se refere a situações em que o paciente age em vez de recordar e expressar
em palavras suas associações e elaborações durante a análise. De acordo com Freud: “Um grupo de pacientes não
se lembra de nada do que esqueceu e reprimiu, mas o expressa por meio de ações, ou seja, age em vez de lembrar.
Eles repetem o passado não como uma lembrança, mas como uma ação; eles o reproduzem sem saber que estão
repetindo” (FREUD, 1914/1996a, p. 165). Com a noção de passagem ao ato, Lacan acentua uma modalidade de
ato que rompe com o endereçamento ao outro e a conexão com um sentido inconsciente, muito comum em casos
de psicose.
255
55A
trabalho analítico. Ela nos ensina o que aprende com o manejo da transferência com psicóticos e
nos adverte para não reforçar a posição de objeto que fixa o sujeito na psicose. Além disso, aponta
para a construção de um caminho a partir de uma escolha, de responsabilidade do sujeito.
Apesar de nunca ter se filiado a nenhuma escola ou sociedade de formação psicanalítica,
Neusa foi muito reconhecida em todas elas. Era incontestável sua respeitabilidade nos espaços
políticos da Saúde Mental, sendo escutada tanto pelos teóricos principais da reforma psiquiátrica
brasileira quanto pelos profissionais que implementaram cada planejamento estratégico público de
desinstitucionalização. Apesar disso, seu primeiro livro, Tornar-se negro, não obteve a repercussão
merecida no âmbito da saúde mental. Talvez pelo mesmo motivo que fez com que Franco Basaglia
tenha sido uma das maiores inspirações para a reforma psiquiátrica brasileira e Fanon, que era
lido por ele, não era sequer conhecido no Brasil4. Embora sua construção sobre o negro em
ascensão social não fosse lida na psicologia, Neusa foi muito conhecida e lida pelos movimentos
sociais, principalmente pelos movimentos negros, desde a década de 80. Não apenas porque teve
importância significativa nesses movimentos populares, mas porque sua retomada da psicanálise
lacaniana para a leitura do racismo era legível e acessível para o público em geral.
Neusa Souza parte da tese de Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas (1952/2020) de
que para o negro ser considerado humano, no horizonte imposto pela colonização, só haveria uma
saída: assemelhar-se ao branco. A ideologia que ignora a cor, proclamando a ideia de universalidade
e igualdade, está a serviço do racismo, pois a exigência de ser indiferente à cor significa dar suporte
a uma cor específica: a branca. Fanon insiste em uma crítica incisiva à negação do racismo contra o
negro na França e em grande parte do mundo moderno. Mesmo não sendo psicanalista, era leitor
de Freud, o que o fez perseguir uma questão sobre as consequências psíquicas dessa lógica colonial
imposta aos colonizados. Isso não se deu somente por meio de imposições econômicas e políticas,
mas através da promessa de reconhecimento submetida ao domínio do idioma do colonizador,
da negação da própria língua e assumindo, também, a identidade cultural e a aparência física dos
senhores. Fanon chega a explorar a ideia de um racismo do negro contra o negro como efeito dessa
perversa artimanha psicológica colonial; uma forma de narcisismo na qual o negro busca, como
ilusão dos espelhos oferecidos pelo dominador, uma máscara branca: um espelho branco no qual
deve estar refletido. Neusa Souza extrai este ponto para desenvolver sua teoria sobre a tentativa
dos negros brasileiros de conquistarem seu estatuto de gente, de humano. Isso se dá através da
ascensão social: por meio da identificação a um Ideal do Eu branco.
A autora sustenta sua hipótese através do Ideal do Eu como referência e aglutinador das
massas em Freud (1921/1996), retomado por Lacan a partir da noção de ordem simbólica. Ela
4 A primeira tradução brasileira de Fanon foi realizada no início da década de 80, por um psicanalista baiano, Jairo
Gerbase, que afirma: “Ao descobrir Fanon eu descubro o racismo e assim como Neusa Santos Souza começo a me
interessar pelo assunto. Aí eu me descubro negro”. Apesar de ter sido estagiária na Casa de Saúde Ana Nery, em
Salvador, onde Gerbase era supervisor, o livro de Neusa Souza foi uma produção independente dessa edição de
Fanon (GERBASE; AIRES, 2021).
5 Neusa Souza explora a ênfase que Lacan (1955-56/2008) dá aos atravessamentos sociais implicados na
noção de Ideal do Eu, por ele denominado Ideal do Outro. Com a notação I(A), Lacan propunha que o Outro é
o fundamento principal dos ideais que oprimem o Eu, retomando a importância da sociogenia reivindicada por
Fanon. Lembrando que a noção de Outro com maiúscula é utilizada em diversas acepções, sempre para marcar
uma instância normativa que vincula o sujeito ao laço social: é o lugar do saber, o lugar da autoridade, mas também
o lugar da estruturação inconsciente propiciada pela linguagem.
256
56A
conseguir ser bem-sucedido, é preciso negar a valorização de sua história, de seus antepassados,
produzindo a inferiorização de suas heranças culturais e transmitindo essa operação a filhos, netos,
bisnetos. Trata-se de assumir o discurso racista: “casar com um francês para clarear a família” (p.
67). O contexto familiar é o lugar primeiro, as vigas mestras, em que se dá a ação constituinte
do Ideal do Eu, que se expande e transfere para a rua, a escola, o trabalho, os espaços de lazer, a
eficácia e o significado produzido a partir do ideal branco.
A autora destaca um tripé que sustenta essa operação psíquica como imperativa para o
negro: 1) o mito negro, que se estabelece como a ausência do Branco, como essa instância
normativa marcada pela cor como referência: o branco e o negro seriam dois extremos que
marcam uma relação simbólica de oposição, de presença e ausência de humanidade; 2) a ideologia
do embranquecimento, que impõe à pessoa negra uma negação de seu grupo social, sua aparência
e até de seu próprio corpo para que, individualmente, possa ser reconhecido; 3) por fim, o mito da
democracia racial, que esconde as condições de desigualdade e localiza na falácia do esforço e do
mérito as condições de ascensão social.
Segundo Fanon, para o negro se libertar não apenas do julgo moral, econômico e epistêmico,
mas principalmente subjetivo, é preciso que ele se transforme em um “ser de ação”, para superar a
barreira à liberdade em ambientes racistas e coloniais. Neusa Souza especifica essa proposta através
de sua experiência clínica como psicanalista. É preciso que o sujeito se liberte das identificações
aos traços culturais da branquitude para advir como sujeito e “tornar-se negro”. Ela afirma que,
para adquirir autonomia, é preciso possuir um discurso sobre si mesmo, discurso ancorado no
conhecimento concreto da realidade. A tarefa de ser negro, subvertendo a demanda do Outro, é
tarefa eminentemente política, que só ganha efetividade e consequência se for atravessada pela
ética de uma clínica do inconsciente.
Em seu livro, Neusa Souza sinaliza que não há saída que não inclua uma militância política,
na medida em que todas as vias individuais esbarram nos muros da violência colonial. Toda a sua
atuação clínica, porém, é testemunha de que o trabalho subjetivo singular é fundamental para que
a luta política não se torne adoecedora. Essa luta precisa romper com o paradigma colonialista para
reunir as possibilidades de o negro “possuir um discurso sobre si próprio” (p. 45). Há toda uma
dimensão de sentimento inconsciente de culpa - imposto pelo supereu que se acirra e dificulta a
destituição desses ideais - que pode ser enfrentada na análise. No nível social, esse enfrentamento
depende da possibilidade de ruptura de um silenciamento, e que a voz dos negros, a partir de seu
processo de subjetivação, seja afirmada no laço social. Esta não é uma transformação que se possa
fazer somente no plano individual. Neusa Souza transmite ao leitor de seu livro que o inconsciente
Lélia Gonzalez é sem dúvida um dos maiores expoentes do movimento feminista negro no
Brasil. Além de uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, foi uma eminente pensadora
da condição do negro brasileiro e da realidade da mulher preta. Sua influência se expande para a
América Latina e Estados Unidos, tendo sido descoberta pelo feminismo europeu, especialmente na
França. Angela Davis (2019) afirma que aprendeu mais com Lélia Gonzalez do que nós poderíamos
aprender com a filósofa americana.
Gonzalez traz contribuições fundamentais nas perspectivas decolonial e interseccional.
Abriu um importante canal de crítica às ciências sociais a partir da Psicanálise, questionando o
modo como o negro é sempre representado no quadro de uma leitura sociológica. Embora não
fosse psicanalista, a autora foi uma estudiosa de Lacan, tendo traduzido alguns de seus textos para
o português e participado da fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Com seu humor e
astúcia característicos, extrai “um olhar novo e criativo no enfoque da formação histórico-cultural
do Brasil” (GONZALEZ, 1988/2020b, p. 127). Podemos situá-la como um contraponto à ênfase dada
por Fanon e Neusa Souza à dominação colonial branca do inconsciente negro. Ela sustenta a ideia
de que as formações do inconsciente no Brasil não são exclusivamente europeias e brancas. Dá
257
57A
ênfase, pois, à negritude que se transmite à revelia da estrutura colonial que nos governa. Lélia
Gonzalez propõe que somos uma América Africana, mas pela negligência da valorização de nossa
latinidade, adota uma proposta de M. D. Magno e Betty Milan de troca entre as letras T e D para
batizar nossa terra de Améfrica Ladina (GONZALEZ, 1988/2020b).
Lélia Gonzalez enfatiza fortemente sua condição de mulher negra. Ela recorre à psicanálise e
à experiência do inconsciente para nos transmitir seu processo de Tornar-se negra, que é ao mesmo
tempo político e subjetivo, retomando questões levantadas por Virgínia Bicudo (1945/2010) e Neusa
Souza (1983/2021). Para fazê-lo, ela nos mostra que é preciso subverter a língua. Do mesmo modo
que propõe trocar uma letra por outra, intervindo na língua para destacar uma verdade, de forma
tanto irreverente quanto poética e chistosa, desenvolve neologismos como a categoria político-
cultural da amefricanidade, para resgatar dimensões da negritude que têm sido historicamente
negadas pela neurose cultural brasileira.
A autora nos mostra que os afetados pela colonização e pela tentativa de apagamento das
consequências da escravização não são somente os negros. Somos todos ladino-amefricanos;
pretos, vermelhos, pardos e brancos. Gonzalez (1983/2020a) recorre ao conceito de denegação
para definir o racismo à brasileira, considerando que o “não”, ao ser colocado de forma muito
enfática frente a algum conteúdo psíquico, denota paradoxalmente sua afirmação. Segundo Freud
(1914/1996b;1925/1996e), a constituição do eu se dá a partir de uma expulsão [Austossung]. A
segregação de tudo aquilo que o eu rejeita para passar do eu real inicial ao eu da realidade final
é algo que o processo judicativo considera como mau e, portanto, expulsa. Esse “não” se erige
dialeticamente e em concomitância com o processo de bejahung, afirmação simbólica fundamental,
do que é repelido. Trata-se de uma marca no plano simbólico que determina ao mesmo tempo a
assunção do sujeito e sua separação do Outro. A expulsão constitutiva nunca é completamente
bem-sucedida, ela retorna, assim como o recalcado, através do que é negado.
O que é segregado não desaparece, mas o sujeito nega como se estivesse fora. Freud
(1925/1996e) ilustra com um sonho relatado por um paciente, que afirma não se lembrar de quem
aparecia no sonho: não sei com quem sonhei, afirma categórico o paciente, só sei que “não é minha
mãe!” (p. 265). Freud nos mostra que essa tentativa de negar aqui é na verdade uma resistência das
forças recalcadoras impedindo que o recalcado advenha. Indica que podemos dispensar a negativa
e admitir o tema geral como afirmação. “Um juízo negativo é o substituto intelectual do recalque”
(FREUD, 1925/1996e, p. 266). Ou seja, a denegação revela o que deve ser escutado pelo psicanalista.
Lélia Gonzalez forja um jogo de palavras, da negativa para “A nega ativa” (1983/2020a, p.
79), trazendo justamente o lugar da mulher negra com sua força de desejo sobrepujando o domínio
6 O neologismo lalangue, forjado em francês pela repetição do fonema propositalmente, juntando o artigo “la”
com o termo “langue”, outrora traduzido para o português por alíngua, foi atualizado nos textos recentes para
lalíngua, por sugestão de Haroldo de Campos, para preservar a repetição fonética e destacar sua relação com a
lalação infantil e a musicalidade que lhe é própria (QUINET, 2016).
259
59A
Contribuições atuais: invenções políticas e coletivas na psicanálise
7 O coletivo Ocupação Psicanalítica tem conduzido uma pesquisa que dialoga com diversas iniciativas brasileiras de
psicanálise de borda, que se propõem a realizar intervenções em situações de vulnerabilidade, como psicanálise de
260
60A
a grupos de pesquisa de várias universidades (UFMG, UFES, UFRJ e UFRB), quanto organizações
constituídas pela reunião de psicanalistas de várias instituições, universidades e escolas de formação
psicanalítica, como o Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD), vêm trabalhando no sentido de
sensibilizar a comunidade analítica frente às questões raciais. No final do ano de 2021 a Sociedade
Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro anunciou a primeira iniciativa de ações afirmativas
vinculada à formação do analista. Em seguida os Fóruns do Campo Lacaniano também anunciaram
sua decisão nesse sentido. Nos últimos anos, alguns Programas de Pós-graduação em Psicanálise
e Psicologia implementaram política de cotas raciais. Grupos de pesquisa que reúnem professores
de várias universidades, como o Núcleo de Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (PSILACS-
UFMG), o Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL-USP), e o Núcleo de Estudos em
Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC-UFRJ) têm também direcionado esforços para
o estudo do racismo, com uma perspectiva decolonial da psicanálise (GUERRA; LIMA, 2021).
Considerações Finais
Avaliar o valor histórico de uma produção é sempre uma tarefa complexa, que expõe ao risco
de parcialidade, ou de menosprezo ou supervalorização de algumas contribuições. A imparcialidade
é justamente o semblante que sustenta versões oficiais da história que apagam a negritude e
denegam o racismo. Nossa perspectiva se reconhece parcial, na medida em que a totalidade é
um delírio colonial. É, porém, implicada no compromisso de resgate de uma história que já não
pode ser contida pelas máscaras do silenciamento. Essa retomada é possível porque são as próprias
psicanalistas negras que, já não mais de forma isolada, estão subvertendo a história. Evocamos aqui
uma tomada de responsabilidade que depende de engajamentos singulares e formações coletivas,
aprendidas pelas organizações quilombolas e seus efeitos nos movimentos sociais populares nas
favelas e periferias. Podemos entender que houve um período de latência entre as duas rupturas
democráticas recentes: o período do regime militar pós 64, quando Neusa Santos Souza (1983/2021)
retoma Fanon para sua leitura clínica e faz repercutir no movimento negro as causas inconscientes
das questões outrora levantadas por Virgínia Bicudo; e o golpe jurídico parlamentar sofrido pela
presidenta Dilma em 2016, com a ocorrência de uma série de eventos que nos forçaram a retomar
os debates acerca do caráter frágil de nossos avanços democráticos. Apesar de apostar em um
tempo novo, Isildinha Baptista nos adverte para o risco da resistência ao avanço do enfrentamento
ao racismo: “A ação política pode vir a fracassar, por exemplo, pela sobrevivência, inconsciente, do
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rua, em comunidades atingidas pela violência policial, ou com populações periféricas e marginalizadas. Os estudos
sobre a formação dos quilombos e sua estrutura coletiva diversa da mente grupal, conforme Freud (1921/1996d)
havia proposto como matriz lógica para investigação do inconsciente nos grupos, serve de baliza teórica, clínica e
metodológica seja para operar com as clínicas de borda, seja para trabalhar com os próprios coletivos de Psicólogos,
psicanalistas e pesquisadores.
261
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263
63A
ADOLESCENTES CONECTADOS: EXTRAVIOS OU POSSÍVEIS
CAMINHOS?
Abstract: The theme of adolescence has been of increasing interest to psychoanalysis, as it is a crossing that calls for a
powerful psychic work in the face of sexuality and the new forms of subjectivation in the contemporary world. In this sense,
this work seeks to think of cyberspace as one of the places where adolescents’ responses to the irruption of reality at puberty
are represented, as well as highlighting the links, their ties and the dismantling of the network. The exits increasingly pass
through cyberspace, which can be a place that reinforces disorientation, but also that collaborates with the adolescent
transition, which will depend on the singular uses and contingencies encountered by the subjects. Psychoanalysis reserves
a space for listening to these inventions anchored in virtual experiences, where it can address its impasses, test possibilities
and build unprecedented knowledge.
1 Doutora em Ciências da Saúde pela UFSJ, com ênfase em Saúde Coletiva. Docente na Faculdade Pitágoras – Divinópolis. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/0456861753750346. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-7111-9648. Email: melo.claudia@hotmail.com
2 Psicóloga. Psicanalista. Doutora em Educação pela UFMG. Professora da Faculdade Pitágoras Divinópolis e FANS (Faculdade de Nova Serrana).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8835053603540057. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-7487-0270. Email: raquelcmesquita@hotmail.com
3 Graduada em Psicologia pela Faculdade de Divinópolis (FACED). Pós-graduada em Psicanálise e Saúde Mental. Atua em atendimentos a
adolescentes e adultos no consultório particular. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1631460100276032. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7389-
7953 Email: lorenadivi04@gmail.com
4 Graduada em Psicologia pela Funedi/UEMG. Pós-graduada em Psicanálise: clínica com crianças e adolescentes pela PUC Minas. Atua em
consultório particular, atendendo crianças, adolescentes e adultos. Lattes: https://lattes.cnpq.br/9066727826393671. ORCID: https://orcid.
org/0009-0008-7411-420X. Email: milenecarlasantos@hotmail.com
Introdução
A puberdade implica, em certa medida, a queda dos semblantes e das escoras narcísicas,
provocando o desligamento da autoridade parental ao mesmo tempo em que torna possível
ocupar um lugar entre muitos. Segundo Stevens (2004), a adolescência pode ser pensada como um
sintoma da puberdade. Neste período de impasses e confronto com o real do sexo, o adolescente
busca construir saídas.
Lacan (1974/2003), em seu ensino ao retomar a peça O despertar da primavera, de
Wedekind, analisa o desenrolar da história associando o despertar da sexualidade a partir da
emergência da puberdade a alguns pontos importantes que correspondem a uma versão particular
do pai, como o semblante. Na peça em questão, três adolescentes vivenciam o despertar e a
iniciação da sexualidade. É possível ver como cada um dos personagens experiencia este momento
de uma forma única, ou seja, como o real do sexo se inscreve para cada sujeito. Ao final da peça, o
autor lança mão do “homem mascarado”, ao que Lacan analisa como semblante capaz de orientar
o jovem personagem que se encontrava tragicamente afetado.
O homem mascarado assegura e permite um bom uso dos
semblantes para orientar a vida. Trazendo uma saída possível
O encontro com o sexual causa um impacto na vida dos sujeitos, produzindo alterações
na organização psíquica frente à sexualidade e inaugurando um novo percurso no qual cada um
deverá encontrar uma resposta singular para aquilo que o afeta. Na contemporaneidade, temos
notícias das mais diversas saídas inventadas pelos adolescentes para tentar suportar o novo que se
apresenta e avançar em direção à vida adulta.
De acordo com Deluz (1999), os ritos de passagem colaboram para que os adolescentes
assumam um outro lugar, o lugar social. Nas sociedades tradicionais, os ritos de passagem eram
relacionados a sacrifícios corporais, que inseriam o sujeito no campo do outro. O corpo era marcado,
por vezes acompanhado por dor e sofrimento. No entanto, o valor simbólico estava presente, e o
jovem era reconhecido como adulto pela sociedade. Esses ritos de passagem em direção à vida
adulta ocorriam de acordo com cada cultura e eram passados de geração para geração, oferecendo
balizas simbólicas capazes de nortear os jovens nesta travessia marcada pela tradição. Atualmente,
os rituais estão cada vez mais precários, o que dificulta o acolhimento dos adolescentes no laço
social e os lançam em direção ao pior, pois, sem orientação simbólica que seja suficiente, como nos
diz Lacadée (2011), as tentativas de ritualizar o acesso à idade adulta e de se localizar no mundo,
para muitos adolescentes, realizam-se através das condutas de risco.
266
66A
A adolescência contemporânea apresenta-se marcada pelo enfraquecimento das saídas
simbólicas para o excedente pulsional da puberdade. Não se pode esperar isso do universal dos
ritos e da “figura de peso” freudiana, nem dos significantes mestres ou do nome do pai sugeridos
por Lacan. Deste modo, o adolescente percebe-se diante de um tempo em que
[...] os semblantes estão confusos, as balizas simbólicas já
não dão tanta sustentação à transmissão vertical: o Nome do
Pai, o Ideal do eu, as insígnias do Outro. Isso leva os jovens na
contemporaneidade a construir respostas com seus próprios
recursos, usando a transmissão horizontal, a identificação com
os pares, os modismos, as “comunidades de gozo”. Essa falta
de referência estimula a experimentação. Cada um procura,
pela própria experiência, o que é melhor para ele, o que lhe dá
mais satisfação (FERREIRA, 2016, p. 4, grifo do autor).
267
67A
A falta de amparo da função paterna na adolescência, que implica o sujeito a inventar suas
próprias articulações, reforçada pela contemporaneidade, que concentra esforços para anulação
da falta e exigência de satisfação, coloca em cena a ausência dos suportes simbólicos. A satisfação
pulsional passa a ser buscada em objetos gadgets, e deparamos-nos com anorexia, depressão e
fenômenos de acting outs e passagens ao ato. Também os sintomas de adicção, como exemplo as
toxicomanias, denunciam o excesso de gozo e tentativa de apaziguamento da angústia. Cosenza
(2021) afirma que estes modos de gozo se caracterizam pela ausência do Outro e se organizam em
torno de um circuito fechado, mas que, se por um lado cumprem uma função estabilizadora para o
sujeito, de evitação da ansiedade e angústia, por outro, reforçam o surgimento das práticas de gozo.
Muito se ouve falar sobre a influência do ciberespaço nas patologias contemporâneas,
bem como nos fenômenos de actings outs, que têm se apresentado na atualidade. Sabe-se que
o excesso de exposição às imagens, especialmente nas redes sociais, veicula modos de gozo e que
os objetos de consumo estão cada vez mais presentes, numa tentativa desenfreada de satisfação e
tamponamento da falta.
Vianna, Jesus e Freitas (2017, p. 81), sobre as adicções, nos dizem:
[...] tentativa de o sujeito se anestesiar diante do mal-estar
que advém da dificuldade de responder às demandas da
cultura, que exigem a sustentação de um lugar no social, na
estrutura familiar, vida profissional ou afetiva. Não é por acaso
que muitos casos de dependência química começam durante
a adolescência e início da idade adulta, quando é exigido
que o sujeito faça escolhas significativas, como a escolha de
uma carreira, e quando os relacionamentos afetivos e sexuais
começam a dominar o universo do adolescente.
Ocupar e sustentar um lugar no social pode se tornar uma grande exigência para os
adolescentes, levando-os a diversas soluções. Diante da multiplicidade de arranjos e respostas das
adolescências, o ciberespaço aparece como lugar de endereçamento e construções fantasiosas. O
adolescente à deriva, atravessado pela queda dos ideais e sem uma orientação que lhe dê suporte
simbólico, busca no virtual encontrar balizas, direcionando demandas à máquina e encenando
identificações horizontais, a partir de inúmeras referências. Miller (2016) diz que, hoje, há uma
autoerótica do saber; o saber já não é mais extraído do campo do outro. Por essa lógica, cada
vez mais pais e instituições se queixam do uso exacerbado dos meios virtuais e da dificuldade em
acessar os adolescentes atualmente.
Neste sentido, a virtualidade se relaciona ao conceito de fantasia e nos leva a refletir sobre
as saídas encontradas pelos adolescentes durante a reconstrução da fantasia. A identificação dos
adolescentes com a ficção, personagens de filmes, jogos, amores impossíveis, entre outros, pode
representar os modos como cada um particularmente lida com este período.
Em muitos casos, circular no espaço virtual proporciona estar em contato com figuras
que sustentam o saber, como professores e mestres que promovem orientação, com outros
adolescentes aos quais podem se identificar, firmando esse lugar possível em que o adolescente
pode construir sua resposta ao real que irrompe. As produções no virtual, como a escrita dos blogs
O analista que convida o adolescente a falar sobre suas conexões virtuais aposta em uma
conexão com o adolescente no setting, localizando a lógica discursiva daquele sujeito e a função do
virtual em sua história. A partir disso, inauguram-se possíveis vias do novo em seu dizer. “É diante
da presença do analista que o adolescente pode construir ou elaborar uma posição subjetiva,
sabendo que de onde ele fala o analista estará ali, na escuta, a sustentar e a suportar o seu desejo.”
(ANDRADE; LANG, 2020, p.308) Com a oferta da palavra, o adolescente pode renunciar um pouco
do gozo em excesso e, através do laço transferencial, compartilhar suas experiências virtuais em
presença, possibilitando produções simbólicas e construções de narrativas ‘’...a palavra, este
atributo da ordem simbólica, mostra-se capaz de enlaçar real e imaginário possibilitando certo
270
70A
tratamento do real do gozo.’’ (BERNI;NOBRE;LIMA, 2021,p.39388)
Considerações Finais
Como nos transmite o ensino de Freud a Lacan, a puberdade mobiliza intensa reorganização
psíquica e tem efeito em todas as esferas da vida, tanto dos jovens quanto de seus cuidadores. O
trabalho empreendido neste tempo considera um real insurgente e impossível de significação que
desestabiliza a relação do sujeito com o laço social e impõe certa reorganização que convoca a uma
saída sintomática, denominada adolescência.
A contemporaneidade, marcada pelo imperativo capitalista e o enfraquecimento das
tradições que antes delimitavam na cultura a passagem adolescente, faz deste contexto um tempo
em que se torna mais difícil encontrar ancoragem para a travessia. Neste sentido, cada adolescente
precisa inventar uma solução diante do impasse instaurado pelo impossível. A observação e a escuta
nos mostram que as saídas cada vez mais passam pelo ciberespaço, que tanto pode ser um lugar
que reforça a desorientação, mas também um espaço que colabora para a transição adolescente, o
que dependerá dos usos singulares e das contingências encontradas pelos sujeitos.
O ponto fundamental que procuramos trabalhar neste artigo incide sobre a relação dos
adolescentes com as virtualidades no contemporâneo, em tentativas particulares para apoio
durante este período. Foi possível elencar o ciberespaço como um lugar possível de fazer laço e de
inventar e se organizar diante dos embaraços da adolescência. As vivências e as relações no virtual
podem contribuir com a construção de um saber fazer diante dos sintomas na adolescência, não
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274
74A
DIAGNÓSTICAS SOCIAIS DA BRANQUITUDE
Pedro Ambra 1
Resumo: o artigo apresenta algumas consequências da escolha de categorias diagnósticas para a reflexão sobre
a branquitude no Brasil. O recurso feito à psicanálise no debate das relações étnico-raciais parte da hipótese de uma
convergência entre constituição subjetiva e estrutura social e é problematizado à luz da ética da escuta e de uma postura
epistemologicamente não colonizatória em relação a outros saberes. Em seguida apresentam-se os antecedentes históricos
e conceituais da noção de branquitude e as especificidades do chamado “pacto narcísico”, proposto por Cida Bento. Ao
diferenciá-lo do racismo pensado como “neurose cultural brasileira” em Lélia Gonzalez, buscamos extrair consequências
políticas do paralelo entre os horizontes de tratamento clínico e de transformação social. Defende-se que a emergência de
uma verdade histórica quilombola pela reconquista do passado é uma das condições do devir antirracista.
Abstract: This paper presents some consequences of choosing diagnostic categories for reflecting on whiteness in Brazil.
The use of psychoanalysis in the debate on ethnic-racial relations postulates a convergence between subjective constitution
and social structure, and it is problematized considering the ethics of listening and an epistemologically non-colonizing
position towards other knowledge systems. Historical and conceptual antecedents of the notion of whiteness and the
specificities of the so-called “narcissistic pact,” proposed by Cida Bento, are presented. By differentiating it from racism
conceived as the “Brazilian cultural neurosis” in Lélia Gonzalez, we seek to draw political implications from the parallel
between clinical treatment and social transformation horizons. It is argued that the emergence of a quilombola historical
truth through the reconquest of the past is one of the conditions for an anti-racist future.
1 Doutor em Psicologia Social (USP) e em Psicanálise e Psicopatologia (Université Paris Cité). É professor da PUC-SP e da USP e coordenador da
Escola Tamuya de Formação Popular. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9168299684488495. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5917-3895.
Email: pedro.ambra@gmail.com
Introdução
As maneiras pelas quais a psicanálise relaciona-se com o social são polimorfas e, no limite,
perversas: face à correta cópula entre clínica e metapsicologia, ungida pela abstinência da escuta,
a política insiste em apontar impasses. A noção de gênero, os saberes sobre o sexual aportados
pela teoria queer e as novas gestões do erótico e das relações não-monogâmicas, por exemplo,
parecem colocar em xeque a certeza que muitas/es/os tinham de que a pulsão freudiana e a
ênfase lacaniana no discurso seriam a palavra final sobre a sexualidade. Da mesma feita, a maior
ventilação de autorias e questões ligadas às relações étnico-raciais, tanto no interior da psicologia e
das ciências humanas quanto na opinião pública, convida (às vezes de maneira enfática) a algumas
assunções de posição por parte de psicanalistas.
Explicita ou implicitamente enunciada, a ideia de que o “inconsciente não tem cor”
pressuporia que não há um correlato verdadeiramente psíquico dos marcadores sociais da
diferença. Raça, gênero, classe, entre outros, teriam uma influência apenas na espessura imaginária
do Eu, ainda que, paradoxalmente, não se negue que o racismo no Brasil é estrutural. Para muitas/
es/os aceita-se haver um conjunto de relações socialmente organizadoras, mas sem impactos
fundamentais na estrutura psíquica. Mas seria isso metapsicologicamente possível, eticamente
sustentável ou politicamente desejável?
O artigo tem por objetivo circunscrever os recursos teóricos e políticos feitos por pensadoras
das relações étnico-raciais às noções de “narcisismo” e “neurose” e suas consequências para a
transformação social. Para tanto, iniciaremos por apresentar uma aposta ética sobre o lugar da
psicanálise frente aos saberes e demandas politicamente implicadas para justificar a elevação
da inseparabilidade entre sujeito e sociedade ao estatuto de método. Em outras palavras,
radicalizamos a eleição de categorias oriundas da clínica psicanalítica considerando seu correlato
transformativo último, o tratamento. Em seguida serão apresentadas diferentes conceituações da
categoria de branquitude, os debates envolvendo sua suposta invisibilidade e quais contradições
se expressam no uso psicossocial da noção de pacto narcísico. Tal expediente será contrastado
com a espessura relacional do racismo tomado como neurose, sendo a branquitude um efeito
secundário do silenciamento de uma verdade histórica. Tal distinção conduzirá a uma reformulação
do que se entende como direção do tratamento do sujeito, enquanto transindividual, por meio
da reintrodução de fragmentos apagados da história, inconscientemente colonial. Concluiremos
defendendo a pertinência da noção de narcisismo enquanto diagnóstica tática, o racismo como
neurose enquanto intermediação estratégia e a revolução enquanto destituição do sujeito suposto
Este artigo poderia ter tido como mote “o que a psicanálise tem a dizer sobre o racismo”.
Porém, nos veríamos aí defrontados com um primeiro problema. Não que ela não tenha o que
dizer sobre este e outros campos, pelo contrário. Mas justamente esse excesso em dizer sobre
deveria causar estranhamento num campo fundado primordialmente pela escuta. Defendo que a
presença da psicanálise na cultura deve aparentar-se a sua postura clínica no que tange uma ética
da não sobreposição do dito interpretativo face à enunciação do dizer. Em outras palavras: se na
clínica a escuta é soberana em relação à interpretação, por que haveria de ser diferente em debates
conceituais ou públicos?1
1 Tal inquietação, bem entendido, não é apenas conceitual, mas igualmente íntima e pessoal, pois me vejo sempre
numa tensão entre o quanto, onde, com quem e quando falar versus o escutar, escrever versus ler. No Brasil, os
processos sociais de subjetivação me localizam enquanto alguém cuja fala é reconhecida e, portanto, a validade
de seu conteúdo valeria per se, o que tem como resultado, para mim e para a estrutura social, quase sempre o
apagamento da própria posição enunciativa. Deveria, assim, em nome de uma reparação histórica, silenciar-me
individualmente sobre algumas temáticas na esperança de contribuir pontualmente para uma inversão nas lógicas
de lugares de fala? O que é e quais as funções do silêncio do homem branco? Nesse campo, é possível haver, para
além da leitura, uma escrita verdadeiramente ética?
276
76A
Sustentar a função analista para a fala do outro não implica, porém, num silenciamento
total, seja neutro ou implicado. Ao contrário, como sabemos, a escuta — e, mais precisamente,
a escrita, para o lacanismo tardio — é uma práxis árdua que implica em hipóteses, ensaios e,
sobretudo, na consideração dinâmica da transferência. Ou seja, localizar-se face à fala do outro
é um dos fundamentos de qualquer escuta que se arrogue inscrita no legado freudiano. Nesse
sentido, antes de sermos acometidos pelas interpretoses de plantão, cumpriria mapear os recursos
feitos à psicanálise, por exemplo, pelas teorias sociais e como seus conceitos e mecanismos são
utilizados e, eventualmente, por elas transformados. Talvez assim, ao investigar como a psicanálise
é utilizada por campos críticos que pensam problemas que extrapolam o sentido estrito da clínica,
será possível descobrir novos limites de suas próprias potencialidades, algo que a proximidade das
reflexões internalistas não nos deixa ver.
Para nossos propósitos, pouco profícua parece ser a postura de fiscais de pureza da
psicanálise: este é um trabalho não apenas crítico no sentido estrito do termo, mas politicamente
engajado com uma mudança social efetiva que, evidentemente, se dará para além da universidade
e dos consultórios. Escrevo, assim, como cidadão que considera inaceitável a exploração da classe
trabalhadora no Brasil e sua estrutura racializada; como pessoa branca que deseja responsabilizar-
se intelectual e politicamente pela constatação de que sua experiência de laço social não é universal
ou universalizável; (mais) como psicólogo social (do que como analista) que se questiona por que
diabos valorosas reflexões sobre as relações étnico-raciais valem-se da psicanálise e não de outros
saberes psi no interior de seus projetos conceituais e quais as consequências dessas escolhas.
Tomaremos a problemática da branquitude como objeto desse exercício de apresentação de
alguns usos de noções oriundas da psicanálise, com vistas a construir uma justificativa metodológica
para horizontes de transformação de nossa estrutura racial e, por consequência, social. Mas em
que medida seria lícito utilizar tal marcador social? É bem verdade que a psicanálise figura no rol
dos saberes que, de alguma maneira, questionam a identidade do sujeito para consigo próprio,
pois o inconsciente é uma emergência que fissura o eu. Porém, não se depreende daí que ela seja
intrepidamente anti-identitária, subalternizando os traços socialmente constituintes do Eu, como
algumas análises conservadoras parecem querer demonstrar.
É necessário, contudo, partir de alguns pressupostos para desdobrar tais problemas. O
primeiro deles apoia-se na máxima freudiana segundo a qual a psicologia individual é, desde o
início, psicologia social, sendo sua separação meramente metodológica, e não conceitual ou
epistemológica. Em Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 2010, p. 14), vemos não apenas
a utilização de conceitos da psicanálise na reflexão de fenômenos sociais, mas uma franca expansão
2 Ver trabalhos de Slavoj Žižek, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Christian Dunker, Vladimir
Safatle e Nelson da Silva Jr.
3 Ver trabalhos de Gayle Rubin, Judith Butler, Jéssica Benjamin, Paulo Ceccarelli, Felipe Lattanzio, Patrícia Porchat,
Patrícia Gherovich, Javier Saéz, Pedro Ambra e Rafael Cossi.
4 Ver trabalhos de Frantz Fanon, Roger Bastide, Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Neusa Santos Souza.
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77A
Falamos há pouco da ênfase considerável que Lacan dava ao
ponto de vista social. [...] Na base de sua doutrina, Lacan situa
um postulado: o determinismo psicogenético. Esse postulado
possibilita a ciência da personalidade, que tem por objeto o
estudo genético das funções intencionais em que se integram
as relações humanas de ordem social (FANON, 2020a, p. 371,
negritos nossos)
Assim, se em Pele negra a diagnóstica anunciada ao longo de suas páginas seria aquela de
uma sociogenia (Fanon, 2020b, p. 25) em sua tese Fanon parece recorrer a Lacan para demonstrar
que a própria psicogênese é em si já uma sociogênese. A partir daqui, pensar a constituição psíquica
é pensar o laço social. Mas seria o oposto verdadeiro?
É bem verdade, porém, que a concepção de um determinismo social culturalista é modificada
por Lacan a partir do encontro com o estruturalismo. Sai de cena a sociologia como campo
conceitual solidário e a centralidade da imago como conceito forte se inverterá, secundarizando-a
como um efeito alienante subjugado ao simbólico (SILVEIRA, 2022). De toda forma, a ideia de uma
alteridade que constitui o sujeito desde fora se mantém, não mais como uma cultura concreta, mas
como uma estrutura da linguagem e da espessura universal das proibições ligadas ao parentesco
como regulagens mestras das relações sociais. Na mesma esteira, a interpretação psicanalítica da
ideia hegel-kojèveana de desejo como desejo do Outro fornece um sujeito incontornavelmente
excêntrico e cujo processo de constituição é não apenas centrífugo, mas também centrípeto. Mas
de qual centro e de qual Outro se trata nas discussões sobre relações étnico-raciais no Brasil hoje?
Propomos uma analogia entre os processos de constituição subjetiva e aqueles que
instauram e mantém relações sociais ligadas à racialização. Neste sentido, narcisismo e neurose
não seriam mais noções exclusivamente psicológicas assim como branqueamento e racismo não
estariam exclusivamente no campo das teorias sociais: a estrutura moebiana vale não apenas
para a relação do sujeito com o Outro, mas para a própria constituição do saber psicanalítico e das
reflexões sociais que consideram a dimensão psíquica.
Decorreria daí um passo suplementar às diferentes diagnósticas sociais5 que se valem da
psicanálise: utilizar quadros clínicos e mecanismos psicanalíticos para analisar as relações raciais
implica que as estratégias de tratamento clínicas podem, guardadas as devidas proporções,
servir como guias para processos de transformação política. Apresentarei dois exemplos deste
uso, narcisismo e neurose, para melhor embasar algumas reflexões sobre sua pertinência na luta
antirracista no Brasil.
5 Inúmeros e plurais são os exemplos de usos de categorias diagnósticas para se pensar questões sociais. Para
ficarmos apenas nos exemplos que o fazem a partir da perspectiva de raça no Brasil, trata-se de uma tradição
que se inicia, no mínimo, desde Arthur de Gobineau, passando por Silvio Romero e culminando nos trabalhos de
Raimundo Nina Rodrigues. Esta perspectiva de trânsito entre reflexão racial e diagnóstica compõe, igualmente,
o quadro crítico e antirracista do pensamento nacional, com nomes como Dante Moreira Leite, Guerreiro
Ramos, Neuza Santos Souza, Lélia Gonzalez e Maria Aparecida Bento, que aqui discutiremos de maneira mais
pormenorizada.
278
78A
no Brasil é reputada à Gilberto Freyre, em 1962, tomando-a negativamente como a contrapartida
da negritude, ambas – para o autor – estrangeiras à mestiçagem que constituiria o fulcro de nossa
democracia racial. Guerreiro Ramos, contudo, teria sido quem levou essa problemática mais longe
com seu A patologia social do “branco” brasileiro (1982)6, no qual demonstrou que a dominação
racial no Brasil não se valia apenas de expedientes de violência, mas, igualmente, de gestões
de estereótipos que exaltariam a branquitude e rejeitariam (mais ou menos explicitamente) a
negritude. Há aqui uma exaltação positiva de uma identidade racial numericamente minoritária, mas
ideologicamente hegemônica. Décadas mais tarde tal hipótese, consoante com algumas indicações
de Frantz Fanon (2020b), será resgatada, reelaborada e verificada em termos psicanalíticos por
Neuza Santos Souza (2021) ao propor um cruzamento entre branquitude e a noção de Ideal do eu
em pessoas negras em ascensão social no Brasil.
Ao mesmo tempo, a branquitude possuiria outra característica aparentemente contrária,
mas intimamente articulada à primeira: sua invisibilidade estratégica. Para Edith Piza, inspirada
pelos trabalhos de Ruth Frankenberg, “o branco não ‘enxergaria’ sua identidade racial, por isso ela
seria ‘invisível’. Aliás, para Edith Piza, quando o branco defronta-se com sua própria branquitude,
causa-lhe um grande impacto, semelhante a uma pessoa desavisada que se choca com uma porta
de vidro” (CARDOSO, 2011, p. 84).
Há aqui um importante debate sobre os desdobramentos éticos desta semiologia: sendo a
branquitude invisível, como reconhecer privilégios e responsabilizar-se por sua condição de pessoa
branca? Em outro trabalho, Cardoso (2010) defenderá que a identidade racial branca não é uma
entidade homogênea e que — a despeito de ocupar uma posição de privilégio numa sociedade
racializada — pode, ser dividida entre crítica (aquela que publicamente condena o racismo) e
acrítica (abertamente supremacista). Tal divisão foca-se em traços de indivíduos ou grupos que têm
na expressão pública ou consciente suas marcas de distinção. Em outras palavras, o autor defende
que, a despeito das diferenças nas experiências de branquitude, há uma positividade consciente
desta identidade.
Motivo pelo qual nomeará o percurso de Cida Bento como contraditório, na medida em
que sua proposta de pacto narcísico da branquitude ao mesmo tempo que negrita a manutenção
positiva de poder entre brancos, trata esta identidade como invisível:
Na concepção de branquitude de Bento encontra-se também
a ideia de invisibilidade racial, semelhante ao significado
empregado por Edith Piza [...] Se o pacto narcísico ocorre
também pelo interesse dos brancos em preservarem seus
A tensão entre uma vivência identitária consciente ou não de sua unidade remete-nos à
raiz conceitual utilizada por Bento, a saber, o narcisismo. Por que e como valer-se de uma categoria
oriunda da psicanálise freudiana para refletir sobre o laço social racializado no Brasil? Quais os
efeitos de tal escolha na luta antirracista?
Cida Bento tem o mérito de ter escrito a primeira tese de doutorado que tem como foco
central a branquitude no Brasil.7 Partindo de entrevistas com gestores de recursos humanos, Bento
tomou a identidade e a dinâmica de manutenção de privilégios brancos como problema central a
6 Guerreiro Ramos utilizará a grafia brancura para se referir ao que se consolidou nomear como branquitude.
Se aquela, contemporaneamente, designa sobretudo características físicas, esta inclui traços fenotípicos, mas vai
além pois inclui dimensões culturais, psíquicas, ideológicas e históricas. Tal distinção é corroborada também por Lia
Schucman em seu célebre Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: raça, hierarquia e poder na construção
da branquitude paulistana. (2012).
7 Passados mais de vinte anos de sua defesa, os trabalhos sobre a temática se avolumaram, ainda que sejam
tímidos os números de teses e dissertações sobre o tema quando comparados a outros em psicologia social. A
atualidade do tema pode ser atestada ao se considerar que mais da metade das teses sobre branquitude foram
redigidas nos últimos três anos, conforme dados do Banco Brasileiro de Teses e Dissertações.
279
79A
partir da defesa da hipótese da existência um pacto narcísico da branquitude, conceito que tornou
sua obra conhecida e é uma das principais matrizes para se pensar branquitude hoje no Brasil.
Em linhas gerais a autora argumenta que a manutenção de privilégios no Brasil conta com um
expediente de acordo entre pessoas que se identificam como brancas e que tem como resultado a
perpetuação do racismo no Brasil. As violações contra os direitos de pessoas negras são tratadas,
pelas/os entrevistadas/os, como algo ora inexistente, ora alheio (BENTO, 2002, p. 155). Ainda que
as alusões ao narcisismo tenham suas raízes e usos em Sigmund Freud e, consequentemente, René
Kaës, Theodor Adorno e Max Horkheimer, elas servem primordialmente a Bento para propor uma
reciprocidade identificatória na qual o grupo de iguais reproduz estratégias de manutenção do
status quo.8 Bento promove, assim, um uso metodologicamente psicossocial de uma categoria da
metapsicologia e da diagnóstica psicanalíticas. Ainda — ou principalmente pelo fato de — que seu
trabalho não possa ser considerado um trabalho de psicanálise, esse expediente parece apoiar-se
em uma homologia, analogia ou, no mínimo, uma continuidade da categoria de sujeito e de grupo
e, no limite, de sociedade.
Desta feita, um dos pontos altos de sua articulação é pensar o narcisismo como de partida
já atrelado a processos sociais. Na esteira da divisão proposta por Sílvio Almeida (2019), nota-se
que o expediente de Bento, apesar de valer-se de uma noção oriunda de uma teoria psicológica,
não reduz o racismo a sua espessura individualista, mas denuncia sua dimensão institucional e
estrutural. Em outras palavras, escapando de uma moralização, psicologização ou patologização das
relações raciais, a autora utiliza um conceito advindo do campo clínico e da constituição subjetiva
para refletir sobre uma dinâmica de grupo, donde seu recurso a Kaës e à teoria crítica. O narcisismo
é, assim, pensado como um amor a si mesmo e aos semelhantes9 e, pela via da projeção, um ódio
em relação àquelas/es tomados como diferentes (BENTO, 2002, p. 42).
Arriscaríamos caminhar por zonas de imprecisões ao supor que, por tratar-se de um conceito
psicanalítico, o narcisismo aportaria necessariamente à discussão uma perspectiva individualista.
Bem entendido, o narcisismo e a identificação são, desde Freud, também utilizados para refletir
sobre processos sociais, notadamente em Psicologia das massas e análise do eu e Mal-estar na
civilização condensado, entre outras, na hipótese do “narcisismo das pequenas diferenças” para
se pensar a relação entre grupos. Ainda que, por outro lado, ao analisar a realidade de extrema
violência e assimetria racial no Brasil, a agressividade não deva ser localizada na lógica de uma
“pequena” diferença oriunda exclusivamente de um cálculo psíquico ficcional da constituição
de grupos supostamente fraternos. E é daí, provavelmente, que a ideia de pacto tira sua força e
importância.
8 Foge aos propósitos deste artigo apresentar de maneira pormenorizada tanto a noção de pacto narcísico tal
como apresentada por Kaës quanto sua origem junto o conceito de narcisismo em psicanálise. Cumpre notar,
pontualmente, que este se refere (1) a um momento de estruturação do Eu que se sucede ao autoerotismo e
antecede a relação objetal, (2) a uma dinâmica de desinvestimento de libido no objeto, tanto no sofrimento quanto
na esfera amorosa (FREUD, 2010) e (3) uma categoria de diagnóstica. (FREUD, 2011a). Retomaremos mais à frente
alguns destes pontos ao analisar os efeitos da escolha desta noção para se conceber a branquitude.
9 A autora assume, de partida, um foco de unidade e semelhança entre pessoas brancas, ao contrário do que
propõe Cardoso.
10 A reconquista de um suposto ideal viril perdido no passado é, muitas vezes, o motor de certos discursos
misóginos na contemporaneidade, como o “masculinismo”, o “movimento red pill” e os “incels”. Para uma
280
80A
implícita, no expediente de Bento o pacto é elaborado não a partir de uma universalidade que
aboliria as diferenças, mas como um pacto da própria manutenção das diferenças, sendo sobretudo
grupal e identitário e não universal.
Esquematicamente podemos propor que para a autora o narcisismo é a tópica basilar do
reconhecimento entre brancos que garante, seja a individualidade, seja uma pertença grupal: trata-
se da instauração da zona eu-outro, nós-eles. Aquilo que Cardoso (2011) compreenderá como
contraditório em Bento, o fato da branquitude ser ao mesmo tempo reconhecida e invisível, pode
ser interpretada como uma certa fidelidade conceitual à noção de narcisismo: se por um lado é ele
que garante a constituição egóica, o sentimento de si e, no limite, o próprio corpo, por outro trata-
se de uma alienação que exclui tanto nossas próprias zonas abjetas quanto o fato da constituição
psíquica ser efeito de uma alteridade, conforme defende Lacan em seu Estádio do Espelho.
Regendo o narcisismo a lógica da identificação, temos que o pacto é a dinâmica de
reprodução e manutenção dos lugares. Diferentemente de um pacto que assinala um marco
temporal circunscrito que funda um antes e um depois da “cultura”, aqui ele se aproxima de uma
reiteração performativa atualizada a cada ato que reinsere os sujeitos nos lugares designados por
nossa dinâmica racial. Captado e sustentado pelo discurso, o pacto se desvela na própria construção
da narrativa que (re)cria lugares: “A escolha do pacto narcísico como linha mestra de análise do
material, deve-se a maneira como surgem (ou são omitidos) no discurso dos entrevistados, os dois
principais atores: brancos (as) e negros (as)” (BENTO, 2002, p. 155).
Há ainda um último elemento fundamental para a compreensão do recurso metapsicológico
feito por Bento em sua leitura sobre a branquitude. Trata-se de uma economia da presença no
pacto. Ao contrário de uma discriminação direta e positiva, seja física ou verbal, a liga aqui
é dada pela subtração: “A invisibilidade e o silêncio parecem ser condição sine qua non para a
manutenção do pacto narcísico. Todos sabem qual é o espaço do ‘nosso’ grupo. Esse espaço não
pode ser invadido.” (BENTO, 2002, p. 109) Ou seja, a perpetuação do pacto se dá por meio de uma
invisibilização da assimetria que tem como base um acordo reiterativo baseado numa identidade
grupal narcisicamente constituída.
Vejamos como tal movimento repetitivo da negação se expressa na análise de Bento sobre
a fala de Mariana, uma de suas entrevistadas: “Não acho que existe assim, a nível de discriminação
‘fulana que é branca, fulana que é preta’ não, isso eu nunca peguei na Prefeitura, nunca senti isso ...
nunca senti. Não sei se é porque eu sou branca, talvez ... não me pega diretamente, sabe ... não me
toca diretamente.” (BENTO, 2002, p. 100, negritos nossos) Em numa nota de rodapé, dirá a autora:
Poderia se incluir aqui o fato de que talvez não ouça, ou não
Podemos assim qualificar melhor a contradição apontada por Cardoso: o pacto é a dinâmica
que conecta, pela invisibilidade, a economia de silêncio à localidade identitária positiva e narcísica
da branquitude. Trata-se de uma dinâmica discursiva que permite a coexistência entre “não existe
discriminação” e “sou branca”. Ou seja, tudo se configura como se o reconhecimento da brancura
fosse um movimento de apagamento da branquitude. Nesta redução da relação social e política a
um traço epidérmico inerte localiza-se a dinâmica do silenciamento: não há o que dizer sobre uma
diferença de pele já que “somos todos humanos”. O mito da democracia racial se encarna por meio
deste pacto, numa dinâmica já apontada por Lélia Gonzalez como ligada a uma negativa: uso o não
como forma de fazer emergir a realidade do sim (GONZALEZ, 2020b, p. 127)
Em mais um recurso feito à psicanálise pela psicologia social do racismo, Gonzalez vale-
se da Verneinung (Negativa) freudiana, conceito eminentemente clínico, para pensar a dinâmica
Ainda que possamos nos valer do recurso à negativa feito por Gonzalez, é preciso pontuar
agora diferenças importantes em relação às suas premissas e apostas diagnósticas. A antropóloga
não se vale da noção nem da branquitude nem de branquidão. Podemos supor algumas razões
para isso. A primeira é que Gonzalez tem um foco não na substancialidade da branquitude mas no
processo social e psíquico de branqueamento, esse sim presente em sua obra. A segunda é que
o branqueamento é um processo poderoso, mas sempre condenado ao fracasso pois “todos os
brasileiros (e não apenas os “pretos” e os “pardos” do IBGE) são ladino-amefricanos.” (GONZALEZ,
2020b, p. 127). Ou seja, ainda que haja pactos de manutenção de poder entre pessoas brancas, do
ponto de vista da estrutura discursiva fundamental e do desejo inconsciente não há uma branquitude
absoluta no Brasil, pelo contrário. A terceira é que, considerando a questão da racialidade por meio
O discurso é o meio através do qual chega-se a uma fala verdadeira, para além do
narcisismo. A fala autêntica seria possibilitada pelo atravessamento das miragens imaginárias do
narcisismo. Através da cadência do discurso, do reconhecimento dos seus impasses e mecanismos
de apagamento, abre-se um universo de transformação que não apenas corrige o incômodo
sintomático, mas revela as possibilidades históricas ainda não aventadas pelo sujeito.
Qualquer aposta transformativa que tenha como objetivo atravessar os efeitos de assimetria
racial baseadas no narcisismo deveria, assim, incluir a dimensão de um discurso que objetiva uma
modificação no sentido de um certo protagonismo histórico. Afinal, o fundamento da psicanálise
não seria outro senão “essa assunção de sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela
283
83A
fala endereçada ao outro” (LACAN, 1998c, p. 258). Mais ainda, o campo da psicanálise seria o do
“discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da
história, no que ela constitui a emergência da verdade no real” (LACAN, 1998c, p. 259).
Quais seriam as confluências de tais precisões para a luta racial no Brasil? Com a palavra, ou
melhor, com o discurso, Lélia Gonzalez:
Em termos de movimento negro e no movimento de
mulheres se fala muito em ser o sujeito da própria história;
nesse sentido eu sou mais lacaniana, vamos ser os sujeitos
do nosso próprio discurso. O resto vem por acréscimo. Não
é fácil, só na prática é que vai se percebendo e construindo a
identidade, porque o que está colocado em questão também
é justamente uma identidade a ser construída, reconstruída,
desconstruída, num processo dialético realmente muito rico.
(GONZALEZ, 2020c, p. 312), negritos nossos
11 A aparente contradição entre a assunção do sujeito de seu discurso ou de sua história nos dois trechos de
Gonzalez (2020c, p. 312 e 2020d, p. 141) pode ser interpretada de duas maneiras. Numa primeira, a autora no
fundo os trata como sinônimos, ou compreendendo que a história deve ser pensada discursivamente e o discurso
historicamente. Numa segunda, haveria uma diferença entre o processo de emancipação (ser sujeito de seu
próprio discurso é mais abrangente ou radical do que ser sujeito de sua própria história) e de subalternização (que
silencia mais radicalmente a história e não apenas o discurso, tomado como sinônimo de fala).
284
84A
Mas como, a partir dessa ambiguidade da noção de história, desestabilizar tal funcionamento
social supremacista branco? Pensadas por meio da neurose, a escassa liberdade corporal e
discursiva que atinge pessoas negras e indígenas (mas incide igualmente em alienações da própria
branquitude) encontrariam uma saída não pela realidade jurídico-formal de igualdade, mas pela
verdade de uma reescrita histórica que franqueie a emergência da verdade.
Leitora assídua de Lacan, Gonzalez não utiliza as noções de discurso e história em vão e
conhecia a radicalidade com a qual o psicanalista pensava não apenas a materialidade da linguagem,
mas o próprio processo de análise. Vejamos como Lacan resume a articulação entre tratamento,
reordenação da história e emergência da verdade:
É que não se trata, para Freud, nem de memória biológica,
nem de sua mistificação intuicionista, nem da paramnésia do
sintoma, mas de rememoração, isto é, de história, fazendo
assentar unicamente sobre a navalha das certezas da data a
balança em que as conjecturas sobre o passado fazem oscilar
as promessas do futuro. Sejamos categóricos: não se trata, na
anamnese psicanalítica, de realidade, mas de verdade, porque
o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências
passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais
como as constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz
presentes (LACAN, 1998c, p. 257).
Ou seja, levando a sério o diagnóstico de neurose feito por Gonzalez, teríamos que o
atravessamento do racismo implicaria na emergência de uma verdade histórica. A saída da repetição
traumática calcada nas miragens narcísicas da branquitude deve conduzir à esperança de um futuro
outro de necessidades por vir, assentado na reconstrução das leituras sobre as contingências do
passado. Neste sentido, Emiliano de Camargo David (2022, p. 65) realiza um resgate das tradições
do quilombismo, quilombagem, kilombo e devir quilomba com vistas à (re)construção de
tecnologias que ultrapassem a obsolescência violenta do modelo manicomial que ainda opera na
práxis em saúde mental no Brasil. Ao contrário de discursos conservadores que tendem a rejeitar
as denúncias de violações de direitos humanos como “coisas do passado”, a aposta na neurose vê
o sentido e o desejo de devir como dependentes de uma outra historiografia: “O que se realiza em
minha história não é o passado simples daquilo que foi, uma vez que ele já não é, nem tampouco
o perfeito composto do que tem sido naquilo que sou, mas o futuro anterior do que terei sido para
aquilo em que me estou transformando.” (LACAN, 1998c, p. 301). Se lembrarmos, porém, que para
Ou seja, pensar um futuro implica em revisitar retroativamente não apenas a realidade dos
desdobramentos históricos, mas igualmente suas promessas. O passado, inconscientemente social,
é um campo em disputa pois ele é o fiador do futuro. Para Freud, contudo, à diferença da neurose,
o narcisismo não possibilitaria uma reconstrução histórica em sentido pleno, pois a ele faltaria o
motor da rememoração mais radical, a saber: a transferência. Por caracterizar-se fundamentalmente
por um ensimesmamento, o narcisismo presta-se muito menos a transformações oriundas das
operações da história no campo do discurso. O que é apenas um limite clínico na psicanálise, na
luta antirracista apresenta-se como um impasse ético: ao apostar em uma diagnóstica que não
possui uma terapêutica clara, arriscamos conceituar as relações étnico-raciais como não passíveis
de processos políticos de transformação. Faz-se assim conveniente uma discussão mais detalhada
O narcisismo, assim, implica que o pacto mantém uma separação forte entre grupos, ainda
se reconheçam assimetrias. Mas a partir do trecho selecionado é possível desdobrar daí mais uma
consequência aventada por Freud: a ambivalência. Para Doralice negros são, ao mesmo tempo,
explorados e revoltados, atacados e agressivos, desrespeitados e demandam respeito.
Seriam tais queixas relativas de fato ao grupo objetalizado ou, no fundo, referir-se-iam às
precárias condições de sustentação do desejo e de luto do próprio Eu? Para Freud, a expressão,
seja melancólica ou maníaca, do complexo narcísico é resultado de uma luta que tem em seu cerne
modalidades primitivas de amor, nas quais o investimento libidinal confunde-se com a própria
destruição do objeto. “A perda do objeto de amor é uma oportunidade extraordinária para que
entre em vigor e venha à luz a ambivalência das relações amorosas” (FREUD, 2011c, p. 65)
A identificação narcísica é, portanto, uma regressão face à impossibilidade amorosa e
não um fenômeno princeps: sua ambivalência, agressividade e constituição identitária carregam
sobretudo a marca de um transitivismo entre sujeito e objeto. Ao não abordar tais especificidades,
Bento parece realçar o enunciado de Doralice em detrimento da enunciação aí presente: revolta,
agressividade e demanda de reconhecimento meritocrático são confissões de tais traços na própria
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290
90A
ESCUTA ÉTICO-POLÍTICA NA (TRANS)FORMAÇÃO DE ANALISTAS
PERIFÉRICOS
Resumo: Ao considerar o fazer analítico com articuladores interseccionais como gênero, raça e classe, propõe-se explicitar
a importância de uma escuta ético-política na formação e transformação descentralizada de analistas periféricos, tendo
como território articulador o Coletivo de Clínica Periférica de Psicanálise de São Paulo-SP (Ermelino Matarazzo, Zona Leste,
ocupação Mateus Santos). Embasado na teoria lacaniana, a qual se propõe refletir sobre a subjetividade de nossa época,
da contemporaneidade, em articulação com outros saberes, como os feminismos, a teoria queer, a teoria de gênero, a
teoria crítica, teoria social, a filosofia, estudos decoloniais, pós-estruturalistas etc. A estratégia é inverter a lógica que
aborda apenas os corpos subalternos e submetidos a necropolítica, colocando em jogo a branquitude, a colonialidade, a
burguesia, a cisgeneridade, a heterossexualidade e a masculinidade etc. Para tanto, a proposta do trabalho condiz com
o que o coletivo idealiza promover: a escuta ético-política a partir das clínicas públicas como direito de todo cidadão
que requer cuidados de si, da saúde mental que o Estado deveria priorizar promovê-la, e por consequência, formar e
transformar outros analistas.
Abstract: By considering the analytical work with intersectional articulators such as gender, race and class, we propose
to explain the importance of an ethical-political listening in the training and decentralized transformation of peripheral
analysts, having as articulating territory the Collective of Peripheral Psychoanalysis Clinics of São Paulo-SP (Ermelino
Matarazzo, East Zone, Mateus Santos occupation). Based on Lacanian theory, which proposes to reflect on the subjectivity
of our time, of contemporaneity, in articulation with other knowledge, such as feminism, queer theory, gender theory,
critical theory, social theory, philosophy, decolonial and post-structuralist studies, etc. The strategy is to invert the logic
that only addresses subaltern bodies and those submitted to necropolitics, putting into play whiteness, coloniality, the
bourgeoisie, cisgenerism, heterosexuality, masculinity, etc. To this end, the proposal of the work matches what the
collective aims to promote: ethical-political listening from public clinics as a right of every citizen who requires care of the
self, of mental health that the State should prioritize to promote it, and consequently, to train and transform other analysts.
1 Graduado em Psicologia pela Faculdade Metropolitanas Unidas (2019). Psicoterapeuta, atende na linha psicanálise lacaniana. Membro do coletivo
Clínica Periférica de Psicanálise, desde 2018. Profissional da assistência social de São Paulo no Núcleo de Convivência para pessoas em situação de
rua, desde 2020. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2862357193815710. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6968-8515.
E-mail: joao.salespsi@gmail.com
2 Psicanalista em trânsito, com formação em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná, é membro do Coletivo da Clínica Periférica de
Psicanálise, faz pós-graduação no IPPERG em Psicanálise e relações de gênero: ética, clínica e política, faz formação na Rede Para Escutas
Marginais (Margens clínicas) e atua no PSILACS (UFMG) com pesquisas. Lattes: https://lattes.cnpq.br/1813965827851934. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-6519-1659. E-mail: mariliamagalhaes@hotmail.com
Introdução
Jacques Lacan atenta-se para a função da psicanálise, o papel da prática para o autor
consiste em considerar a subjetividade e horizontalidade de seu tempo (LACAN, 1953), isto é,
resta-nos sermos críticos e éticos na contemporaneidade. É importante ter em vista os fenômenos
sócio-políticos que atravessam o psiquismo, explicitando problematizações em torno da teoria e
metodologia da psicanálise como a escuta, um fazer analítico. Somam-se a isso as particularidades
que o Brasil — país que territorialmente possui a proporção de um continente — também nos provoca
a pensar. Uma nação que foi fundada por traumas sucessivos iniciados pela colonização europeia e,
consequentemente, todos os processos de exploração, genocídio e golpes que ocorreram ao longo
da história, sem que houvesse processos de reparação histórica que envolvessem a elaboração da
memória do Brasil. Como escutar a subjetividade de um país em que não é permitido elaborar seus
traumas?
Diante disso, é preciso elaborar formas de promover uma escuta ético-política, a fim de
incluir a interseccionalidade entre gênero, raça e classe. Falar da escuta enquanto fazer analítico
implica pensar na formação do analista, através da transmissão de um saber teórico-metodológico
que é a clínica. Logo, há pautas pouco debatidas nos espaços institucionais de psicanálise como a
branquitude, a cisgeneridade, a burguesia e a colonialidade que permeiam a nossa cultura enquanto
uma identidade brasileira e que perpassam, inclusive, pela história da psicanálise no Brasil.
A interseccionalidade investiga como as relações interseccionais
de poder influenciam as relações sociais em sociedades
marcadas pela diversidade, bem como as experiências
individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica,
a interseccionalidade considera que as categorias de raça,
classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade,
etnia e faixa etária - entre outras - são inter-relacionadas e
moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma
de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas
e das experiências humanas (BILGE; COLLINS, 2020, p. 12).
Se investiga há dois séculos no campo psicanalítico quem é a mulher, enuncia que ela não
existe, suas diferenças sexuais em relação ao homem, conceitos como o gozo outro, o gozo feminino,
como é não-toda inscrita na função fálica, de como nasce castrada. E o homem? Tido esse homem
como cis, branco, hetero, europeu, elitista, como símbolo de uma masculinidade. A problematização
se alcança aí, no nível ao qual é pouco falado, pouco questionado e pouco problematizado.
Mas por que as senhoras e os senhores estão convencidos,
queridos amigos binários, de que só os subalternos têm
uma identidade? Por que estão convencidos de que só
É através dessas questões que tomamos como direção, ou como o autor costuma utilizar
saída para que a transformação da psicanálise seja banhada na ético-política para nomear os sem-
identidade, trazendo-os para a fronteira a fim de descentralizar, despatriarcalizar e decolonizar a
psicanálise. Isso nos remete aos movimentos sociais, que se posicionam para lutar. O filósofo traz
em voga o transfeminismo como sua luta, mas que não seria nada sem o feminismo negro e cria
uma ponte para se aliar.
Feminismos
Tomado como movimento social em constante construção,
o transfeminismo emerge de críticas e proposições políticas,
teóricas e éticas aos modelos tradicionais de produção de
conhecimento e aos feminismos de bases essencialistas
e naturalizantes sobre a perspectiva do que significa ser
294
94A
mulher. Filia-se aos movimentos feministas por colocar
em questão as hierarquias de sexo/gênero que justificam
opressões e violências. Entretanto, aliando-se a referenciais
interseccionais, pós-estruturalistas e a feminismos
marginais, as pessoas transfeministas questionam a categoria
universal de “mulher” que pauta muitos dos movimentos
feministas, evidenciando seu viés cisheteronormativo, branco
e privilegiado (CIDADE; MATTOS, 2016, p. 144).
Posto isso, o transfeminismo bebe da fonte do feminismo negro, ao passo que ressalta
a importância de considerar a interseccionalidade de raça, gênero, classe e sexualidade
articuladamente. Para além disso, Donna Haraway (1995 apud CIDADE; MATTOS, 2016) questiona
o lugar de pessoas trans como objetos de pesquisa e investigações.
A partir da década de 1830 as mulheres brancas dos EUA começaram a expressar suas
insatisfações com as vidas de donas de casa que levavam, denunciando o casamento como
uma escravização, tanto as donas de casa de classe média quanto as operárias. “Embora fossem
nominalmente livres, elas eram tão exploradas em suas condições de trabalho e em seus baixos
salários que a associação com a escravidão era automática” (DAVIS, 1981, p. 53). Essa comparação
se implica ao fato de que as mulheres brancas de classe média criaram afinidade com as mulheres
e homens negros escravizados. Foi, portanto, a partir da criação da Sociedade Antiescravagista
Feminina da Filadélfia que as mulheres brancas que simpatizavam com a causa da população negra
pudessem estabelecer vínculos enquanto grupos oprimidos, afirma Angela Davis (1981). Pensar
em movimentos sociais, nos diz sobre a luta contra a colonialidade por efeito das marcas que a
colonialidade deixou.
Colonialidade
A colonialidade se manifesta através da relação violenta — seja sexual, física, psicológica
— e exploratória entre colonizador e colonizado, transformando este em objetos, mercadorias e
animais. Aníbal Quijano (2005 apud LUGONES, 2014), contribui para situar a colonialidade do poder
que está atrelado aos processos de racialização e exploração capitalista, e além da colonialidade do
poder e do gênero, desumanizando a subalternidade.
Na colonização, o colonizador é colocado no lugar de referência universal de ser humano,
aquele que é diferente dele se torna o outro. A partir do capitalismo, racismo, colonialismo e
Reconhecer ser parte da branquitude enquanto lugar de fala não é suficiente, se racializar
enquanto um corpo branco não basta para pensar numa luta antirracista, é necessária uma postura
ética, como trazem Marcinik e Mattos (2021). Portanto, é fundamental compreender a importância
da participação da luta antirracista e horizontalizar os privilégios que impactam nas desigualdades
sociais, sendo essencial o comprometimento com a causa em torno dos marcados de raça e gênero
como forma de enfrentamento do racismo, machismo, misoginia, sexismo etc.
O ideal do eu é branco, diz Neusa Santos Souza (2021), o figurino é branco, branco diz de
uma posição hierárquica, ser letrado, ser bem-sucedido, rico, inteligente, saber o que falar, saber o
que faz. Branco é modelo, é espelho, é o melhor, ninguém o questiona, ninguém fala mais alto que
Podemos compreender como o privilégio branco abrange as estruturas de classe pelos
privilégios materiais e simbólicos, ou seja, mais oportunidades do que pessoas negras e indígenas.
As desigualdades raciais consistem também em polarizações geográficas, como por exemplo no
Brasil, onde no Sudeste e Sul existem mais pessoas brancas, diferente do Norte e Nordeste. Isso
acontece devido ao sistema escravagista no país com as políticas de incentivo e subsídio à imigração
europeia (SCHUMAN, 2020). Contudo, o ideal branco também existe ao pensarmos sobre o
gênero, tomando como o ideal cis, com uma performatividade padrão, única, universal, como a
masculinidade, a heterossexualidade, mas a cisgeneridade quase não existe, se não tocássemos
nela.
296
96A
Cisgeneridade
A invisibilidade do termo cisgênero também é perceptível nas pesquisas e produções
em torno da teoria analítica, questionando-se muito sobre as transidentidades e pouco sobre a
cisgeneridade, ou quase nada realmente. Podemos considerar que a cisgeneridade foi foracluída
do discurso, sendo as transidentidades um tabu, de acordo com Beatriz Bagagli no blog
Transfeminismo (2018). Falar sobre a cisgeneridade propõe pensar o sistema sexo-gênero como um
dispositivo normativo, uma tecnologia de produzir corpos, segundo a teoria foucaultiana. A história
da sexualidade, é uma história que por si só é violenta e produz exclusão das transidentidades,
considerando-as como identidades não naturais, não compreensíveis, que transgride o centro e
são deixadas à margem. Viviane Vergueiro (2016) propõe tecer definições acerca do conceito de
cisgeneridade, considerando as diversidades corporais. A autora parte do pressuposto de que todas
as pessoas têm identidades de gênero, a partir da referência de normalidade, como o natural, o “de
verdade”, isso se alinha a corpos não transtornados, biológicos, cisgêneros. Nomear a cisgeneridade
é utilizá-la como um conceito de intervenção para servir de ferramenta de disputa em relação à
psicanálise, para que ela se movimente, ou nós a colocamos em movimento.
Psicanálise em movimento
Este manifesto nasce do movimento psicanalítico em elipse
decolonial - mais do que em giro. Sua raiz é o encontro
da psicanálise com corpos subalternizados e seus modos
inconscientes de ocupação. Corpos negros na metrópole,
aquilombados no Centro-Oeste, transgêneros nas conquistas
jurídicas, organizados nos desastres ecológicos, pacifistas
nas guerras tribais, indígenas em preservação de suas terras,
denunciantes na cena violenta doméstica, em luta em motins
e chacinas, migrantes e ribeirinhos em terra natal, apátridas
pelo avanço tecnológico, resistentes de telas (GUERRA, 2021,
p. 11).
A psicanálise então se torna uma ferramenta de disputa na linha de frente com a escuta
dos sofrimentos sociopolíticos, daqueles que estão desamparados discursivamente em um outro
território que não aquele cujo marcadores sociais a própria psicanálise já está demarcada: o centro.
Ela estaria às avessas com outro território, esse lugar de transição, de relações, inclusive de poder,
território subjetivado que é criado pelo discurso das pessoas que estão ali na sessão. Propomos
então, pensar a política na psicanálise e a política dos psicanalistas, através do tensionamento das
contradições que são colocadas pelos coletivos.
Pensar a coletividade nos remete não só escutar, mas dar voz para esse resgate da cultura
brasileira, como forma de aquilombamento, uma vez que se tentou separar os povos, pois unidos
seria perigoso, o que eles poderiam fazer? Aquilombar colocamos aqui no sentido de assumir um
papel de resistência, contra hegemônica e coletivizar enquanto corpos políticos, como parte da
compreensão do conceito em si. Por isso, a escuta que fazemos hoje, e que tentamos transmitir
dentro desse campo de saber que é a psicanálise, é à brasileira, é resgatando através da memória
do apagamento da história do Brasil e da instauração da psicanálise no Brasil. Não é à toa que hoje
se lê muito Lélia Gonzalez, “mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela
fala através das mancadas do discurso da consciência” (GONZALEZ, 2020, p. 79). Resgatar essas
memórias para que sejam geradoras do futuro, e para isso precisamos falar sobre escutar enquanto
uma ferramenta analítica, e o quanto disso envolve o saber, em como sustentar esse lugar de saber
É válido ressaltar que Freud considerava educar, governar e psicanalisar da ordem impossível
de se praticar, uma vez que a relação transferencial está em jogo e isso exige que o saber esteja
sempre como suposto. Como dizia Paulo Freire (1986, s/p) “não existe saber mais ou saber menos:
há saberes diferentes”. Para Michel Foucault (1988), onde há poder, também há resistência, posto
298
98A
isso, é necessário colocar problemas nas formas de transmissão da psicanálise, pois isso implica a
formação de analistas e consequentemente na escuta clínica.
Contudo, podemos pensar na ética como um cuidado, cuidado do que falar, de como se
posicionar, de como transmitir um saber, mas sem esquecer do cuidado de si, visto que para
Foucault (2004) em A ética do cuidado de si como prática da liberdade, somente cuidando de si é
possível cuidar do outro.
[...] é a abertura do coração, é a necessidade, entre os pares,
de nada esconder um ao outro do que pensam e se falar
francamente. Noção, repito, a ser elaborada, mas que, sem
dúvida, foi para os epicuristas, junto com a de amizade, uma
das condições, um dos princípios éticos fundamentais da
direção (FOUCAULT, 2010, p.124).
O teórico parte do princípio de Parrhesia, como forma de dizer tudo ou como a coragem da
verdade. Dizer tudo condiz com essa abertura do coração, como condição necessária para falar com
franqueza pensando na prática da liberdade e da ética, do cuidado de si. É com isso que podemos
pensar em como transmitir um saber, tendo o cuidado de não moldar a verdade do outro e sim em
encontrar vias de acesso para o sujeito tornar-se outro e encontrar a sua verdade.
Sem uma ética do amor moldando a direção de nossa
visão política e nossas aspirações radicais, muitas vezes
somos seduzidos, de uma maneira ou de outra, para
dentro de sistemas de dominação — imperialismo,
sexismo, racismo, classicismo. [...] Muitas vezes, então,
o anseio não é para uma transformação coletiva de
sociedade, para um fim da política de dominação; mas
simplesmente para o fim do que sentimos que nos
machuca. É por isso que precisamos desesperadamente
de uma ética do amor para intervir em nosso desejo
autocentrado por mudança (HOOKS, 2006, p. 243).
“[...] A questão central é criar formas de como utilizar esse saber, tendo em vista as práticas
de si e o dizer verdadeiro” (ATHAYDE, 2020, p. 145). Portanto, é preciso ter cuidado com o outro
Considerações Finais
Para concluir, a clínica psicanalítica torna-se um lugar de potência discursiva e desejante
onde a primazia do temporal é o tempo do analisante e isso diz de uma ética em considerar o
tempo do outro. Ampliar as possibilidades de desejar algo que não seja pré-determinado pelo
sistema econômico, resultando em sofrimentos sociopolíticos que também servem como formas
de dominação, pois as posições dos sujeitos no laço social determinam e implicam esse sofrimento.
Logo, o sofrimento sociopolítico precisa ser pensado a partir de composição heterogênea que
aponta para uma gama de desamparos, sejam sociais, materiais e psíquicos.
Se considerarmos que escutamos a partir de onde somos, de onde estamos, a partir do
nosso desejo de analista, escutamos a partir de uma filiação com uma teoria, como podemos criar
uma escuta analítica que seja ético-política? Que leve em conta o desejo do analista e as dimensões
dos sofrimentos sociopolíticos? Ou ainda, o que diferenciaria a clínica de um analista politizado para
um que não tenha esses interesses?
Buscamos demonstrar ao longo deste artigo duas possibilidades concomitantes: a retirada
299
99A
do saber europeu enquanto universal e a inclusão da psicanálise em articulação com outros
campos de saber, levando em conta as contradições e colonizações internas e propondo como
horizonte a interseccionalidade das produções de conhecimento que resultaria na desconstrução
da própria epistemologia psicanalítica, na qual o psicanalista expressa o lugar da incompletude do
saber psicanalítico que sustenta essa convocação aos psicanalistas. Um saber suposto que é um
dos fundamentos para o desenvolvimento da prática. Na relação analítica, a pessoa do analista
deveria ocupar o lugar de não-saber, saber daquele que não sabe sobre seu sofrimento, que é
particular do próprio inconsciente. Isso também se dá na atuação do psicanalista na cultura ou
como a psicanálise em intenção e extensão, o saber sobre determinados sofrimentos sociais, sobre
determinadas relações é incompleto e não basta termos como base apenas os clássicos da teoria
freudiana à lacaniana.
A psicanálise precisa ser submetida aos seus próprios aparatos conceituais para continuar
se desenvolvendo. Desse modo, o saber psicanalítico se dá em dependência e em decorrência
da prática analítica que constitui a epistemologia e depois serve a prática novamente, em
um movimento dialético de constituição da práxis e da episteme. Como consequência dessa
articulação interseccional, aponta-se para um eixo fundamental do tripé analítico: a formação.
Democratizar e horizontalizar verdadeiramente a formação dos analistas, pensando também na
manutenção material desses analistas nas formações, as dificuldades e conflitos que são colocados
pela transmissão são algumas nuances do nosso tempo que precisamos estar atentos. As práticas
coletivas de psicanálise têm mostrado caminhos a serem trilhados nesse processo dialético de
atuação clínica que produz uma teoria.
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302
02A
O PACTO PERVERSO DA BRANQUITUDE: SOBRE O DIREITO
SOBERANO DE MATAR NO AMAPÁ
Resumo: Pretende-se através desse escopo propor uma breve digressão a partir do conceito de pacto narcísico da
branquitude de Bento (2014) e a perversão, considerando a função do véu na noção de objeto fetiche apresentada no
“Seminário Livro 4: A relação de objeto” (1956-57) de J. Lacan. Tensiona-se tais aproximações para investigar a perversão
na estruturação do pacto narcísico da branquitude no Brasil. Para tanto, consideramos uma encruzilhada específica: quem
é o alvo da polícia militar que por três anos consecutivos é a que mais mata do país? De que forma seria possível pressupor
uma montagem perversa na estruturação do pacto narcísico da branquitude no Brasil partindo do Amapá, periferia do
Brasil, extremo norte do país? Através de pesquisa bibliográfica, propõe-se fomentar debates que deslocam concepções
naturalizadas sobre as relações entre os brancos e os negros em nosso país, bem como expor as dimensões estruturais, e
por isso políticas que são racistas e as intermediam, evidenciando o mecanismo da perversão como uma das possibilidades
para discutir, a partir do ponto de vista da psicanálise, sobre a estrutura racista brasileira.
Abstract: It is intended, through this scope, to propose a brief digression from the concept of narcissistic pact of whiteness
by Bento (2014) and perversion, considering the function of the veil in the notion of fetish object presented in the “Seminar
Book 4: The object relation” (1956-57) by J. Lacan. Such approaches are stressed to investigate the perversion in the
structuring of the narcissistic pact of whiteness in Brazil. To do so, we consider a specific crossroads: Who is the target of
the military police, which for three consecutive years is the most deadly in the country? How would it be possible to assume
a perverse montage in the structuring of the narcissistic pact of whiteness in Brazil starting from Amapá, the periphery of
Brazil, the extreme north of the country? Through bibliographic research, it is proposed to promote debates that displace
naturalized conceptions about the relations between whites and blacks in our country, as well as to expose the structural
dimensions, and therefore policies that are racist and intermediate them, highlighting the mechanism of perversion as one
of the possibilities to discuss, from the point of view of psychoanalysis, the Brazilian racist structure.
1 Graduado em Psicologia pela Estácio de Macapá. Pós-graduando em Políticas Públicas em Saúde Mental. Acadêmico de Sociologia pela UNIFAP.
Membro da ANPSINEP AP. Membro da ABRAPSO AP. Atualmente é Psicólogo Clínico em consultório particular. Lattes: https://lattes.cnpq.
br/5463361918003287. ORCID: https://orcid.org/0009-0009-7275-389X. E-mail: gabriel.avlrt@gmail.com
2 Psicanalista, psicóloga. Mestra em Psicologia Clínica pelo PPGP/UFPA. Atua em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Adulto-II e no MLA-AP.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8063683415459837 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6316-1299 E-mail: psiadrielesussuarana@gmail.com
Introdução
Trata-se do pacto proposto por Bento (2014), que legitima um acordo tácito e silencia
305
05A
O silêncio não pode apagar o passado: o pacto narcísico da branqui-
tude
O pacto narcísico da branquitude é um conceito elaborado por Cida Bento para pensar
a branquitude e o lugar que ela (des)ocupa na discussão sobre racismo. Partindo de teóricos da
psicanálise, Bento (2014) propõe que existe um pacto narcísico da população branca para não
falar sobre raça e não falar sobre os privilégios materiais e simbólicos que herdou do processo de
escravização. Segundo a autora:
O pacto é uma aliança que expulsa, reprime, esconde aquilo
que é intolerável para ser suportado e recordado pelo coletivo.
Gera esquecimento e desloca a memória para lembranças
encobridoras comuns. O pacto suprime as recordações que
trazem sofrimento e vergonha, porque são relacionadas à
escravidão (BENTO, 2022, p. 25).
Aquilo que deve ser esquecido e rechaçado é o sofrimento que a branquitude e seus
descendentes causaram à população negra brasileira. Percebe-se que o pacto mostra duas faces
da mesma moeda, de um lado há o sofrimento e a vergonha; de outro há o gozo dos privilégios
simbólicos e materiais (BENTO, 2022). Poderíamos inclusive analisar os privilégios a partir do
sentido econômico freudiano, de formas de obtenção de prazer, isto é, formas de diminuição de
tensão; e o sofrimento e vergonha estariam no polo do desprazer, no aumento de tensão. Sendo
assim, tal pacto estaria ancorado também em uma economia libidinal à serviço da pulsão, visando
apenas a sua escoação (FREUD, 1915/2016).
É nesse momento que a concepção de Bento se aproxima das construções psicanalíticas
de Freud sobre o narcisismo. É a partir de um dos textos metapsicológicos, denominado Introdução
ao narcisismo (1914/2010), que a autora embasará o seu trabalho. Nesse artigo, Freud indica
as diferenças entre as pulsões do Eu e as pulsões sexuais para assim começar a delimitar o
funcionamento do narcisismo e o seu valor para a teoria e técnica psicanalítica. Para tal, Freud
argumenta que as satisfações sexuais primárias perpassam a autoconservação, isto é, pelas
sensações de prazer vivenciadas pelo bebê que estão diretamente ligadas às ações que possibilitam
que esse ser continue a viver e pela forma que esse prazer autoerótico é deslocado posteriormente
para o cuidado dos responsáveis do pequeno pedaço de carne que estabelece uma relação de
apoio com esses cuidadores (FREUD, 1914/2010).
Lacan (1957-58) indica que para articular a configuração do complexo de Édipo é necessário
considerar a metáfora paterna. Inicialmente, tal metáfora se apresenta através do que foi constituído
como simbolização primordial entre a criança e a mãe, em seguida se considera a substituição do
pai enquanto significante no lugar da mãe. O pai só é real na medida em que as instituições lhe
atribuem esta função, ou melhor, seu Nome de pai. Tal posição situa-se no nível simbólico, há
uma variedade de materializações de cultura para cultura, mas a necessidade de estar na cadeia
significante as antecede.
Para Lacan (1957-58), quando há simbolização, a criança desloca-se da efetiva dependência
do desejo materno e algo se institui. Trata-se de uma subjetivação a nível primitivo: presença-
ausência da mãe. Para além da presença ou do contato da mãe, a criança deseja o desejo desta. É
neste nível primitivo que podem entroncar-se as perversões. Mesmo exitosa, tal efetuação ocorrerá
307
07A
[...] Nesse nível, o pai priva alguém daquilo que, afinal de
contas, ele não tem, isto é, de algo que só tem existência
na medida em que se faz com que surja na existência como
símbolo. Está bastante claro que o pai não castra a mãe de uma
coisa que ela não tem. Para que fique postulado que ela não o
tem, é preciso que isso de que se trata já esteja projetado no
plano simbólico como símbolo. Mas há de fato uma privação,
uma vez que toda privação real exige a simbolização. Assim,
é no plano da privação da mãe que, num dado momento
da evolução do Édipo, coloca-se para o sujeito a questão de
aceitar, de registrar, de simbolizar, ele mesmo, de dar valor de
significação a essa privação da qual a mãe revela-se o objeto.
Essa privação, o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou
recusa. Esse ponto é essencial. Vocês o encontrarão em todas
as encruzilhadas, a cada vez que sua experiência os levar a um
certo ponto que agora tentamos definir como nodal no Édipo
(LACAN, 1957-58, p. 191).
Lacan (1957-58) refere que se tem o falo à medida em que há possibilidade de ameaça
de castração, quem intervém de forma decisiva nessa dinâmica é o pai. Para o primeiro tempo
do Édipo temos a etapa fálica primitiva na qual denota-se a identificação especular da criança
com o objeto de desejo de sua mãe. O discurso da lei pressupõe que a primazia do falo já está
instaurada na civilização, a metáfora paterna já está posta. Dessa forma, a criança captura, portanto,
o desdobramento disso. Em suma, a criança necessita ser o falo para deter o olhar da mãe.
Para efetivar-se o segundo tempo, Lacan (1957-58) propõe que o pai precisa privar a mãe
no plano imaginário; como consequência, o que retorna para a criança é a lei do pai, uma vez que
esta lei priva a mãe. O sujeito desliga-se do plano da identificação e entra na esfera da lei. Para além
de um objeto de desejo, desenha-se aqui um objeto que o Outro tem ou não tem. Para decifrar
a noção do Édipo é necessário pressupor que tanto a mãe como o seu objeto de desejo estão
submetidos à lei que rege esse Outro. Lacan (1957-58, p. 199) assevera: “[...] O que constitui seu
caráter decisivo deve ser isolado como relação não com o pai, mas com a palavra do pai”.
O terceiro tempo determinará a saída do complexo de Édipo, a promessa do pai precisa ser
mantida, se o pai vai recusar ou não, ele ao menos precisa oferecer comprovações de sua detenção
do falo. Portanto, não se afirma que o pai é o falo, mas que ele tem o falo. Assim, Lacan conclui
(1957-58, p. 200): “[...] Se pode produzir a báscula que reinstaura a instância do falo como objeto
Julien (2003) indica que o perverso, através do mecanismo fetichista, regride a uma das
primeiras teorias sexuais infantis em que afirma: todas as mulheres têm o falo, assim se fixa na
negação da diferença dos sexos.
Pode-se mesmo dizer que com a presença da cortina, aquilo
que está mais além, como falta, tende a se realizar como
imagem. Sobre o véu pinta-se a ausência. Isso não é mais que
a função de uma cortina qualquer. A cortina assume seu valor,
seu ser e sua consistência justamente por ser aquilo sobre o
que se projeta e se imagina a ausência. A cortina é, se podemos
dizê-lo, o ídolo da ausência (LACAN, 1956-57, p. 157).
Para Lacan (1956-57) não há como pressupor o véu sem incluir a ausência. E o que há para
além do objeto: Nada. No entanto, o véu cumpre a função de para-além do objeto. É exatamente
a noção do mais-além que traz à tona a montagem de uma estrutura, o mesmo mais-além
fundamental em qualquer relação simbólica. “[...] Em outras palavras, na função do véu, trata-se da
projeção da posição intermediária do objeto” (LACAN, 1956-57, p. 159).
A colocação de Lélia Gonzalez pode ser articulada a uma afirmação feita por Frantz
Fanon em Pele negra, máscaras brancas (1952/2020), segundo a qual, o negro para o branco é
a representação do biológico, da potência fálica, da virilidade. Para o autor, o branco civilizado
guarda em sua memória uma nostalgia do passado de orgias e de estupros impunes que através do
mecanismo da projeção acredita fielmente que o negro é o possuidor dessa potência fálica.
Essa crença promove o pensamento de que os negros são a causa de todo mal, o pecado em
pessoa, são os representantes de tudo aquilo que é considerado como imoral (FANON, 1952/2020).
Bento (2014) segue na mesma posição de Fanon, afirmando que a branquitude acredita não ser
possuidora de mal algum, que o mau é sempre o outro e que é em si a vítima. Esse posicionamento
segue e progride para uma justificativa, seria mais correto nomear de racionalização, de violência
ao outro considerado “inimigo”.
Guimarães (2012), ao falar sobre narcisismo, retorna a Freud e afirma que na cultura uma
dupla renúncia é realizada, isto é, é necessário que o sujeito dentro da cultura abra mão das suas
pulsões, a pulsão de vida e a pulsão de morte. É o rito de passagem para o social. O autor considera
que na sociedade existem lugares, para ser mais específico, grupos e coletivos, sobre os quais a
pulsão de destruição teria autorização para ser exercida.
Seguindo o pressuposto de Guimarães (2012), poderíamos afirmar que a renúncia pulsional
da branquitude no Brasil não ocorreu de maneira positiva. Se, como afirma Nascimento (2016), a
história do país é a história de uma colonização que mesmo após a escravização continuou a praticar
Considerações Finais
A partir do que foi exposto, confirma-se que o Brasil nunca foi esse paraíso descrito por
Gilberto Freyre em que negros e brancos viviam na mais perfeita harmonia. Muitos mecanismos
foram criados para monopolização de poder de uma minoria branca aristocrata. Entre esses
dispositivos estão aqueles inseridos nos processos de produção de subjetividades.
Lembremo-nos que a história do Brasil é a história de um país criado através de forças
312
12A
Nesse contexto, a predação do corpo do outro e a depredação
de sua subjetividade se transformam em formas materializadas
de ser e agir das individualidades. Consequentemente, a
perversão se institui como a maneira por excelência de
usufruto dos bens e dos valores que circulam no espaço social
(BIRMAN, 2007, p. 283-284).
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315
15A
PSICANÁLISE, RACISMO E PENSAMENTO DECOLONIAL
Resumo: Este artigo visa investigar, de maneira exploratória, as possibilidades teórico-clínicas de articulação entre
psicanálise e teorias decoloniais. Utiliza a metodologia de revisão bibliográfica para destacar autoras(es)-chave do
pensamento decolonial, a fim de analisar o entrelaçamento da psicanálise com a colonialidade, desde o recorte do racismo.
Por um lado, situa a discriminação racial no campo da dinâmica psíquica e do inconsciente; por outro, relaciona a questão
racial aos conceitos psicanalíticos em sua interface com os fenômenos sociais. A reflexão sobre como o racismo atravessa
as subjetividades (brancas e pretas) é fundamental e faz-se urgente a promoção de uma escuta atenta ao sofrimento
racial. O artigo conclui que o diálogo interdisciplinar é essencial para a promoção de avanços da técnica. Finalmente,
coloca novas questões às quais a psicanálise é convocada a responder, tanto no cotidiano da clínica quanto em nível
teórico, para estar atenta ao horizonte da subjetividade de nossa época.
Abstract This article aims to investigate, in an exploratory way, the theoretical-clinical possibilities of articulation between
psychoanalysis and decolonial theories. The methodology of the bibliographic review was used to point out key authors of
decolonial thought, in order to analyze the articulation between psychoanalysis and coloniality, from the point of view of
racism. On one hand, racial discrimination was situated in the field of psychic dynamics and the unconscious; on the other
hand, the racial issue was related to psychoanalytic concepts in its interface with social phenomena. The reflection on how
racism crosses subjectivities (black and white) is fundamental and it becomes urgent the promotion of attentive listening
to racial suffering. It is concluded that interdisciplinary dialogue is essential for the promotion of technical advances. Finally,
new questions are posed to which psychoanalysis is called to respond, both at the level of daily clinical practice and at the
theoretical level, in order to be attentive to the horizon of subjectivity of our time.
1 Psicóloga formada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Colaboradora do Projeto MOVE – Movimentos Migratórios e Psicologia/UFPR.
E-mail: karpemcarla@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5500635835771377. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9875-8300.
2 Professora Doutora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPR. Coordenadora do Projeto MOVE – Movimentos
Migratórios e Psicologia/UFPR. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4453449910723597. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6086-2388.
E-mail: elaineschmitt@hotmail.com
Introdução
O giro decolonial1 das formas de produção dos saberes – caracterizado pelo movimento
teórico, político e epistemológico de resistência à lógica da modernidade/ colonialidade – marca,
no campo da psicanálise, o retorno a importantes autoras e psicanalistas brasileiras2. O resgate
de seus escritos torna-se um ponto de referência para a localização dos conceitos freudianos e
lacanianos nos efeitos subjetivos e sociais de nosso passado colonial, que incide sobre nossa época.
O presente artigo é fruto de revisão de literatura sobre o estado da arte da psicanálise e
decolonialidade, realizado nos moldes da pesquisa bibliográfica. Visa apreender, de maneira
exploratória, os possíveis enlaces entre a psicanálise, em sua prática contemporânea, e as discussões
decoloniais acerca da modernidade, da colonialidade do saber e do poder, do racismo e de seus
impactos na constituição das subjetividades. Tal intersecção ressalta, por um lado, o recorte do
racismo como fenômeno no laço social; por outro, seus desdobramentos psíquicos na constituição
subjetiva, sem perder de vista, no entanto, a fundamental relação entre ambas as esferas.
Partindo da perspectiva de uma prática clínica antirracista, colocamos dois questionamentos
iniciais que fundamentam e permeiam o presente texto: por que estudar psicanálise e racismo? E
qual a importância de trabalhar questões raciais no âmbito da formação da(o) analista?
A fim de fundamentar os objetivos da pesquisa, bem como fomentar a reflexão acerca da
problemática “psicanálise e racismo”, recorremos à célebre afirmação de Lacan (1953/1998, p.
321) em Escritos, segundo a qual “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não
conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. Tal frase nos alerta para o fato
que a(o) analista deve estar à altura de seu tempo – atenta(o) a seu território, acrescentaríamos – e
implica a ideia de que o fazer analítico requer situar a prática da(o) analista segundo a organização
discursiva na qual está imersa(o).
1 Termo cunhado originalmente por Nelson Maldonado-Torres em 2005 (BALLESTRIN, 2013). O conceito de giro
decolonial nasce atrelado à trajetória e ao pensamento de intelectuais, em sua maioria latino-americanos, que
integraram o Grupo Modernidade/Colonialidade, formado no final da década de 1990, cujo objetivo principal era
a construção de modernidades alternativas ao único modelo ocidental eurocêntrico.
2 Virgínia Leone Bicudo (1910-2003), Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994), Neusa Santos Souza (1948-2008) e
Isildinha Baptista Nogueira são alguns dos nomes por nós destacados.
3 Mais precisamente, o conceito de raça assume uma profundidade, ao mesmo tempo, real e fictícia. Se por um
lado, a ideia de raça não passa de uma ficção útil – uma projeção ideológica, uma construção fantasmática –, dado
que tal conceito não existe enquanto fato natural físico, antropológico ou genético; por outro, ele opera como
figura autônoma do real (MBEMBE, 2018).
4 “O negro não existe. Não mais que o branco” (FANON, 1952/2008, p. 242).
317
17A
A fabricação do sujeito racial pela branquitude colonizadora encerra a pessoa negra
escravizada como um sujeito no trabalho, um corpo destituído de qualquer humanidade e, portanto,
passível de exploração sem limites. Nesse ponto, a noção de raça funda uma diferença insuperável,
pautada, em essência, pelo altericídio5. A construção dessa estrangeiridade radical passa a justificar
– ideológica, moral e socialmente – a exploração e o extermínio de outros povos, de suas culturas
e identidades. Tratamos aqui de violências concretas, simbólicas, estruturais e, ao mesmo tempo,
daquelas que se dão no âmbito das relações interpessoais.
A violência racial tem seu germe na escravização de pessoas negras no esquema das
plantations – traço distintivo do período colonial (KILOMBA, 2019). Contudo, ela ultrapassa o
projeto colonialista, entrelaçando-se, então, com a colonialidade. O trauma colonial é, desse modo,
reatualizado em episódios de racismo cotidiano. Assim, a reencenação de um passado colonial
expõe a realidade traumática do racismo e lhe confere o traço da atemporalidade, próprio à clássica
definição freudiana de trauma (KILOMBA, 2019), na qual o sujeito se vê exposto a uma situação em
que nada separa o real do imaginário (NOGUEIRA, 2017).
O conceito de colonialidade, elaborado por Aníbal Quijano6 (2009), se distingue do
colonialismo histórico na medida em que o primeiro pode ser definido como uma matriz de poder
inaugurada pelo colonialismo, mas que persiste até hoje. Nesse sentido, a colonialidade não
termina simultaneamente à destruição do colonialismo, com a emancipação das colônias; pelo
contrário, ela é o modo mais fundamental de dominação na modernidade7. Esse padrão de poder
foi estabelecido através da produção de diferenças ou classificações sociais e de identidade, dentre
as quais a ideia de raça é a mais importante.
Assim, o racismo8, a hierarquização étnico-racial, é elemento central para se pensar
a colonialidade. Esta, permeada pela ideologia eurocêntrica, coloniza o imaginário e as
representações culturais dos povos. Defendemos, portanto, a ideia de que a colonialidade coexiste
com o capitalismo e, logo, com a ideologia racista. É dos nós, dos enlaces, das articulações entre as
três esferas – colonialidade, capitalismo e racismo – que derivam os produtos ideológicos, sociais,
culturais, econômicos e políticos que estão na base da constituição subjetiva de sujeitos brancos e
pretos. Nessa perspectiva, “as fantasias estão simultaneamente dentro e fora” (NOGUEIRA, 2017, p.
124), pois se encontram tanto no campo da economia psíquica quanto da economia política.
Uma vez delineada a noção de colonialidade, bem como a ficcionalidade do conceito de raça
(uma ficção que fixa gozo9), sublinhamos que a impossibilidade, desde o campo biológico, de definir
5 Isto é, constituir o outro “não como semelhante a si mesmo, mas como objeto propriamente ameaçador, do
qual é preciso se proteger, desfazer, ou ao qual caberia simplesmente destruir, na impossibilidade de assegurar seu
10 Lalangue possui como finalidade qualquer coisa que não a comunicação, na medida em que é caracterizada
pelo erro, pelo desentendimento, pelo desencontro; em outras palavras, é a linguagem do inconsciente. Associada
à lalação do bebê e à aquisição de uma língua mediada pela figura materna, a lalangue faz referência à posição de
gozo, à satisfação que independe de significação e que, por sua vez, veicula o real (GÓIS; UYENO; UENO; GENESINI,
2008).
11 Gonzalez (1984) destaca a aproximação feita pelo discurso colonial racista entre o(a) negro(a) e a criança. Ao
passo que a criança que se fala na terceira pessoa, porque é falada pelos adultos, o sujeito negro é falado pelo
branco. Delineia-se aí um significativo processo de alienação.
319
19A
Frantz Fanon, mas vai além. Ela desenvolve seu pensamento desde o aporte teórico da psicanálise,
voltado, por sua vez, às especificidades brasileiras. A pensadora parte da ideia de que a fala é
atravessada, estruturalmente, pelo desencontro e é emitida por sujeitos cindidos. Com isso, para a
autora, o racismo “à brasileira” ou “racismo disfarçado” desponta, na linguagem, como denegação
da verdade explicitada na língua portuguesa (GONZALEZ, 1988).
Para Sigmund Freud (1925/2014), a negação é um dos modos de tomar conhecimento do
reprimido, que, todavia, mantém a repressão intacta. Através dela, o eu visa introjetar tudo o que é
bom e projeta o resto, nomeado como estrangeiro ou infamiliar, mesmo que este seja inicialmente
idêntico a ele. Assim, o reconhecimento por parte do eu do conteúdo inconsciente se expressa pela
negatividade. No contexto dos discursos coloniais, a denegação da ancestralidade e da cultura negra
por parte do(a) branco(a) brasileiro(a), bem como o enaltecimento da cultura branca e europeia,
da qual não faz inteiramente parte, atuariam como mecanismos de defesa frente à angústia e a
castração. Uma defesa diante da constatação de que ele(a) não é “branco(a)”, mas apenas um(a)
colonizado(a).
Se Fanon (1952/2008) defende que uma linguagem colonizada, permeada pelo racismo,
é um empecilho para a comunicação horizontalizada entre os sujeitos, Lélia Gonzalez (1984), em
contrapartida, aposta na hipótese de que a fala em sua errância, no seu conteúdo não manifesto,
expõe, em nível cultural, algo do sintomático. Para o autor martinicano, o desencontro linguístico
entre colonizado e colonizador deriva de (ao mesmo tempo em que engendra) um déficit de
reconhecimento do eu pelo Outro, no qual o negro é subjugado através do exercício de poder da
língua colonial. De acordo com Gonzalez (1984), na especificidade brasileira, tal ideia é tensionada,
na medida em que no Brasil não há quem fale um “puro português”, como é o caso da língua
francesa na Martinica, por exemplo. Para a psicanalista, somos todos ladinamefricanos12 e falantes
do pretuguês.
Segundo Gonzalez (1984), a questão da língua como instrumento colonizador funde-se ao
tema do racismo precisamente em seu ponto de interlocução com o sexismo13. Esse duplo fenômeno
situa, discursivamente, a mulher negra no lugar metonímico de “doméstica”, “mulata”, “mãe preta”
e “mucama”14. A mulher preta na sociedade brasileira ocupa historicamente a função de mãe na
relação com a criança branca15, à qual transmite seus valores, cuidados, crenças e, inclusive, a língua
materna. O racismo se constituiria como uma tentativa, com efeitos violentos, de esbranquiçar essa
verdade. A mulher negra que viabiliza, em grande medida, o ingresso na cultura e que estrutura o
imaginário infantil, e “essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês”
(GONZALEZ, 1984, p. 235).
12 Remete-se ao conceito, criado por Lélia Gonzalez, de “Améfricaladina”. A amefricanidade “se refere à
experiência comum de mulheres e homens negros na diáspora e à experiência de mulheres e homens indígenas
contra a dominação colonial” (CARDOSO, 2014, p. 971).
13 Miller (2010) também marca a aproximação entre racismo e sexismo; para o psicanalista, o segundo é
construído sobre o primeiro.
14 “No Brasil e na África portuguesa, escrava negra, geralmente jovem, que ajudava nos serviços caseiros e
acompanhava a dona da casa em passeios, podendo ser também ama de leite” (Oxford Languages Dictionary,
2021).
15 Rita Laura Segato, no texto O édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça (2006), se propõe a pensar as
implicações de tal configuração familiar no complexo de Édipo.
320
20A
verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”. Assim, “consciência exclui o que memória
inclui” (GONZALEZ, 1984, p. 226). A consciência pode ser vista como expressão do discurso
dominante em dada cultura – nesse caso, o discurso racista – e a memória aparece justamente nos
tropeços desse discurso da consciência. No Brasil, vemos com clareza a tentativa de apagamento da
memória da escravização e do fortalecimento do mito da democracia racial16. Porém, “isso tá aí... e
fala” (GONZALEZ, 1984, p. 227, grifo nosso).
A produção da mulher preta e do homem preto – submetidos a diferentes planos
interseccionais (DAVIS, 2016) – pelo colonialismo encontra em seus efeitos algo que ultrapassa
o plano das relações materiais concretas do até então modo incipiente de produção capitalista.
A colonização é, também, uma prodigiosa máquina produtora de desejos e fantasias (MBEMBE,
2018). Logo, na intercalação entre capitalismo e colonialismo, demarcamos uma erótica da
mercadoria, uma quimera, fruto da união de um conjunto de bens materiais alicerçados, por sua
vez, em recursos simbólicos.
Como observa Mbembe (2018), o colonizador tenta levar o(a) nativo(a) a renunciar a seus
modos de gozo, aos desejos aos quais se sente apegado. Caso tal movimento seja malsucedido,
procura complementá-lo com novos ídolos, novas leis, novos valores e uma nova ordem de
verdade. Uma vez imersos no campo do desejo, da fantasia, do sintoma e do gozo, a (re)construção
da memória da colônia evoca para nós, essencialmente, um descentramento primordial entre o eu
e o sujeito.
Assim, os produtos (materiais e simbólicos) de origem europeia passam a fixar e estruturar
os fluxos de desejo. Em síntese, poderíamos dizer da fabricação de desejos colonizados. A relação
de países africanos com o tráfico de pessoas cativas, ou seja, com a mercadoria, denota, sob
numerosos aspectos, a economia política do tráfico de seres humanos como uma economia,
em essência, libidinosa. Extrapola-se a exploração do trabalho para a conversão, em um plano
econômico, de indivíduos em objetos. No mundo colonial, o consumo passa a ser associado à
potência, à dominação e ao poder político. Esse furo na estrutura do sujeito colonizado, que o leva
a vender seu parente ou até mesmo entregá-lo à morte em troca da mercadoria, essa fissura é que
deve ser entendida pelo termo “desejo”, afirma Mbembe (2018).
A colonização criou novos dispositivos de violência social mediados pelo investimento
libidinal nos bens e objetos, marcando, assim, a entrada em uma era caracterizada pelo gozo
desenfreado e pelo desejo sem responsabilidade. Para usufruir de uma pequena parte do gozo
colonizador, os povos colonizados se submetem a uma posição de servidão plena. No entanto, o
colonizado jamais será considerado um cidadão e a possibilidade de uma satisfação efetiva desses
16 O mito da democracia racial consiste na ideia – construída histórica, social, política e “cientificamente” – de
que, no Brasil, as relações raciais se dão de forma harmônica e todos possuem plena igualdade de acesso aos bens
culturais. Tal noção nega a existência do racismo no Brasil e desconsidera, por um lado, as desigualdades raciais
que colocam as populações negra e indígena em condições de maior vulnerabilidade; por outro, as estruturas
sociais que privilegiam brasileiros(as) brancos(as).
17 Mbembe (2018) aponta para o mundo colonial como manifestação do estado de exceção e para a escravização
enquanto uma das primeiras instâncias de experimentação biopolítica. O autor camaronês se apropria do termo
foucaultiano biopolítica para pensar os efeitos da colonialidade nas formas de governo dos Estados modernos. O
conceito de necropolítica se relaciona à ideia de soberania na medida em que se opera uma divisão, um corte no
campo biológico, entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer. Na divisão da população em subgrupos
321
21A
suas implicações psíquicas, dada a lógica perversa de eleição daqueles que podem ser dignificados
enquanto seres humanos ou, ainda, como sujeitos desejantes. Nesse sentido, caracterizamos
a perversão como modo de resposta e de interação com o(a) outro(a) baseada na destruição e
alienação, bem como no desejo de destruí-lo(a) (HARRIS, 2019).
Essa cisão – herança colonial – incide, de maneira dupla, sobre a cisão subjetiva (eu/ isso).
Afinal, a pessoa preta não persistirá em se reconhecer apenas pela e na diferença com o(a) branco(a)?
Não estará convencido(a) de ser habitado(a) por um duplo, uma entidade estrangeira, invasora, que
o(a) impede de conhecer a si mesmo(a)? (KILOMBA, 2016). Ao localizar a experiência (cotidiana)
do racismo através da linguagem do trauma, Fanon (1952/2008) demonstra como no racismo o
sujeito é removido, cirurgicamente, e assim separado de qualquer identidade que possa realmente
ter. Kilomba (2016) sublinha uma sobredeterminação externa de fantasias violentas, que a pessoa
racializada não reconhece como suas. “Eu espero por mim” (FANON, 1952/2008, p. 126). Fanon
está à espera do negro selvagem, do negro violentador, do negro bárbaro, do negro criminoso,
à espera daquilo que não é: “que grande alienação ser forçado a identificar-se e performar a si
mesmo a partir de um roteiro feito pelo sujeito branco” (KILOMBA, 2016).
e no estabelecimento de uma censura biológica, a raça assume papel central para a concatenação dos dispositivos
de biopoder engendrados no Estado de exceção. Um exemplo atual da necropolítica no Brasil é a política de
“Guerra às Drogas”, que visa mascarar o massacre de populações periféricas (em sua maioria negras) e a violência
policial contra a juventude negra. Outro exemplo, em nível global, é a ocupação da Palestina (MBEMBE, 2018).
18 Referência ao Seminário 18, de Lacan, cuja definição básica abrange a contraposição a uma universal afirmativa.
Ao reservar lugar de destaque à particular negativa, o psicanalista situa a posição feminina em relação à função
fálica. Assim, desde a psicanálise, torna-se possível abarcar sentidos opostos, contraditórios, dentro da lógica do
sujeito. Ainda, no campo discursivo, delimita-se uma posição que aspira o avesso da posição de maestria.
322
22A
momento, “já não se tem mais recurso a não ser invocar a irracionalidade” (MILLER, 2010, p. 46,
tradução nossa). Os efeitos são vistos no regime de violência e terror instaurado nas colônias (que
se tornaram estados de exceção), bem como na perpetuação do racismo no discurso científico, que
o associa, então, à ideia de progresso. No encontro radical com a alteridade, Fanon (1952/2008)
percebe que o Outro do branco é o preto, e essa exposição a algo irracional constitui um contato
traumático.
A fim de apreender o enlace entre psicanálise, racismo e colonialidade no campo
das identificações, faz-se necessário um retorno a Sigmund Freud e a Jacques Lacan. Freud
(1914/1996a), em texto dedicado ao conceito de narcisismo, refere-se à identificação primária
como processo principal a partir do qual o sujeito se constitui, assimilando – ou introjetando –, para
tanto, determinados traços familiares e sociais. Ainda, tal conceito se articula ao campo da política.
No sétimo capítulo de Psicologia das massas e análise do eu (1921/2011), Freud elenca três formas
de identificação: o estádio oral (no qual não se diferencia ser e ter), a identificação regressiva (por
exemplo, Dora, que imita a tosse do pai, ou seja, a escolha do objeto coincide com a identificação)
e a identificação das massas (ao receber uma carta de amor, uma das meninas de um pensionato
reage com um ataque histérico que se propaga entre várias de suas colegas). Tais modalidades
dos processos identificatórios guardam, por sua vez, estreita relação com as instâncias do aparelho
psíquico.
Freud trata com base em três termos a agência que impele o sujeito a agir moralmente:
eu ideal, ideal do eu e supereu. Lacan os distingue precisamente (ŽIŽEK, 2010). O eu ideal designa
a autoimagem idealizada do sujeito e está na esfera imaginária. O ideal do eu, por sua vez, é a
instância cujo olhar tento impressionar com minha imagem do eu, o ideal que tento seguir e realizar,
que se dá na identificação simbólica. Já o supereu é real: é a mesma agência do ideal do eu em seu
aspecto sádico-punitivo.
Segundo Žižek (2010), Lacan situa, em um primeiro momento, a identificação no registro
do imaginário, ligada ao estádio do espelho. Esse estádio marca a passagem da animalidade à
humanidade, do biológico ao social. Tal mudança não constitui um problema para Freud: ela é dada.
Para Lacan, no entanto, ela deve ser explicada. De acordo com o psicanalista francês, o estádio do
espelho não se restringe à simples formação do eu enquanto instância psíquica, mas fornece uma
orientação sobre o funcionalismo do eu (função egóica).
O estádio do espelho se relaciona ao olhar, à imagem e à especularidade − ao ver, ao ser visto
e ao ver-se sendo visto. Ora, “se o que constitui o sujeito é o olhar do outro, como fica o negro que
se confronta com o olhar do outro, que mostra reconhecer nele o significado que a pele negra traz
19 Sobre conexões possíveis entre ascensão social negra e branqueamento, ver Tornar-se negro (1983), de Neusa
Santos Souza.
323
23A
pequena diferença em relação a ele se torna um grande rival e um objeto comum de ódio, o que,
com efeito, serve ao fortalecimento das relações libidinais no interior da massa. Tratamos aqui
daquilo que Freud denomina como narcisismo das pequenas diferenças, a intolerância à diferença
do outro (FREUD, 1918/2020). Sob uma perspectiva diversa, assinalamos a agressividade dirigida
a um Outro enquanto importante fator de coesão grupal das massas (FREUD, 1921/2011). Em um
grupamento de indivíduos, são “justamente as pequenas diferenças, em meio à semelhança em
todo o resto”, que “fundamentam os sentimentos de estranheza e hostilidade” (FREUD, 1918/2020,
p. 164) − em outras palavras, que suscitam o Unheimliche, o estranho, o estrangeiro, o inquietante.
A eleição de um ideal permeado pela brancura engendra uma profunda ferida narcísica no
sujeito negro, cuja condição de ressignificação pode perpassar pela construção de um outro ideal
de eu. Nas palavras de Souza (1983, p. 44), trata-se de
Um novo ideal de ego que lhe configure um rosto próprio, que
encarne seus valores e interesses, que tenha como referência
e perspectiva a História. Um ideal construído através da
militância política, lugar privilegiado de transformação da
História.
20 De acordo com Abbagnano (2014), o conceito de “lugar” para Aristóteles compreende aquilo que circunscreve
imediatamente o corpo. A partir dessa noção, existem “lugares naturais” nos quais um corpo naturalmente está
ou aos quais retorna se estiver afastado, os lugares próprios. Esse teorema é o que baseia toda a física aristotélica.
324
24A
2007). A teoria psicanalítica nos permite apontar para “a tenacidade dos compromissos conscientes
e inconscientes que pessoas ‘brancas’ fazem ao privilégio branco” (HARRIS, 2019, p. 309, tradução
nossa).
Uma contribuição da psicanálise para o campo de estudos críticos da branquitude é o
reconhecimento de que as identidades brancas são construídas, tanto externa quanto internamente,
numa dialética entre o social e o subjetivo. Tal invenção moderna, a categoria de branquitude,
sofre transmutações, o que insere camadas de complexificação que ultrapassam a mera questão
fenotípica. No contexto dos Estados Unidos, por exemplo, a consolidação da identidade branca se
deu de maneira intimamente atrelada à classe proletária. De início não reconhecidos como brancos,
os italianos, irlandeses e judeus passaram a se alinhar ao discurso supremacista branco como forma
de defesa à exploração do capital.
Ao dividir a força de trabalho pela cor, esses recém-criados
“trabalhadores brancos” – muitos dos quais haviam sido
submetidos à discriminação religiosa e de raça – agora
buscavam consolo no fato de que, mesmo “escravos do
capital”, ainda poderiam reivindicar tornar-se cidadãos
brancos: “honestos”, “confiáveis”, “respeitáveis”, os “primeiros
contratados, últimos demitidos” (NAYAK, 2007, p. 4, tradução
nossa).
Diversas(os) autoras(es) nos mostram que é possível dizer algo sobre o racismo desde a
psicanálise e que a história, a geografia e a sociologia, embora tratem de um vasto número de
causalidades econômicas, sociais e geopolíticas fundamentais para a compreensão desse fenômeno,
deixam um resto, sinalizam para as “causas obscuras do racismo” (MILLER, 2010). Cabe à psicanálise
se ocupar, dar lugar a esse resto e colocar-se à escuta desse mal-estar. Afinal, a teoria psicanalítica
é herdeira do sujeito – abolido ou universalizado – da ciência, especialmente perdido em seu gozo,
uma vez que o que podia enquadrá-lo a partir de sua sabedoria tradicional fora subtraído (MILLER,
2010).
O racismo pode ser entendido como ódio à maneira particular como o Outro goza e essa
resposta consistente de agressividade aponta para o real nesse Outro. É no ponto de choque entre
colonizado e colonizador, no encontro com diferentes tradições e culturas, que o discurso humanista
se esfacela. Uma vez que o Outro é Outro dentro de mim mesma(o), a raiz do racismo é o ódio ao
próprio gozo, pois, “se o Outro está em meu interior em posição de extimidade, é também meu
21 Alguns exemplos podem ser extraídos no capítulo cinco do livro Os condenados da terra (1961), de Frantz
Fanon, que conta parte de sua experiência durante o período da guerra de independência argelina. Nele, o autor
ressalta o caráter ativo do colonialismo na formação das patologias da psique dos colonizados e dos colonizadores.
326
26A
O gozo perverso racista22 pode ser definido como uma modalidade de gozo ligada à esfera
identificatória, que excede as três identificações colocadas por Freud em Psicologia das massas e
análise do eu (RIBEIRO, 2021). Essa nova modalidade de identificação estaria ligada ao mais-de-
gozar, à forma de recuperação de gozo, dentro do discurso capitalista, a partir do ódio destinado
a seres humanos, reduzidos a dejetos. Slavoj Žižek (2016) cunha uma ideia próxima, que se refere
à hipótese do racismo como “roubo de gozo”. Em conformidade com Miller (2010), Žižek afirma
que, no encontro com a alteridade, o sujeito projeta seu gozo no Outro, conferindo-lhe acesso
pleno a um gozo consistente. Disso resulta a inveja e a percepção de que o Outro rouba o meu
próprio gozo. Uma possível saída de tratamento desse gozo relacionado ao racismo é a aposta na
via da sublimação, da cultura e da política, a partir dos movimentos sociais (RIBEIRO, 2021) − aposta
construída na dialética entre o singular e o social enquanto caminho de “cura” ou de reparação.
O gozo, articulado à pulsão de morte, pode ser expresso pela via da “exploração e da
aniquilação do homem pelo homem” (COSTA et al., 2020, p. 147). Dessa forma, a noção de gozo
racista se liga ao conceito de necropolítica, termo cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe
(2016). O pensador articula o termo foucaultiano “biopoder” à noção agambeniana de estado de
exceção, do que resulta a formulação do conceito de necropolítica. Em artigo homônimo (2016), o
autor sublinha a ideia do estado de exceção como um arranjo permanente, no qual determinados
grupos permanecem suspensos do estado de direito, ou seja, trata-se do poder soberano de matar
aqueles que não interessam aos objetivos do capitalismo.
No paradigma político moderno, a razão ocupa o lugar de verdade do sujeito e a política
se configura como exercício da razão na esfera pública. Dentro dessa perspectiva, o exercício da
soberania encontra-se expressamente envolto por significações sociais e imaginárias. Assim, o velho
poder soberano do direito de morte se transfigura e toma o racismo como conceito operador que
permite ao Estado exercer seu papel soberano, na medida em que tal conceito passa a “assegurar a
função de morte na economia do biopoder” (FOUCAULT, 2010, p. 308).
No paradigma colonial vemos uma primeira síntese entre o massacre e a burocracia: a
seleção de raças, a proibição de “casamentos mistos”, o projeto político de embranquecimento da
população, a esterilização forçada, os estupros em massa de mulheres pretas e nativas, até mesmo
o extermínio dos povos vencidos. Para Mbembe (2016, p. 132), “o que se testemunha na Segunda
Guerra Mundial é a extensão dos métodos anteriormente reservados aos ‘selvagens’ pelos povos
‘civilizados’ da Europa”. Na atualidade, o controle dos corpos colonizados através da necropolítica
não passa sem imprimir profundas marcas nas subjetividades.
No seio do lugar social, político e econômico destinado à preta e ao preto – construído
22 Tratamos aqui de uma fantasia perversa ou, ainda, de uma participação neurótica na fantasia perversa, na qual
há o desejo de fruição, sem limites, sobre o corpo do outro, o assujeitamento completo do objeto de forma que o
perverso não se defronta com sua própria castração (RIBEIRO, 2021).
327
27A
atravessado pela negritude (NOGUEIRA, 2017), pela cor. É importante ressaltar que a consciência
do sujeito negro acerca das implicações histórico-políticas do racismo não o impede de ser afetado
pelas marcas que uma sociedade estruturalmente racista deixou inscritas em sua psique (NOGUEIRA,
2017). Ora, estamos avisadas(os), desde Freud, da distância entre o saber da consciência e a
dinâmica dos processos psíquicos inconscientes no que tange ao trauma.
Ademais, “as condições de existência material da comunidade negra remetem a
condicionamentos psicológicos que têm que ser desmascarados” (GONZALEZ, 1984, p. 232). Desde
a época colonial até os dias de hoje, há uma evidente separação do espaço físico ocupado por
dominados e dominadores (GONZALEZ, 1984). “Os diferentes índices de dominação das diferentes
formas de produção econômica existentes no Brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a
reinterpretação da teoria do ‘lugar natural’ de Aristóteles” (GONZALEZ, 1984, p. 232). Portanto, é
preciso atentar para o fato de que o psiquismo é atravessado pelas condições objetivas, condições
que receberão, no plano do inconsciente, elaboração própria (NOGUEIRA, 2017).
Por fim, embora a psicanálise tenha seu berço na Europa, ela ocupa papel fundamental
na discussão acerca do racismo. Afinal, foi Freud que instaurou a ferida narcísica nos povos
europeus ao denunciar que sua razão iluminista visa encobrir suas produções de horror. Cabe a
nós, colonizados, reavivar a denúncia de que o eu não é senhor de sua própria casa, como nos alerta
Freud (1917/1996b), e que a razão kantiana deixa restar. Ou ainda, que ela surge para encobrir – ao
mesmo tempo que incitar – aquilo que a memória da colônia grita. Afinal, Lacan nos permite extrair
do seio da moral kantiana seu núcleo obsceno, perverso, excessivo, que não encontra melhor
representação do que a figura sadiana23. Assim, a psicanálise possui ferramentas de enfrentamento
do discurso racionalista, que, por sua vez, está na base da estrutura racista.
Por fim, cabe à(ao) analista branca(o) promover uma escuta atenta aos sofrimentos
raciais que atravessam sujeitos negros, questões que se presentificam, através dos corpos, em
relação transferencial. Ao mesmo tempo, é necessário engendrar uma reflexão acerca da própria
branquitude, a fim de situar seu lugar de escuta na transferência, reconhecendo-se como branca(o),
e estar avisada(o) sobre as possíveis consequências psíquicas e sociais do racismo estrutural, bem
como da possibilidade de reprodução violenta dos discursos coloniais. Ademais, é primordial
marcar a importância da consciência da própria branquitude por parte da(o) analista branca(o),
assim como o reconhecimento de seu lugar de privilégio social e de seus pactos perversos (HARRIS,
2019), para que possa localizar suas condições de escuta das formas de incidência do traumático
no outro. Relembramos, por fim, as palavras de Lacan (1958/1998, p. 601), segundo as quais “não
há outra resistência à análise senão a do próprio analista”. Quais as implicações, para o tratamento,
Considerações Finais
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331
31A
PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO ETHOS DIGITAL
Resumo: A partir do texto freudiano Psicologia das massas e análise do Eu, o artigo objetiva apresentar uma reflexão sobre
o fenômeno das massas atrelado ao que se compreende como uma mudança no ethos da sociedade atual, tendo em vista
o surgimento da linguagem digital e do novo padrão cultural que dela se origina. Foi empregada a metodologia de estudo
comparativo do fenômeno no período atual e naquele sobre o qual Freud escreveu. Os efeitos da linguagem digital para o
laço social são destacados no que concerne à influência dos dispositivos tecnológicos para uma expansão dos fenômenos
de massa. Sustenta-se que esse ethos revela-se marcado pela dimensão subjetiva do gozo, com prejuízo para a relação do
sujeito com o saber, o Outro e todo o registro simbólico. Observa-se como tais mudanças são correlatas de uma expansão
no próprio nível egoico, portanto, imaginária, sobretudo a partir da implantação do dispositivo algorítmico.
Palavras-chave: Psicologia das massas. Cultura digital. Ethos. Gozo. Discurso capitalista.
Abstract: : From the Freudian text Psychology of the masses and analysis of the Self, the article aims to present a reflection
on the phenomenon of the masses linked to what is understood as a change in the ethos of current society, in view of the
emergence of digital language and the new standard culture that stems from it. Methodology of comparative study of the
phenomenon was used in the current period and in the one about which Freud wrote. The effects of digital language on
the social bond are highlighted with regard to the influence of technological devices for an expansion of mass phenomena.
It is argued that this ethos reveals itself to be marked by the subjective dimension of jouissance, with prejudice to the
subject’s relationship with knowledge [savoir], the Other and the entire symbolic register. It is observed how such changes
are correlated with an expansion at the egoic level itself, therefore, imaginary, especially from the implementation of the
algorithmic device.
1 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Psicóloga
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Atualmente é professora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais e docente permanente do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/9516537449598946; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7949-0169. E-mail: nadia.laguardia@gmail.com
2 Doutor em Psicologia/Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais; Especialista em Teoria Psicanalítica Universidade Federal de Minas Gerais; Psicólogo pela Universidade Federal de São
João Del Rei. Pesquisador colaborador no Laboratório Além da Tela: Psicanálise e Cultura Digital (FAFICH/UFMG) e no Laboratório Janela da Escuta,
da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Lattes: https://lattes.cnpq.br/6213923647850576; ORCID: https://orcid.
org/0000-0001-7130-0906; E-mail: marcionobre205@hotmail.com
Introdução
Após cem anos da publicação de Psicologia das massas e análise do Eu por Sigmund Freud, a
hegemonia da nova linguagem digital parece revelar que tanto as massas quanto a própria instância
egoica vêm sofrendo consideráveis alterações. A rapidez com que essa linguagem se espalhou, bem
como a impregnação de seus traços em todos os aspectos socioculturais, nos credenciam a cogitar
que um novo ethos esteja em vigência na atualidade. Além disso, por sua abrangência, trata-se de
um ethos que define comportamentos, costumes e atitudes em âmbito global.
Na antiguidade grega, esse termo era empregado para indicar o lugar em que se vivia, bem
como o conjunto de valores que orientam comportamentos sociais de modo a garantir alguma
característica estável ao laço social. A partir de Aristóteles, a noção de ethos adquire sentido ainda
mais abrangente. Para o filósofo, o ethos é aquilo que nos habita desde dentro, nossa forma de ser
ou caráter, nossa morada, algo como uma segunda natureza que se difere da biológica1.
No Seminário 7, Lacan (1959-1960/1997) retoma o termo “ethos” como morada, para
referir-se à dimensão da ética. Conforme Lacan, para Aristóteles, o ethos “hábito” é o que forma o
ethos “caráter” para o humano:
O estabelecimento do ethos é feito como que diferenciando
o ser vivo do ser inanimado, inerte. Como salienta Aristóteles,
por mais vezes que vocês lancem uma pedra no ar ela não
se habituará à sua trajetória, enquanto que o homem, este,
se habitua – esse é o ethos. E esse ethos, trata-se de obtê-
lo conforme ao ethos, ou seja, a uma ordem que é preciso
reunir, na perspectiva lógica que é a de Aristóteles, num Bem
Supremo, ponto de inserção, de vínculo, de convergência, em
que uma ordem particular se unifica num conhecimento mais
universal, em que a ética desemboca numa política e, mais
além, numa imitação da ordem cósmica (p. 33).
Ora, compreendemos que, na atualidade, essa ordem do particular que compõe o ethos
“caráter” vem convergindo para um universal que se reveste em uma nova linguagem, originando
um novo padrão cultural, com profundas mudanças nos modos e na forma do enlaçamento
social, o que afeta decisivamente o ethos “hábito”. É nesse sentido que tal conjuntura convoca-
nos a retomar o texto freudiano que insere a reflexão psicanalítica no âmbito da coletividade,
Freud (1921/2020b) mostra que a compreensão da dinâmica das massas requer o estudo
do funcionamento psíquico, da mesma forma que não se pode analisar o psíquico fora do campo
social. Em vez de buscar uma explicação das massas pelo contágio ou imitação, ele articula o
fenômeno social com o inconsciente, descrevendo o princípio da formação de uma massa a partir
do processo de identificação, que define como a forma mais elementar de ligação afetiva com
o objeto. Assim, enfatiza que o poder aglutinador da massa está nos laços libidinais, ou seja, o
afeto constitui a essência da psique das massas: “A constituição libidinal de uma massa resulta
de uma quantidade de indivíduos que colocam um único objeto no lugar de seu ideal do Eu e,
em consequência, identificam-se uns com os outros em seu Eu” (FREUD, 1921/2020b, p. 72). A
identificação se desdobra verticalmente em direção ao líder, e horizontalmente entre os membros
do grupo, numa dupla ligação de ordem libidinal.
Como ensina Jacques Lacan (1953-1954/2009), o ideal do Eu é uma instância simbólica
herdeira do narcisismo, o lugar de onde eu me vejo amável. Os significantes mestres comandam a
formação do ideal do Eu para o sujeito, e o líder sustenta um significante que representa um ideal
para o sujeito.
A agressividade, para a teoria psicanalítica, situa-se na base da constituição do Eu. A
teorização lacaniana a situa no campo da especularidade imaginária, nomeada “estádio do
espelho” (LACAN, 1949/1998c). Trata-se de uma rivalidade especular com o semelhante, que
ilustra o caráter conflitivo de toda relação dual, contendo, portanto, a presença da agressividade.
Em outro escrito, A agressividade em psicanálise, Lacan (1948/1998a) afirma que o ideal do Eu
tem uma função apaziguadora, permitindo ao sujeito transcender a agressividade constitutiva da
primeira individuação subjetiva: “Ela instaura uma distância pela qual, com sentimentos da ordem
do respeito, realiza-se toda uma assunção afetiva do próximo” (p. 120). Assim, o líder, tal como
o pai, é uma figura de exceção com a qual é possível ter um traço de semelhança, mas não uma
identificação total. O líder mantém certa diferença em relação aos membros do grupo, pois, ao
ocupar o lugar de ideal do Eu, sustenta algo a mais que o grupo e também sustenta certa diferença
2 Nesta teoria, Lacan (1969-1970/1992) lança mão do matema, fórmula na qual circulam os elementos que
compõem o discurso, sendo eles: S1, significante mestre, que inaugura a rede do saber; S2, saber, que condensa
a cadeia de significantes; $, sujeito barrado pela linguagem; e objeto a, ou mais-de-gozar. Este último traz o
diferencial apresentado pela teoria dos discursos, na qual Lacan passa a compreender saber e gozo como estando
primitivamente articulados. Nesse sentido, o matema discursivo tem como ponto alto a indexação do real de gozo,
do que o objeto a faz signo.
3 A complexidade do conceito de gozo é evidente pela diversidade de sentidos que assume ao longo do ensino de
Lacan. A esse respeito, recomendamos a leitura de Os seis paradigmas do gozo, de Miller (2012). De modo geral,
o gozo pode ser compreendido como a dimensão da subjetividade que extrapola o campo do simbólico, embora
receba deste algum tratamento. É nesse sentido, inclusive, que Lacan (1969-1970/1992) irá definir a relação entre
saber e gozo como sendo de limites mútuos.
336
36A
predição que antecipam o que um determinado indivíduo faria agora, daqui a pouco e mais tarde.
Esses produtos são comercializados num novo tipo de mercado para predições comportamentais,
que são os mercados de comportamentos futuros.
Para Lima (2006), no novo contexto que se descortina para o sujeito, o fascínio provocado
por seu encontro com esse aparelhamento tem na alienação o seu principal resultado. A autora
destaca uma expansão narcísica como correlata da rarefação da dimensão simbólica, o que se
traduz, especialmente, em termos de busca do prazer imediato e desinteresse por atividades que
exigem esforço ou adiamento de satisfação. Em outro trabalho, a autora ressalta que a singularidade
tende a desaparecer na sociedade em rede, havendo uma “homogeneização de pessoas e valores”
(LIMA, 2013, p. 490). Embora as reverberações imaginárias não contemplem toda a complexidade
da experiência humana no espaço virtual, pode-se apostar que a erosão do registro simbólico
ocorrida no avançar do período moderno ganha incremento em termos de aceleração com a
implementação da lógica de plataformas.
Assim, o que o capitalista quer transmitir é uma tentativa de tamponar o vazio inerente
à divisão subjetiva que a castração faz operar. É nessa medida que tal divisão será aproveitada
para compor o semblante veiculado por esse discurso, que se baseia na ideia de que não há
nada impossível para o sujeito, desde que ele consuma. Ao contrário das quatro matrizes que se
deparam com o real e operam sempre deixando um resto inerente ao exercício da linguagem, o que
o capitalista transmite é essa ilusão que incrementa o Eu, fazendo como que ele evite defrontar-se
com a divisão que lhe é inerente. Trata-se de um discurso falacioso, pois veicula algo que não se
efetiva jamais, posto que não se pode desconsiderar que ali, de fato, não há um indivíduo, mas
um sujeito dividido em sua verdade singular de ser castrado, e que somente se faz revelar pela
metade. Desse modo, o ethos digital tem por propriedade o acolhimento do indivíduo no formato
dessas massas que funcionam sob a lógica de plataformas comandadas pelos conglomerados
informacionais (SRNICEK, 2022).
A partir dessas operações comerciais, os capitalistas de vigilância têm acumulado grande
riqueza, na medida em que as tecnologias digitais permitiram que o braço do mercado se estendesse
até o campo dos afetos, aspecto ainda não explorado da subjetividade, até então. Entretanto, tal
exploração só se tornou possível quando o âmbito da rede digital se estendeu a toda a cultura,
de modo a acolher os indivíduos como uma nova morada, delineando seus hábitos e seu caráter,
dando curso a esse novo ethos. Vejamos como isso ocorre, em termos psicanalíticos.
Desse modo, o supereu surge não mais como uma instância proibitiva do gozo, mas como
um ordenador, cuja função, a se pensar em sua vertente inconsciente, pode ser exercida ainda na
forma de uma tirania. No Seminário 17, Lacan (1969-1970/1992) havia apontado a relação entre
saber e gozo como sendo de limite mútuo. Ora, se o saber já se exercia como tirania, ainda sob
efeito da repressão da sexualidade em tempos modernos, pode-se considerar que, no contexto do
discurso capitalista, o que se traduz nesses termos é essa injunção de gozo. A repressão, inclusive,
não passa da face visível da operação que Freud chegou a reconhecer como mais originária e,
portanto, estrutural para o psiquismo, ou seja, a do recalcamento, surgido em função dos avanços
na direção da virada para sua segunda tópica, como nos alerta Lacan (1973/2003b) em Televisão.
É nesse texto que vemos, ainda, Lacan (1973/2003b) atribuir ao supereu a curiosa
característica da “gulodice”. Essa nova perspectiva em relação à instância deve ser também tomada
em referência à mudança de rumo do simbólico para o real em seu ensino e que, em grande
medida, tem de fundo uma releitura sobre a “virada” de Freud, como se sabe amplamente: “A
gulodice pela qual Freud denotou o supereu é estrutural – não é um efeito da civilização, mas um
‘mal-estar (sintoma) na civilização’” (p. 528, grifos do autor). Dessa forma, pode-se compreender
como, na medida em que o discurso capitalista suprime a marca de impossibilidade inerente ao laço
338
38A
social, deixa aberto o caminho para uma regulação superegoica que franqueia o exercício do gozo
e não mais o proscreve ou trata. Daí se poder vislumbrar a circularidade infinita entre os quatro
termos do matema, antes impossibilitada em virtude do real indexado e diante do qual a verdade
circunstancial se mostrava impotente (LACAN, 1969-1970/1992).
Na atualidade da linguagem digital, o saber inconsciente rechaçado no âmbito da ciência
moderna se apresenta ainda mais deteriorado diante de um maior afluxo de gozo, que ganha
incremento em virtude do hiperinvestimento na informação, essa deriva mais leve e fluida do saber
(NOBRE, 2020). Assim, uma lógica metonímica de gozo ganha uma aplicação prática em função de
seu acoplamento à informação, e isso ocorre justamente porque ela se insere no nicho do saber,
que não se presta mais a fazer limite ao gozo.
A partir daí, pelo exercício desse saber mediatizado, esse hipermestre pode fazer retornar
ao sujeito os objetos, para manter o moto-contínuo da fruição de seu gozo, sempre parcializado, no
sentido do consumo – este sempre efêmero, descartável –, seja de elementos virtuais fartamente
disseminados nas plataformas digitais, seja de objetos que se tornam cada vez mais personalizados.
Com novos hábitos, novos caracteres são forjados sob esse novo ethos, que tem a linguagem
numérica, hoje também algorítmica, como pano de fundo.
O uso político do aparato tecnológico sobre as massas formadas digitalmente parece algo
consolidado em nossa sociedade atual. A ausência de vínculos referidos a uma figura central de
liderança é outro dado importante dessas massas sem corpos, embora visceralmente marcadas
pela ordem do afeto.
Se Freud (1921/2020b) descreveu o processo de formação das massas via identificação, no
contexto atual acentua-se o declínio da função do ideal do Eu. Como vimos, isso tem por efeito uma
promoção máxima do objeto a como mais-de-gozar, que Lacan (1970/2003a) já havia assinalado
em Radiofonia. Essa ascensão determina um funcionamento social regido por promessas de gozo,
que rapidamente tomam a forma das injunções superegoicas. Assim, de uma política sustentada
pelo simbólico passamos para uma orientação pela urgência de gozo, o que o mercado não apenas
acompanha atentamente, mas estimula de modo cirúrgico, isto é, personalista.
Se a identificação é o modo de responder a uma precariedade constitutiva do sujeito, ela
pode ser pensada tanto no nível de um complemento significante como também referida a uma
No final dos anos 2000, o novo ethos, nossa morada digital, passou a contar com um
dispositivo matemático que, funcionando de modo bastante simples, inseriu uma perspectiva
estatística radicalmente diferente e bem mais eficaz que os modelos tradicionais desse campo.
Com a entrada em cena dos algoritmos digitais, um novo modo de governança passou a orientar
ações de indivíduos e grupos no horizonte informacional, com decisivos efeitos comportamentais
e políticos.
Embora estejamos vivendo sob a égide da transparência (HAN, 2017) e do espetáculo
(DEBORD, 1997), tais relações de forças atuam de modo contrário no que diz respeito aos
conglomerados informacionais. Operando de forma velada no manejo dos dados de cada usuário
da web, as plataformas atuam por meio das “bolhas digitais”, noção amplamente divulgada na
mídia e que diz respeito a grupos formados algoritmicamente a partir dos interesses comuns dos
usuários.
Em meados dos anos 2010, os escândalos envolvendo redes sociais e agências de publicidade
revelaram que diversas eleições ao redor do mundo tinham sido influenciadas por grupos que,
com o auxílio de empresas como o Facebook, teriam manipulado a opinião dos eleitores. A
empresa Cambridge Analytica, juntamente a empresários multimilionários, como Steve Bannon e
340
40A
Alexander Nix, seriam responsáveis pela criação de um sistema complexo envolvendo a psicologia
comportamental e o uso de dados organizados por programadores. Esse feito alterou o rumo de
relevantes fatos históricos atuais, como as eleições que elegeram Donald Trump presidente dos
Estados Unidos; o plebiscito do Brexit, que levou a Grã-Bretanha a sair da União Europeia; e as
eleições no Brasil, que levaram a extrema-direita ao poder, com Jair Bolsonaro. Foi a partir de dados
coletados dos usuários do Facebook que milhares de pontos de informação foram analisados e
classificados num sistema de pontuações pela Cambridge Analytica. Em seguida, tais dados foram
vendidos para a clientela política que elaborou suas estratégias de manipulação dos usuários da
rede na própria rede (CADWALLADR, 2019).
Essa situação demonstrou a forma de comando via internet que não é lançada por um
líder, mas funciona por meio do dispositivo algorítmico, que hoje opera em toda a web. Em tais
comandos, não há qualquer compromisso com padrões éticos, não cabendo checagem sobre a
veracidade de fatos supostamente ocorridos, o que torna os ambientes da internet propícios para a
disseminação de notícias falsas, que vão se sofisticando com o passar dos anos.
Para Antoinette Rouvroy (2019), a constante adaptação dos ambientes aos perfis individuais
e coletivos produzidos pela inteligência de dados é um modo de governança de grupos sem
precedentes. Como salienta a autora, as operações de coleta, processamento e estruturação de
dados com o propósito de data mining [mineração de dados] e profiling [criação de perfis] tornaram
a vigilância de dados [dataveillance] cruciais para atividades de setores públicos e privados em
domínios tão variados quanto a prevenção da criminalidade, a gestão da saúde, o marketing ou o
entretenimento.
Então, na lógica das massas digitais, o mecanismo algorítmico opera na formação dessas
“bolhas”, selecionando e direcionando conteúdos a serem apresentados aos usuários nos feed de
notícias das redes sociais e das plataformas de serviços, como Netflix e afins. Com recurso ao perfil
de consumo capturado pelos algoritmos – abastecidos de dados pessoais, geográficos, padrões
de uso dos aplicativos, dentre outros –, as plataformas passam a circunscrever um ambiente
específico para cada um, moldado a partir de seu reflexo. Com isso, o indivíduo passa a receber
conteúdos semelhantes àqueles que ele buscou anteriormente, sendo “apresentado” a pessoas
que compartilham ideias e pensamentos próximos aos seus, e vice-versa (ROUVROY, 2019).
Os capitalistas de vigilância (ZUBOFF, 2021) descobriram que os dados comportamentais mais
preditivos provêm da intervenção no jogo, de modo a incentivar, persuadir, sintonizar e arrebanhar
comportamentos, em busca de resultados lucrativos. Na fase atual da evolução do capitalismo de
vigilância, os meios de produção estão subordinados a meios de modificação comportamental cada
Conforme Adorno (1951/2018, p. 17), a propaganda fascista apoia-se tanto numa estrutura
total quanto em cada traço particular de caráter autoritário, resultante da “internalização de
aspectos irracionais da sociedade moderna”, o que permite que ela se torne “racional no sentido da
economia pulsional”. Nesse ponto, cabe indagar se, nessa “racionalidade pulsional”, não podemos
espreitar aquela que abre espaço para um livre curso da dimensão de gozo, embora sob as balizas
algorítmicas, tal como propomos em relação ao ethos digital.
Em relação aos líderes, Adorno (1951/2018) sustenta que na medida em que se conscientizam
e se apropriam da psicologia de massa, ela tende a deixar de existir, sendo nesse ponto que a
Sob esse ethos do gozo estendido ao âmbito digital, esse processo ganha – para além do
melhor alcance – uma maior nitidez. É por serem tocados em algo muito íntimo e singular, que
os sujeitos se veem convocados a atitudes bizarras, ridículas ou desumanizadoras, como as que
presenciamos nas manifestações de atos fascistas hoje abundantes no Brasil. E isso ocorre a despeito
do grande acesso ao conhecimento e à informação que circulam na atualidade, diferentemente do
que estava disponível às massas fascistas do século passado. Entretanto, é justamente em função
do efeito personalista dos dispositivos digitais que, aliado ao excesso de conteúdos e à incapacidade
343
43A
humana de avaliar, julgar e escolher diante desse automatismo acelerado, que essa diferença faz
efeito contrário.
Empregando a expressão “demônios interiores”, Gustavo Dessal (2019) ressalta que eles não
foram criados pela tecnologia, mas que ela pode “despertá-los, reforçá-los, multiplicá-los, ampliá-
los, explorá-los e projetá-los em narrativas capazes de gerar fenômenos de identificação coletiva” (p.
105-106, tradução nossa). O autor chama atenção para o fato de que, pelo menos até o momento,
a tecnologia não insere nada que venha do exterior, de fora do sujeito, como fosse um implante.
A tecnologia de comunicação difere dos métodos clássicos
de evangelização, doutrinação, manipulação de consciências
e criação de seguidores para uma determinada causa ou fim,
pelo fato de que sua capacidade de alcance é praticamente
infinita, difícil de controlar e com o acréscimo de que pode
ser implementada por meio de técnicas de automação que
garantem uma reprodução viral de mensagens e notícias
(DESSAL, 2019, p. 106, tradução nossa).
Considerações Finais
Para a psicanálise, os efeitos mais deletérios desse processo de intensas mudanças estão
relacionados à adesividade ou à apropriação da experiência do inconsciente pelos dispositivos
tecnológicos que deram causa à linguagem digital. Na medida em que nos fazem operar sob essa
nova linguagem, é também para nos convocar a morar nesse novo ethos de fruição que, funcionando
pelo excesso, pela aceleração, termina por inflacionar o campo do gozo. A partir daí, torna-se passo
fácil um maior desligamento do sujeito em relação às balizas simbólicas, com prejuízo ao laço, à
dimensão política como um todo.
É trivial ceder aos encantos dessa modalidade lúdica e pouco exigente do saber, que tão
facilmente consegue implementar a lógica que se aproxima ao mais-de-gozar. Pode-se dizer
que esse saber hipermoderno que se coloca como informação assumiu o tom de uma sedução.
Instalando-se no lugar da regulação superegoica do saber inconsciente, a informação fornece um
modo mais direto de fruição pelo sujeito, que fica à deriva de seu gozo.
Do ponto de vista da psicanálise, essa exigência de gozo está no cerne daquilo que, a partir
da cultura digital, o discurso capitalista pretende transmitir ao franquear um marco regulatório
para o laço social via informação, na medida em que busca elidir a castração. Estando o sujeito já
capturado na vertente do gozo e isento dos ritos e das obrigações anteriores para o exercício do
344
44A
saber, trata-se, antes, de uma apropriação do mais-de-gozar pelo hipermestre do mercado, do que
propriamente de uma anulação de seus efeitos. Desse modo, o empuxo ao gozo que caracteriza
os excessos que tanto nos arrebatam e assustam parece nos alienar de nós mesmos, alterando
nossa relação com tempo e espaço e deixando impressões danificadoras também para o laço social,
impondo um ritmo de vida alucinante, ele próprio tirânico. No estilo capcioso de seduzir com suas
benesses, o discurso capitalista engendra um modo de vida que algoritmiza o próprio gozo, que
pode ser contabilizado em praticamente todos os âmbitos da experiência humana, sem deixar
brechas para escape.
A história parece nos mostrar que os atuais fenômenos de massa são da mesma ordem
que aqueles que se observavam no século passado. A psicologia de cada indivíduo – ou sujeito
– é a mesma que se projeta para as massas, tal como o próprio Freud (1921/2020b) observou.
Entretanto, se hoje funcionamos sob um ethos de gozo estimulado no um a um pela cultura do
número – e, ainda, algoritmizado – o laço com o Outro, estando ainda mais precário, é atravessado
pelas ferramentas tecnológicas em dimensões antes pouco exploradas, como as do domínio do
afeto. Então, mais isolados no laço, talvez estejamos mais suscetíveis a identificações marcadas
pelo gozo, menos pela dialética desejante, imersos que estamos a esse novo ethos.
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47A
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA PSICANÁLISE SOBRE A
ANTROPOLOGIA CULTURAL E UMA ANÁLISE DE CASO DO
MOVIMENTO DAS QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU
Resumo: O estudo aborda a importância da psicanálise sobre a cultura na sua acepção antropológica, trazendo um estudo
de caso do Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu, comunidade tradicional que vêm lutando pela proteção jurídica
de suas tradições. O objetivo é demonstrar a relação da psicanálise com os conflitos sociais e culturais, para alcançar
o resultado é explorado o conceito de cultura dentro do contexto antropológico e sua relação com os conhecimentos
tradicionais, explorando as ideias freudianas sobre a instituição cultural, o indivíduo e suas relações em grupos. Ao final
apresenta o estudo de caso do Movimento das Quebradeiras de Coco babaçu, demonstrando que a teoria da psicanálise
tem relação com os conflitos culturais vivenciados na atualidade. Concluindo que uma civilização organizada só existe
quando impõem limites aos instintos hostis (pulsões) e naturais do homem, por isso criam instituições e ordens com
incumbência de defender a coletividade contra o próprio indivíduo.
Abstract: The study addresses the importance of psychoanalysis on culture in its anthropological sense, bringing a case
study of the Babaçu Coconut Breakers Movement, a traditional community that has been fighting for legal protection of
their traditions. The objective is to demonstrate the relation of psychoanalysis with social and cultural conflicts. To achieve
the result, the concept of culture within the anthropological context and its relation with traditional knowledge is explored,
exploring Freudian ideas about the cultural institution, the individual and its relations in groups. At the end it presents the
case study of the babassu coconut breakers’ movement, demonstrating that the theory of psychoanalysis is related to the
cultural conflicts experienced today. It concludes that an organized civilization only exists when they impose limits to the
hostile instincts (drives) and natural instincts of man, for this reason they create institutions and orders with the task of
defending the collectivity against the individual himself.
1 Graduada em Direito (pela Unifev), Especialista em Administração (pela UNIRP) e Mestranda em História das Populações Amazônicas (pela UFT).
Atualmente é professora Substituta no Instituto Federal do Tocantins - IFTO. Lattes: https://lattes.cnpq.br/0940370732673476. ORCID: https://
orcid.org/0000-0003-3299-8402. E-mail: virlima82@gmail.com
2 Doutor em história pela Universidade Federal de Goiás, com período de estudos na l’Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales e bolsista
da Capes. É professor do curso de História da Universidade Federal do Tocantins e do Programa de Pós-graduação em História das Populações
Amazônicas (UFT). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3540558249390894. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1460-8992.
E-mail: oliveira.vha@mail.uft.edu.br
3 Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. É Professor do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Tocantins.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8054440122552778. E-mail: eloysancarlo@mail.uft.edu.br
Introdução
Sendo assim, estudar as formas de contribuição da psicanálise para a cultura na sua acepção
antropológica justifica-se pela necessidade de oferecer informações sobre o funcionamento da
mente do indivíduo, facilitando a compreensão da vida em sociedade, pois quando se compreende
o comportamento humano e a natureza que o cerca é possível perceber os motivos que formam as
349
49A
Metodologia
O presente estudo consiste numa pesquisa aplicada de caráter descritivo, que visa estudar a
importância da psicanálise sobre a cultura na sua acepção antropológica, trazendo uma análise de
caso do Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu, uma comunidade tradicional que diante da
dificuldade de manter suas identidades, perpetuar, coexistir, resistir e praticar sua cultura dentro
de seu Estado se viu diante da necessidade de unir forças para alcançar seus direitos culturais por
meio de um instrumento legislativo.
Pesquisa descritiva é aquela que analisa, observa, registra
e correlaciona aspectos (variáveis) que envolvem fatos ou
fenômenos, sem manipulá-los. Os fenômenos humanos ou
naturais são investigados sem a interferência do pesquisador
que apenas “procura descobrir, com a precisão possível, a
frequência com que um fenômeno ocorre, sua relação e
conexão com outros, sua natureza e características” (CERVO;
BERVIAN, 1983, p.55).
Em relação as características citadas pro Freud, os autores Souza e Pereira (2014) afirmam que
são sui generis e surge no homem por meio de conhecimentos transmitidos por seus antepassados
proporcionando uma integração com o ambiente (território) onde vive, com o passar do tempo elas
vão se transformando em tradições e estabelecem uma memória coletiva capaz de construir uma
identidade que causa um sentimento de pertencimento a um povo ou nação, com isso é possível
perceber que a cultura só é legitimada pelos povos quando é conduzida para um ponto em comum.
Diante dessas afirmativas é possível perceber que tais característica ou comportamentos
humanos formam aquilo que denominamos de cultura, tal processo só é possível quando o
passado é compartilhado e repassado para o presente, portando, a visão de Freud no momento
que afirma que a história da cultura demonstra apenas os métodos que os homens adotaram e
aqui eu arrisco usar o termo inventaram para dominarem seus desejos insatisfeitos em relação
aquilo que eles não podem mudar, é coerente com ideologias de outros autores que estudam o
fenômeno cultura, para Benedict Anderson (2008) homens que possuem as mesmas características
e comportamentos formam comunidades culturais consideradas imaginadas (ANDERSON, 2008)
e que são regularizadas por tradições inventadas segundo Hobsbawn e Ranger (2006), indivíduos
carregam a imagem de afinidade mútua, mesmo que não conheçam ou interajam pessoalmente
com todos os participantes da mesma ideologia, mas todos compartilham dos mesmos interesses
e aspectos de identidade.
As ideias de comunidade imaginada e tradição inventada coadunam com a visão freudiana,
pois tais características não deixam de ser “inventadas” por determinado grupo com intuito
de garantir proteção, tanto social quanto espiritual, e garantir a sobrevivência diante doutras
características culturais dominantes dentro de um Estado.
As afirmações acima mostram que a cultura vem evoluindo no decorrer dos tempos, e os
grupos vão criando formas de proteger suas tradições e conhecimentos como forma de reprimir
seus instintos hostis (animais) e naturais, sendo que para a psicanálise isso vem acontecendo no
decorrer da história da civilização, envolvendo neste processo diversos ramos sociais, conforme
será apresentado no item seguinte.
Com a base de conceitos consolidada e a sucinta explanação sobre ideias freudianas sobre a
Na obra “O futuro de uma ilusão” Freud (1927-1931) propõe uma reflexão sobre a essência
da cultura, abordando desde a criação da cultura, passando pelo funcionamento das instituições
organizacionais, indo até as perspectivas com o futuro das civilizações.
Na mesma obra, Freud é resistente em distinguir cultura de civilização, pois existe uma
íntima abrangência entre eles, citando dois aspectos importantes sobre estes conceitos:
Por um lado, inclui todo conhecimento e capacidade que o
homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza
e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades
humanas; e por outro, inclui todos os regulamentos
1 Ihnen zu Liebe termo em alemão que na língua portuguesa significa por amor a eles (FREUD, 1921)
352
52A
necessários para ajustar as relações dos homens uns com os
outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível
(FREUD, 1927, p.4).
Portanto a teoria freudiana (1927) afirma que para existência de uma civilização com relações
organizadas é necessário limitar os instintos hostis (animais) e naturais do homem, adotando
meios de coerção e formas de repressão destes instintos existentes na natureza humana, assim as
instituições e as ordens têm a incumbência de defender a coletividade contra o próprio indivíduo,
que possui impulsos agressivos visando conquistar a natureza e distribuir riquezas.
A referida afirmativa de Freud pode ser retratada na sociedade atual, por meio dos
princípios criados pelo Estado no ramo do direito público, que define a coerção como “Supremacia
do interesse público”, tal princípio significa, que quando houver divergência entre um particular e
um interesse público coletivo, deve prevalecer o interesse público.
Já a repressão dos instintos animais é retrata na atualidade no momento que o Estado
manifesta sua intenção de coibir a delinquência, através de sanções repressivas ou preventivas,
indicando os atos humanos que constituem responsabilidade e culpa, como exemplo temos o
Código Penal (Decreto-lei nº 2.848 de 1940).
Voltando para o texto “O futuro de uma ilusão” Freud chama atenção para certas coerções e
repressões que só se aplicam a certos grupos sociais, isso faz com que surja cobiça entre os grupos
menos privilegiados, instigando conflitos sociais.
Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a
satisfação de uma parte e de seus participantes depende
da opressão da outra parte, parte esta talvez maior - e este
é o caso em todas as culturas atuais-, é compreensível que
as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa
hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam
possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem
mais do que uma quota mínima (FREUD, 1927, p.8).
Com isso, o autor compreendeu que o sentimento de pertencer a uma cultura traz uma
satisfação de natureza narcísica, fazendo o homem acreditar que existe uma cultura ideal,
induzindo comparações e atos de hostilidade com comunidades diferente. Inclusive ele deu nome
a este fenômeno de “narcisismo das pequenas diferenças”, justificado no fato de um grupo/país se
incomodar com diferenças culturais do outro grupo/país, transformando em conflitos irremediáveis.
E autor vai mais além, levantando a hipótese de que as ideias que geram as regulamentações
políticas também pudessem ser uma ilusão, afinal são ideias de organização social advindas de
nossos antepassados. Esta afirmativa se torna interessante quando se relembra das formas de
governo mais conhecidas na história, como democracia, monarquia e republicano, todas têm
ligações diretas com ensinamentos e lutas dos antepassados de cada civilização.
Para o autor, o sistema doutrinário da religião só tem dado certo até os dias atuais por
causa da necessidade de manter o indivíduo sob controle até que ele esteja pronto para viver na
civilização, moldado segundo os preceitos daquela comunidade.
Freud vai confirmar isso com mais vivacidade e trazer contrapontos na obra “O mal estar na
civilização (1930 [1929])”, para o autor a civilização buscou a regularização das relações sociais para
que o indivíduo não pudesse agir de forma arbitrária.
Desta forma, a civilização só se torna possível com a junção dos indivíduos mais fortes,
formando uma comunidade que passa a colocar os interesses da coletividade acima dos, individuais,
formando assim uma cúpula capaz de dominar o indivíduo.
Com isso o desenvolvimento da cultura vai sendo baseado nas leis que abrangem os direitos
da comunidade. “A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de
que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo [...]” (FREUD, 1930, p.61)
Diante desta ideia de necessidade de controle do indivíduo por meio de um rígido sistema
doutrinário religioso e instituição de leis que trazem a imagem de justiça por defender a coletividade,
Freud faz fortes críticas e contrapontos na obra “O mal estar na civilização (1930 [1929])”, afirmando
Diante dos conflitos, as terras com babaçuais ficaram sob o domínio dos fazendeiros, que
tinham o título da propriedade, sendo que as mulheres quebradeiras de coco babaçu ficaram
impedidas de acessar estas terras e colher os frutos necessários para sua subsistência.
É interessante que a psicanálise já fazia referência sobre estas possíveis coerções e
repressões, que muitas vezes são feitas pelas civilizações por meio de leis que atendem apenas um
grupo social, deixando outras comunidades de fora, fazendo surgir conflitos sociais entre grupos
menos privilegiados.
Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a
satisfação de uma parte e de seus participantes depende
da opressão da outra parte, parte esta talvez maior - e este
é o caso em todas as culturas atuais-, é compreensível que
as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa
hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam
possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem
mais do que uma quota mínima (FREUD, 1927, p.8).
Referências
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Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposic
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Humanas, v. 25, n. 2, p. 275-285, 2015.
Recebido em 16 de Janeiro de 2023. Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04
Aceito em 08 de fevereiro de 2023.
359
59A
CONVERSAÇÕES E ESCREVIVÊNCIAS: A CONSTRUÇÃO DE
ESPAÇOS DE FALA DA NEGRITUDE NA UNIVERSIDADE
Abstract: This work aims to report the experience of the Coletivo Interestadual Ocupação Psicanalítica - for an anti-racist
clinic in the construction of a space for listening, production and sharing of narratives and experiences among black
students and workers of Universidade Federal do Espírito Santo. We present the proposal of articulating the methodology
of conversations, inspired by psychoanalysis, with Escrevivências, by Conceição Evaristo, based on the rescue of black
women’s voices and memories. It is a space where speech and listening intertwine and highlight the torsion that implies the
meeting of the singular and the collective. By opening this space, we opened a window for listening to the malaise arising
from racism and for the possibility of creating new paths for an inclusive and anti-racist university.
1 Graduando em Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica e do grupo de pesquisa
Infâmias Resistências. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7522199569260591. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-0346-630X. E-mail: joaootavio64@
hotmail.com
2 Doutor em Psicologia, Pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor do
Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES, integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7078731129867747. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0488-6163.E-mail: fabio.bispo@ufes.br
3 Psicóloga graduada pelo Centro Universitário Salesiano e integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/5391430658865852. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8083-2901. E-mail: laissvitorio1@gmail.com
4 Doutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia da UFES e integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/4878991655516101; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3643-7645. E-mail: luizane.mateus@ufes.br
5 Graduanda de Psicologia pela UFES, integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica e do PET Psicologia UFES.Lattes: http://lattes.cnpq.
br/0844163116867755; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4654-6688. E-mail: isabele.colares02@gmail.com
6 Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo e integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica. Lattes http://lattes.cnpq.
br/1085888350812997; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8468-3766. E-mail: raianidasilva14@hotmail.com
7 Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo e integrante do coletivo Ocupação Psicanalítica. Lattes:http://lattes.cnpq.
br/9788192840233930. ORCID:https://orcid.org/0000-0002-2430-6157.E-mail: juliacgomes.santos@gmail.com
Introdução
1 O Território do Bem é composto por nove bairros da cidade de Vitória/ES - Bonfim, Da Penha, Consolação,
Floresta, Jaburu, Itararé, Engenharia, Gurigica e São Benedito.
361
61A
vivenciais que foram despertadas durante os encontros para que pudessem mobilizar também a
construção de um saber a ser compartilhado. Assim, partindo de uma fundamentação psicanalítica,
dialogamos também com outros saberes e dispositivos da negritude, sobretudo com a orientação
política das escrevivências. Como escrevem Guerra et al. (2022, p. 264): “[...] urge atualizar a teoria
e a práxis de quem sustenta o lugar de escuta, potencializando o acolhimento da voz que enuncia o
mal-estar colonial que recai sobre os corpos de modo discrepante”.
Metodologia
Esta sessão visa detalhar a metodologia dos dois ciclos de conversações supracitados.
Os dois encontros foram divulgados, via e-mail, pela DAAD/Proaeci e pelo Coletivo Ocupação
Psicanalítica aos estudantes assistidos, também houve divulgação nas redes sociais do Programa
de Educação Tutorial Psicologia (PET-Psi) e do Centro Acadêmico Livre de Psicologia Maria Clara da
Silva (Calpsi/UFES). Os encontros, somados, contaram com a inscrição de 91 participantes2, sendo
eles estudantes de diversos cursos3 e servidores4 da UFES.
O primeiro ciclo começou a ser idealizado após o encontro realizado com os servidores das
três diretorias da Proaeci/UFES – diretoria de Assistência Estudantil, diretoria de Ações Afirmativas e
Diversidade e diretoria de Gestão dos Restaurantes. Em parceria com uma das psicólogas da equipe
da UFES, iniciamos a discussão, nas reuniões do Coletivo Ocupação-ES, para pensar em formas
de promover um espaço de escuta e fala para os estudantes negros assistidos. Nessas reuniões,
além de retomarmos impasses e experiências levantados pela Proaeci/UFES, foram realizados
estudos sobre a metodologia das conversações, que nos ajudaram a conceber a possibilidade de
utilizar livros com a temática racial como forma de abrir o convite para falar sobre o tema. Também
estudamos sobre as escrevivências (EVARISTO, 2020), pensando em formas de articulá-las ao
trabalho coletivo, seja como inspiração político-poética, como suporte para a fala dos estudantes
ou como um registro daquilo que foi despertado nas conversas.
A escolha pelas conversações articulou-se com as experiências de trabalho e pesquisa
realizadas pela psicanalista capixaba Sônia Rodrigues da Penha, que conduziu um grupo de estudos
vivencial acerca do livro “Tornar-se negro” (SOUZA, 2021). A psicanalista Renata Mendonça, do
Ocupação Minas, e a psicanalista Vilma Dias, do Ocupação-Rio também contribuíram para essa
preparação, compartilhando experiências de trabalho em escolas e dispositivos de saúde mental,
orientados pela metodologia das conversações. O dispositivo apresentado por Miller et al. (2005)
2 Autodeclaração: pretas(os): 25 em cada ciclo, totalizando 50; pardas(os): 10 em cada ciclo, totalizando 20,
indígenas: um, apenas no primeiro ciclo; brancas(os): sete no primeiro ciclo e 13 no segundo, totalizando 20.
3 Artes Plásticas, Artes Visuais, Ciências Sociais, Jornalismo, Geografia, Letras - inglês, Artes, Mestrado Profissional
em Educação, Nutrição, Oceanografia, Psicologia, Terapia Ocupacional, Mestrado em Psicologia, Ciências
Econômicas, Direito, Biblioteconomia, Fonoaudiologia, Pedagogia, Ciências Biológicas, Engenharia Florestal,
Educação Física, Comunicação Social - Jornalismo, Ciências Contábeis e Licenciatura em Música.
4 Administração Central e Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (HUCAM).
362
62A
vão surgindo oportunizando conhecer algumas identificações
manifestas (MIRANDA; VASCONCELOS; SANTIAGO, 2006, p. 3).
Sendo assim, é pertinente que o trabalho se dê por meio das conversações, pois os afetos
são gerados por meio das palavras. Miranda, Vasconcelos e Santiago (2006) dizem que a interação
nas conversações se dá com o discurso, ou seja, a fala, e não com os outros participantes. O desejo
inicial de constituir um lugar onde se pudesse falar fez com que as conversações se tornassem um
espaço inaugural, onde o discurso pode fluir e abrir um espaço seguro5 (COLLINS, 2019) para a fala
sobre o mal-estar advindo do racismo, que é tão sistematicamente silenciado na cultura brasileira.
Apesar de as conversações terem esse caráter singular, “para cada um existe um real que
faz sentido singular, e não pode ser recoberto com o sentido pleno, comum e consensual, pois este
real opera em cada um dando lugar a distintas respostas do sujeito” (MIRANDA; VASCONCELOS;
SANTIAGO, 2006, p. 3), ao se tratar das relações raciais há algo no âmbito do singular-coletivo que
emerge, e é nesse sentido que evocamos Conceição Evaristo (2020) e as escrevivências, para dar
conta desse coletivo que surgiu ao se elaborar questões raciais. A autora define a escrevivência
como “um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer
uma imagem do passado” (p. 30) escravocrata em que a voz e o corpo das mulheres pretas eram
controlados por outros. Retomar para as mulheres negras o gesto da escrita é, pois um ato ao
mesmo tempo subversivo e político, pois, “ao escrever a si próprio, seu gesto se amplia e, sem sair
de si, colhe vidas, histórias do entorno” (p. 34). Nesse sentido, em vez de submergir no grupo, a voz
de cada um evoca, de forma muito própria, vivências que ultrapassam a dimensão narcísica para
referir-se aos pontos comuns que emergem das encruzilhadas das histórias, memórias, territórios
e saberes.
Trata-se de uma tentativa de localizar os pontos de
condensação do mal-estar na cultura atual, porque abre as
possibilidades para cada membro do grupo questionar esses
pontos. É uma modalidade de investigação que, para além
da busca de informações, propõe uma intervenção no campo
pesquisado (MIRANDA; VASCONCELOS; SANTIAGO, 2006, p.
4).
Se, por um lado, é possível acolher e intervir sobre esse mal-estar, por outro, essa intervenção
emerge da própria singularidade do encontro coletivo.
Em relação à utilização de obras de psicanalistas negras com temática étnico-racial, e à
5 Collins (2019) aborda os espaços seguros entre mulheres negras estadunidenses, como espaços de resistência na
década de 1960 e um espaço onde há divergências, porém há uma agenda comum e prioritária. Utilizamos esse
conceito para pensar este espaço das conversações como sendo seguro onde os participantes podem estar e falar
do mal-estar advindos do racismo.
363
63A
(2020). “Escrevivência nunca foi uma mera ação contemplativa, mas um profundo incômodo com
o estado das coisas” (p. 34), esclarece a autora. Concebido na oralidade, na passagem da Mãe
Preta na Casa Grande para a mulher negra da atualidade, dona de sua própria voz e letra, junto
da experiência singular e coletiva das pessoas negras, o conceito de escrevivência visa convidar à
escrita e à fala sobre o que foi sentido, estranhado ou emudecido (VANNUCHI, 2017).
Vale ressaltar que esse encontro entre psicanálise e as escrevivências se dá num cenário de
interesse, investimento e escuta atenta aos sujeitos negros na cidade (LAURENT, 1999) e trocas com
psicanalistas e psicólogas que também se debruçam sobre esse encontro – psicanálise, questões
étnico-raciais e escrevivências. Temos, por exemplo, Cristiane Ribeiro (2022) e seu livro “Tornar-
se negro, devir sujeito”, Lilian Machado (2021), com sua dissertação de mestrado “Escrevivências
clínicas: violência sexual na vida de meninas negras – um triplo trauma” e Beatriz Oliveira da Silva
(2022), com sua dissertação de mestrado “Por acaso não sou uma mulher? Sobre a depreciação
das mulheres negras nas relações amorosas”. Cada um desses trabalhos de pesquisa apresentou
um modo muito próprio de articular a escrevivência com a clínica e com a pesquisa, de modo que
consolidam uma fundamentação para uma clínica escrevivente.
Ainda no que se refere à metodologia, o período de pandemia de Covid-19 impôs a
necessidade da modalidade do ensino remoto em muitas instituições de educação brasileiras, na
UFES, ela foi chamada de Earte, conforme já mencionado. O Earte demandou que o primeiro ciclo
de conversações do Coletivo fosse realizado de forma remota e síncrona, via Google Meet6. Sendo
assim, o primeiro ciclo aconteceu nos dias 08, 15 e 22 de março de 2022, com duração de duas
horas cada. No primeiro encontro, foram apresentados o Coletivo, sua proposta de trabalho e seus
participantes. Além disso, houve o compartilhamento de expectativas, além do estabelecimento
de um contrato verbal de como se dariam os encontros (MIRANDA; VASCONCELOS; SANTIAGO,
2006). Ainda no primeiro encontro, foi escolhido, conjuntamente, o capítulo “O mito negro”, do
livro “Tornar-se Negro”, de Neusa Santos Souza (2021). Esse capítulo abriu caminho para que os
participantes contassem, no segundo encontro, como foram atravessados pelo texto, e, então,
após breve explicação do conceito de escrevivência (EVARISTO, 2020), estabeleceu-se que para o
terceiro e último encontro cada um traria uma escrevivência (EVARISTO, 2020; COSTA et al., 2021;
GOMES-SANTOS et al., 2022) a partir da experiência das conversações. A partilha ou não partilha da
escrita com o grupo foi decidida por cada participante. Esse poder de escolha foi determinado por
entendermos que os temas poderiam ser muito sensíveis e que a própria experiência de escrever
já comportaria um exercício de elaboração. Mesmo assim, a maioria dos participantes decidiu
compartilhar.
6 Importante ressaltar que, a essa altura, os problemas de acesso à internet e outros dispositivos para o ensino
remoto já haviam sido mitigados através de auxílios e políticas universitárias, não sem muita luta dos estudantes
e da comunidade universitária.
364
64A
Desenvolvimento, resultados e discussão
Um estudante relata que, durante a escrita de sua pesquisa, se perguntava sobre em quais
autores ele se embasaria, quais palavras usaria e até onde poderia escrever. A analista, mediadora
da conversação, cede algumas palavras sobre a experiência do estudante, entre elas, a frase: “pode,
porém, depende”. Na experiência universitária, pode-se escrever até certo ponto, falar até certo
ponto, sendo que esse ponto é a brancura e a branquitude (COSTA et al., 2021; BENTO, 2022). A
branquitude é um lugar construído historicamente, conforme Bento (2022), de poder e privilégio.
“David Roediger e muitos outros estudiosos afirmam então, que a branquitude é sinônimo de
opressão e dominação e que não é identidade racial” (p. 59). A autora afirma que os estudos sobre
branquitude tem início com intelectuais negros, ao questionar as estruturas da supremacia branca,
destacando sua fundação nas obras de Du Bois.
Uma estudante negra também conta que, durante uma conversa sobre projetos de Iniciação
Científica, um estudante branco a olhou com surpresa e disse: “não sabia que você sabia discutir
sobre isso, achei que você não ia entender. Achei que você só estudava essas coisas de militância e
negro”. A palavra circula e outro participante indaga-se: “será que eu devo continuar aqui? Posso
me dar ao luxo de sonhar? Vale a pena?”. A fala dos estudantes apontam para a violência racial
e seus efeitos. Essa violência impõe-se de maneira dolorosa ao corpo negro, fazendo o indivíduo
refletir sobre a própria identidade e auto restringir-se no que se refere a todo o seu potencial
365
65A
(COSTA et al., 2021). Após a fala do estudante negro, os servidores da universidade buscaram
acolhê-lo e incentivá-lo, durante o encontro, a recordar-se de sua história familiar, de sua posição
e importância no espaço universitário – o encontro, nesse sentido, representou um espaço seguro
(COLLINS, 2019) e um espaço propício para aquilombar-se7 (SOUTO, 2020).
No quarto encontro, o qual foi discutido o capítulo “Performando a negritude” (KILOMBA,
2019), os participantes narraram sobre o peso de performar o corpo, raça e história de todo um
grupo. No dia a dia, com suas subjetividades sendo negadas e tendo de representar os que foram
impedidos de frequentar o espaço (KILOMBA, 2019), surge a fala de uma estudante angustiada
diante da decisão de trancar o curso ou não. A estudante negra diz ter pensado constantemente em
seus pais, sua família e como sua decisão poderia afetá-los, ainda que “essa decisão só implicava a
mim”. Essa fala ressalta bem a dialética entre a decisão singular e uma experiência coletiva que, em
alguns momentos, pode apresentar-se como um peso, mas, em outros, serve de contrapeso para
alavancar um percurso.
No quinto e último encontro, foi proposto que os participantes pudessem elaborar
alguma escrevivência sobre o que foi sentido, escutado, falado ou aquilo que não pôde ser dito
anteriormente durante os encontros. Num movimento de ler o próprio texto, comentar sobre ele e
até falar da dificuldade de escrever sobre si, ou mesmo escrever para além da estrutura acadêmica
ensinada, os participantes enfatizaram sua relação com a universidade e a experiência singular de
ser negro nesse espaço. Um estudante, em específico, começa dizendo que vivencia a relação com
a universidade como um “morde e assopra”, e esclarece: “num dia, há uma política, e no outro,
silenciamento”. O estudante desabafa e critica a forma com que a política se dá diariamente, pois,
se num primeiro momento as políticas de ações afirmativas possibilitaram a entrada do estudante
negro na universidade, no segundo momento, no que se refere à permanência nesse espaço,
ela é ainda permeada de muitas violências. Em seguida, esse mesmo estudante, apresenta sua
escrevivência. Compartilhamos um pequeno trecho de sua escrita.
Quem definiu a minha personalidade, o meu comportamento,
a minha forma de olhar o mundo e me olhar? Não digo ou
questiono isso para dizer que sou subalterno, afinal foi algo
que me adestraram a acreditar, mas digo e questiono isso num
exercício de pegar minha voz de volta. De dar voz a minha voz,
de mostrar que ela está aqui, e que ela merece ser ouvida.
Uma servidora, após a fala e leitura da escrevivência desse estudante, diz ficar pensando:
“até que ponto você tem de se desconfigurar para acessar esses lugares?”. Ela indaga sobre as
7 Souto (2020) fala do quilombo enquanto uma tecnologia afrodiaspórica e o aquilombamento enquanto o
dispositivo - derivado do quilombo - de resistência. “[...] aquilombar-se é o ato de assumir uma posição
de resistência contra-hegemônica a partir de um corpo político” (SOUTO, 2020, p. 144). Assim, se a fala de
um estudante expressa a opressão que o ideal de Ego branco institui na vivência negra (Souza, 2021), as outras
falas permitem abalar essa configuração, instituindo um espaço de separação a partir do qual se pode respirar e
retomar outras linhas desejantes.
366
66A
outros ciclos de conversações8, nos colocou em contato com o projeto de acolhimento Escuta
Preta9 da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o qual realizamos trocas, e passamos
a integrar uma pesquisa multicêntrica10 que tem nos permitido aprofundar os estudos acerca da
metodologia aqui delineada.
Quando pensamos em desafios, percebemos que, ao abrir um espaço de escuta para
estudantes e servidores negros, abrimos também um espaço de imersão em nossas próprias feridas
e cicatrizes, no tocante às vivencias do contexto universitário. Nesse sentido, percebemos com
frequência quase que rotineira a similaridade dos relatos de racismo, de silenciamento, de repetidos
episódios de dor e sofrimento em um espaço que deveria ser de construção de conhecimento.
Como falar e o que se falar diante de acontecimentos tão marcantes na vida das pessoas que, ao
mesmo tempo, pareciam falar também de nossas vidas? Nosso maior desafio foi acolher essas
falas sem perder de vista que era preciso conferir um sentido mais amplo às experiências vividas,
coletivizando-as.
Assim sendo, ouvir as histórias relatadas tornou-se não só um desafio, mas uma tarefa
delicada e decisiva na afirmação dessas narrativas. Esses discursos se dão “em movimento”, são
como ondas gigantes e avassaladoras em um mar antes calmo, “tsunamis” de palavras que invadem
não só a nós, mas a escrita – nosso fazer enquanto corpo e psicologia invadem a academia. Trazer
essas palavras e discursos a estas páginas foi como reviver o fluxo intenso delineados por essas
mesmas palavras e discursos.
Conclusão
Referências
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? São Paulo, Jandaíra, 2021.
BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
8 Iniciamos no semestre 2022/2 um novo ciclo chamado “Conversações: Escrevivências múltiplas e a arte de
narrar a si” e estamos planejando mais dois ciclos para o semestre de 2023/1.
9 O grupo de acolhimento é organizado pela profª Dra. Lia Vainer Schucman junto de duas estagiárias de psicologia.
Ver em: https://noticias.ufsc.br/tags/escuta-preta-grupo-de-acolhimento/.
10 Trata-se da pesquisa “Leitura e intervenções psicanalíticas sobre o mal-estar colonial”, coordenada pela Profa.
Andréa Guerra (2021) e financiada pelo Edital CNPq Chamada Universal 2021, com a participação de universidades
de Minas Gerais, do Espírito Santo, da Bahia, de Alagoas e do Pará.
367
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369
69A
“SE O QUE NOS CONSOME FOSSE APENAS FOME”:
O PLANTÃO PSICOLÓGICO NA ESCOLA COMO UMA VIA
POSSÍVEL PARA JOVENS E TRABALHADORES DA EDUCAÇÃO
COM OU SEM EXPERIÊNCIA DE AUTOLESÃO
“IF WHAT CONSUMES US WERE ONLY HUNGER”:
THE PSYCHOLOGICAL DUTY ON SCHOOL AS A POSSIBLE WAY
FORWARD FOR YOUNG PEOPLE AND EDUCATION WORKERS WITH OR
WITHOUT EXPERIENCE OF SELF-INJURY
Resumo: O Plantão Psicológico na escola foi realizado no mês de setembro de 2018 com o objetivo de acolher a demanda
espontânea de jovens com experiência de autolesão em um colégio público, porém, durante a ação, ampliou-se para a
comunidade escolar. Realizado por um serviço CAPS e graduandos voluntários de Psicologia, o Plantão foi desenvolvido em
algumas etapas: divulgação da ação na escola, inscrição durante o plantão, atendimento, avaliação da ação, devolutiva
a gestão escolar e desdobramentos. Foi observado que as vulnerabilidades sociais, econômicas, trabalhistas e afetivas
influenciam nas vivências escolares e a autolesão manifesta-se como “alívio” no corpo. Concluímos que a via da linguagem
pela associação livre, atenção flutuante e retificação subjetiva solicita àquele que sofre uma outra saída ao mal-estar,
além de colocar o plantonista em posição de disponibilidade, contribuindo para que a escola seja espaço potente. Equipes
multiprofissionais da Educação poderiam fazer diferença como suporte à comunidade escolar.
Abstract: The Psychological Duty at School was held in the month of September 2018 with the objective of receiving the
spontaneous demand of young people with experience of self-injury at a public high school, but, during the action, was
extended to the school community. Performed by a service CAPS and volunteer Psychology graduating students, the On
Duty was developed in a few steps: publicizing the action at school, enrollment during the on duty, attendance, evaluation
of the action, feedback to school management, and developments. It was observed that social, economic, labor, and
affective vulnerabilities influence school life and the self-injury manifests as “relief” in the body. We conclude that the
language path through free association, floating attentions and subjective rectification asks the sufferer another way out
of his or her discomfort, besides placing the on duty worker in a position of availability, contributing for the school to be
potente space. Multi-professional education teams could make a difference in supporting the school community.
1 Mestra em Psicologia com ênfase em Saúde Mental (pela PRISMAL - UPE), Especialista em Abordagem Psicanalítica (pela FAFIRE), Graduada em
Psicologia (pela UFPE). Atualmente, psicóloga efetiva/trabalhadora SUS nas Secretarias Municipais de Saúde em Paranatama (PE) e São João (PE),
Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0237886746698143. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6672-8243.
E-mail: wanessa.alessandra@yahoo.com.br
2 Pós-graduanda em Saúde Mental (pela Instituição Facuminas de Montes Claros). Graduada em Psicologia (pela CESMAC). Trabalhadora SUAS no
município de Paranatama, Pernambuco, Brasil. Lattes: https://lattes.cnpq.br/4953308309519584. ORCID: https://orcid.org/0009-0000-1129-
6183. E-mail: debora.marques7@hotmail.com
Introdução
Desde 2016, o Ministério da Saúde (MS) solicita aos serviços estratégicos em Saúde Mental –
os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – atuação em formato de campanha referente a temática
do suicídio. Conforme dados epidemiológicos dos últimos 10 anos, os números nesta temática
tornaram-se expressivos nos serviços de emergência, justificando a mobilização da rede de saúde no
Brasil. Entre 2010 e 2016, mensurou-se pelas notificações de violência interpessoal e autoprovocada
um aumento de 9,36% de casos (OMS, 2022). Estima-se que no mundo 800 mil pessoas tentam se
matar diariamente (OPAS, 2021). Frente a esta realidade (BRASIL, 2016; OMS, 2022), o Setembro
Amarelo – Campanha de Prevenção ao Suicídio tem como objetivo esclarecer à sociedade sobre
o assunto, qualificar os trabalhadores de saúde a identificar e acolher estes sofrimentos e ofertar
atendimento àqueles que pensam na morte como alternativa. Nas qualificações ofertadas fica claro
que, quando a pessoa em sofrimento manifesta comportamentos de autolesão e permanece sem
assistência, aumenta em 50% as chances dessa pessoa tentar suicídio (BRASIL, 2016; OPAS, 2021).
Em um contexto micropolítico – um município do interior pernambucano – o serviço CAPS
Entre Rios foi acionado pela gestão de uma escola no ano de 2018: de forma expressiva, crescia a
demanda de adolescentes que recorriam a práticas de autolesão (“se cortavam”). Frente a angústia
dos professores em acolher e compreender essa circunstância, como poderíamos nos aproximar
dessa realidade? Dessa forma, com a chegada do mês de setembro, foi proposto o Plantão
Psicológico na Escola como intervenção territorial organizado pelo serviço CAPS e parceiros.
Metodologia
Discussão
Considerações Finais
Referências
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376
76A
A TRANSFERÊNCIA E O SUJEITO SUPOSTO SUSPEITO
Resumo: Este trabalho busca apresentar aos leitores a pesquisa teórica realizada pela autora sobre o conceito psicanalítico
de transferência. No livro, a autora retoma esse princípio conceitual na teoria de Freud e Lacan e o atualiza a partir dos
efeitos recolhidos na clínica e nas políticas públicas, oferecendo importantes coordenadas para a respectiva aplicação na
clínica contemporânea.
Abstract: This review seeks to present to readers the theoretical research carried out by the author on the psychoanalytic
concept of transference. In the book, the author takes up this conceptual principle in the theory of Freud and Lacan and
updates it from the effects collected in the clinic and in public policies, offering important coordinates for its application in
contemporary practice.
1 Pós-doutor pela PUC Minas (2021). Doutor e Mestre em Psicologia (Estudos Psicanalíticos) pela UFMG, Especialista pela Fundação João Pinheiro e
Graduação pela PUC Minas. Coordenador do Programa de Extensão Já É do Núcleo PSILACS/UFMG. Professor Adjunto I do Curso de Especialização
Lato Sensu em Psicologia Jurídica da PUC Minas. Psicanalista. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6593784384852680 ORCID: http://orcid.org/0000-
0003-3669-9282 E-mail: fidias.siqueira@gmail.com
Em sua obra “Da interpretação: ensaio sobre Freud”, Paul Ricoeur1 (1977) se interessa por
uma reflexão em relação ao pensador Freud, mais do que por uma discussão ou crítica à psicanálise.
Mesmo destacando o lugar da teoria psicanalítica e a reflexão que esta exerce sobre a cultura, o
interesse dele é o de situar Freud entre aqueles pensadores que questionaram a razão ocidental.
Por esse motivo, o definiu como o “mestre das suspeitas”.
Pode-se dizer, então, que a suspeita encontra lugar no cerne do pensamento psicanalítico
desde os seus primórdios. Mas, na atualidade, o que a diferencia no interior dessa teoria é o lugar
que passa a ocupar. E é em torno disso que o livro de Andréa Guerra se desenvolve, tendo em
um dos conceitos fundamentais – a transferência – o ponto de partida para uma investigação que
oferecerá novas coordenadas para operar no campo clínico-político.
A autora encontra uma possibilidade de indagação e atualização do conceito de transferência
na psicanálise, uma vez que, como analista, se faz também presente nos diversos espaços da cidade,
atenta aos deslocamentos necessários à aplicabilidade da psicanálise em um mundo revirado pelos
movimentos que resistem à herança hegemônica deixada pelo mundo colonial.
Se o livro dela integra uma coleção sobre psicanálise e decolonização, é porque a autora
toma esse conceito fundamental e o articula ao aspecto geopolítico atual que interroga sobre os
efeitos da colonização e sobre as possibilidades em torno da decolonização. Encontrando o ponto
de partida na suspeição, a autora propõe uma investigação e atualização acerca da transferência,
articulando-o à lógica da suspeita que, nos tempos atuais, orienta o laço social e nossas vidas. Como
chave de leitura de sua atualização teórica, também remete e articula as consequências e resquícios
da colonização, da escravização, do patriarcado, das relações opressivas de gênero, raça e sexo.
Situando a suspeita em relação à subjetividade contemporânea e ao que se colhe das lógicas
societárias neoliberais, identifica-se a contribuição da autora para ampliar o debate no interior da
psicanálise. As indagações e questões levantadas, e endereçadas ao leitor, tornam o livro provocativo
e inquietante. E não seria diferente vindo de uma autora que se dispôs a correr riscos e produzir
deslocamentos com a teoria psicanalítica. Pode-se dizer que acertou na estruturação e articulação
lógica do livro, realizando um trabalho que não poderia mais ser adiado no interior da psicanálise.
O texto é denso, complexo e coloca o leitor a trabalho. A perspectiva de atualização conceitual
causa uma expectativa no leitor afeito às questões com as quais nos deparamos na clínica, nas
instituições e na política, a saber: racismo, machismo, misoginia, sexismo, transfobia, homofobia,
segregação, branquitude e tantos outros.
Trata-se de um texto que descortina as condições geopolíticas do mundo e apresenta o
380
80A
Referência
GUERRA, Andréa Máris Campos. Sujeito Suposto Suspeito: a transferência psicanalítica no Sul
Global. – São Paulo: N-1 edições, 2022.
381
81A
ENTREVISTA – DR.* THAMY AYOUCH PSICANALISTA NA
FRANÇA*
* Psicanalista, Professeur des Universités (Professor titular) na Université Paris-Cité. Foi Professor Visitante no Instituto de Psicologia da USP.
É Doutor (Université Paris VII), Mestre em Filosofia (Université Paris XII) e em Psicopatologia (Université Paris VII), e Graduado em Filosofia
(Université Paris XII), Psicologia Clínica (Université Paris VII e Literatura Inglesa (Université Paris IV). É também aluno antigo da École Normale
Supérieure de Fontenay/Saint-Cloud. Trabalha atualmente sobre as hibridações da psicanálise e as suas interações com a filosofia, os estudos
políticos, os Feminist, Genderand Queer Studies, e os estudos pós-coloniais. A sua prática clínica e a sua pesquisa abordam os efeitos psíquicos
das discriminações de raça, gênero, sexualidade e classe. É autor de numerosos artigos e dos livros “Folies contemporaines” (L’Harmattan,
Paris, 2009), “Merleau-Ponty et la psychanalyse. La consonance imparfaite” (Le Bord de l’Eau, Paris, 2012), “Generos, cuerpos y placeres. El
psicoanálisis más allá de la diferencia sexual” (Letra Viva, Buenos Aires, 2015), “Psicanálise e homossexualidades: teoria, clínica, biopolítica” (CRV,
Curitiba, 2015), “Psychanalyse et hybridité, hybridations. Genre, colonialité, subjectivations”, (Louvain, Leuven University Press, 2018). É o autor
da tradução desse último livro em português (Psicanálise e hibridez. Gênero, colonialidade, subjetivações. São Paulo : Calligraphies, 2019) e em
espanhol (Psicoanálisis e hibridez. Género, colonialidad, subjectivaciones. México : Ediciones Navarra, 2020).
* Entrevista gravada em 20 de fevereiro de 2023 por Andrea Guerra e Janilton Gabriel de Souza. A transcrição foi feita por Dúnia Ferreira Maia
(Integrante do Interfaces em Psicanálise – Núcleo de Pesquisas e Estudos e aluna da Psicologia Unis-MG) e a edição final de Janilton Gabriel de
Souza com revisão técnica de Andrea Guerra.
1 Psicanalista e Psicóloga. Doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora adjunta do Departamento
e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5327-0694. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/2401031591125949. E-mail: andreamcguerra@gmail.com
2 Psicanalista e Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São João Del-Rey/MG (UFSJ), Coordenador do Interfaces - Núcleo de
Pesquisas e Estudos em Psicanálise. Colaborador do Instituto Internacional de Psicanálise – IIP. Professor do Centro Universitário do Sul de Minas
(UNIS MG). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3965-0564. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1126366899756942. E-mail: janilton.gabriel@unis.edu.
br.
Andrea Guerra: Thamy Ayouch, agradecemos sua generosa participação nesta entrevista.
Como questão inicial, queremos ouvi-lo a respeito de sua percepção sobre a presença da
psicanálise em países europeus e latino-americanos. Ou seja, resgatamos a ideia de Derrida
da Geopsychoanalysis: “...and the rest of the world”, da psicanálise e o resto do mundo, a
geopsicanálise e o resto do mundo. Na sua visão, a psicanálise possui algum impacto na teoria
e na prática, ao redor do mundo? Como você experimenta, testemunha e percebe as diferenças
globais frente a este saber?
Thamy Ayouch: Agradeço esse encontro com vocês e fico lisonjeado pelo convite. A primeira
pergunta é excelente e muito ampla, pois trata da interface da psicanálise com o mundo. Sendo
sincero, não havia pensado nesta questão, contudo, embora a Europa/Viena, de forma específica,
seja o berço dessa teoria, não podemos deixar de pensar na psicanálise em sua amplitude, que
engloba o mundo e, obviamente a América Latina.
Passa-me a ideia de um movimento dialético. Digamos de uma dialética entre o fato de que a
psicanálise foi uma invenção europeia, que obviamente se inscreveu dentro de coordenadas sociais
políticas europeias no final do século XIX. Uma invenção que é masculina, ou seja, androcêntrica,
além de burguesa e branca. A difusão da psicanálise no mundo acarretou, também, aspectos
mais conservadores, mesmo tendo ela uma perspectiva revolucionária, ou seja, sua questão de
subversão, do inconsciente totalmente subversivo.
A proposta de Freud foi subversiva e revolucionária. Quando ele viajou para os Estados
Unidos com Jung, com Abraham e Jones, falou que ia levar a peste para a América, porém quando
digo América, obviamente, refiro-me a toda ela, não só aos Estados Unidos. De igual forma pode-se
dizer que essa é a dialética, que hoje está funcionando na difusão da psicanálise de forma mundial,
na Europa e no resto do mundo. Essa dialética entre um aspecto mais conservador e outro mais
subversivo. A vitalidade da psicanálise fica relacionada a essa dimensão subversiva, que toda vez
tem que ser definida em função de coordenadas locais, especialmente, para aqueles(as) que não
estão na Europa.
Vou citar três países para pensar a difusão da psicanálise, ainda que não tenha muita formação
em história da psicanálise: a Argentina, o Brasil e o Marrocos. Este último é o país do qual venho. A
Argentina, porque na difusão da psicanálise, na América Latina, ela foi central. É interessante essa
história, pois parece-me que os primeiros divulgadores da psicanálise na Argentina foram imigrantes
europeus e europeias, que pretendiam afastar-se da prática psiquiátrica europeia e refugiaram-se
na Argentina por razões sociais de raça, em função da perseguição dos judeus durante o Terceiro
Thamy Ayouch: É! Tem essa especificidade e ela se refletiu na relação da Psicanálise com o
Marxismo, como, por exemplo, com Bleger e Marie Langer, que refletiu na discussão da Psicanálise
com relações sociais de classe e discriminação de classe. E depois, nos anos 1970, aconteceu uma
coisa particular que foi, ao mesmo tempo, uma forma de independência da sede europeia da IPA
na Argentina, mas, também, uma pegada totalmente lacaniana que era um contramovimento. Em
outras palavras, separavam-se da IPA como associação internacional, basicamente articulada na
Europa e nos Estados Unidos. Nisso, entrou o “Cavalo de Tróia” Lacaniano e reforçou uma certa
forma de neocolonialidade, por mais que fosse totalmente emancipatória essa criação de uma
nova Psicanálise. A forma com que Jacques-Alain Miller considerava a Argentina como um anexo da
França para divulgar a sua Psicanálise é muito representativo dessa neocolonialidade. E, também,
todas essas lutas que existiram em vários países entre escolas, que parecem igrejas Lacanianas, cuja
finalidade era a de saber quem teria o(a) melhor exegese do pensamento Lacaniano.
Apesar desse tropismo mais europeu, também acho que na Argentina a Psicanálise, nas
últimas três ou quatro décadas, foi usada em contestações fundamentais, por exemplo, de gênero
e sexualidade. Há grandes psicanalistas argentinas, por exemplo, como Martha Rosenberg, uma das
primeiras feministas, que lutou para a libertação do aborto há 40 anos atrás e que trabalhou muito
com a questão do gênero e o feminismo.
Hoje, há toda uma vertente de psicanalistas LGBTQIA+ na Argentina, que desenvolvem uma
Psicanálise focada em questões de gênero e sexualidade. Uma Psicanálise emitida e teorizada por
aqueles monstros, como diria o Paul B. Preciado: monstros gays, lésbicas, trans, pessoas como Jorge
Reitter, como Deborah Tajer, que trabalhou muito com o feminismo, Facundo Blestcher, Marina
Calvo. Marina é maravilhosa e retoma também todo o pensamento da Silvia Bleichmar. Marina
Calvo é a filha da Silvia Bleichmar. E há outros e outras, como Verônica Cardoso, Jéssica Ramirez,
Narela Caten que é uma mulher Trans psicanalista, que vai ter um blog sobre os psicanalistas rancios
(rançosos), ou seja, psicanalistas muito conservadores, muito reacionários.
Então, existe a tônica sobre as questões sociais de poder, sobretudo de gênero e sexualidade
que se desenvolveu bem. No entanto, no que diz respeito à raça, isso foi menos trabalhado na
Psicanálise e pela História da Argentina que se “embranqueceu”. Mesmo porque a Argentina ainda
pretende ser o país mais europeu, como se isso fosse uma vantagem na América Latina. Houve
Andrea Guerra: Se posso interferir brevemente nessa sua colocação, a Lélia Gonzalez é
uma referência mesmo. O modo que o livro dela apresenta os sintagmas que colocam a gente a
trabalho, a própria ideia da amefricanidade e de como pensar essa especificidade brasileira - não
é apenas ela, mas ela é uma das grandes referências. Acho que há uma juventude nesse momento
no mundo inteiro, sendo que no Brasil temos essa marca antirracista, decolonial, feminista que
não aceita mais um modelo imposto. São jovens que buscam por onde caminhar, no sentido do
que afirmar e do que abrir mão e que já querem repensar a formação em Psicanálise, questionam
conceitos fundamentais, fazem uma prática nas ruas, quilombos, nas praças, nos hotéis de
prostituição. Isso está muito vigoroso e evidentemente indica um movimento de quebra de
paradigma! Mas continuo a escutá-lo, estamos adorando!
Thamy Ayouch: Então, com o risco de romantizar um pouco, eu acho que a Psicanálise nessa
dialética entre conservadorismo, renovação, emancipação e subversão, eu diria que o Sul Global
é muito mais bem posicionado para repensar uma Psicanálise arejada, uma Psicanálise aberta a
questões sociais de poder, uma Psicanálise mais política. Acho que no Sul Global essas questões
surgem com muito mais intensidade e autenticidade. Isto é fundamental em realidades locais, ou
seja, no Sul Global e no seu relacionamento com o Norte Global, essa emancipação decolonial do
Sul Global que separa do Norte Global. Eu acho isso importante. No que eu saiba, na França, por
exemplo, o tema da Psicanálise e gênero começou a ter um pouco de impacto recentemente. Nas
duas últimas décadas que psicanalistas começaram a falar de gênero e há vários psicanalistas hoje
em dia, não muito numerosos e numerosas, que falam dessas questões. Agora, Psicanálise e raça,
minoritariamente, ou seja, existe a Sophie Mendelsohn, que você conhece. Porém, que eu saiba na
França são muito poucos e poucas, muito poucos e poucas.
[Andrea Guerra mostrou o livro “Mais qu’est-ce que e’est done un Noir?”, Jeanne Wiltord]
Andrea Guerra: E Livio Boni com Sophie e o Colectif de Pantin (Andréa mostrou o livro “La
vie psychique du racisme”, de Livio Boni e Sophie Mendelsohn).
Thamy Ayouch: Lívio e Sophie, claro! A Jeanne é interessante, mas a Jeanne traz certa
Andrea Guerra: Sim. Está passando uma temporada aí. Morando aí.
Thamy Ayouch: Chegou à França há uma semana. Bom, também, em toda essa tradição,
falamos de Lélia Gonzalez, Neusa Santos Souza, que está sendo relida, e da Isildinha Batista, que foi,
me parece, uma das primeiras a trabalhar sobre o corpo negro na Psicanálise.
Thamy Ayouch: E, também, da Cida Bento, coisas mais politicamente engajadas, me parece,
coisas menos desejosas de ficar cuidando de uma certa sacralidade da Psicanálise.
Andrea Guerra: Acho que isso faz do Brasil quase que um projeto em curso, um programa
de trabalho com muitas linhas, porque você tem as clínicas públicas ou as clínicas de borda,
que estamos discutindo, escrevendo e mostrando como elas acontecem. Há clínicas públicas
ou clínicas psicanalíticas de borda, que questionam a própria formação em Psicanálise, o que é
muito denso e muito tenso. Há programas de pesquisa conceituais, que se perguntam pelo Édipo
e pelo falo: Por que o Édipo, por que o falo? Existem linhas de investigação e experimentação
acerca da prática e da teoria, que se deixam afetar por questões de raça, classe, gênero, pelo
pensamento feminista, pelo pensamento antirracista, ou pelas teorias pós, contra e decolonial.
Tudo isso começa a interferir no próprio programa clássico da Psicanálise.
Então, isso que você traz é muito forte. Vejo que, na França, existem essas aberturas,
mas acho que há uma aura de guardiões do espaço e até dos fundamentos psicanalíticos. O que
você abriu a entrevista falando em termos de dialética me pareceu muito rico, porque acho que
existe um temor e quase um imaginário de que se você desmontar alguns grandes elementos
estruturais da Psicanálise, ela vai desmontar toda junto. Ela não vai desmontar, ela não vai
morrer, ao contrário se você se aferrar a eles, talvez aí sim, ela não sobreviverá.
Então, escutar o que vem do sofrimento colonial, isso que queria te perguntar na
sequência. Da sua escuta, do seu trabalho, o que você extrai? Pois você roda o mundo e para nós
é uma referência, assim como também o são seus livros já traduzidos sobre a homossexualidade
(Psicanálise e Homossexualidade: teoria, clínica e política), sobre a hibridez (Psicanálise e
hibridez), e mesmo o material que está em francês - como o belo artigo sobre a clínica menor
- que conseguimos acessar, eles nos orientam. Especialmente, estou me lembrando de quando
você retoma uma leitura do Freud para mostrar como existe algo do hibridismo na própria teoria,
ainda que marcada por um olhar e uma época, não tem como não se estar sempre atravessado,
não é? Ser contemporâneo e estar ao mesmo tempo dentro e fora disso que nos marca, não é
fácil, mas acho que você consegue fazer isto. Em termos do que vem de fora da Psicanálise: os
movimentos feministas, os movimentos antirracistas, os movimentos contra ou pós-coloniais,
como você acha que eles afetam o corpo psicanalítico?
Thamy Ayouch: É muito importante essa questão, porque o que é o fora e o dentro e como
a Psicanálise define a relação com as suas supostas exterioridades, no livro sobre hibridez propus
Janilton Gabriel de Souza: Aproveitar o que você disse no começo sobre a questão de ter
a Psicanálise nessa interdisciplinaridade. Você coloca uma questão da escuta: se não levamos
em conta essa pluridisciplinaridade que a psicanálise deve dialogar deixamos de escutar,
principalmente ao se aferrar a um conceito sob o argumento de ser um fundamento, o qual não
pode ou precisa ser questionado, ao fazer assim transformamos a teoria e, consequentemente,
a prática em um dogma. Acho que esse é o risco, que se corre. A Psicanálise se alimenta dessa
conversa.
Thamy Ayouch: Exatamente! É próprio à relação da Psicanálise com sua teorização, como
dizia Freud: a teoria é um andaime, não um prédio; é uma construção e uma aproximação. Nessa
dialética entre conservadorismo e subversão, o lado conservador é aferrado a uma fetichização da
teoria, que ignora ela ser uma aproximação temporal, provisória e a toma como se fosse a palavra
de Deus. Ou seja, tem que ficar lá, precisando repetir fórmulas formais, que necessitam submeter
a clínica ao mesmo. Isso parece absolutamente anti-psicanalítico. A Psicanálise na forma em que
Freud imaginou, inventou e delirou estava vinculada a essa dialética de ser científica e legitimada
como produção científica, como uma seriedade e rigor teórico. Ao mesmo tempo, não acreditemos
tanto nessas construções teóricas. É preciso essa relativização da teorização da metapsicologia, da
teorização, pois são modelos e aproximações.
Andrea Guerra: Não à toa a Psicanálise não coube dentro da universidade na época do
Freud.
Andrea Guerra: Pois é, mesmo que o psicanalista opere como objeto causa de desejo,
ele vai com seu corpo masculino, branco, cis, o que for, para a cena clínica. E essa dimensão
não é apenas imaginária, já que ela estrutura um discurso. Não dá para reduzir uma discussão
do identitarismo, das identificações e do lugar do analista e da autorização que se constitui no
campo clínico e teórico, sem considerar essas transversalidades.
Thamy Ayouch: Absolutamente! Isso que você está apontando é uma questão absolutamente
essencial nesses movimentos. Trata-se da subalternidade de quem pode falar no divã e em que
termos. Entretanto, no divã, deveria poder-se dizer o que quiser. Mas, em termos que não sejam
hegemônicos, ou seja, uma não gramática hegemônica, que acaba traindo a singularidade que
insiste em ser falada, que precisa ser dita. Obviamente quem fala e quem escuta, como se faz isso, é
fundamental. Venho trabalhando essas questões da raça, pensava em falar disso mais à frente, como
se escutam as questões de como você acabou de falar do racismo, do psicólogo branco dizer não
escutar nada de racismo. Exatamente é esta a questão: quem e como um analisando ou analisanda
se autoriza a abordar essas questões e para quem estão endereçadas, como são consideradas as
questões psicanalíticas, da realidade psíquica e não só como a maioria dos psicanalistas dizem,
questões da realidade exterior, que não tem nada a ver no consultório.
Você sabe, tem uma passagem muito interessante que comentei no livro sobre a hibridez,
que estou retomando nesse livro que estou escrevendo sobre a raça, uma passagem do Lacan que
nos anos 1960 escreve, que recebeu nos anos 1940, uns analisandos médicos do Togo. Ele fala esses
“mediquinhos”, que vem falar no meu divã e paradoxalmente não falam de realidades tribais deles,
eles vão falando do Édipo, tal qual conhecemos o Édipo. Ele vai apontando uma coisa importante,
que o efeito psíquico da colonização obviamente é esse embranquecimento desses analisandos,
inclusive nos seus próprios inconscientes, ou seja, o que deixam de lado e para quem se dirigem.
Esses analisandos, que são médicos do Togo nos anos 1940, vêm para a metrópole francesa. O
Togo era uma colônia nessa época em que eles vêm para a metrópole. Eles, que são negros, vão se
dirigindo ao “bam-bam-bam” da Psicanálise para falar no divã dele. O que é que eles se autorizam
a falar dentro dessa relação social de poder de raça e colonialidade? Não lhes resta mais opção
Andrea Guerra: E Lacan, nessa passagem, tem uma afirmação contundente. Ele fala assim:
“O inconsciente que tinham vendido a eles, junto com as leis da colonização”, ou seja, como
você disse, há uma matriz inconsciente que reage ao modo discursivo. Lacan está falando disso
em referência à teoria dos discursos. Mas acho que você ainda abre um ponto que é novo, acho
que é importante essa entrevista, que é muito rica, Thamy! Muito obrigada! Porque você está
dizendo algo que não está dito ali! Você interpreta a passagem que é a quem se dirige, quem
pode falar. E isso não é foucaultiano, isso é psicanalítico, não é? Eles precisaram fabricar algo para
ser escutado, para caber na norma imperial, para caber em um texto colonizador.
Thamy Ayouch: Exatamente! Por mais que Lacan tenha apontado a dimensão da colonização
do inconsciente, ele ficou cego quanto ao seu posicionamento na transferência simbólica. Teve uma
transferência simbólica, que é isso que me interessa, o que acontece na transferência simbólica em
termos de raça e que continua acontecendo hoje, que não são só questões imaginárias, não se trata
da coitada culpa branca, de ter privilégio branco etc. Não é uma questão de culpa, é uma questão
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de responsabilidade. É dizer de onde eu escuto, de onde respondo ao discurso do analisando ou da
analisanda. No livro que estou escrevendo, a minha hipótese é que a transferência simbólica não
retoma as familiaridades afetivas, ou seja, uma repetição da família, ela repete as relações sociais
de poder.
Thamy Ayouch: Isso tem que se analisar na transferência simbólica, não só imaginária,
mas simbólica. Tentar escutar o que se repete nas relações sociais de poder de forma totalmente
interseccionalizada. Nesse dispositivo, onde essa analisanda está se endereçando a essa psicanalista,
localizando cada uma na realidade de relações sociais de poder e na fantasia que cada qual tem e
como se posiciona à outra. Isso, que são captações imaginárias, são regidas por uma transferência
simbólica e por um dizer e uma forma de intercâmbio de troca que está definida. Essa é a minha
hipótese, precisamente pelas relações sociais de poder politicamente.
Andrea Guerra: Quando que esse livro sai? Nós o queremos em português!
Andrea Guerra: Thamy, você falou do Marrocos, para nós é muito interessante ter
conhecimento de algo que fica sempre secundarizado. Não sei se dá tempo, ainda, de avançar um
pouco mais. Você falou no início da história da Psicanálise no Marrocos, o que nos conta? Estou
recebendo, na UFMG, para um ano de estudos sabáticos um professor malasiano da Universidade
de Nottingham-Malaysia, Ahmad Fuad Rahmat, que está recuperando algumas psicanalistas que
não aparecem na história da Psicanálise, dado que a Psicanálise é muito contada pelos grandes
nomes e recontada na mesma linha depois. E o Marrocos? Seria interessante saber um pouco
dessa história, porque, também, é um país que diretamente sofreu um modo de integração
colonial peculiar e isso tem incidências e consequências. Fico curiosa, o que você nos conta dessa
experiência da Psicanálise no Marrocos, que você tinha dito no início da entrevista?
Thamy Ayouch: Não que saiba muita coisa da história da Psicanálise no Marrocos, mas o
pouco que sei é que primeiro a Psicanálise foi introduzida de forma obviamente colonial, durante a
colonização francesa no Marrocos entre 1912 e 1956. A Psicanálise foi introduzida na prática de um
Thamy Ayouch: A literatura teve muito a ver com Psicanálise. A literatura dos anos 1960,
inclusive antes dos anos 1950 e 1960, era nesse bilinguismo francês-árabe, que um escritor
marroquino como Driss Chraïbi, um escritor que escreveu em francês e associou a Psicanálise a
movimentos de emancipação decolonial, das mulheres, do patriarcado, sair do patriarcado. Ele tem
dois romances muito interessantes, um que se chama “Le passé simple”?, que seria literalmente
“O préterito”. Ele fala sobre a figura tutelar do pai, totalmente patriarcal e como se emancipa
disso a partir de um pensamento bastante psicanalítico. E possui outro livro que se chama “La
civilisation, ma mère”, a civilização mãe, no qual ele imagina a emancipação da mãe dele, que
entra nos movimentos feministas dos anos 1960 no Marrocos. E é também a partir de uma pegada
psicanalítica. A Psicanálise foi presente nesse sentido.
Andrea Guerra: Mas, já é uma grande história, porque essas histórias apagadas, ou não
diria apagadas, porque elas estão lá, mas que não são publicizadas, hoje queremos saber delas,
pois são elas que estão nos formando. Conhecer esses movimentos nos informa e nos forma.
Compartilhar essas historicidades, mesmo que parciais, pois sempre serão parciais, é de uma
riqueza ímpar. Eu não sei se Janilton quer colocar uma nova questão ou se Thamy gostaria de
acrescentar algo. Eu penso que atravessamos as questões que tínhamos planejado e fomos muito
além com a transmissão de Thamy! Mas é tão rico que dá vontade de não parar, não é? Não sei o
que você pensa, Janilton , se quer colocar um ponto.
Janilton Gabriel de Souza: Na verdade, é agradecer, estou aqui, assim, em êxtase, porque
é muito bom ouvi-lo.
Andrea Guerra: Acho que é uma formação, Thamy, o que você nos oferece! Tudo que
temos acompanhado de sua produção, o que você vem produzindo, tem uma dose de rigor com
ousadia, que é uma combinação muito criativa. Porque você não deixa o que escuta ficar de
Thamy Ayouch: Andrea, eu fico muito lisonjeado pelo que você disse. Tenho que te dizer,
vocês me ensinaram muito. Tive grande sorte de viver, de morar no Brasil, aprendi muito no Brasil
e eu acho que o país está na vanguarda. Hoje em dia, nessas questões tanto no que diz respeito
ao gênero, sexualidade, quanto e, sobretudo, no que diz respeito à raça. Eu fui lendo produções
brasileiras, que me permitiram me descentrar. Foi essencial! Foi conversando e trocando dentro
da dinâmica de intercâmbio com brasileiros e brasileiras, que de repente a Europa me pareceu tão
provinciana, tão provinciana! Obrigado!
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93A Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04