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Fev.

2023
ISSN 2358-8322
Palmas, v.10,n.04

1
1A Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04
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2A Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO TOCANTINS
Reitor
Augusto de Rezende Campos
Vice-Reitora
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Pró-Reitor de Graduação
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Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação
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Pró-Reitora de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários
Kyldes Batista Vicente
Pró-Reitor de Administração e Finanças
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Editora - chefe
Dr.ª Kyldes Batista Vicente
Editora - assistente
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LEITURA DE PROVA COMISSÃO EDITORIAL
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Darlene Teixeira Castro Dr. Caio Monteiro Melo
Kyldes Batista Vicente Dr.ª Liliane Scarpin Storniolo
Julienne da Silva Silveira Dr.ª Mariany Almeida Montino
Liliane Scarpin Storniolo Dr. Rodrigo Barbosa Silva
Maria Socorro da Silva Dr. Tarsis Barreto Oliveira
Rodrigo Vieira do Nascimento Dr.ª Willany Palhares Palhares Leal

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DIAGRAMAÇÃO Janaína Senem, Unitins, Brasil
Joelma Feitosa Modesto Lígia Felix Parrião Matos, Unitins, Brasil
Leandro Dias de Oliveira Maria Tereza Ribas Sabará, Unitins, Brasil
APOIO TÉCNICO Vitor Hugo Abranche Oliveira, UFT - Câmpus de Porto Nacional, Brasil
Julienne da Silva Silveira
Leandro Dias de Oliveira
MÍDIAS SOCIAIS
Joelma Feitosa Modesto

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04


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Acesso em 08 Ago. 2023

INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES
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Revista Humanidades e Inovação
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
Kyldes Batista Vicente
108 Sul Alameda 11 Lote 03
CEP.: 77020-122 - Palmas-Tocantins
Tel.: (63) 3218-4911
E-mail: rev.humanidades@unitins.br
eISSN: 2358-8322
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CONSELHO EDITORIAL

Dr.ª Alana de Oliveira Freitas El Fahl, UEFS, Brasil


Dr. Carlos Reis, Universidade de Coimbra, Portugal
Dr. Carlos Henrique Lopes de Almeida, UNILA, Brasil
Dr.ª Clarice Zamonaro Cortez, UEM, Brasil
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Dr. Donizete Aparecido Rodrigues, Universidade Beira Interior - Covilhã, Portugal
Dr.ª Elina Maria Correia Batista, CLEPUL - Universidade da Madeira, Portugal
Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza, UFMS, Brasil
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Dr. Jorge Alves Santana, UFG, Brasil
Dr. José Carlos de Melo, UFMA, Brasil
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Dr.ª Karylleila dos Santos Andrade, UFT, Brasil
Dr.ª Maria Carmem Jacob de Souza, UFBA, Brasil
Dr.ª Maria Cecilia Minayo, Fiocruz, Brasil
Dr.ª Maria de Lurdes Carvalho, Universidade do Minho, Portugal
Dr.ª Nilda Jacks, UFRGS, Brasil
Dr. Pedro Francisco González, Universidade dos Açores, Portugal
Dr. Plábio Marcos Martins Desidério, UFT, Brasil
Dr.ª Regina Clare Monteiro, Must University, MUST, Estados Unidos
Dr.ª Tânia Sarmento-Pantoja, UFPA, Brasil
Dr.ª Teresa Sarmento, Universidade do Minho, Portugal

CONSELHO CIENTÍFICO
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Dr. Adriano Batista Castorino, UFT, Brasil
Dr. Altino José Martins Filho, UDESC, Brasil
Dr. Carlos Roberto Ludwig, UFT, Brasil
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Dr.ª Cristiane Maria Ribeiro, IFGOIANO/Câmpus de Urutaí, Brasil
Dr.ª Cynthia Mara Miranda, UFT, Brasil
Dr.ª Daniela Zanetti, UFES, Brasil
Dr. Dernival Venâncio Ramos, UFT, Brasil
Dr.ª Doriane Braga Nunes Bilac, UNITOP, UFT, Brasil
Dr.ª Dulceria Tartuci, UFG, Brasil
Dr.ª Elisa Maria dos Anjos, UFMA, Brasil
Dr. Elvio Quirino Pereira, UFT, Brasil
Dr. Fábio D´Abadia de Sousa, UFT, Brasil
Dr.ª Fernanda Matos Fernandes de Oliveira, TJ-TO, Brasil
Dr. Francisco Gilson Rebouças Porto Junior, UFT, Brasil
Dr. George França dos Santos, UFT, Brasil
Dr.ª Iara Sydenstricker, UFRB, Brasil
Dr.ª Irenides Teixeira, Ceulp/ULBRA, Brasil
Dr.ª Isabel Regina Augusto, UNIFAP, Brasil
Dr. João Nunes da Silva, UFT, Brasil

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Dr. José Manoel Miranda de Oliveira, UFT, Brasil
Dr.ª Laura de Oliveira, UFBA, Brasil
Dr.ª Leila Dias Pereira do Amaral, Unitins, Brasil
Dr. Marcos Aurelio Camara Zimmermann, UFT, IPHAN, Brasil
Dr.ª Maria de Fátima Rocha Medina, Unitins, Brasil
Dr.ª Maria Nazareth de Lima Arrais, UFCG, Brasil
Dr.ª Maria Severina Batista Guimarães, UEG, Brasil
Dr.ª Marilena Julimar Fernandes, UEG, Brasil
Dr.ª Marlene Hernandez Leites, FANESE, Brasil
Dr.ª Mirelle da Silva Freitas, IFTO - Câmpus de Palmas, Brasil
Dr. Niguelme Cardoso Arruda, IFSC/Câmpus Criciúma, Brasil
Dr.ª Olívia Aparecida Silva, UFT, Brasil
Dr.ª Paula Karini Dias Ferreira Amorim, IFTO, Brasil
Dr. Paulo Nin Ferreira, UFAL, Brasil
Dr.ª Raquel Bezerra Cavalcanti Leal de Melo, UEPB, Brasil
Dr.ª Renan Antônio da Silva, Unis, Unesco, Brasil
Dr. Roberto Antônio Pereira do Amaral, UFT, Brasil
Dr.ª Rosane Duarte Rosa Seluchinesk, Unemat, Brasil
Dr.ª Rúbia Lúcia Oliveira, UFVJM, Brasil
Dr.ª Sônia Regina dos Santos Teixeira, UFPA, Brasil
Dr.ª Tereza Ramos de Carvalho, UFMT, Brasil
Dr. Valdir Aquino Zitzke, UFT, Brasil
Dr.ª Valdirene Cássia Silva, Ceulp/Ulbra, FACTO, Brasil
Dr. Vitor Hugo Abranche Oliveira, UFT, Câmpus Porto Nacional, Brasil
Dr.ª Vivianne Fleury de Faria, UFG, Brasil
Dr. Walter Costa Mendes, IFGOIANO/Câmpus de Urutaí, Brasil
Dr. Walter Matias Lima, UFAL, Brasil
Dr. Weder Ferreira dos Santos, UFT, Brasil

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4A
Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04

Organização: Andréa Máris Campos Guerra (UFMG)


Alessandro Messias Moreira (UNIS - MG)
Carina Adriele Duarte de Melo Figueiredo (UNIS - MG)
Dunia Ferreira Maia (UNIS - MG e Interfaces em Psicanálise)
Janilton Gabriel de Souza (UNIS - MG e Interfaces em Psicanálise)

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5A
Foco e Escopo
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dor. tuguês e em inglês (ou espanhol ou francês ou italiano), devem
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glês e francês. Não há taxa para submissão e avaliação de arti- ve” deve estar em negrito, seguido de dois pontos. Extensão
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HUMANIDADES & INOVAÇÃO


Palmas, Fevereiro de 2023
Publicação da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação 6
6A
Sumário
GENESIS E O NOVO MUNDO: CORPO, PANDEMIA E VIRTUALIDADE..........................................................11
NAS TESSITURAS DO RESTO E DA SOLIDÃO:PENÉLOPE E O FEMININO......................................................23
O DELÍRIO E O POEMA NA PSICANÁLISE...................................................................................................... 39
OS EFEITOS DO NÃO-DITO SOBRE A MORTE PARA A CRIANÇA..................................................................55
RACISMO EPISTÊMICO E SECULARIZAÇÃO RELIGIOSA NA PSICANÁLISE – ENTRAVES ÉTICOS PARA A
FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS BRASILEIROS.............................................................................................66
A METAPSICOLOGIA DA PULSÃO DE APODERAMENTO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO
PSÍQUICA....................................................................................................................................................... 81
PSICANÁLISE NOS ESPAÇOS PÚBLICOS: ESCUTA E TRANSMISSÃO PSICANALÍTICA NA EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA.............................................................................................................................................. 93
O CASO JONATAN*A PRÁTICA DIAGNÓSTICA E O INVESTIMENTO PÚBLICO NO CAMPO DA SAÚDE
MENTAL....................................................................................................................................................... 106
O LUGAR DA MULHER NEGRA E O DA ANALISTA NO BRASIL: UM ENSAIO CLÍNICO-POLÍTICO DA FUNÇÃO
NEGRA DA ESCUTA......................................................................................................................................121
PERTO DO FOGO – O QUE SE ESCUTA DE UM TRAUMA?.........................................................................135
O DESAMPARO: DAS IMPOTÊNCIAS DO SUJEITO A UM LUGAR DE POSSIBILIDADES..............................144
A COMPOSIÇÃO DA ESCUTA PELOS PROFISSIONAIS DA REDE SOCIOASSISTENCIAL A CRIANÇAS EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA SEXUAL..............................................................................................................156
A CONVERSAÇÃO ATIVA COMO PROPOSTA DE ABORDAGEM METODOLÓGICA EM PSICANÁLISE: UMA
ESCRITA EM DOIS TÓPICOS.........................................................................................................................170
CARREIRA E PSICANÁLISE NA CONTEMPORANEIDADE.............................................................................183
CONTRIBUIÇÕES DA ÁREA PSI PARA O CONCEITO JURÍDICO DE CAPACIDADE........................................194
MÉTODO APAC DE RECUPERAÇÃO DE CRIMINOSOS E SUA FACE RELIGIOSA: O QUE FREUD TERIA A

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DIZER?.......................................................................................................................................................... 210
MO(VI)MENTOS DE (RE)SIGNIFICAÇÃO DA POSIÇÃO DE PROFESSOR......................................................223
“NÃO QUERO SAIR DA RUA”: PSICANÁLISE EM SERVIÇOS DE ATENDIMENTO A PESSOAS EM SITUAÇÃO DE
RUA.............................................................................................................................................................. 238
CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O RACISMO BRASILEIRO: UMA HISTÓRIA FEITA POR MULHERES
NEGRAS........................................................................................................................................................ 251
ADOLESCENTES CONECTADOS: EXTRAVIOS OU POSSÍVEIS CAMINHOS?.................................................264
DIAGNÓSTICAS SOCIAIS DA BRANQUITUDE..............................................................................................275
ESCUTA ÉTICO-POLÍTICA NA (TRANS)FORMAÇÃO DE ANALISTAS PERIFÉRICOS......................................291
O PACTO PERVERSO DA BRANQUITUDE: SOBRE O DIREITO SOBERANO DE MATAR NO AMAPÁ...........303
PSICANÁLISE, RACISMO E PENSAMENTO DECOLONIAL............................................................................316
PSICANÁLISE, RACISMO E PENSAMENTO DECOLONIAL............................................................................332
PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO ETHOS DIGITAL........................................................................348
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA PSICANÁLISE SOBRE A ANTROPOLOGIA CULTURAL E UMA ANÁLISE DE
CASO DO MOVIMENTO DAS QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU............................................................360
CONVERSAÇÕES E ESCREVIVÊNCIAS: A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS DE FALA DA NEGRITUDE NA
UNIVERSIDADE............................................................................................................................................370
7
7A
“SE O QUE NOS CONSOME FOSSE APENAS FOME”: O PLANTÃO PSICOLÓGICO NA ESCOLA COMO
UMA VIA POSSÍVEL PARA JOVENS E TRABALHADORES DA EDUCAÇÃO COM OU SEM EXPERIÊNCIA DE
AUTOLESÃO.................................................................................................................................................377
ENTREVISTA – DR.* THAMY AYOUCH PSICANALISTA NA FRANÇA*....................................................382

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8
8A
Editorial
Esta é a edição inaugural e especial da Revista Inovação & Humanidades, que tem como eixo
temático a Psicanálise. De igual forma, é a primeira vez que nos reunimos com colegas do Núcleo
Psilacs (Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo), do Departamento de Psicologia da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, coordenado pela inquietante psicanalista Dra. Andrea
Guerra, integrantes do Núcleo de Pesquisas e Estudos - Interfaces em Psicanálise (Dúnia Ferreira
Maia) e profissionais do Grupo Unis-MG (Alessandro Messias Moreira e Carina Adriele Duarte de
Melo Figueiredo) para uma revista colaborativa.
Marcam este encontro os significantes “Inovação” e “Humanidades”, que traduzem o forte
desejo de contribuir para uma Psicanálise implicada com a sua época e, mais do que isso, crítica
aos seus próprios fundamentos e modos de operar. Desejo de transmitir uma Psicanálise viva,
advinda dos mais diversos lugares e com autores/pesquisadores que têm colocado em questão
o ideal colonialista, que por muitos momentos sufocou a prática psicanalítica brasileira. Ideal que
ensurdeceu os clínicos, empenhados em transpor para o sul global uma Psicanálise europeia,
freudiana ou lacaniana, desconsiderando o espaço que deveria convocá-los à reflexão e à construção
a partir de uma perspectiva brasileira.
Historicamente, no Brasil, a Psicanálise sedimentou-se enquanto uma prática feita pelas
elites e para as elites, franqueando formações inacessíveis ou tratamentos que repetiam a mesma
lógica em seu fazer. Evidentemente, à margem desse panorama, diversos foram os psicanalistas que,
questionando tais práticas reprodutoras de um funcionamento social, passaram a ocupar espaços
em instituições públicas e a exercer o seu mister junto às populações de maior vulnerabilidade
social.
A presente edição está organizada em sete eixos: I) A Psicanálise e outros campos do saber
em suas ressonâncias; II) Atualidades da clínica e política; III) Multi, Inter e Transdisciplinaridade
em ato e pensamento; IV) Teorética; V) A Psicanálise em suas interfaces com: educação, trabalho,
comunidade, políticas públicas, direito, criminologia, prisão, saúde mental, entre outras áreas de
atuação/intervenção; VI) Psicanálise e Interseccionalidades: etnia, classe, gênero; VII) Psicanálise
e sua articulação com a tecnologia. Reunindo trabalhos de psicanalistas brasileiros, advindos de
escutas em espaços como a rua, lugares distantes e situados às margens, como as favelas, bem

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como instituições públicas, nas variadas esferas. Lugares que contribuíram e seguem fazendo
avançar a Psicanálise, questionando a própria teoria a partir dos efeitos da prática.
A diversidade pungente que o Brasil consegue abrigar, tanto de povos e etnias, possibilita
a realização de um trabalho de vanguarda em Psicanálise, como descreveu Thamy Ayouch, em
entrevista exclusiva concedida para este volume. Esta coletânea de trabalhos com autores dos
quatro cantos do país traz uma mescla de vivências de muita riqueza compartilhada. Historicamente
o lastro da experiência com o inconsciente, desde Freud, e com o Real, desde Lacan, movimentou os
modelos hegemônicos que sufocaram as experiências singulares desprovidas de espaços de escuta.
Assim, a pergunta que orienta este dossiê ganha enlevo ao abrir-se à insistência, não apenas daquilo
que insiste em não se escrever, como também ao modo como, no interior do corpus psicanalítico, a
sombra marca os arranjos com o ideal.
Uma edição que traz a margem para a letra, transformando em instrumento de potência
criativa e inventiva o que era para ser silenciado ou minimizado, de modo a relançar ao Século XXI os
fundamentos da Psicanálise como prática de transformação. Tal como ocorreu desde os primórdios,
com Sigmund Freud, em seu modo de construir os fundamentos teóricos através da práxis, o que
se espera em cada fazer é que seja atravessado pelo caráter subversivo, palavra que vem do latim
SUBVERSIO, “destruição”, de SUB-, no caso “o que vem de baixo”, mais VERTERE, “virar”. Em outras
palavras, aquilo que vem supostamente de baixo ou que foi colocado abaixo em nossa sociedade
é o que promove a virada para uma concepção de sujeito do e neste tempo, envolto em questões
como a virtualidade e tecnologia, adicções e excessos, questões raciais e de gênero, bem como
demais atravessamentos geopolíticos, muito presentes na clínica contemporânea.
9
9A
Todo trabalho insurgente/pioneiro traz elementos para serem pontuados, questionados, no
seu tempo de compreender. Porém, se subvertemos a leitura do senso comum, é para dizer que o
esforço de transmissão transcrito nas letras que seguem dá-se pelo despertar do sujeito que nos
habita, convocando-o a seguir seu trabalho sob a forma de um movimento ético, que em nossa
língua portuguesa expressa-se no gerúndio. Melhor dizendo, que você, leitor, no encontro com
cada trabalho, siga desejando... Saber mais e questionar-se mais a partir desse “a menos”, do qual
somos constituídos e que sempre se inscreve no sujeito falante e, portanto, desejante.
Como lembra Lacan, uma transmissão psicanalítica sempre se faz, não apenas para quem
não sabe, mas para quem não pode saber. É do efeito recolhido do encontro com o real de nosso
tempo e de nossa geografia que saberemos, no momento de concluir esse processo mutante, o
que se escreveu.

Janilton Gabriel de Souza


Editor e Organizador deste Dossiê.
Psicólogo, Psicanalista, Docente e Pesquisador do Grupo Unis.
Coordenador do Interfaces em Psicanálise – Núcleo de Pesquisas e Estudos.
Colaborador do Instituto Internacional de Psicanálise (IIP).

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10
10A
GENESIS E O NOVO MUNDO: CORPO, PANDEMIA E
VIRTUALIDADE

GENESIS AND THE NEW WORLD: BODY, PANDEMIC AND VIRTUALITY

Vanessa Guimarães da Silva 1

Resumo: Através do olhar da psicanálise, o presente artigo busca analisar a intensificação da relação entre sujeito e
virtualidade advinda do processo pandêmico. Dessa forma, através da obra Genesis, de Alexander Schubert, pretende-se
discutir sobre a possibilidade de construção do laço social pela realidade das redes, problematizando sobre o que resta ao
corpo no espaço virtual, analisando, assim, sobre os desencontros entre o mundo analógico e o ciberespaço.

Palavras-chave: Psicanálise. Corpo. Virtualidade. Pandemia. Genesis.

Abstract: Through the psychoanalytic perspective, this paper aims to analyze the intensification of the relationship between
subject and virtuality caused by the pandemic process. Thus, it is intended to discuss the possibility of building a social
bond through the virtual reality, questioning what is left of the body in the virtual space and analyzing the disagreements
between the analog world and cyberspace. In order to do that, the Alexander Schubert’s work Genesis will be used as a
reference for our discussion.

Keywords: Psychoanalysis. Body. Virtuality. Pandemic. Genisis

1 Mestre em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é docente do Curso de Psicologia da
Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9020350641622428. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-6877-9581. E-mail: vguimaraes091@gmail.com
“As pulsões são no corpo um eco do fato de que há um dizer” (Lacan, 1975/1976, p.18).

Introdução

A contemporaneidade encontra-se marcada por intensas transformações na relação entre


o sujeito e a sexualidade. Como aponta Lash (1983), esse é o tempo da “sociedade do espetáculo”,
pois há uma proliferação de performances do eu e a própria experiência humana passa a ser
percebida através de imagens evanescentes. O autor defende que o homem contemporâneo está
submerso em uma “cultura do narcisismo”, argumentando que o sujeito olha para o espelho na
busca do olhar de um outro que lhe mostre a imperfeição de sua imagem. Vivendo em um paradoxo,
o sujeito contemporâneo precisa do outro para ratificar sua imagem, da mesma forma em que
busca intensamente a realização individual em detrimento de ideais coletivos. Neste contexto, a
tecnologia e o virtual marcam as produções subjetivas, promovendo novas formas de construção
do laço social e da performatividade do eu.
As transformações na subjetividade da época, marcadas pelo tempo da tecnologia e
da virtualidade, passam por uma reconfiguração no ano de 2020 com o advento da pandemia
da Covid-19. Como um império de cartas, o agente invisível desconstrói a realidade conhecida,
trazendo um cenário marcado pela destruição e o horror. Neste momento, o ciberespaço surge não
apenas como o local produtor de máscaras do eu, mas como uma possibilidade de reconstrução
do laço social. Há, portanto, uma intensificação da relação entre o sujeito e o virtual: o que marca
a necessidade de uma análise sobre as implicações de tal mudança para a subjetividade da época.
Dessa forma, através de uma metodologia histórico-conceitual e de uma análise estética, tal artigo
busca discutir sobre a relação entre corpo, pandemia e virtualidade. Este trabalho é fruto de uma
pesquisa realizada nos âmbitos da Universidade do Estado de Minas Gerais1. Para tanto, foram
utilizadas obras de autores da filosofia e da sociologia como José Bragança de Miranda, Paula Sibília,
Pierre Lévy e Achille Mbembe, além de um retorno às obras de Freud e Lacan. Através do percurso
que será apresentado, observa-se que há um descompasso vivenciado entre os encontros entre
telas, o que traz como questionamento sobre o que resta ao corpo no ciberespaço. Para se analisar
tal interrogação, a obra Genesis, de Alexander Schubert, surge como uma bússola que visa oferecer
um direcionamento sobre as fronteiras entre o real e o virtual. Dessa forma, nas páginas que se
seguem será apresentado, a princípio, uma análise sobre o tempo pandêmico e o lugar do Estado
como produtor de desamparo e do discurso necropolítico. Com tal discussão, busca-se analisar a

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problemática da virtualidade compulsória e, por fim, discutir sobre as vicissitudes do corpo entre o
espaço analógico e o ciberespaço.

A pandemia e o Estado

A pandemia da Covid-19 surge para a humanidade como um novo desafio a ser enfrentado.
Neste novo cenário marcado pela catástrofe, o sujeito é confrontado com uma realidade de
impossível apreensão, a própria morte. O vírus descortina a pretensão humana de domínio da
natureza, como aponta Birman (2020, p. 63), “um minúsculo agente biológico invisível que destruiu
de modo desnorteante nossa forma de vida, individual e coletiva, e nossos laços sociais”. Ante a nova
crise sanitária surgem diversos significantes nos variados meios de comunicação como: angústia,
morte, tragédia, calamidade, entre outros. A impotência humana é desmascarada pela ameaça do
agente invisível, trazendo um cenário de medo e desamparo. De acordo com Birman (2020),
os efeitos catastróficos da pandemia da Covid-19, pelas
múltiplas desconstruções que promoveu nas formas de
existência individuais e coletivas de modo sistemático,
implicaram a emergência histórica de um limite ostensivo
e flagrante na onipotência humana de se acreditar no Deus

1 Esse trabalho foi financiado pelo Programa Institucional de Apoio a Pesquisa da Universidade do Estado de
Minas Gerais - PAPq
12
12A
secularizado. A peste levou assim à efetiva humilhação
da pretensão do homem do domínio absoluto do mundo,
com efeitos ainda impossíveis de serem completamente
calculados, em toda a sua extensão e profundidade, no tempo
futuro (BIRMAN, 2020, p. 65).

Conforme aponta Souza e Henderson (2021), a fantasia de domínio humano sobre a


natureza foi fortalecida pela promessa de apreensão das novas tecnologias, da expansão econômica
dos mercados, assim como, da possibilidade de produção de novos laços sociais marcados pelo
desenvolvimento da internet. Entretanto, o novo vírus rasga o véu que recobre esse discurso,
apontando para a repetição de uma história anterior. De acordo com Abreu et al (2020), a pandemia
atual possui pontos em comuns com a Gripe Espanhola que assolou o mundo entre 1918 e 1919.
Tal pandemia dizimou milhares de vidas por todos os continentes. Apesar das diferenças existentes
na subjetividade da época, ambas as crises foram marcadas pela transformação nas formas de
existência e por um contexto político tumultuado.
Como um ponto inicial para se pensar nas semelhanças desses processos, é possível citar
os discursos conspiratórios que marcaram ambas as crises. De acordo com Goulart (2005), durante
o período da Gripe Espanhola circulavam teorias que mostravam a desinformação da sociedade
da época. Dessa forma, neste período, a moléstia foi noticiada como uma criação dos alemães
que buscavam espalhar o vírus para todos os inimigos. Aqui, é possível se tecer um paralelo com
o processo pandêmico atual, visto que diversos meios de comunicação apontaram que “o vírus
Covid-19 teria sido produzido em laboratório pela China, particularmente em Wuhan, cidade que
foi o epicentro da pandemia. (...). Já os chineses acreditavam que o vírus foi uma criação produzida
pelos Estados Unidos” (ABREU et al, 2020, p. 73). Estas teorias salientam a tentativa desesperada
de se encontrar um culpado pelo colapso social, desconsiderando os próprios indicativos científicos
que não as sustentam.
Ainda nesse caminho sobre os encontros entre a crise sanitária do século XX e a do século
XXI, é possível citar os discursos negacionistas propagados pelos meios de comunicação e por parte
do Estado. Como apresenta Goulart (2005), durante a Gripe Espanhola, os gestores de saúde no
Brasil não deram a devida importância à letalidade do vírus. De acordo com a autora,
os jornais vinham, diariamente, repletos de informações
telegráficas sobre a evolução do mal, sobre a sua difusão
pelo velho continente, mas a nossa higiene continuava alheia
a tudo e permitia que os navios saídos dos portos suspeitos

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chegassem ao Brasil sem nenhuma medida de prevenção
sanitária (GOULART, 2005, p. 119).

Na mesma esteira, em 2020, a gravidade do vírus se tornou foco de uma disputa de poder.
Apesar das análises de especialistas, discursos midiáticos buscaram descreditar a voracidade
do agente invisível. Assim como no passado, o Estado se ausentou e produziu o sentimento de
insegurança na população. Tal condição pode ser pensada a partir de frases proferidas pelo então
presidente da república como: “é só uma gripezinha”. Assim, quando a figura que deveria promover
a segurança do sujeito o abandona, a sociedade é lançada em um abismo marcado pelo desamparo.
Dessa forma, “o terror, quando praticado pelo Estado, atinge inevitavelmente toda a sociedade.
Quando o agente regulador dos vínculos sociais se põe na ilegalidade, é a própria substância
normativa da sociedade que se dissipa” (ABRÃO, 2014, p. 16).
Ao inverter sua função, o Estado passa a provocar um mal-estar, trazendo para toda esfera
social os sentimentos de medo e terror. Para se pensar essa problemática, é possível ir ao encontro
do argumento de Vladmir Safatle no texto O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o
fim do indivíduo quando o autor apresenta que o Estado hobbesiano provoca o sentimento de
desamparo para se legitimar como indispensável para a população. Nas palavras do autor,
sendo o Estado nada mais que ‘a guerra civil constantemente
impedida através de uma força insuperável’, ele precisa
provocar continuamente o sentimento de desamparo,
da iminência do estado de guerra, transformando-o
13
13A
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema,
para assim legitimar-se como força de amparo fundada na
perpetuação de nossa dependência (SAFATLE, 2016, p. 29).

De acordo com Souza e Henderson (2021, p. 5), a tese de Safatle salienta que “a função do
Estado de promoção do bem-estar não é absoluta, é antes regulada por seu próprio interesse de
autopreservação”, sendo este ancorado em uma estratégia de promoção de um terror controlado.
Dessa forma, “a política se transforma assim na gestão da fobia. Por isso, é fundamental que esse
objeto se perpetue, que ele permaneça como uma contínua ameaça a “aterrorizar” nossa segurança
e nossas possibilidades de controle social” (SAFATLE, 2016, p. 53). Assim, uma vez que o medo e o
desamparo são incorporados no discurso, o sujeito volta-se ao Estado em busca de amparo, o que
mantém a lógica de “gestão da fobia”. Tal política marca o processo pandêmico da Covid-19 no
Brasil. Conforme aponta Souza e Henderson (2021), ao se colocar a sobrevivência do Estado sobre a
vida, o laço social é rompido, “a psicanálise demonstra o risco de tal rompimento, pois o simbólico
desautorizado pelo Estado retornará em outros formatos, isto é, o Estado se torna produtor de
fraturas simbólicas de potencial traumático” (SOUZA; HENDERSON, 2021, p. 6).
Nessa direção, Birman (2020) apresenta uma discussão sobre o lugar ocupado pelo Estado
no processo pandêmico. Ao contrastar a relação entre a bolsa e a vida, o autor tece uma leitura sobre
as políticas negacionistas de governantes como Trump e Bolsonaro. Nesse sentido, o psicanalista
defende que ao se optar pela bolsa, ou seja, por uma política que valoriza a acumulação do capital,
o poder do Estado lança o sujeito rumo à catástrofe. Assim, o processo pandêmico escancara a
perversidade de um governo que reduz os sujeitos a corpos abjetos, demarcando quais vidas seriam
dignas de existir. Tal forma de política pública evoca uma reflexão sobre a noção da necropolítica2,
conceito analisado pelo filósofo Achille Mbembe, que irá demarcar as formas de segregação dos
corpos. Dessa forma, como aponta o filósofo, em nome da soberania do Estado algumas formas de
existência são sacrificadas em nome de outras. Tal problemática pode ser compreendida logo no
início do ensaio de Mbembe (2016) quando o autor busca explorar sobre o que se trata a tese da
necropolítica. Dessa forma, ele aponta que
este ensaio pressupõe que a expressão máxima da soberania
reside, em grande medida, no poder e na capacidade de
ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar
ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus
atributos fundamentais. Ser soberano é exercer controle
sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e

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manifestação de poder (Mbembe, 2016, p. 5).

Através da discussão de Mbembe (2016) pode-se perceber que a necropolítica


instrumentaliza a existência humana, o que se revela na fala de Jair Bolsonaro no ano de 2020,
“vão morrer mesmo, e daí?”. Tal fala demonstra o descaso do governo com certas populações,
pois na busca pelo lugar de soberania o sujeito é tomado enquanto objeto e as subjetividades são
dissipadas. Nesse sentido, é possível lembrar o que Lacan (1969/1970) aponta em seu ensino sobre
não haver vidas sem discurso, porém, existem formas discursivas que matam o sujeito, essas se
apresentam disseminando o ódio, o racismo, a segregação, assim como hierarquizando o direito à
vida. O que pode ser observado pela escolha à bolsa por partes de alguns governantes em tempos
de guerra e morte.
A tela pintada pela pandemia da Covid-19 desmascara a perversidade das práticas de
segregação promovidas pelo Estado. Assim, em sua soberania de mestria, o Estado demarca quais
vidas não são dignas de uma existência, descartando corpos inomináveis e irrepresentáveis, cuja
materialidade seria ignóbil. Fato que se apresenta na política assumida pelo governo brasileiro
diante da negligência com o potencial destrutivo do vírus. Dessa forma, observa-se no Brasil uma
gestão marcada pelo discurso necropolítico, visto o desamparo e a vulnerabilidade imposta pelo
Estado à nação que hoje traz como resultado mais de 600 mil mortos pela então “gripezinha”. Como
apontam Souza e Henderson (2021),

2 O conceito de necropolítica é proveniente da biopolítica de Foucault (2002) que através da noção do poder
disciplinar apresenta uma problemática do direito regulador das vidas.
14
14A
estamos lidando com dois desastres ao mesmo tempo: o
natural e o simbólico. O vírus é um desastre natural, um evento
externo, biologicamente e medicamente explicado. Diferente
das imposições advindas da violência de outro humano e
das instituições que supostamente lhe serviriam de amparo,
estas atingem o campo simbólico, aquele das instâncias em
que nos fazemos reconhecer em nosso sofrimento (SOUZA;
HENDERSON, 2021, p. 6).

A partir dessa breve análise, torna-se necessário discutir sobre os impactos subjetivos da falta
de sustentação simbólica promovida pelo Estado em um momento de crise. Para tanto, a noção de
trauma e desamparo apresentada pela psicanálise parece oferecer uma luz a tal questão, abrindo
possibilidades para se pensar sobre o processo de ressignificação, assim como, possibilitando um
caminho para a discussão sobre um tempo marcado por uma nova forma de produção subjetiva, a
virtualidade.

O Desamparo e os tempos da Virtualidade

As noções de trauma e desamparo percorrem o ensino psicanalítico, sendo pensadas ainda


no princípio da obra Freudiana e continuadas nas obras de seus leitores. Dessa forma, ainda nos
primórdios do ensino de Freud, a problemática do trauma é analisada para se pensar sobre os
fenômenos sintomáticos da histeria. Neste momento, através das falas de suas pacientes, Freud
irá construir uma primeira teoria calcada na natureza real do trauma de abuso infantil, sendo esta
nomeada como Teoria da Sedução. Posteriormente, em uma carta dirigida a Fliess, Freud apresenta
a célebre fala, “não acredito mais na minha neurótica” (FREUD, 1986, p. 265). Com este dizer, o pai
da psicanálise repensa sua teoria, apontando que a cena traumática, narrada pelas pacientes, não
se tratava necessariamente de um dado real, mas de uma construção por meio da fantasia. Como
é possível observar a partir da seguinte fala,
naquele período, eu era incapaz de distinguir com certeza
entre falsificações feitas por histéricos em suas lembranças
de infância e traços de acontecimentos reais. Desde então,
aprendi a explicar várias fantasias de sedução como tentativas
do sujeito de repelir lembranças de  sua própria atividade

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sexual (masturbação infantil) (FREUD, 1906/1953, p. 274).

Freud (1905/1953) apresenta, dessa forma, que em um processo de análise o paciente pode
narrar sobre experiências reais, assim como, trazer uma fantasia, ambas experiências podem surgir
como uma cena vivenciada na infância. Com o prosseguir de sua obra, nos de 1920, ele apresenta a
teoria do trauma relacionada à compulsão à repetição. Para tanto, ele irá se pautar nas formulações
de seu segundo dualismo pulsional: Pulsão de Vida X Pulsão de Morte. Neste momento, Freud
compreende que o trauma seria um excesso de energia psíquica que se apresentaria sob a forma
do sintoma, assim, ele defende que aquilo que se encontra sem representação simbólica retorna
para o sujeito na forma de repetição. Tal noção é amplamente debatida em Além do Princípio e do
Prazer. Neste trabalho, Freud (1920/2010) irá analisar essa relação a partir dos sonhos traumáticos
de soldados que vivenciaram a guerra. Ele aponta que tais sujeitos repetiam as cenas de terror
apesar do desprazer que estas lhe causavam. Dessa forma, conclui que os sonhos traumáticos não
obedecem ao Princípio do Prazer, eles estão atrelados à cena insuportável e tentam promover
uma elaboração psíquica para o reestabelecimento de tal princípio. O trauma, aqui, passa a ser
entendido como a inabilidade do eu em lidar com alguma experiência vivenciada como excessiva.
De acordo com Ferrari, Junizzie e Guerra (2020, p. 573),
o princípio do prazer, princípio que rege as relações com a vida
e com o laço social, perde funcionalidade e, na medida em
que o psiquismo curto-circuita em sua economia pulsional, a
pulsão de morte se instaura. E a angústia, como ele escreve
15
15A
anos mais tarde, surge sinalizando para o perigo em causa,
diante da ameaça à vida, não mais simbolizável.

A partir da fala das autoras, é possível constatar que o trauma, que se apresenta como
uma ruptura, faz com que o sujeito retorne a uma determinada cena de horror para produzir a
angústia. Esta, por sua vez, conduz a produção de sintomas como forma de ordenar o que está
sem representação. Ainda nessa perspectiva, Freud traz uma análise sobre a brincadeira do Fort-
da. Neste jogo, ele observa que a criança lança um carretel e o puxa novamente, como em um ato
teatral de simular a presença e ausência da mãe. Dessa forma, a criança revive uma situação passiva
de forma ativa em uma tentativa de recuperar o que havia perdido. Pode-se observar que em ambas
situações, nos sonhos traumáticos e no Fort-da, há uma tentativa de se inscrever uma experiência
que não foi simbolizada no campo da linguagem. Ao retomar a noção da compulsão à repetição,
Lacan (1973/1988) aponta que o sujeito repete aquilo que ele nunca consegue encontrar, expondo
o ponto opaco da própria linguagem. Assim, no Seminário XI, ele apresenta que a repetição é uma
tentativa de se reencontrar o objeto perdido, pois na esperança do encontro de Das Ding, o sujeito
se volta a um campo da ausência na busca de encontrar o objeto real, porém, tal objeto nunca é
alcançado. Nas palavras do autor,
abordaremos o conceito de repetição, perguntando-nos como
concebê-lo, e veremos como é pela repetição, como repetição
de decepção, que Freud coordena a experiência, enquanto
que decepcionante, com um real que será daí por diante,
no campo da ciência, situado como aquilo que o sujeito está
condenado a ter em falta, mas que essa falta mesmo revela
(LACAN, 1973/1988, p. 42).

No processo pandêmico, o vírus parece evidenciar esse furo existente no simbólico, trazendo
a impossibilidade de elaboração de uma nova representação, descortinando a falta e escancarando
o desamparo primordial. Aqui é possível ir ao encontro de Freud em seu escrito Reflexões para os
tempos de Guerra e Morte, momento em que o pai da psicanálise apresenta uma discussão sobre
a relação do sujeito com a morte. Freud (1915/1996) expõe que existe uma impossibilidade de
representação da morte no inconsciente, porém no período da Grande Guerra, há uma mudança
na relação do sujeito com a morte, pois “somos forçados a acreditar nela. As pessoas realmente
morrem, e não mais uma a uma, porém muitas, frequentemente dezenas de milhares, num único
dia” (FREUD, 1915/1996, p. 329). Assim como na guerra, na pandemia o sujeito se viu obrigado a

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construir uma nova relação com a morte, pois agora, torna-se impossível negá-la, ou retirá-la da
cena. Dessa forma, ao se desautorizar de seu lugar de proteção, o Estado se torna um potencializador
dos aspectos traumáticos vivenciados pelos tempos de guerra e morte. Lacan (1962) apresenta
que sem uma mediação simbólica, há uma emergência da angústia e com ela respostas que se
apresentam sob a forma do acting out ou da passagem ao ato, marcas de um cenário caracterizado
pelo adoecimento mental.
Em uma tentativa de reorganização simbólica da experiência humana, observa-se que
o processo pandêmico deixa como marca a construção de novas formas de relacionamentos
mediados pelo virtual. Como uma promessa de elaboração do trauma social, o ciberespaço surge
como uma tentativa de se transcender as impossibilidades da realidade do mundo analógico.
Entretanto, Lemma (2015) adverte que as leis da realidade não se aplicam da mesma maneira
no mundo onde existe uma alternância entre on-line e off-line. Conforme salienta, “discrepâncias
muito grandes entre a imagem corporal offline e o personagem podem levar alguns indivíduos a
preferirem ou até se fixarem no próprio avatar, resultando numa dominância psíquica do virtual
sobre o não-virtual” (LEMMA, 2015, p. 577). Com essa fala, a autora revela a falácia do jogo entre
telas, pois a partir do desamparo vivenciado pelo sujeito em sua realidade carnal, o ciberespaço
surge enquanto promessa de uma nova construção do laço social rompido. Ele se apresenta a partir
de uma roupagem singular para as fantasias narcísicas, assim, basta você escolher o seu avatar e
começar a jogar, tudo a um clique na tela. Nesse espaço, como apresenta Lévy (1996), o ócio perde
seu lugar, pois há uma demanda de atualização e da constante busca pelo novo. Entretanto, como
adverte Barban e Tfouni (2019, p. 98-99),
16
16A
o virtual – como quando apresentado em demasia cria
uma demanda de atualização e satisfação que busca o
preenchimento dessa mesma estrutura ausente, voltando-
se à sua característica de vazio motor, que cria esse vazio ao
mesmo tempo em que aspira preenchê-lo.

Observa-se novamente a estrutura da repetição, pois ao criar um vazio que se propõe


preencher, o ciberespaço leva o sujeito a permanecer em torno da impossibilidade de reencontrar
o objeto perdido, ao mesmo tempo em que se mostra com a capacidade de elaborar a epígrafe
para o desejo. Tal espaço possibilita que o sujeito vivencie uma satisfação imediata que mascara a
falta, o que faz o ato de repetição acontecer a partir dessa promessa de supressão de um mal-estar,
levando os sujeitos a buscarem no virtual um alívio imediato através de objetos compensatórios.
Paula Sibilia (2016) salienta que o ciberespaço causa uma transferência entre o que outrora se
apresentava como uma ficção da realidade para uma realidade ficcional. De acordo com a autora,
espetacularizar o eu consiste precisamente nisso: transformar
as nossas personalidades e vidas (já nem tão) privadas em
realidades ficcionalizadas com recursos midiáticos. É isso que
se procura fazer ao performar a própria extimidade nas telas
cada vez mais onipresentes e interconectadas (SIBILIA, 2016,
p. 249).

Assim, como enfatiza a autora, o virtual marca uma nova forma do Eu estar no mundo, espaço
onde a lógica passa do “ser” para o “parecer”, ou como aponta Zizek (2020), a realidade do virtual
é vivenciada como uma realidade sem o ser. Dessa forma, como salientado por Barban e Tfouni
(2019), na lógica do parecer há uma tentativa de endereçamento ao Outro midiático, entretanto,
há um ponto de impossibilidade de ser como o Outro o que leva o sujeito a uma alienação na
incompletude do ciberespaço. Assim, “a demanda de atenção do Outro virtual, das redes sociais ao
sujeito, substitui seu desejo pela alienação pré-estabelecida da virtualidade, o sujeito alienado no
Outro virtual sabe que ele não é alvo real do seu desejo, mas, mesmo assim, ele o deseja” (BARBAN;
TFOUNI, 2019, p. 106). É necessário então se questionar: o que resta à dimensão do sujeito diante
do ilusório fascínio pela imagem? Para se pensar em tal problemática, a obra Genesis, do artista
multimídia Alexander Schubert, parece possibilitar novos contornos a tal inquietação.

Genesis – Uma obra entre o analógico e o virtual

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A obra Genesis, elaborada pelo compositor e artista multimídia alemão Alexander Schubert,
traz em seu âmago a singularidade da territorialidade do ciberespaço, em que a vida analógica
é misturada a esse mundo em potência, colocando em xeque a dicotomia entre realidade e
virtualidade. Nesse projeto, Schubert cria um jogo virtual utilizando um avatar humano. Dessa
forma, o artista une carne e imagem em uma tentativa de uma produção de um novo mundo,
Genesis, o pavilhão industrial construído como uma tentativa de recobrimento da fantasia sobre
a realidade insuportável de um mundo pandêmico. A obra ocorreu durante sete dias, por vinte
e quatro horas ininterruptas, onde o público era convidado a recriar seu espaço através de sua
imaginação. Todos os participantes deixam uma marca e todas as mudanças construídas formam a
obra. Schubert (2020) aponta que os jogadores podem fazer login de qualquer lugar do mundo, pois
os avatares humanos estarão no pavilhão destinado ao jogo durante todo o tempo do projeto. Dessa
forma, os jogadores moldam Genesis, eles guiam os avatares humanos e recebem continuamente
a visão deles sobre o novo mundo. O objetivo é que os jogadores possam operar sobre seu avatar
através do espaço físico/virtual para que seja criada uma realidade social. De acordo com Schubert
(2020, s.p), “os avatares aparecem como você mesmo, através de cujos olhos se pode olhar e cujos
corpos podem ser instruídos”.
A obra Genesis vai ao encontro do pensamento de Pierre Lévy (1996), pois o autor defende
que o virtual não se apresenta como aquilo que se antagoniza ao real, mas ao atual. O que significa
compreender que o humano se encontra entrelaçado pela rede em seu cotidiano, o que torna
17
17A
insustentável a tentativa de se separar virtual e real. Dessa forma, o autor aponta que o ciberespaço
“especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo
oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam
esse universo” (LÉVY, 1996, p. 17). Observa-se que em Genesis há uma tentativa de superação dos
limites entre o espaço carnal e o virtual. Ao criar avatares humanos, o artista parece apontar para
a transcendência desses limites, promovendo o imaginário de um mundo a vir a existir. Na direção
desse pensamento, observa-se que na obra, o ciberespaço surge enquanto uma matriz produtora
da realidade, como apresenta Lévy (1996, p. 18),
a virtualização fluidifica as distinções instituídas, aumenta os
graus de liberdade, cria um vazio motor. Se a virtualização
fosse apenas a passagem de uma realidade a um conjunto
de possíveis, seria desrealizante. Mas ela implica a mesma
quantidade de irreversibilidade em seus efeitos, de
indeterminação em seu processo e de invenção em seu esforço
quanto à atualização. A virtualização é um dos principais
vetores da criação da realidade.

A partir da fala Lévy observa-se que o virtual se apresenta como algo possível de realização.
Assim, na relação entre o jogador e o avatar existem efeitos concretos, apresentados na fala e ações
propostas para a criação do espaço social. Através da voz e do olhar as barreiras entre mundo real
e virtual são ultrapassadas. Como demarcado por Lévy (1996), tal desconstrução de fronteiras diz
da capacidade criativa e de expansão da realidade promovida pelo ciberespaço. Portanto, ao se
possibilitar que qualquer pessoa se conecte ao jogo a qualquer momento, Schubert desvela tal
potência, promovendo um deslocamento do tempo e do espaço, representando um devir. Como
argumenta Barban e Tfouni (2019), a virtualidade representa uma nova roupagem sobre a fantasia,
pois “uma vez que permite a seus usuários uma desterritorialização; ao se adentrar no espaço
virtual, o indivíduo deixa a realidade ‘em suspenso’. Essa supressão do tempo, da concretude
humana e do espaço geográfico é recriada nesse novo mundo, um mundo em potência” (BARBAN;
TFOUNI, 2019, p. 103).
É preciso se pensar sobre aquilo que se modifica nas relações humanas ao se suspender
sua materialidade. As construções subjetivas parecem se produzir de uma maneira particular na
dinâmica da rede, pois ainda que haja uma desconstrução de barreiras há um desencontro entre
corpo e tela que parecem produzir novos modos de gozo. Paula Sibília (2016) traz uma análise que
possibilita essa discussão. A autora apresenta que o contemporâneo é marcado pelo imperativo do

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gozo e por uma nova configuração nas dimensões do público e do privado. Sibília (2016) demarca
que há um distanciamento do espaço interno e uma ostentação do externo, apresentando que
a partir da dinâmica das redes, o íntimo se torna êxtimo. Nesta transformação, o sujeito se
coloca simultaneamente em uma relação de voyeurismo e exibicionismo. Como aponta a autora,
“abandonando o espaço interior dos abismos da alma ou dos sombrios conflitos psíquicos, o eu
passa a se estruturar em torno do corpo. Ou mais precisamente, da imagem visível do que cada um
é” (SIBÍLIA, 2016, p.111).
Para além, Sibília (2016) demonstra que através da relação com o virtual a própria noção de
corporeidade é repensada. Retomando novamente o pensamento de Lévy (1996), na sociedade
informacional o corpo não se encontra atrelado apenas ao campo do real, mas ao lugar simbólico
do virtual ao qual o sujeito encontra-se inserido. Assim, ele ganha uma nova materialidade que
se apresenta na dinâmica da rede. Dessa forma, ao se construir um mundo que integra ambos
espaços, Schubert demonstra essa nova materialidade. O avatar se parece com o jogador e através
de seu olhar, transmitido pelos óculos VG ao jogador, há um redesenhar de uma realidade. Em um
gozo de voyer, o usuário vislumbra através da tela a construção de um novo laço social que busca
tecer o véu da fantasia sobre a falta. Dessa forma, nessa transmissão, entre o óculos e o olhar, há
uma produção de uma presença. Assim, como apresenta Lévy (1996, p. 22),
o corpo sai de si mesmo, adquire novas velocidades, conquista
novos espaços. Verte-se no exterior e reveste a exterioridade
técnica ou alteridade biológica em subjetividade concreta. Ao
18
18A
se virtualizar o corpo multiplica. (...) A virtualização do corpo
não é, portanto, uma desencarnação, mas uma reinvenção.

Entretanto, é preciso compreender o que seria tal processo de reinvenção. Seria uma
produção fantasmática ou uma desconstrução do invólucro imaginário? Dessa forma, é preciso
problematizar sobre o que sobra ao corpo no ciberespaço, ou seja, seria a virtualidade uma
saída para o sofrimento pandêmico ou uma nova forma de produção da angústia? Sobre tais
questões, José Bragança de Miranda apresenta a tese de que o corpo na contemporaneidade
perdeu sua inteireza. Neste novo contexto, o corpo passa a ser destituído de uma subjetividade
singular, se transformando em um objeto a ser aperfeiçoado. De acordo com o autor, “o corpo
como propriedade propulsou as tendências a intervir nele (...). Perversamente o proprietário está
a ficar sem propriedade. Fazendo com que o ‘corpo’ mal consiga sobreviver às forças à solta na
modernidade terminal que é a nossa” (Miranda, 2011, p. 257). Através de tal fala é possível se
constatar que o corpo, no tempo do virtual, se torna um campo de experimentação. Há, portanto,
um jogo marcado pela construção e desconstrução do invólucro da imagem.
Nessa direção, Lacan no trabalho O Estágio do Espelho como formador da função do Eu tal
como nos é revelado pela experiência psicanalítica, traz uma discussão que busca compreender os
processos que subjazem a constituição do eu e do corpo. A partir de pesquisas etiológicas e do
estudo de Henri Wallon, Prova do Espelho e a Noção do Corpo Próprio de 1931, Lacan atribui um
papel central à imagem no processo de constituição do Eu. Ele teoriza sobre o momento em que o
infante se torna capaz de discernir sua imagem no espelho mediante o processo de identificação
com a imagem do outro, definido pela “transformação produzida no sujeito quando assume uma
imagem” (Lacan, 1949, p. 97). Assim, o psicanalista demonstra que o Outro seria uma espécie
de “escudo narcísico” que permitiria a inserção de uma alteridade e separaria o sujeito do real.
Como aponta Greco (2011, p. 6) “a presença do Outro vem marcar indelevelmente o sujeito pelo
significante, descorporificando o eu − ou eu (moi) −, entra no discurso como forma de dar substância
ao sujeito- ou ao Eu (je)”. Lacan sustenta que o estádio do espelho seria o momento inicial para a
constituição de uma subjetividade, ou como aponta Quinet (2012, p. 14), como “um momento
de insight configurador”. Neste processo, o olho surge como o primeiro aparelho de organização
do sujeito no mundo. O olho seria aquilo que inicialmente forneceria ao infante a possibilidade
de se relacionar com seu espaço representacional. Dessa forma, o espelho não seria apenas um
simples objeto refletor, mas a base para o processo de identificação. Dessa forma, retomando
Genesis, é possível se perceber que o olho do avatar seria aquilo que promoveria essa primeira
identificação para o jogador, abrindo espaço para a produção de sentido e configuração do novo

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mundo. Entretanto, na transmissão produzida pela tela algo se perde, pois existe um ponto obscuro
ao olhar que permanece de impossível apreensão. A partir da promessa de construção de um novo
laço, a realidade virtual não deixa espaço para esse ponto inapreensível. Retomando a lógica do
parecer, proposta por Sibília (2016), é possível perceber que diante dos espelhos virtuais há uma
impossibilidade de sustentação do olhar, pois o sujeito volta-se a um Outro sem conseguir receber
um olhar que o ampare, o que acaba produzindo arranjos provisórios como forma de existência,
como salienta Barban e Tfouni (2019, p. 102),
a oferta excessiva e objetos de satisfação atrapalha a
metaforização da falta, que se dá a partir de uma realização
pelo sujeito de sua impotência diante do desejo, uma vez que
esses aparelhos possibilitam uma dominação das imagens e
do conteúdo de uma realidade ali apresentada, sendo que
na verdade é o sujeito que é dominado por uma realidade
virtual sedutora. O objeto virtual, como objeto de necessidade
voltado para satisfação, gera um movimento de demanda
infinita, consumista, que - quando satisfeita - gera novas
demandas.

Diante da desconstrução do engodo da imagem, o sujeito é lançado em um abismo marcado


pela produção da angústia. Assim, a promessa de Genesis se mostra pela tessitura de um véu da
fantasia que permita uma sustentação do sujeito diante do desamparo vivenciado pelo Estado.
19
19A
Entretanto, ela permanece falha, fazendo com que sempre haja um distanciamento entre avatar e
jogador, o que demonstra o caráter ambivalente da produção do laço pela via do virtual.

Considerações Finais

A pandemia da Covid-19 trouxe transformações fulcrais na relação entre sujeito com o


social. As produções subjetivas que surgem desse processo traumático ainda se apresentam como
enigmas, mas como foi possível se perceber nessa discussão, a falta de uma ancoragem produzida
pela supressão do Estado leva o sujeito rumo à catástrofe. Observa-se que o desamparo produzido
pela falta de políticas de cuidado ocasiona o pânico generalizado na população. Dessa forma, o
cenário pandêmico desvela a perversidade do Mestre, pois diante da violência produzida pelo
o Outro político, os corpos tornam-se apenas objetos facilmente substituíveis. Neste contexto,
o sujeito passa a ser visto como uma engrenagem que move a máquina capitalista, assim, se o
mecanismo falha, é necessário apenas se trocar o instrumento. Essa redução da condição humana
pode ser observada nos processos de demissão em massa de trabalhadores. Nessa direção, pode-
se evocar novamente a discussão de Birman (2020) sobre a relação entre a bolsa e a vida. A partir
da proposta do autor, percebe-se que no jogo dos tronos a máxima “tempo é dinheiro” torna-se
a marca de governos que definem o valor de uma existência. Dessa forma, ao se atentar para as
transformações da subjetividade da época, percebe-se que o desamparo produzido pelo Estado se
ancora e produz o discurso necropolítico. Como apresenta Mbembe (2016), tal discurso coisifica e
transforma o humano em uma mercadoria, assim, “o estado de exceção e a relação de inimizade
tornaram-se a base normativa do direito de matar” (MBEMBE, 2016, p. 126). A partir do percurso
aqui analisado, é possível se concluir que a perversidade do Estado escancara a falta primordial,
lançando o sujeito em um abismo sem possibilidade de sustentação simbólica.
Frente a experiência primordial do desamparo, o sujeito busca por alternativas que
favoreçam a reconstrução de sua realidade. Nesta tentativa, o ciberespaço se apresenta como o
novo local de promoção do laço social. Ele surge como o lugar que tece um novo véu da fantasia
para a insustentabilidade do ser. É com essa promessa que surge Genesis, o novo mundo que busca
desconstruir os limites entre o espaço analógico e o virtual. Aqui o olhar se materializa a partir da
miragem produzida pela lente do avatar que contorna uma nova realidade social. Entretanto, há um
descompasso entre a realidade carnal e a virtual que se mostra no incógnito da imagem, esse ponto
em que a linguagem não consegue abarcar. Para além, é possível se questionar se o novo mundo

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proposto pela união da realidade virtual com a analógica se mostraria como uma nova forma de
ancoragem para o ser ou seria apenas uma nova roupagem para o discurso necropolítico, pois
aquele que governa o avatar tem o poder sobre sua vida. Assim, apesar da promessa de acesso a
todos, o ciberespaço continua marcado pela política da segregação dos corpos, pois ao se promover
semblantes de igualdade, acaba-se por favorecer a rejeição da diferença. Portanto, é possível se
questionar se Genesis abre caminhos para uma nova realidade ou apenas desvela a fragilidade do
laço social.
Através do percurso deste trabalho é possível perceber que o processo pandêmico escancara
a fragilidade carnal e a perversidade do Outro político. Como promessa de reconstrução do laço, o
ciberespaço surge como um novo espaço social que busca suturar o furo da imagem, entretanto,
ele permanece a repetir a história anterior. Neste mundo, onde o sujeito pode assumir várias
máscaras, o corpo se torna apenas um suporte para o humano. Freud em seu texto O Infamiliar (Das
Unheimliche), apresenta que há algo no corpóreo que se mostra como aquilo de mais elementar
para o sujeito e que causa uma inquietude entre o olhar e imagem, o pai da psicanálise apresenta
que o Infamiliar “relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca medo
e horror” (FREUD, 1919, p. 237). Dessa forma, esse estrangeiro é aquilo que o discurso necropolítico
busca segregar, ele revela a perversidade de soberania do Estado. Entretanto, como o pai da
psicanálise demarca, há um estranho que habita o ser e que permanece de impossível apreensão
seja nos discursos de morte ou no jogo entre telas, o real que não cessa de não se inscrever, o eco
no corpo que persiste enquanto um dizer.

20
20A
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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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22
22A
NAS TESSITURAS DO RESTO E DA SOLIDÃO:
PENÉLOPE E O FEMININO

IN THE STRENGTHS OF REMAIN AND LONELINESS:


PENELOPE AND THE FEMININE

Bianca Camila Gonçalves Moreira 1


Gesianni Amaral Gonçalves 2

Resumo: O presente trabalho busca fazer uma análise da personagem Penélope, presente na obra Odisseia, de Homero.
Aposta-se na jornada do tecer, dentre outros artifícios utilizados por ela, enquanto dimensões que atestam o não-todo
do feminino, desse modo, para além dos cânticos homéricos, parte-se de uma revisão bibliográfica narrativa de autores
psicanalíticos, como Sigmund Freud, Jacques Lacan e comentadores. A partir desse aporte teórico, o texto apresenta como
questionamento “o que resta (h)À mulher quando destituída de seus aparatos fálicos?”. O que se entrelaça à figura literária
os conceitos como o falo, o objeto "a", o real e a solidão, enquanto fundamentais nos desdobramentos d’A mulher para
tecer, para além do falo, fio a fio, a si mesma.

Palavras-chaves: Penélope. Feminino. Psicanálise. Restos. Solidão.

Abstract: The present work intends to analyze the character Penelope, present in the work Odyssey, by Homer. It bets on
the journey of weaving, among other maneuver used by her, as dimensions that attest to the not-all of the feminine, thus,
aside the Homeric chants, it starts with a narrative bibliographic review of psychoanalytic authors, such as Sigmund Freud,
Jacques Lacan and commentators. Based on its theoretical contribution, the text poses the question “what remains (being)
The woman when deposed of her phallic apparatus?”. It is linked to the literary figure concepts such as the phallus, the
object "a", the real and loneliness as fundamental in the unfolding of The woman to weave, beyond the phallus, thread by
thread, herself.

Keywords: Penelope. Feminine. Psychoanalysis. Remains. Loneliness.

1 Graduanda do curso de Psicologia (pela UEMG/Divinópolis). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9733515783703672. ORCID: https://orcid.org/0000-


0002-3379-2513. E-mail: biancacamila.goncalves@outlook.com

2 Psicóloga e Psicanalista. Pós-doutora em Intervenções Clínicas e Sociais (pela PUC Minas), Doutora em Estudos Psicanalíticos - Conceitos
Fundamentais em Psicanálise e Investigações no Campo Clínico e Cultural (pela UFMG), Mestre em Psicologia – Processos de Subjetivação (pela
PUC Minas) e Especialista em Arte e Educação (pela UEMG). Atualmente docente do curso de Psicologia da Universidade do Estado de Minas
Gerais (UEMG) Unidade Divinópolis. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5464259294427621. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5905-3973.
E-mail: gesianni@terra.com.br
Introdução: O que resta (h)À1 mulher?

Sigmund Freud e Jacques Lacan evocam o feminino em suas obras. Em Freud (1908-1933),
a feminilidade é apresentada em diversos de seus livros, enquanto em Lacan (1972-73/1985),
podemos perceber o amadurecimento destas ideias freudianas em um conceito lacaniano sobre
o não-todo do feminino. A partir delas, apresentamos diversas pesquisas de comentadores
psicanalíticos que dialogam com a temática e com o nosso corpus analisado.
Dessa forma, este trabalho é conduzido pela metodologia da pesquisa bibliográfica narrativa
abordada por Roether (2007) e Gil (2017). Ela se caracteriza pela descrição e discussão do “estado
da arte”, ou seja, uma análise de literatura disposta em materiais como livros, artigos e análise
crítica pessoal do autor, e que, não permite a reprodução dos dados da pesquisa. Esse tipo de
pesquisa permite uma ampliação da investigação de fenômenos e propõe um desenvolvimento
exclusivamente pautado em fontes bibliográficas. Assim, retorna-se às obras prontas como
fundamento da discussão do tema na contemporaneidade (GIL, 2017). É cabível ressaltar que, a
análise criteriosa dos materiais bibliográficos exige uma avaliação atenciosa da sua produção para
que não se alinhe à propagação de dados coletados ou processados de maneiras equivocadas (GIL,
2017).
Com isso, objetivamos abordar o enlace entre o feminino, a invenção e a tessitura
representados na figura de Penélope, da obra literária de Homero, Odisseia (750-650 a.C./2014
d.C.). E apostamos em uma construção na companhia da personagem que busca tecer respostas
para a questão: o que resta (h)À mulher quando destituída de seus aparatos fálicos? Destas
possíveis inovações que se apresentarão perante ao enigma da feminilidade é que evidenciaremos
as articulações frente ao desamparo do significante da falta e do desejo do Outro. Assim sendo, o
percurso da tecelã, apresentar-se-á como signo do feminino, e também, como uma referência de
invenções sobre A mulher, a qual abordaremos a seguir.

A trama de Penélope:
[...] o sofrimento incontornável me domina
HOMERO, 750-650 a. C./ 2014, p. 33

A obra épica do autor Homero, Odisseia (750-650 a.C./2014 d.C.), narra os embates
travados por Odisseu em sua volta para casa em Ítaca após a Guerra de Tróia. Contudo, para além

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do desejo de voltar ao lar, é apresentado também, o anseio do herói pelo retorno aos braços da
amada.
Nesse contexto é que Penélope se apresenta como um forte nome nas métricas homéricas.
Enquanto, Odisseu enfrentava ninfas, ciclopes, sereias e descia até à morada de Hades2, Penélope,
por sua vez, passava por embates que lhe arrancavam, não somente às lágrimas, mas também,
sua habilidade de tramar caminhos que bordejavam o vazio de si, na ausência do marido e,
posteriormente, do filho.
No decorrer dos 20 anos sem a resposta sobre o retorno, a vida ou a morte do esposo,
a personagem é atravessada por exigências familiares e sociais. Assim, vê-se sobre Penélope, a
imposição de um casamento com um novo marido. O que lhe retira a possibilidade de voz sobre o
seu desejo.
A sagacidade da rainha vai se apresentando no decorrer da obra. Planos são traçados por
ela, a fim de adiar os imperativos que nada diziam sobre si. Penélope então, frente a presença de
vários “procos” (gregos) no seu palácio, que se embebedavam e desfrutavam de sua comida, todos
os dias, em um cenário de disputa pelo matrimônio, dá o contexto de sua trama.
Ela propõe que os pretendentes tenham um tempo de espera, mesmo que longo, para um
novo casamento. Assim, ela se encarregaria de tecer um sudário para seu sogro Laerte. Deste ponto

1 A letra “h” foi incluída no intuito de demonstrar que “há mulher”. Apesar de inexistir no inconsciente, segundo
Lacan (1972/1973), ela existe nas invenções do um a um, no singular.
2 A morada de Hades: filho de Cronos, deus do além-túmulo; também denota o reino dos mortos (HOMERO, p.
751).
24
24A
em diante, é vivenciado pelo leitor a sua perspicácia, onde o tecido feito durante o dia, era (des-)
tecido na escuridão da noite. Penélope, a tecelã, se encarregava de uma tessitura que não teria fim.
Vale ressaltar que, sua estratégia é descoberta e levada à sabedoria de todos por uma de
suas “aias” (empregadas, companheiras da rainha). O que lhe obriga a finalizar o tecido, mesmo
que a contragosto. No entanto, ela continua a tecer. Mesmo que tendo o seu plano interrompido e
com toda ausência de fios, a rainha permaneceu a (des-)tecer: outros panos, outros sudários, mas
sempre sustentando, entre véus, choros e lamentos. A eterna tecelagem.

O feminino de Freud a Lacan

A histeria conferiu a Sigmund Freud a inauguração da psicanálise, evidenciando a importância


da fala no processo analítico. Contudo, o caminho não se encerrou nesse ponto, uma vez que, para
além da associação livre, a feminilidade se apresentou, a partir da escuta das mulheres, enquanto
um lugar de privilégio nos estudos freudianos. Duba (2012), discorreu que a figura da mulher foi
um fio condutor da psicanálise, mas também a sua pedra no caminho, desse modo, tornou-se a
representação de interrogações e de um não saber sobre a subjetividade apresentada nesse signo.
Pautada nessa conjuntura, as obras freudianas apresentaram uma diversidade de
elaborações, dúvidas e contradições acerca da temática. Assim, desde obras como Sobre as teorias
sexuais infantis (1908) à Conferência XXXIII: A Feminilidade (1933) foram percebidas mudanças nos
pensamentos do autor. Diante disso, ele perpassou pelo campo biológico até se ancorar entre o
campo social e psíquico, abordando suas inquietações frente ao desconhecido da mulher.
Desse modo, o psicanalista vienense, apresentou estudos sobre o Complexo de Édipo
que apontam não somente o campo do sexual nas crianças, mas pautam-se na importância que
esse construto possui para a compreensão das neuroses. Nesse sentido, as teorias sexuais infantis
também possuem influência na configuração dos sintomas, não se restringindo somente à infância
(FREUD, 1908/2018).
A partir desse debruçamento, Freud, em seus estudos, traçou um percurso de análise
do Complexo de Édipo em primeira instância, voltada somente para o sexo masculino (FREUD,
1908/2018). Com o evoluir de seus saberes, passos são dados em direção à explicação do Complexo
de Édipo na menina, mesmo que ainda, como pontuado por ele, enquanto uma teorização
“insatisfatória, lacunar e vaga” (FREUD, 1924/2018, p. 254). Dessa forma, ao inserir em seus
discursos o percurso edípico da menina, é que se permite pontuar questões acerca da castração, da
relação com o falo e do desenvolver da feminilidade.

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Com efeito, o Édipo na menina, é apresentado a partir da pré-condição feminina de
adentrar nessa fase do desenvolvimento já se reconhecendo enquanto não portadora do falo. Assim,
diferente dos meninos que temem a ameaça de castração, as meninas, por sua vez, a têm como
fato consumado (FREUD, 1924/2018). Vale ressaltar, que nesse momento, os estudos freudianos,
ainda se apegaram ao biologicismo médico. E que se pode demarcar pela sua afirmação em tom
de paródia à expressão de Napoleão: “A anatomia é o destino” (FREUD, 1924/2018, p. 252). Essa
premissa abriu caminho para que, posteriormente, o vienense formulasse um novo entendimento,
afirmando que “aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica
desconhecida que foge ao alcance da anatomia” (FREUD, 1933/2018, p. 141). Portanto, as questões
relacionadas ao feminino e ao masculino não são tomadas pela via anatômica na psicanálise.
Como exposto por Fuentes (2009), há uma genialidade em Sigmund Freud ao reconhecer o corpo
biológico e a anatomia enquanto impotentes para definir a sexualidade humana.
Diante desses pontos de afastamento entre o complexo de castração no menino e na
menina, não se pode deixar de mencionar o ponto que se mantém entre ambos: a primazia do
falo. Esse elemento, além de demonstrar como a busca fálica na mulher norteou a investigação
freudiana (FUENTES, 2009), aponta-se também para o lugar privilegiado que ele ocupa no Édipo.
Para Freud (1923/2018), uma característica fundante da organização genital infantil, para ambos os
sexos, reside no fato de que, apenas o genital masculino apresenta um papel, e que desta forma, o
primado do falo influi tanto para os meninos - pelo medo da castração -, quanto para as meninas -
pela não identificação e reconhecimento de que não o possui -. De toda forma, o falo se apresenta
25
25A
como essencial ao processo de organização sexual e de subjetivação da díade feminino-masculino.
No cenário psicanalítico, o falo é tomado enquanto fundamental desde as produções
freudianas às novas concepções lacanianas. Nesse percurso, o falo é promovido por Lacan
(1958/1998) ao estatuto de significante. Desta forma, pontua-se sua função enquanto significante
da falta, quando em uma relação direta com as posições sexuadas, ele é a marca primordial no
sujeito de desejos. Isso acontece de tal maneira que, ao assumir-se significante do desejo do Outro,
e ao desconsiderar a dimensão da diferença anatômica entre os sexos, torna-se essa pontuação,
“especialmente espinhosa na mulher e em relação à mulher” (LACAN, 1958/1998, p. 693).
Ademais, Freud (1924/2018) discorreu que o Édipo dispõe à criança duas formas de
satisfação, uma ativa e outra passiva. Na primeira, ela se relaciona com a posição paterna, e na
segunda, com a materna. Assim como também, expôs que na polaridade sexual, presente na época
da puberdade, o masculino comportaria o sujeito, a atividade e a posse; enquanto o feminino,
traria o objeto e a passividade. Percebe-se, portanto, que a figura da feminilidade permaneceu, por
grande tempo, no cenário da inércia e da omissão nas elaborações freudianas, demarcada por uma
passividade que ecoou no seu processo de desenvolvimento e de subjetivação.
Freud não se bastou com os seus pontos de elaboração e permaneceu no desejo de se
aprofundar no terreno desconhecido da sexualidade feminina. É nesse impulso que duas produções
do autor ganham notoriedade na comunidade psicanalítica: Sobre a sexualidade feminina (1931)
e A feminilidade (1933), ambos os textos apresentaram novas perspectivas no caminho freudiano
acerca da mulher.
Então, o analista se desdobrou com maior detalhe no Complexo de Édipo na menina
sem deixar de lado, o campo que o antecede, o complexo de castração (FREUD, 1931/2018). O
momento pré-edípico feminino, marca o engodo com a mãe. O papel materno, antes próximo,
torna-se alvo dos afetos de revolta e afastamento da filha, pois é ele quem censura a atividade
sexual feminina, assim como também é culpabilizado pela ausência de pênis na menina, restando-
lhe a inveja do pênis. Nesse percurso, ela se desloca para o pai, tomando-o como objeto de amor
(FREUD, 1931/2018).
O complexo de castração e a entrada ao Édipo são mais do que um deslocamento de objeto
para a menina (FREUD, 1931/2018). É necessário se separar da mãe e alcançar novos caminhos
para o desenvolvimento da mulher. Ainda que, desde as premissas freudianas, reconheça-se a
impossibilidade da psicanálise em descrever o que é a mulher. Desta forma, passa-se a discorrer
sobre as três orientações de desenvolvimento feminino/da mulher apontadas pelo autor: a negação/
inibição das monções sexuais, a homossexualidade e, por fim, a feminilidade propriamente dita

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(FREUD, 1933/2018). Essa última, apresenta-se como fundamental para a progressão do texto, pois
demonstra os primeiros traços inventivos de nomeações para o feminino (FUENTES, 2009).
O fato é que, as obras freudianas foram precursoras dessa temática na psicanálise ao abrir
caminhos para novas teorizações, com novas saídas femininas e que também se dissociam do
campo biológico. Jacques Lacan (1972-73/1985), por sua vez, se empenhou nesta função do estudo.
Sobretudo, no Seminário, livro 20: mais ainda (1972-73/1985), que veio a ser um importante objeto
de estudo aos demais teóricos de vertente lacaniana que se adentraram e adentram ao campo do
feminino.
Lacan retomou os estudos freudianos e foi além, como apontado por Valdívia (1997), uma
vez que ele também propôs um afastamento do campo anatômico e, dispôs da matematização
para expor o feminino e o masculino enquanto formas nas quais o ser falante se coloca frente a
sexualidade. A autora expôs que a tese lacaniana configura a divisão do sujeito ante o sexual, não
enquanto uma divisão entre dois sexos, mas sim entre dois modos de gozo: um todo fálico e outro
não-todo fálico.
Lacan e Freud são dialogados ao pontuarem acerca do falocentrismo do inconsciente.
Contudo, o psicanalista francês propôs uma importante diferenciação ao transformar o falo
em significante. A teoria lacaniana prosseguiu com as elaborações freudianas, mas ao incluir as
fórmulas lógicas da sexuação no Seminário, livro 20: mais ainda (1972-73/1985), questionou a
lógica da castração e evidenciou a sua incapacidade em regular todo o campo do gozo. Uma vez
que, uma parte dele não perpassa pelo Um fálico, permanecendo assim, no real, ou seja, fora do
campo simbólico (GONÇALVES, 2016).
26
26A
A tábua da sexuação possui fundamental estruturação, na qual é reconhecida por Lacan
(1972-73/1985) como tendo um lado feminino, ou seja, o lado não-todo fálico que não dispõe de
um significante mestre e todo fálico, que organize e diga o que é ser mulher. Essa constituição que
escapa à lei fálica, o leva à seguinte conclusão: “(...) eu disse da mulher, embora justamente, não
exista a mulher, a mulher não é toda” (LACAN, 1972-73/1985, p. 14).
Ainda nas elaborações lacanianas (1972-73/1985), é apontado que nada se pode falar da
mulher, demonstrando assim, um cenário que perpassa pela impossibilidade da simbolização.
Fuentes (2009) adentrou nos caminhos tracejados por Freud e Lacan sobre a feminilidade. Ela
pontuou que o real não detém um saber sobre a mulher e nem sobre a relação sexual. Desse modo,
o feminino se configura enquanto um nome desse real que faz furo na linguagem e “que não cessa
de se escrever no inconsciente (...). Se não há ‘O’ nome da mulher inscrito no inconsciente, infinitos
nomes podem surgir na tentativa de representá-la (...)” (FUENTES, 2009, p. 93).
A íntima relação entre o feminino e o real demonstra não somente aquilo que foge à
simbolização, mas sobretudo, expõe o sujeito faltoso em seu movimento desejante. Sendo assim, a
feminilidade e outras movimentações se apresentam como uma mascarada, uma busca incessante
de identificação e contornos, que possam tecer sobre isso que não se diz (VALDÍVIA, 1997). A
mulher, em Lacan, apresenta-se ativa e autora da sua própria história. Nos movimentos inventivos
de confecções que buscam lidar com o desamparo de sua inexistência é que se intenta provocar
sobre: o que resta (h)À Mulher quando essa se vê destituída dos pontos de amarração sobre si?
Desses pontos que rasgam a costura, o que emerge? Na busca por novas costuras, segue-se não
somente com Freud e Lacan, mas sobretudo, com Penélope, que não cessa de (se) costurar.

Entre a mãe e a esposa: escoa-se A mulher

Caras, ouvi-me.
O sofrimento que os olímpios me impingem as amigas desconhecem,
pois perdi primeiro o esposo.
(...) O turbilhão agora arrebatou-me o filho inglório.
HOMERO, 750-650 a. C./2014, p. 135, 137

Pranteio pela dupla.


HOMERO, 750-650 a. C./2014, p. 141

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As passagens supracitadas foram proferidas por Penélope, em seu lamento, ao tomar
conhecimento acerca do plano dos seus pretendentes de executar seu filho, Telêmaco. Esse
momento se tornou significativo ao demonstrar duas posições que atravessaram a estrutura
subjetiva da personagem. Desse modo, a dor se apresenta intimamente ligada às posições de mãe
e de esposa.
É sabido que Freud (1933/2018) propôs três caminhos possíveis a serem tomados pela
mulher no seu desenvolvimento. Contudo, a última das premissas que se referiu à feminilidade
possui importante espaço na história penelopeana. Isso ocorre devido à análise das relações que a
mulher apresenta com o seu objeto de amor e, por conseguinte, os laços presentes na maternidade
e no casamento.
Quanto aos atrelamentos da relação mãe-filha citadas por ele, sobretudo no período pré-
edípico da menina, vale ressaltar que a mãe, em primeira instância, tornava-se o papel designado
da culpa pela castração da filha. Posteriormente, ela seria vista como castrada também. Ou seja, o
que antes era um acontecimento infeliz e individual para a menina, se expandiria para outras figuras
femininas e, por último, à figura materna (FREUD, 1933/2018).
Dito isso, o psicanalista vienense destacou, não somente o caráter de generalidade que a
castração feminina comportava, mas também, evidenciou que a percepção da filha sobre a mãe
enquanto castrada, desestruturava o amor primordial pela mãe fálica. Sendo assim, seria possível
abandonar esse objeto de investimento amoroso que se apoiava na figura materna para demarcar
uma mudança de objeto e as condições de escolha feminina.
27
27A
Por sua vez, esses objetos elegidos pela menina, seguem uma lógica de ideal narcísica do
homem que ela desejou se tornar. De tal forma que, se há a permanência da ligação entre a menina
e o pai no período edípico, as escolhas de objetos que se assemelhem à figura paterna se tornam
possíveis (FREUD 1933/2018). Desse modo, para além de uma escolha estereotipada, tratamos
aqui sobre essa busca incessante pelo falo.
Tem-se assim, uma discussão à nível edipiano, que demonstra a transposição metafórica
da mãe para o pai. Nesse aspecto, Lacan (1957-58/1999), nos conduz às elaborações de que o
Complexo de Édipo possui uma função normativa, que não se esgota na estrutura moral do sujeito
e nem nas suas relações com a realidade, mas que também envolve a assunção de seu sexo. O que
se relaciona àquilo que permite ao homem assumir o tipo viril. Quanto à mulher, o tipo feminino,
isto é, que se reconheça e se identifique como mulher.
O Édipo liga-se à função do Ideal do Eu, encarnado pelo pai interditor. Isso acontece de tal
forma, que ao assumir essa função, é que se produz na menina o reconhecimento daquilo que ela
não tem: o falo (LACAN, 1957-58/1999). Põe-se em cena, as reverberações da identificação ideal
e, assim, para a menina, o construto que demonstra o fato de não ter o falo. Isso é tomado por
ela por meio de uma conformidade inconsciente. Contudo, há algo que “sempre lhe fica de um
pequeno amargo na boca, ao qual se dá o nome de Penisneid3, prova de que isso não funciona de
maneira rigorosa” (LACAN, 1957-58/1999, p. 179). Ou seja, nessa introjeção da metáfora paterna,
há na menina algo que resta e que escapa. Ainda que o significante paterno tenha uma função
específica para ela, ele não há de gerar uma via inteira de simbolização sobre a sexualidade feminina
(MASSARA, 2014).
Nesse percurso, as elaborações freudianas sobre as escolhas de objeto da menina após
se desvincular da mãe são acompanhadas das reflexões amorosas. O autor afirmou que “(...)
atribuímos, portanto, à feminilidade, um grau maior de narcisismo, o qual também influencia sua
escolha de objeto, de maneira que, ser amada para a mulher, é uma necessidade mais forte do que
amar” (FREUD, 1933/2018, p. 338).
A inclusão de um discurso amoroso nos dizeres freudianos reflete as dimensões da
feminilidade que se colocam em confronto com essa falta originária do falo. Nessa perspectiva, o
casamento se apresenta enquanto um aparato importante nas tentativas de obtenção fálica. O que
comporta uma lógica de repetição da figura do pai e também, uma tentativa de se fazer ser amada
pelo Outro que carrega algo de não posse da mulher.
Nesse sentido, o matrimônio revela uma conjugação pelas vias do amor que buscam dar
corpo a essa ausência fálica feminina. Em 1958/1998, Lacan disse que é pelo o que a mulher não

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é, e por aquilo que ela não tem, é que ela busca ser desejada e amada. Assim, a significação fálica
apresentaria uma conjuntura de se incluir no desejo do Outro, ao mesmo tempo que demonstraria
o movimento de encontro com o que esse Outro possuiria de real e que poderia se fazer de falo
para a mulher.
Então, a Penélope sofre pela perda desse falo em diversas instâncias. Primeiro, ao apresentar
uma estruturação subjetiva feminina. Em seguida, ao vivenciar o não saber sobre a vida ou morte
do marido. E, por último, ao se deparar com a grave possibilidade de perda do filho. No que diz
respeito à perda do esposo, faz-se o entrelaçamento com a confecção do casamento nos processos
de subjetivação feminina. Mas cabe aqui ressaltar que, a maternidade também se mostra como um
fator preponderante que busca aproximar A mulher dessa posição fálica, mesmo que de maneira
velada.
Ao voltarmos ao texto de Freud de 1933/2018, vemos a maternidade como a relação mais
perfeita e sem ambivalência. Nele, o filho proporciona à mãe uma satisfação ilimitada. Para além
disso, ao retornarmos em O declínio do complexo de Édipo (1924/2018), o autor discorreu que a
ausência do falo não seria tolerada pela menina sem estratégias de compensação. Contudo, esse
desejo nunca seria cumprido, mas é de grande importância ressaltar que, para Freud (1924/2018), o
desejo por um pênis e por um filho, permaneceriam investidos no inconsciente da figura feminina.
Dito isso, tanto o casamento quanto a maternidade são pontuados como duas saídas
para o desenvolvimento da feminilidade, segundo os estudos freudianos. Mais uma vez, torna-se

3 Penisneid: Falo; falocentrismo; inveja; sexualidade feminina (ROUDINESCO; PLON, 1998). Termo empregado por
Sigmund Freud para designar a inveja do pênis no processo de desenvolvimento da menina.
28
28A
necessário relembrar que o discurso do autor foi atravessado pelas formas de organização social
de sua época. Nesse sentido, Maria Rita Kehl (2018), mostrou-se potente em suas palavras no
posfácio Freud e as mulheres, ao elevar essa análise ao nível temporal e cultural. Assim, segundo a
pesquisadora:
(...) Não é preciso ser psicanalista para observar, hoje, o quanto
essa constatação de Freud (à diferença de incontáveis outras)
era exata – mas datada. Parece-me que, na primeira metade
do século XX (antes da segunda onda feminista e muito antes
dos movimentos de liberação sexual, racial e de gênero dos
anos 1960), o que se esgotava nas mulheres de 30 anos não
eram as forças nem a libido. Esgotavam-se as perspectivas de
construção de novos destinos para a libido, que até então, havia
se concentrado – na melhor das hipóteses - no amor conjugal
e na maternidade. (...) O que Freud percebeu (mas não pôde
compreender) a respeito da libido feminina, ainda viva e
pulsante no primeiro terço da vida, foi a completa ausência
de novos destinos depois da (muito provável) decepção do
casamento, do enclausuramento domésticos e dos prazeres
do aleitamento de incontáveis filhos (KEHL, 2018, p. 365).

A personagem Penélope, desse modo, é representante da sua época, mas, ao mesmo


tempo, mantém-se sempre atual. Não obstante, o seu sofrimento é relatado nas linhas homéricas
enquanto avassalador: “O coração e os joelhos da rainha baqueiam./ Sílaba, uma só, não fala, as
lágrimas/ Decaem do olhar, e, quase à tona, a voz aborta” (HOMERO, 750-650 a.C./2014, p. 135). A
rainha se vê irrompida pela ausência fálica. Dos pontos de amarração que havia tomado para si, saía
de cena a mãe e a esposa, restava-lhe o desarranjo. Um desamparo que, segundo os cânticos, não
lhe permitia encontrar “uma cadeira/ Que fosse, das inúmeras que havia ali” (HOMERO, 750-650
a.C./2014, p. 135).
Reconhece-se a atualidade em Penélope, ao subverter as noções nas quais estão envoltas
a maternidade e o matrimônio. Indo além, e não se submetendo a outras amarrações fálicas
convencionais, como um novo casamento. Assim, apesar da sua grande angústia, há algo nela que
insiste em novos caminhos além desses impostos socialmente. Da mesma forma, é conferido pela
personagem um novo sentido do ato de tecer, usualmente designado às mulheres, pontos esses
que serão abordados adiante.
Penélope promove um (des)encontro com Freud, uma vez que, em conjunto com o

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psicanalista, ela perpassa os caminhos que a elegem como esposa e mãe. Mas, ao mesmo tempo,
escancara o que não é dito pelo escritor: o que resta quando não se tem nem o casamento e nem
a maternidade? A rainha então demonstra a possibilidade de operar no resto e nos pontos de
amarração onde a lei fálica não reina totalmente. E com isso, dá espaço para o aparecimento de
algo que é inominável, que irrompe e promove sofrimento, mas que insiste em não cessar de se
inscrever.

No resto que se tece: a possibilidade de se fazer Outra coisa 

E consegui dobrar os corações altivos. 


Mas o que entretecia na jornada, eu mesma 
Durante a noite, à luz archote, destecia.
HOMERO, 750-650 a. C./2014, p. 575 
 
A epígrafe citada traz o relato de Penélope acerca do seu plano de evitar um novo casamento
com os pretendentes. A personagem recorreu à tessitura a fim de se desviar das imposições sociais
que a levavam a outro contrato matrimonial. A trama da rainha revela não somente um caminho
astucioso para vivenciar o seu luto, mas também, confere a possibilidade de tecer a si e ao seu
próprio desejo. 
29
29A
Apontamos que, a rainha ateniense atesta o dizer lacaniano do amor enquanto impotente,
ainda que recíproco. Nesse sentido, ao se ver sem Odisseu, é perceptível que o desejo amoroso
de ser “Um” escancara o que na verdade seria o impossível de estabelecer a relação dos dois
sexos (LACAN, 1972-73/1985). Ainda nesse percurso, o psicanalista diz que, “a única verdade
incontestável é a de que não há relação sexual” (p. 19). Assim, essa inexistência demonstra a não
complementaridade dos pares, de modo que, no encontro amoroso com o Outro, há um ponto de
desarranjo.  
Ademais, o Outro apresenta importância substancial nesse ensino de Lacan (1972-73/1985),
uma vez que ele demarca, entre outras coisas, a busca do sujeito em ser desejado. O lugar do Outro
é representado pela letra “A”4, mas ao ser conjugado junto à letra S (significante), o autor vê o “A”
enquanto barrado, formando assim, o S( ), ou seja, demonstrando a falha que se faz presente no
campo do Outro. O significante de uma falta no Outro representa o limite da significância. Dessa
forma, como diz o aforismo lacaniano, “A mulher não existe”, indicando um gozo Outro. Como
afirmou Lacan (1972-73/1985), o amor busca fazer suplência à não relação sexual, mas como já
mencionado, há algo que rateia e fica de fora. Tem-se uma falta no lugar do Outro. Há sempre um
amuro5.
Nesse cenário, a posição feminina da personagem ainda se torna mais evidente. Ao ser
destituída dos seus aparatos fálicos, Penélope encontra como acompanhante a solidão do seu
vazio. Dessa forma, ao se representar pelo gozo Outro, que não seja todo fálico, A mulher (posição
feminina da Penélope) é tomada por Lacan (1972-73/1985) enquanto não-toda. Tem-se aí, a cifra
de um impossível, a qual a demanda fálica não pode eliminar. Assim, não há um significante que
faça d’A mulher, toda, uma vez que a posição feminina é afetada no corpo por um gozo Outro que
não se reduz ao modo de gozar masculino e que mantém nesse campo, uma ausência que não se
escreve na linguagem, mas que insiste no real (FUENTES, 2009).  
Penélope apresenta esse algo “a” mais pelo uso de artifícios que buscam encobrir a sua
não existência: sua tecelagem, o recobrimento do seu rosto pelo véu e uma postura majoritária de
reclusão e silêncio em seus aposentos. Dito isso, o espaço do feminino é produzido entre centro e
ausência, isto é, entre o centro que se simboliza pelo falo e a ausência mais radical produzida na
solidão do gozo feminino. Um momento abrupto em que o sujeito se confronta com sua própria
ausência (BASSOLS, 2017). 
É desse ponto de furo que se tem a inserção do objeto a no circuito pulsional do sujeito.
Aqui também, se estabelece a dinâmica de impossibilidade de fazer de dois uma unicidade.
Lacan (1972-73/1985) demonstrou a tentativa do sujeito em fazer Um, representando uma busca

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em produzir a totalidade dos pares. Contudo, como apontado pelo psicanalista, isso demarca o
universal que é falho. Uma vez que, a relação sexual inexiste, justamente por ter algo nela que
escapa. Dessa maneira, não há Um, mas sim o Um mais a, ou seja, tem-se uma aposta imaginária e
fálica totalizante no âmago da questão amorosa que movimenta o sujeito em direção à espera de
que o enlace amoroso apresente uma resposta frente à falta na sua dimensão real (LANDI, 2017). O
que há desse indizível revela que o Um está para si mesmo e que não há como fazer de dois, Um.
Retomando as proposições lacanianas (1972-73/1985), é dito que se o amor apresenta uma
relação com o Um, no que tange ao real, ele não faz ninguém sair de si mesmo. O que já aponta
o caráter de solidão entre os pares e seus modos de gozo, mais precisamente, com aquilo que
se intitula de objeto a, que vem operar em relação a essa perda e que cai do campo simbólico
enquanto irrepresentável. Nessa perspectiva, Landi (2017) discorreu que a solidão estrutural é algo
que insiste e não se recobre pelo enlaçamento simbólico e imaginário presente no amor. Visto que,
o amor contingência deixa um resto de solidão e um resto de real.
De tal forma, se é sobre a solidão presente na irrupção do real que aponta para os aforismos
lacanianos acerca da inexistência d’A mulher e da relação sexual. É ainda, pelo enodamento dos
registros que se busca significar o não significado que sempre carregará o vácuo do objeto a.

4 Autre no idioma francês. Termo designado por Jacques Lacan para designar um lugar simbólico que determina o
sujeito (ROUDINESCO; PLON, 1998).
5 Amuro: neologismo lacaniano retirado do poema de Antoine Tudal para designar a existência de algo, uma barra
entre o homem e a mulher na relação amorosa. Retomado no Seminário, livro 20: mais, ainda (1972/1973) e em
demais obras do autor.
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30A
Mesmo assim, opera-se com o que vem do a, uma vez que, o vazio possibilita a criação do mundo
do ser na linguagem, proporcionando algo que vela esse buraco (CUNHA; LIMA, 2018).
Por conseguinte, dentro do discurso amoroso que é postulado por Lacan (1960/1998
p. 741), temos: “O homem serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro para
ela mesma”. Com base nessa afirmativa, demonstra-se que os desdobramentos de uma mulher
apontam para caminhos dela com ela mesma e com os seus pontos não totalizantes que impedem
a universalização e o fazer grupo. 
Com isso, percebemos que Penélope demonstra uma íntima relação entre a destituição
fálica, o objeto a e o resto. Retomamos um importante questionamento feito por Lacan (1960/1998)
acerca da capacidade da mediação fálica em drenar tudo o que se manifesta de pulsional na mulher.
Uma vez que, é sabido que as amarrações fálicas contêm o sentido de mascarada para A mulher.
Isto é, defesas frente à ordem do real que se revela. Assim, cabe mencionar que, mais uma vez, o
frequente véu utilizado pela personagem, busca em tentativas que não são em vão, fazer função de
suporte e semblante frente ao que foge à simbolização.  
Nas elaborações do Seminário, livro 20 (1972-73/1985), Lacan articulou o objeto a com o
pedaço de corpo que se esconde sob o véu da imagem. Tem-se, então, a aproximação do objeto
a ao corpo e ao resto. Já que, a possibilidade de um gozo é sempre fraturada, impossibilitada pela
lógica fálica.
Diante da afirmativa “O que faz aguentar-se a imagem, é um resto” (LACAN, 1972-73/1985,
p. 13). Entende-se que, aquilo que cai do processo de alienação e separação, demarca a divisão
constitutiva do sujeito. O que, ao mesmo tempo, é o que se insere na lógica de busca do desejo
pelo objeto faltante e o que escancara o que resta do processo existente entre ser objeto de desejo,
ser o falo e ser A mulher. Desse modo, cabe à psicanálise falar sobre os restos, do corpo e dos seus
excessos, do amor e de suas perdas (VICTOR, 2021). Tanto quanto, bordejar o não-dito e aquilo que
aparece enquanto resto para A mulher. Para além do falo, e que insiste em fazer marca. 
Nesse sentido, ao abordar a inexistência da relação sexual, as elaborações lacanianas
(1972-73/1985) apontam para as diferenciações entre o que se alinha ao lado masculino na tábua
da sexuação e o que se alinha ao lado feminino na mesma tábua. Ao referir-se às questões de gozo,
Lacan pontuou que haveria do lado todo-fálico, a busca pelo objeto a, uma vez que, esse ocupa o
lugar do parceiro que falta. O que possibilita a instauração da fantasia no lugar do real. Contudo, do
lado d’A mulher encontra-se outra coisa que vem em suplência à relação que não há.
Desta forma, ao apontar A mulher pela busca em ser desejada, ela se aproxima em se fazer
de objeto a, ou seja, a causa de desejo. Ademais, Lacan, ainda nas elaborações do Seminário, livro

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20 (1972-73/1985) esclareceu o “a” enquanto significante e o articulou quanto à inexistência da
mulher:
[...] nesse a artigo, o significante, apesar de tudo, coerente e
mesmo indispensável. A prova é que, ainda há pouco, falei
de o homem e a mulher. É um significante, este a. É por este
a que eu simbolizo o significante cujo lugar é indispensável
marcar e que não pode ser deixado vazio. Esse a artigo, é
um significante do qual é próprio ser o único que não pode
significar nada, e somente, por fundar o estatuto d’a mulher
no que ela não é toda. [...] Esse a mais. (LACAN, 1972-73/1985,
p. 79-80).

Portanto, o “a artigo” se inclui no movimento do sujeito enquanto aquilo que nunca


obterá uma significação. Ele está à mercê das buscas por objetos não complementares e demonstra
um ponto de falta e também de não-todo, de inexistência d’A mulher. Dessa forma, se do lado
masculino há uma determinada relação com o objeto a, do lado feminino, outra se demonstra.
Apresenta-se, assim, diferentes formas de amar, desejar e de gozar que demarcam a não relação
sexual (KUSS, 2015). Ao situar essas reflexões junto à investigação acerca da destituição fálica e dos
restos d’A mulher, torna-se necessário fazer o retorno às elaborações sobre o falo, desenvolvidas no
texto.

31
31A
Para além do falo: dizer não e consentir com a falta

Até aqui, apontamos o percurso da primazia do falo desde Sigmund Freud até a elevação
deste ao estatuto de significante no ensino lacaniano. Contudo, é fato que o significante fálico
permeia também as propostas do Seminário, livro 20 (1972-73/1985). Sobretudo, no que se
relaciona às vias d’A mulher. Sabe-se ainda que, a mulher é não-toda na função fálica, ou seja, “ela
não está lá de todo. Ela está lá a toda” (LACAN, 1972-73/1985, p. 80). E com isso, existe um gozo que
está para além do falo que demarca a posição subjetiva na qual concerne ao feminino. Soler (2005,
p. 41) trouxe a contribuição substancial a isso quando disse: “[...] dizer que ela não será nada de
tudo que se possa dizer a seu respeito, que ela fica fora do simbólico, real no duplo sentido daquilo
que não se pode dizer e daquilo que se goza de não-fálico, com o Outro absoluto”.
Quando voltamos às entrelinhas homéricas, vemos que elas apresentam essa dupla
instância de Penélope. No sentido de estar inclusa no todo fálico ao mesmo tempo que não.
Assim ela, sem o marido e sem o filho, produz outros caminhos em busca de fazer suporte ao
seu desnudamento. O véu, não somente faz a função de encobrir seu rosto, mas também busca
esconder o que está por trás. O silêncio não demarca somente sua tristeza, mas também a angústia
frente à solidão e o não-dito. A sua tecelagem não demarca somente uma estratégia de fuga, mas
uma nova construção, fio a fio, de si. Seu percurso demonstra a relação com o falo e a destituição
dele. Frente a isso, essas tentativas de amarrações são evocadas.
O fato é que, essa trama demonstra a caída do todo fálico para o aparecimento do não-
todo fálico. Esse processo, como evidenciado pela personagem, não se faz sem um trabalho de luto.
Quando Landi (2017) abordou essa temática junto ao feminino, ela retomou tanto Freud quanto
Lacan para fundamentar a presença importante do trabalho de luto na dimensão constitutiva do
sujeito. O que possibilita compreender um atravessamento pela perda do objeto de amor, pela
visão freudiana, e a elaboração da perda do falo, pela visão lacaniana.
Assim, há de se fazer o luto pela perda do falo. Uma vez que perdê-lo, como nos apontou
Landi (2017, p. 142), é como cavar “um buraco no real, no qual se projeta o significante faltante”.
Isso se dá de tal forma que, nos dizeres da autora, a partir da castração, o objeto a vem ocupar o
lugar de causa de desejo. O que se encontra em Penélope é um longo trabalho de lutos: o luto pelo
objeto de amor, o Outro e o falo.
Há, portanto, uma insuficiência fálica em responder tanto o que resta de gozo no
desdobramento de uma análise como para dizer sobre a construção da feminilidade e sobre o gozo
Outro - o que implica em uma limitação do semblante fálico. Algo do semblante fálico cai e se esvai

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convocando o trabalho de luto (LANDI, 2017). A autora ainda trouxe outra elaboração que concerne
ao falo, ao luto e ao objeto a:
É um exercício de reinvestimento no objeto a, que não é outro,
senão aquele que, por ser o resto irrepresentável da divisão
do sujeito pelo Outro, funciona como causa do desejo. Nesse
sentido, o luto desmascara o que oferecia alguma sustentação
para o sujeito no campo fenomênico, e revela o objeto a, que
também é o objeto da angústia. Para que o trabalho de luto
aconteça, será necessário desnudar o objeto a de suas vestes
imaginárias. Caso contrário, se o desejo prender-se à imagem
do objeto, i(a), que estrutura o amor narcisicamente, a perda
resultará no triunfo do objeto (....). Da sustentação fálica,
que pretende ilusoriamente fazer um muro frente ao real, à
intimidade com a falta, esse é o trabalho da análise, que pode
promover uma escrita com o objeto a, letra que condensa as
inúmeras possibilidades de causa do desejo (LANDI, 2017, p.
143).

Assim como nos mostra Penélope em conjunção com o exposto por Landi (2017), o cair das
articulações imaginárias e simbólicas fálicas atordoa e retira o chão do sujeito. Contudo, tem-se a
possibilidade de fazer outra coisa com a falta. Se o feminino possui um gozo suplementar para além
do falo, ele nos direciona para essa aposta: um trabalho de fiar para que ele (o impossível) possa
32
32A
ser sustentado.
Sendo assim, o feminino, enquanto nome desse real que escapa à lógica fálica, se
apresenta como Outro absoluto, ou seja, como uma alteridade que visa o infinito do gozo. Tudo
pode ser imputado à mulher (LACAN, 1960/1998). Desta forma, na relação falocêntrica e na lógica
de linguagem do inconsciente, apresenta-se uma articulação simbólica e imaginária de confecções
de nomes para A mulher. Com isso, é no encontro com o que não se recobre pelo significante, com
as fraturas e, com os restos que escancaram o real, que se revela o que está por detrás do véu e que
torna possível articular um saber fazer com a dimensão Outra.
Nesse sentido, Penélope instaura a sua tecelagem através do que resta. Isto é, pela falha no
simbólico que aponta para a inexistência d’A mulher e da relação sexual. A personagem põe em
cena o ato. Em 2013, Caldas apresentou uma importante elaboração ao dizer que, após o ato, não
se pode mais apagar o registro. Desse modo, frente ao não saber, a personagem ateniense tece o
sudário ao mesmo tempo que tece a si mesma. Ela o faz na tentativa inventiva de escrever o que
não pode ser lido, o seu ser feminino. 
Com isso, ainda se pode aproximar a tecelagem de Penélope ao estatuto da letra pois,
para Lacan (1972-73/1985), a letra é colocada como esse ajuntamento que constitui o inconsciente.
O que seria, portanto, o que recai no campo do real. Desse modo, a escritura do real em cada
sujeito determina sua gramática pulsional (CUNHA; LIMA, 2018). Pela primeira vez ao tecer, a
personagem busca promover ajuntamentos frente ao que se revelou no real, a partir das linhas.
Contudo, mesmo com o descobrimento do seu plano, Penélope continua a tecer outros sudários
e fazer desse emaranhado uma nova possibilidade de escritura. Ela busca tramar, entrelinhar e
costurar essa abertura do real. Dessa forma, o tecer de Penélope passa do estatuto de letra para
o de significante. Assim, o que antes não era passível de ser simbolizado se desenvolve como a
possibilidade de fazer com a falta, ou melhor, fazer com os restos dos retalhos e linhas. 
Nesse ponto, percebe-se que Penélope diz não. Que ela não se assujeita à imposição
social de novos casamentos, e de que, não elege ou busca um novo objeto amoroso para fazer par.
Do mesmo modo, ela recusa a função de se incluir no desejo do Outro. Novos parceiros não são
escolhidos pela rainha, bem como, em seus aposentos, não há o uso do véu. Ela busca somente
tecer. É possível pontuar que, outra dimensão se revela nessa configuração, a de que, junto somente
à sua solidão, novos emaranhados são constituídos.
Torna-se crucial demarcar que, pelo olhar de outros personagens que se referiam à
Penélope na obra homérica, tem-se a repetição de dizê-la pela via da espera. A exemplo disso,
tem-se a passagem do porcariço, Eumeu, que é: “Garanto que ela espera com inquebrantável/
Têmpera no palácio. Os dias passam tristes,/Tão tristes quanto as noites, pois, só chora a cântaros”

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(HOMERO, 750-650 a.C./2014 d.C., p. 329).
Por outra via, se a mulher nada sabe dizer sobre si, como nos lembra Lacan (1972-73/1985,
p. 95), o Outro também se apresenta como um lugar de não saber, vide a interrogação lacaniana:
“Será que o Outro sabe?”. Tem-se assim, uma disjunção entre o que se dizia de Penélope e o que
ela não dizia sobre si. A espera de Penélope se torna um trabalho a fio e se trata de uma espera
de si. Afinal, algo ainda não fora desvendado entre a tessitura e o véu. O que Penélope deseja,
permanece como enigma. A parte disso, o discurso e a posição que o semblante não esconde.
Castello Branco (1990, p. 349) discorreu que o destecer de Penélope constrói um novo
texto gerado na ausência, na perda e na morte. Assim, essa nova escritura nasce como “resíduo,
como excesso, como resto do primeiro: o texto da espera, o texto do adiamento”. A autora
prosseguiu dizendo que assim consiste a escrita feminina, isto é, fazer do vazio e do gozo, uma
borda de produção de sentido que os sustente.
A Odisseia (750-650 a.C./2014 d.C.) contém um interessante momento em que Penélope
diz: “O gozo de eros cede ao gozo dos racontos” (HOMERO, 750-650 a.C./2014 d.C., p. 699).
Nesse sentido, nos dizeres da rainha, não seria o amor, mas sim os racontos. Isto é, as palavras
que possibilitariam gerar algum dizer sobre a sua vivência. Efraim em 2012 publicou sua pesquisa
filosófica e política sobre a personagem. Ela apontou que “tecer” apresenta um vínculo etimológico
com a palavra “texto”. Assim, tem-se na trama penelopeana a busca por uma escrita frente ao
indizível, um ponto latejante do impossível, que “não pára de não se escrever” (LACAN, 1972-
73/1985, p. 101).
33
33A
A travessia de Penélope: tramar o Um sem o Outro

Penélope, a destituição fálica e a solidão. Pela invenção, tece para poder existir e tramar
algo frente ao real. Azevedo (2010) aproximou a obra de Homero, Odisseia, ao percurso da análise,
mais precisamente ao “vir a ser psicanalista”. Ela discorreu que tanto Odisseu quanto Penélope
haviam mudado. Dessa forma, no decorrer dos 20 anos, ambos não eram mais os mesmos.
Freud (1933/2018, p. 338) apontou que o trançar e o tecer são invenções construídas pelas
mulheres que se apresentam na história cultural. Ele ainda destacou que, nesse trabalho, a mulher
“tecer-se-ia tentando adivinhar o motivo inconsciente dessa realização”. Enquanto que, Naves
(2012), ao referenciar essa passagem freudiana, relembrou que a tessitura se dava em torno de um
vazio impossível de ser preenchido. Assim, Penélope tece.
A tecelagem indica e pressupõe a irrupção de um gozo que está para além do falo. Em tom
de novas amarrações é que a personagem se dedica ao ato do “não-todo-tecido”. O que relembra
a duplicidade implicada na posição feminina. Com isso, Lacan (1967/2003, p.252) ao apresentar
a distinção entre o outro imaginário, como pequeno outro, e o lugar de operação da linguagem,
como o grande Outro, constatou que “nenhum sujeito é suponível por outro sujeito”. Assim, tem-
se a divisão do sujeito e as suas próprias elaborações às voltas com o seu resto. Nesse percurso, o
sujeito se depara com as decaídas de suas construções de fantasias que faziam frente ao real. O que
implica em uma posição de des-ser (LACAN, 1967/2003).
O caráter de des-ser da personagem se atrela com o enfrentamento do real e da sua
inexistência. Ainda assim, é por meio do resgate do tecer que se percebe a busca pela apreensão
simbólica para construir e inventar seu próprio nome. Massara (2014) ao se desdobrar nos estudos
sobre os extravios da mulher, pontuou que, ainda que extraviadas em relação ao campo simbólico,
é possível bordejar e nomear algo do Outro gozo que a princípio era impossível de contornar.
Em primeira instância, o processo de destituição fálica de Penélope apresenta a produção
de novas respostas diante do vazio. Porém, no decorrer de sua trama de 20 anos, adquire caráter de
se abrir para uma ausência que não comporta o Outro para suplantá-la. Desse modo, em articulação
com a letra tecida, escreve-se o Um, em solidão, sem extinguir a contingência do encontro com o
Outro, que inclui algo para além das amarrações imaginárias e simbólicas, e traz o encontro com o
real (LANDI, 2017, p.146). A autora ainda trouxe um importante questionamento: “E se uma mulher
faz o luto do falo, renuncia essa busca fálica, o que restará a ela, reconciliada com a privação real,
despojada do ter?”.
Dessa forma, Lacan (1972-73/1985) ao aproximar o Outro gozo do real, propôs a reflexão do

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que se faz a partir dessa privação real feminina. Ao passo que, Soler (2005) retomou as proposições
lacanianas e reafirmou a aproximação da via do não-todo fálico à travessia da análise. O mesmo
pode ser percebido em Penélope que, ao final de sua trama, revela-se Outra.
O final da análise demonstra a obtenção do sujeito determinado, com novas elaborações
sobre o que quer e sobre o que é, mas não pela identificação com o Outro (SOLER, 2005). O que
evidencia a condição de solidão. Assim como no fiar analítico, Penélope é convocada a responder
pela sua própria marca e se apropriar dela. Nesse sentido, junto às contribuições de Landi (2017),
pode-se afirmar que o percurso analítico traz o convite à fala. Ele permite que algo do fazer com a
letra – que possui uma parceria singular –, possibilite a promoção do laço de tal modo, que a análise
leva o sujeito ao encontro com a solidão presente no real.
Assim, a tecelagem de Penélope apresenta um consentimento com a emergência do
real, uma vez que há o reconhecimento dos buracos (entre)linhas. Em paralelo à frase de Clarice
Lispector (1943/2019, p. 36) que diz: “O que eu desejo ainda não tem nome”, o desejo de Penélope
se encontra nas articulações de seus tecidos. Tem-se um não saber, ao mesmo tempo que se tem
o movimento de busca pelo não significado. Sabe-se, portanto, que a trama da personagem se
refere ao Um. A ela mesma. Isso acontece de tal forma que, para enfrentar o resto irrepresentável
no processo de se tecer, sempre será necessária a solidão da noite que traz o destecer(se). Frente à
destituição fálica, resta A mulher.

34
34A
Conclusões não-todas
Você deságua em mim, e eu
Oceano
Música “Oceano” - DJAVAN (1989)

Tanto Sigmund Freud quanto Jacques Lacan apresentaram dentre os seus ensinos,
impasses para com a figura da mulher. Nesse sentido, ambos possuem anos de elaborações que
se apresentam pouco a pouco em diversas produções. Assim, Freud (1933/2018, p.314) discorreu:
“Sobre o enigma da feminilidade, ruminaram os seres humanos de todos os tempos”. Esse ato de
ruminar também se apresentou nos dizeres lacanianos quando ele traz nomes de figuras femininas
como Ysé, Medéia, Antígona, Santa Teresa D’Ávila, entre outras que comportam um longo percurso
de estudos e, sobretudo, interrogações.
O percurso freudiano vai desde o período pré-edípico à maturação do desenvolvimento que
permite ao sujeito se intitular homem ou mulher. Já nos avanços lacanianos, com o suporte da
linguagem e da matemática, o feminino e o masculino se relacionam ao falo e às posições de gozo,
explicitando a diferença entre eles. Mesmo com articulações diversas, ambos convergem em um
ponto comum acerca da obscuridade e da não totalidade, sobre o que é e o que deseja uma mulher.
O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73/1985) apresenta importante contribuição
teórica a essa temática, incluindo a dimensão do real e da não significação para tentar capturar algo
do enigma presente na figura feminina. Conclui-se a não universalização d’A mulher e, assim, uma
única resposta sempre estará à deriva dessas questões.
Sobretudo, a construção do presente texto foi regida por Penélope. Desse modo, o nome d’A
mulher se fez presente, e além disso, suas invenções construíram sua nomeação. Freud, Lacan e os
demais comentadores foram tomados como fundamentais aos pontos discorridos neste trabalho.
No entanto, a tecelã foi quem nos permitiu evocar a ordem do que não se diz, mas se bordeja.
Assim como na música Oceano, do cantor brasileiro, Djavan, A mulher também possui uma
dimensão oceânica. Uma vez que, ela sempre possuirá esse a mais. Esse que se incluirá no seu
desejo, no seu laço com o Outro e na dimensão borromeana presentificando o real. A referida
composição, assim como Penélope, denuncia a falta do parceiro amoroso e põe em cena a solidão
do sujeito. Dessa forma, para além do falo, para além do Outro, para além do amor… algo se localiza.
No caso da personagem, localiza-se a si mesma e sua dimensão não-toda.
Elaborar uma análise totalizante da personagem Penélope e sua dimensão do feminino é
uma tarefa a revelar o impossível, como lembrado por Lacan (1972-73/1985). Contudo, é possível

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abordar o que essa jornada de ser mulher apresenta. A literatura homérica constrói uma personagem
feminina para além do falo, e mais, ainda, que permite uma decaída de suas amarrações simbólicas
para a criação de novas.
Assim, a indagação do trabalho “o que resta (h)À mulher quando destituída dos seus
aparatos fálicos?” nos leva a diversas respostas, sobretudo, a partir da conceituação acerca da
não universalização do sujeito, tão cara ao cenário psicanalítico. Por conseguinte, ao partir dessa
premissa em Penélope, é possível perceber um trabalho de poesia com seus restos e sua solidão. O
que torna possível a tessitura de Outra coisa.
Nesse sentido, Penélope consente com a dimensão real ao (des)tecer seus sudários. Percebe-
se amarrações que sempre apresentarão buracos. E é assim, frente ao inenarrável, que se concebe
o ato de tecer visando ao infinito, sem temporalidade de fim. Entre o oceano de linhas, produz-se
uma escrita feminina que não busca tomar o todo, nem mesmo apresenta uma resposta definitiva
para A mulher. Mas que consiste numa dimensão, produzida em restos, que contorna e dá acesso
ao que foge à simbolização.
Guimarães Rosa (1985, p. 88) disse: “viver é um rasgar-se e remendar-se”. Essa é a aposta de
Penélope, essa é a aposta deste texto.

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35
35A
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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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38
38A
O DELÍRIO E O POEMA NA PSICANÁLISE

THE DELUSION AND THE POEM IN PSYCHOANALYSIS

Ana Giulia de Araújo Conte 1


Márcia Cristina Maesso 2

Resumo: Este trabalho propõe retomar formulações de Freud e Lacan sobre a psicose, o delírio como tentativa de cura e a
função do significante na estruturação do sujeito, assim como adentrar nas considerações de Octavio Paz sobre a operação
de criação poética. O interesse é investigar as relações entre o delírio (a realização do verbo) e o poema (o delírio do verbo),
de modo a explorar suas estruturas e diferentes formas de subversão das normas e convenções da língua e, assim, entrever
possibilidades clínicas e implicações éticas. Entende-se o delírio não como poema propriamente, mas como uma expressão
poética, expressão do dinamismo da língua, de modo que sua construção sinaliza um empenho de reconstituição diante
do surgimento de alucinações. A posição do analista envolve não descartar sua produção, mas favorecer a construção de
narrativas em favor da compensação dos efeitos da foraclusão do significante Nome-do-Pai e do advir do sujeito.

Palavras-chave: Psicanálise. Psicose. Delírio. Poema. Significante.

Abstract: This paper revisits Freud’s and Lacan’s formulations on psychosis, delusion as an attempt at healing and the
function of the signifier in the subject structuring, furthermore, to investigate Octavio Paz’s considerations regarding the
process of poetical creation. The interest lies in investigating the relationship between the delusion (the realization of the
verb) and the poem (the delusion of the verb), and to explore their structure and forms of subversion of language norms
and conventions, and therefore peruse clinical and ethical possibilities. Delusion is understood not as poem itself, but as
a poetic expression, an expression of language dynamism, thus its construction indicates an attempt of reconstitution
when facing the emergence of hallucinations. The analyst must not discard its production but support the construction of
narratives in order to favor a compensation of effects of the foreclosure of the signifier the Name-of-the-Father and the
emergence of the subject.

Keywords: Psychoanalyses. Psychosis. Delusion. Poem. Signifier.

1 Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB, Graduada em Psicologia pela UnB, Especialista em Teoria Psicanalítica pela Faculdade Inspirar.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (PsiCC-UnB), Brasília-DF, Brasil.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5405314969526867. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9130-7486. E-mail: giuliaconte.unb@gmail.com

2 Doutora e Mestre em Psicologia Clínica pela USP. Profa. do Departamento de Psicologia Clínica IP/UnB e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (PPGPsiCC/UnB). Membro do GT da ANPEPP: Psicanálise, Política e Clínica. Membro
da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - EPFCL-Brasil e Fórum Brasília. Brasília-DF, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/7151249685318679. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1413-2998. E-mail: maessomc@gmail.com
Do início

No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio
(Manoel de Barros)

O presente trabalho partiu de questões e inquietações clínicas que se alojaram no campo da


psicose, questões cujas ressonâncias incitaram um interesse teórico e um desejo de pesquisa que
culminam, enfim, na dedicação à pesquisa aqui descrita. O trabalho consistiu em um caminho para
abordar a formação delirante a partir de uma interface com a poesia e a criação poética. Trata-se de
uma escolha metodológica que evidenciou a imprescindibilidade da arte para a psicanálise e que
permitiu algumas possibilidades para pensar a escuta clínica do delírio na psicose.
Partimos da máxima freudiana de que o delírio é uma tentativa de cura (FREUD, 1911/2010),
consistindo em uma tentativa de reconstrução de um mundo corrompido pela profusão alucinatória,
para então pensar a função do analista na clínica da psicose. O encontro com a poesia de Octavio
Paz impôs transformações importantes no modo de fazer pesquisa que vinha sendo aqui traçado
e na concepção de clínica que estava em questão, pois a clínica da psicose apresenta problemas e
impasses particulares. Assim, a potência própria da poesia, com as trepidações que costuma causar,
provocou algumas mudanças de direção, de modo que o tratado teórico intitulado O arco e a lira
(PAZ, 1956/1982), com as importantes considerações sobre a criação poética que contém, tenha se
tornado indispensável para o estudo.
No terreno da poesia brasileira, o poema de Manoel de Barros epigrafado no início desta
seção precipitou alguns dos aspectos que seriam desenvolvidos posteriormente no percurso da

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pesquisa. Com o vislumbre que só a arte pode proporcionar, esboçamos uma forma de olhar para
os fenômenos clínicos da psicose na companhia da palavra dos poetas para, a partir de então,
entrever possibilidades clínicas.
O delírio e o poema são pensados em paralelo, sem a pretensão de aproximá-los em sua
estrutura, mantendo em suspenso o questionamento sobre as contribuições que a insubordinação
às normas formais da língua que o poema traz à cena poderiam provocar à escuta do delírio em
psicanálise, já que, a exemplo da experiência com o ato falho e com o chiste, a escuta em análise
dá conotação específica, supõe que há algo a ser lido e não descartado. A hipótese do inconsciente
em psicanálise sinaliza que se trata de uma escuta do significante (não só a palavra ou a sonoridade,
mas a imagem, o corpo) e não da linearidade da significação.
Evocamos, portanto, a arte e a poesia como formas discursivas que serviriam ao diálogo
com a psicanálise, especificamente na abordagem da psicose, por inserir um modo particular de
tratar das questões humanas, subversivo em relação ao paradigma da ciência do século XX de linha
empirista e racionalista, que exerce ainda influência nas disciplinas que se dedicam ao humano e à
cultura. Assim,
À maneira da experiência da loucura, em que o mundo deverá
ser reinterpretado por um trabalho delirante, a arte faz aí
vacilar a percepção imediata das coisas, convocando assim
uma potência interpretativa (RIVERA, 2005, p. 25).

40
40A
É esta potência interpretativa, este olhar inédito para o mundo, o que inspira o diálogo
aqui proposto entre a construção delirante e o trabalho do poeta, este que trabalha com a licença
de fazer o verbo delirar (BARROS, 2010).
O percurso envolve retomar formulações freudianas e lacanianas a respeito da psicose,
assim como se debruçar sobre as ideias de Paz sobre a poesia, para assim refletir sobre as possíveis
consequências teóricas e clínicas para a psicanálise. Com o propósito de tratar das articulações
possíveis entre a constituição do delírio (processo que envolve a criação de uma narrativa de
reinterpretação do mundo) e a escrita poética, pretendemos refletir sobre as contribuições que o
poeta pode trazer ao psicanalista em sua escuta.
Acredita-se que essa leitura do funcionamento do delírio e da poesia é importante para
ressaltar que a psicose é um modo de estruturação que envolve o Outro da linguagem, confrontando
a acepção psiquiátrica de um transtorno que deve ter suas manifestações cessadas. A psicanálise,
da forma como foi conduzida por Lacan, considera o delírio como fenômeno de linguagem e dá um
novo salto, o da abertura a um outro lugar de destinação desses modos de organização, além de
possibilitar uma escuta das produções psicóticas desligada dos limites do campo do sentido, que
rege a psicologia clínica em geral.

Do método

O trajeto da pesquisa consistiu em retomar as considerações freudianas sobre a psicose


e o delírio, assim como o estudo do que foi desenvolvido por Jacques Lacan nos anos de 1950,
período descrito como o de retorno à Freud e marcado pela influência do estruturalismo de Claude
Lévi-Strauss e da linguística de Ferdinand de Saussure. Foram revisitados textos da psicanálise que
tratavam da questão da realidade, da concepção do delírio como tentativa de cura e, sobretudo, da
questão da linguagem que Freud havia esboçado e que Lacan finalmente desdobrou.
A ênfase foi pensar a função da linguagem e do significante, evidenciando os fenômenos de
linguagem na economia da psicose, pois “se soubermos escutar, o delírio das psicoses alucinatórias
crônicas manifesta uma relação muito específica do sujeito em relação ao conjunto do sistema
da linguagem em suas diferentes ordens” (LACAN, 1955-1956/1985, p. 237). Neste período de
seu ensino, Lacan privilegiou as reflexões sobre o registro imaginário e a função alienante do eu,
enquanto fundava progressivamente os anos marcados pelas considerações sobre o simbólico e
as determinações que o ser humano (ser falante) sofre do significante. A isso, estiveram aliadas as

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contribuições de Octavio Paz sobre a função poética da linguagem e sobre a criação de um poema,
destacando o jogo com as ressonâncias do sentido que o poeta utiliza para criar e que, como
veremos, o psicanalista faz uso em sua escuta.
Esmiuçando o funcionamento da linguagem em cada um, no delírio e no poema, assim
como a função do significante em suas estruturas, buscamos lançar um caminho para pensar as
contribuições que a ênfase na poesia poderia trazer à escuta clínica da produção delirante e sua
operação de reestruturação do sujeito. Consideramos que pensá-los em conjunto poderia trazer
novas modalidades de escuta à clínica da psicose, uma clínica que ainda sofre dos resquícios da
hipermedicalização e reclusão a que foi tradicional e historicamente submetida, a despeito dos
esforços da psicanálise de retirá-la do campo das anomalias.

Objetivos

O objetivo da pesquisa foi, a partir de uma investigação teórica, estudar o delírio enquanto
fenômeno de linguagem e suas relações com o poema, tendo na função do significante uma direção
para o percurso. Como objetivos específicos, destacamos: a) pensar a questão da linguagem em
Jacques Lacan, centrada na primazia do significante, junto às ideias apresentadas por Octavio Paz
sobre a poesia; b) explorar a relação entre as diferentes formas de subversão das normas da língua,
no poema e no delírio; c) verificar possíveis desdobramentos e consequências clínicas; d) enfatizar
as diferentes implicações éticas entre a escuta do delírio como loucura e a escuta como dizer do
41
41A
sujeito numa expressão poética, resguardando as diferenças entre ambos.

O problema da psicose

A questão da psicose e seu tratamento se apresentou para Freud como um problema para
a psicanálise. Ele insistiu na impossibilidade de análise de pacientes psicóticos (FREUD, 1911/2010,
1915/2010, 1925/2011), baseado na constatação de que o investimento libidinal restrito ao
eu inviabilizaria o estabelecimento de relação transferencial, móbil do acesso ao inconsciente.
Haveria, ele supôs, uma predisposição à doença localizada na fixação ao narcisismo e que teria
como efeito uma rejeição do mundo externo, ou seja, um abandono dos investimentos objetais
e um sobreinvestimento no eu, resultando na incapacidade para a transferência. Embora tenha
se mostrado convencido de seu argumento, deixou ao encargo de seus sucessores a tarefa de
solucionar tal impasse (FREUD, 1925/2011).
Assim, formulou preciosas teorizações sobre a psicose aos psicanalistas que se dedicassem
ao tema no futuro e reconheceu que a psicose tinha muito a ensinar à psicanálise (FREUD,
1937/2019). Dedicou-se ao sistema delirante do presidente Schreber como um linguista se dedica
ao seu objeto e observou que o delírio representava a tentativa de restabelecimento do mundo
subjetivo, de modo “não mais esplêndido, é certo, mas ao menos de forma a nele poder viver”
(FREUD, 1911/2010, p. 94). Para ele, o trabalho do delírio consiste na reconstrução desse colapso
interno provocado pelo afastamento da realidade.
A leitura freudiana das formações delirantes representou grande rompimento com a
tradição médica que as entendia como meras manifestações da evolução da doença que deveriam
ser suspensas. Freud não somente percebeu que o delírio desnudava a lógica do inconsciente
como também viu nele a reconstrução do mundo como tentativa de cura (FREUD, 1911/2010). O
delírio foi tomado como uma produção que não deve ser detida, o que consistiu em uma tentativa
freudiana de retirar a psicose do conjunto nosográfico das anomalias, indicando ao clínico que evite
a ânsia pela cura (furor sanandi), bastante comum na prática médica, uma tomada de posição que
interromperia o trabalho delirante.
A peculiaridade da constituição subjetiva da psicose e de suas produções revelou para Freud
limitações em sua nascente psicanálise, mas teve a atenção de Jacques Lacan, que logo se dedicou
a demonstrar as relações estreitas com a linguagem. Atento às entrelinhas do que Freud deixou
por desenvolver, Lacan manteve vivo interesse pela psicose, abordando o problema sob a luz da

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influência da linguística estrutural e do retorno à teoria freudiana do narcisismo para demarcar a
função ilusória e alienante do eu. Assim, concentrou nos primeiros anos de seu ensino as reflexões
a respeito do registro imaginário, a partir da qual a psicose foi inicialmente abordada.
A abordagem lacaniana da psicose teve o mérito de partir das determinações que o ser
humano sofre do sistema simbólico da linguagem. Irredutivelmente estruturada como significante,
a realidade humana, aquilo que comporta nossa relação com o mundo, inscreve-se em um sistema
de referenciação da experiência na qual a linguagem é central. A estrutura do significante não é
observável, não é um fenômeno, mas opera na realidade do sujeito falante, tendo caráter decisivo
na constituição da realidade, pois esta é “sustentada, tramada, constituída por uma trança de
significantes” (LACAN, 1955-1956/1985, p. 283).
São estes os termos que Lacan utilizou para retomar a obra de Freud, que já havia demarcado
o caráter ficcional da verdade do inconsciente ao tratar das deformações e ligações que a verdade
histórica sofre no psiquismo (FREUD, 1937/2019). Há, portanto, pouca distinção entre realidade e
ficção, pois ambas exercem a mesma influência nas formações do inconsciente. Tanto na neurose
quanto na psicose, Freud (1924/2011) logo percebeu, há ruptura ou perturbação da relação com
a realidade, que ocorre por vias distintas; restava saber que mecanismo específico estava em jogo
na psicose.
“Para que estejamos na psicose, é preciso haver distúrbios de linguagem” (LACAN, 1955-
1956/1985, p. 110). Esta é uma posição que atravessa as determinações do discurso médico e que
propõe à psicanálise uma ética e um posicionamento de encerrar a tradição de pensar a psicose
a partir unicamente de uma causalidade orgânica, de desordens fisiológicas, déficits orgânicos ou
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42A
disfunções dos órgãos dos sentidos. Pensar no que se trata na psicose como fenômeno de linguagem
implica pensá-la a partir da relação com significante (ou ainda, da falta de um significante),
das incidências no corpo decorrentes dessa relação e das soluções singulares a que o sujeito é
convocado a recorrer.
Embora a psicanálise tenha dado ao delírio do psicótico uma “sanção singular” (LACAN, 1955-
1956/1985, p. 153), legitimando-o como um discurso do inconsciente, no plano que a experiência
analítica habitualmente opera, a psicose sempre apresentou desafios particulares. Tem-se um
discurso que, por mais articulado que possa se apresentar, revela-se “irredutível, não-manejável,
não curável” (p. 153). A posição do analista é inteiramente posta em questão nesta clínica.

O delírio

A despeito das dificuldades, a indicação lacaniana é de que o clínico não deve recuar diante
da psicose, tampouco se restringir a deter suas produções. O delírio é uma importante tentativa
do sujeito de reconstituir seu mundo, aparecendo como uma verdadeira narrativa que traz algum
esclarecimento retroativo sobre o período alucinatório que havia obstruído seu lugar no mundo.
Muitas vezes, as condições de análise favorecem sua formulação.
O trabalho delirante consiste em erguer uma obra, surgida em um momento posterior
(uma posteridade lógica e não cronológica, deve-se ressaltar) ao do surgimento das turbulentas
alucinações, no qual o mundo está tomado por significação. No movimento do delírio, o crepúsculo
do mundo, caracterizado pela intensa confusão alucinatória, é sua fase constitutiva (LACAN,
1955-1956/1985). O delírio surge em um tempo pós-crepuscular e decorre da impossibilidade de
simbolizar algo, de recorrer ao complexo de castração para se defender da angústia, e, uma vez
construído, pode refazer esse período de crise e, eventualmente, tornar a existência suportável em
um mundo que lhe havia ficado tão estranho.
O surgimento das turbulentas alucinações exprime a ruptura do simbólico, o rompimento
da ligação entre as palavras, e o mundo está tomado por significação. A formação delirante é
uma verdade explicitada, oposta à ocultação ou ao ciframento neuróticos decorrentes de um
compromisso simbolizante, e contém em sua estrutura uma significação irredutível, que remete
somente a si própria e que funciona como um ponto de basta, sem possibilidade de deslizamento.
Sua especificidade está na inflexível certeza (a certeza delirante) e no neologismo, que cria uma
fórmula que se repete com insistência e que cria a interrupção na rede do discurso (LACAN, 1955-

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1956/1985). O delírio subverte a língua, faz um uso próprio dela, sendo essa a estrutura, a nível de
economia do discurso, que marca sua assinatura.
Propomos neste trabalho, a partir da ênfase no campo da linguagem, sua estrutura e
funcionamento, pensar o delírio como esse empenho de reconstituição, um fenômeno da ordem
da linguagem que pode ser tomado como um dizer. Diante da emergência de reformulação da
realidade, o sujeito se dedica a uma reinterpretação do mundo, uma verdadeira (re)construção
posterior ao desencadeamento de uma crise, por meio da qual possa dizer de si.
O termo (re)construção indica, portanto, a reconstrução do mundo implodido após a crise e
remete ao texto freudiano Construções em análise (FREUD, 1937/2019), no qual demonstrou que
o trabalho de construção do analista, análogo ao trabalho do arqueólogo, pode ser equiparado ao
trabalho do delírio, uma vez que este é uma construção diante do fenômeno da alucinação, que
sofre influência da realização de desejo sobre seu conteúdo: “As formações delirantes dos doentes
parecem-me equivalentes das construções que elaboramos nos tratamentos analíticos, tentativas
de explicação e reconstituição” (p. 379). As construções em análise e o trabalho do delírio surgem a
posteriori, no só-depois do tempo lógico, e têm por função a reconstituição da experiência.

O poema

Os anos de 1950, nos quais Lacan sustentava o aforisma do inconsciente estruturado como
uma linguagem, inspiraram outro importante pensador da língua a escrever sobre a linguística e
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43A
sobre a linguagem como condição da existência do ser humano (o ser falante ou falasser [parlêtre],
para utilizar um termo lacaniano dos anos posteriores). Octavio Paz, importante poeta, ensaísta e
tradutor mexicano, é ainda celebrado e reconhecido pela poesia de alta qualidade formal aliada às
acuradas análises sobre a história, a política, a língua e a cultura da América Latina.
Suas ideias têm força tal que permanecem absolutamente vivas na cultura mexicana e
devem receber o reconhecimento que lhe é devido. Apresentou reflexões valiosas sobre o fazer
poético, sobre a criação e sobre a absoluta sujeição do humano ao sistema simbólico, pois o ser
humano é “um ser de palavras” (PAZ, 1956/1982, p. 36). O arco e a lira (PAZ, 1956/1982) é um
ensaio, um texto em prosa que não perde em nada a atmosfera poética que Paz exala, e culmina
em um rico diálogo com a linguística através de referências diversas à história latino-americana.
Concebido, curiosamente, no mesmo ano em que estava sendo desenvolvido o terceiro
seminário de Jacques Lacan, a obra de Paz é um tratado sobre o devir poético e traz observações
sobre a natureza da linguagem e o uso da língua em sua potência criativa e mágica. A coincidência
não se encerra na data. Os dois autores, geográfica e culturalmente distantes, beberam da prenhe
fonte da linguística e trataram de falar dela a partir de sua subversão, ou seja, de desenvolvimentos
que respeitosamente abriram novos horizontes, pensando suas problemáticas sem deixar de
exaltar suas ricas contribuições às ciências do humano e da cultura. Na subversão de seu campo
e de seu alcance, os dois pensadores puderam oferecer preciosas contribuições à psicanálise e à
poética, respectivamente.
Paz se serviu do universo simbólico para tratar do fazer poético e da função poética da
linguagem. O poeta, ciente da natureza da linguagem, recupera a originalidade primitiva da palavra,
uma reconquista que “afeta os valores sonoros e plásticos tanto como os valores significativos”
(PAZ, 1956/1982, p. 26). É próprio da palavra não caber em qualquer limite rígido da significação,
pois carrega uma pluralidade de sentidos.
Em seu estado natural, a palavra é repleta de polissemias, ambiguidades, nonsenses, enfim,
tudo o que indica que sua natureza vai muito além da sonoridade e da significação. A criação
consiste na transformação da matéria-prima em obra, na libertação da palavra de sua significação,
levando ao mundo uma infinidade de possibilidades simbólicas. A operação poética é oposta à
manipulação técnica: “A pedra triunfa na escultura, humilha-se na escada. A cor resplandece no
quadro; o movimento, no corpo, na dança. A matéria, vencida ou deformada no utensílio, recupera
seu esplendor na obra de arte” (PAZ, 1956/1982, p. 26). Bastante distinta da prosa ou de uma
argumentação lógica, em que há um comprometimento com as convenções da língua, um fascínio
pela razão e pela eliminação dos equívocos, a criação poética subverte leis naturais, e as normas

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gramaticais, sintáticas e semânticas sofrem um estremecimento.
Para Paz (1956/1982), a poesia contém em seu ser a dupla habilidade de revelar o mundo
e, simultaneamente, criar outro. Constante movimento de diálogo com a ausência (completo
assassínio da coisa pela palavra), um poema se recolhe em um primeiro tempo à obediência às
regras da língua, e em seguida se abre a um novo universo em que a criação de novas regras para a
existência é possível. Uma criação está sob o domínio de incalculáveis influências, não se separa em
nenhum tempo do mundo que a produz e que é por ela transformado:
um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir
um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a
“mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões
múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas,
das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações,
oriundas dos mil focos da cultura (BARTHES, 1984/2004, p.
62).

Revolucionária por natureza, a poesia transforma o mundo, e “em seu seio resolvem-se todos
os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem”
(PAZ, 1956/1982, p. 15). Pertence a todos os tempos, a todos os povos, pois é a forma natural de
expressão do humano.
A poesia, como a linguagem, preexiste ao sujeito. Não é um artefato humano; ao contrário, o
humano dispõe dela, está rodeado por ela, e cria a partir de sua existência. Há poesia sem poema,
44
44A
poesia em estado amorfo, que está aí, na natureza. O poema, por outro lado, é criação, obra, poesia
erguida. É entidade da poesia, um ser redutível dela, mas, ainda assim, distinto. O poema é o ato de
fabricar, produzir, criar, fazer nascer, fazer vir a ser, inventar, imaginar. Não é meramente uma forma
literária, mas uma das expressões do encontro entre o ser humano e a poesia.
Por esse motivo, um soneto ou uma obra construída de acordo com as leis da métrica pode
não conter poesia, pois as estrofes, as rimas e os versos devem ser tocados pela poesia. O essencial
é menos a forma que o encontro com o poético, e assim qualquer atividade verbal é suscetível de
se transformar em poema. A técnica (manipulação do utensílio, procedimento) e a criação não
coincidem. O poema, de acordo com Paz, é produto único do ato de criação, deslocamento no qual
a palavra é colocada em liberdade, recuperando sua propriedade de nada significar. O poeta é ser
brincante, e seu ato transforma a matéria-prima – à disposição de todos os falantes – em obra.

O significante e seu funcionamento na psicose

Da linguística de Saussure, que visou se debruçar sobre as manifestações da linguagem


humana, Lacan herdou a noção de signo, aquilo que representa algo a alguém e que é constituído
por duas faces: a do significante e a do significado (SAUSSURE, 1916/2006). Lacan quebrou a
unidade do signo saussuriano, subverteu a relação originalmente proposta entre os elementos
e atestou que a barra que os separa é uma barreira resistente à significação e, portanto, não há
relação biunívoca entre eles, assim abandonando a ideia de que cada significante se associa a um
significado.
Saussure fez uma teoria do signo. A teoria de Lacan, por sua vez, é uma teoria do significante,
ou seja, uma teoria do sujeito (ARRIVÉ, 2001), e isso é indicado pela fórmula: o significante é aquilo
“que representa um sujeito para outro significante” (LACAN, 1964/2008, p. 203). Demarcando a
primazia do significante em relação ao significado, ele demonstrou que há algo de que o significado
não pode dar conta, e que o sistema de linguagem, ainda que abranja a totalidade das significações,
não esgota as possibilidades do significante (LACAN, 1955-1956/1985).
O significante é essencialmente insignificante. O poeta, ciente desta propriedade, afirma:
“Significar / reduz novos sonhos / para as palavras” (BARROS, 2011). Somente a partir da articulação
da cadeia de significantes o significante pode passar ao universo das significações. Isolado, não
significa nada, pois é regido por suas próprias leis, independente do significado (LACAN, 1955-
1956/1985).

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Na psicose, o significante está em causa: há uma falta ao nível do significante (LACAN,
1955-1956/1985). O significante é autônomo, mas não isolável, e a concatenação de significantes é
o que determina os efeitos de significação, abrindo a possibilidade de formar algo coerente. A falta
de um significante leva à reconsideração de todo o conjunto. Há uma não-integração do sujeito no
simbólico, ele jamais entra no jogo dos significantes, não chega a tomar a palavra, mas “dizer sim,
sim, sim à do vizinho” (p. 285).
Ocorre que, pela ausência de um significante primordial que ordena a fala, há uma
desarticulação da cadeia, uma falência do significante em deambular o sentido. A palavra perde
a mediação do símbolo e coincide com a coisa. O sujeito está diante de uma falta a nível da
simbolização, com consequente emergência desses significantes no real. Ele se reconstitui ao
redor desse buraco onde o suporte da cadeia significante lhe falta. Trata-se de um acidente que foi
designado por Lacan como foraclusão do significante Nome-do-Pai (Verwerfung) e que dá à psicose
sua matriz de estrutura.
Verwerfung, um acidente na subjetividade, instaura uma falta ao nível do significante e
dela decorrem as manifestações delirantes que podem ser desencadeadas. A falha na inscrição do
Outro da linguagem tem consequências, afinal, no funcionamento da linguagem. O rompimento
com a ordem simbólica, que desde o princípio não pôde ser integrada, coloca em movimento
uma desagregação em cadeia, que se apresenta ao modo de uma discordância com a linguagem
comum e com uma significação que, não podendo remeter sempre a outra, permanece
irredutível. As manifestações características do período alucinatório demonstram a divisão radical
entre significante e significado, sem um ponto de ligação, comumente acompanhadas de uma
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45A
impregnação de sentido.
A estrutura linguageira do inconsciente aparece a descoberto na psicose, enquanto na
neurose só se revela pela via do deciframento (SOLER, 1991). A linguagem para o psicótico toma
o primeiro plano; algo ali fala à sua revelia, comenta a atividade do sujeito, faz recriminações ou
imposições, enfim, comparece ao nível da palavra falada. Estando o sistema simbólico da linguagem
em questão, o que se observa são produções marcadas pela certeza delirante (em contraposição
à dúvida neurótica) que, a exemplo da língua fundamental de Schreber, impõem novas regras à
língua. Produções que se manifestam sob a forma de neologismos, repetições estereotipadas,
mensagens interrompidas e em curto-circuito, articuladas à linguagem delirante. Composto por
palavras, o delírio é uma realidade linguística, um fato de linguagem, e não um fenômeno acessível
ao olhar. Sua ação provoca uma modificação da realidade a partir da proliferação imaginária que
inunda o sujeito.
A questão da linguagem na economia da psicose indica que sua estrutura está em relação
com o Outro, com o laço, ou seja, que tem relação com o social. A psicose, cabe ressaltar, é uma
estrutura psíquica regida por uma lógica e um rigor, uma estrutura que se revela no dizer do sujeito
e que está firmada no solo do acidente, do buraco do simbólico, da falta ao nível do significante,
e desta decorrem as manifestações delirantes de seu estilo. Tratar suas manifestações como
fenômenos de linguagem indica uma ruptura com o discurso médico tradicional, que trabalha com
a concepção de uma desordem que deve ter suas manifestações cessadas. Implica, portanto, uma
mudança de posição ética diante da psicose, consonante a toda posição da psicanálise desde seu
princípio.

Alguns desdobramentos

Após ter percorrido algumas considerações a respeito do problema da psicose em


psicanálise, da linguagem nos primeiros anos do ensino de Lacan e esboçado algumas ideias de
Octavio Paz a respeito da poesia e do fazer poético, exploraremos agora a articulação entre a
construção delirante e a criação poética, de forma a enfatizar as implicações clínicas e éticas. São
desdobramentos da pesquisa que foram subdivididos nas quatro seções que se seguem.

A língua e seus deslocamentos

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A língua, para Lacan, consiste em um sistema do significante do qual o sujeito dispõe para
fazer passar significações no real (LACAN, 1955-1956/1985). É dotada de particularidades que
“especificam as sílabas, os empregos das palavras, as locuções nas quais elas se agrupam, e isso
condiciona, até na sua trama mais original, o que se passa no inconsciente” (p. 140). Quando fala,
o sujeito tem à disposição esse conjunto do material da língua, um universo de sentido a partir do
qual articula o discurso. Há um caráter universal na língua, mas que, ao mesmo tempo, possibilita a
articulação de uma fala absolutamente peculiar ao sujeito, que produz ressonâncias que interessam
mais à análise do que a inteligibilidade de sua construção.
Para o analista, intervir pela fala é da ordem de uma responsabilidade de reconhecer ou
abolir o analisando como sujeito (LACAN, 1953/1998). A fala, ele afirmou, é um dom de linguagem,
e esta não é imaterial, mas um corpo (sutil), dotado de vivacidade. As palavras que a fala articula
“são tiradas de todas as imagens corporais que cativam o sujeito” (p. 302) e podem sofrer lesões
simbólicas, realizar atos imaginários. Podem até mesmo engravidar a histérica. Já a linguagem, cabe
diferenciar, refere-se ao discurso do Outro, à subjetividade.
Como um corpo sutil, a linguagem dá origem à uma língua que tem existência viva e
dinâmica. As vozes de seus falantes, que não adotam atitude passiva em relação a ela, é o que lhe
dá vivacidade, vozes que recriam a língua insistentemente, no uso diário que fazem das palavras e
expressões. É um verdadeiro manuseio criativo, transformações de sua estrutura, deslocamentos
e agitações pelo uso cotidiano. Sem quem a articule, a língua não é mais que uma abstração, um
conjunto inanimado de regras e convenções.
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46A
Partimos da noção de que “todo verdadeiro significante é, enquanto tal, um significante
que não significa nada” (LACAN, 1955-1956/1985, p. 212), ou, como disse o poeta, “Pra meu gosto
a palavra não precisa significar – é só entoar” (BARROS, 2010, p. 458). O sistema de linguagem
não pode esgotar as possibilidades do significante, que precisa passar por uma concatenação para
produzir efeitos de sentido. Ele é, essencialmente, insignificante, e disto resulta sua propriedade
infinita e comporta a possibilidade do efeito poético que surge e ressurge em nossa fala e do mal-
entendido da comunicação – dois efeitos impossíveis de evitar.
Paz (1956/1982), que enquanto poeta é também um experiente teórico da língua, sugeriu
denominar expressões poéticas as expressões máximas desse dinamismo. As expressões poéticas
são oriundas da natureza da linguagem, da propriedade infinita do significante que o faz esbarrar
com um efeito poético. Na voz dos falantes de uma língua, surgem neologismos, expressões
ritmadas, locuções, rimas, jogos de palavras, imagens que se apagam assim que são criadas.
Não têm permanência, reconhecimento ou longevidade no conjunto das obras literárias como
o poema; surgem e esvanecem no uso cotidiano, revelando a fragilidade do mundo do sentido,
constantemente colocado às avessas. As expressões poéticas revelam que, no mundo humano, não
há significados definitivos, e que a estrutura da linguagem é tão faltosa quanto a do sujeito que a
criou, nunca podendo chegar a um sistema de comunicação infalível ou estanque.
Exemplares para demonstrar a permanente inventividade que os falantes de uma língua
protagonizam, as expressões poéticas representam o movimento da língua em seu curso de
desenvolvimento e o efeito poético que naturalmente se produz ao fazer uma língua operar. Não
são obras como o poema; estão, ao contrário, no mesmo nível da fala e são resultado do afluxo das
palavras nas vozes dos falantes.
A poesia, como a linguagem, é inseparável do humano, e a função poética é inerente ao
uso da língua. Assim, as expressões cotidianas da poesia estão por toda a parte, pois há um gérmen
poético na linguagem, que está lá desde o início. A criação de uma obra poética, por outro lado,
depende de um árduo trabalho executado por um sujeito que nos introduz numa dimensão nova
da experiência, inscreve um mundo diferente do nosso. Consistem em uma “criação de um sujeito
assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo” (LACAN, 1955-1956/1985, p. 94).
Hugo Friedrich, ao se debruçar sobre a poesia de Baudelaire, destacou a apreciação
pela forma que o poeta defendeu, um apreço pela perfeição artística encarnada na forma que
demonstrou em sua poesia e examinou teoricamente em sua prosa (FRIEDRICH, 1978). Baudelaire
dedicava-se ao aperfeiçoamento da obra mais do que pela profusão de temas e, com isso, defendeu
o trabalho árduo que envolve o fazer poético, a construção sistemática dos versos, em vez de

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atribuir aos propósitos do coração ou à inspiração que, se é parte do poema como material, deve
ser trabalhado à perfeição.
Para Friedrich (1978), Baudelaire expressou uma dedicação à forma que se distancia da
figura mítica do poeta inspirado, simples emissor dos estados complexos da alma, acentuando o
árduo ofício da criação. Sua posição – controversa para alguns – nos reserva a prerrogativa de fazer
a distinção que Paz havia sugerido com o termo “expressões poéticas”. Uma coisa são as expressões
da poesia que estão por toda a parte e que surgem no uso da língua. Outra é a criação de uma obra.
Desta maneira, não pretendemos pensar o psicótico como um poeta e o delírio como um
poema propriamente dito, mas como uma expressão poética. Isto não quer dizer que o psicótico
não possa produzir uma obra literária ou que o conteúdo de seu delírio não possa servir de material
para a criação de versos. Mas a criação deve implicar alguma intenção, uma vontade criadora que
nem sempre é a que está em jogo no movimento de construção de um delírio. Assim, interessa-nos
mais esse trabalho de construção encadeado do que propriamente a criação literária decorrente
do desencadeamento de uma crise. Por esta razão, sugerimos entender o delírio de que tratamos
como uma expressão poética.
Se, por um lado, o delírio talvez não seja tão fugaz quanto uma expressão poética surgida
da fala, pois sua constituição demanda tempo, ele expressa, por outro, uma desavença de ordem
poética com o ordenamento comum da fala, de caráter neológico. É uma construção (diante de
um colapso) que impõe novas regras à língua, recorre ao neologismo e a repetições, privilegia a
sonoridade, provoca desordens nos encadeamentos habituais etc., elementos caros à composição
de um poema. No delírio (que é da ordem do verbo), surgem os lampejos poéticos que a todo
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momento comparecem “nos lábios das crianças, dos loucos, dos sábios, dos idiotas, dos namorados
ou dos solitários” (PAZ, 1956/1982, p. 42). Está, assim, à nossa volta, no meio do povo, digamos, não
sendo só uma manifestação de doença, algo que sinalizaria o padecimento de um sujeito que deve
ser asilado e silenciado.
Na arte, descartar o que desobedece às normativas da racionalidade acarretaria ao poeta
o custo de suas criações. O escritor José Castello, no prefácio de Meu quintal é maior que o mundo,
Antologia de Manoel de Barros (BARROS, 2015), afirmou que o poeta sabia bem que, sem uma boa
dose de desrazão, não se faz arte. Ele pegou a desrazão de empréstimo do louco, e, em suas mãos,
a realidade se inverteu, libertou-se das amarras do bom senso. A poesia de Barros está muito além
dos significados.

O delírio é uma (re)construção

A formação delirante é, sobretudo, um trabalho de (re)construção. Este é um termo que


denota, em primeira instância, o trabalho de reconstrução do mundo ao qual o sujeito se empenha
após ter sido invadido pela confusão alucinatória. É um trabalho iniciado na irrupção da crise, uma
reconstituição que possibilita ao sujeito sustentar-se em uma significação mínima. O delírio não
surge no vazio e sua formulação é progressiva, construído conforme encontra condições para tal,
obedecendo a um rigor (talvez próprio ao inconsciente) que impõe um desenvolvimento ritmado
em sua criação. Sua estrutura, se observamos de perto, contém um caráter subversivo em relação
às convenções que regem o ordenado mundo neurótico, a partir do qual o sentido socialmente
compartilhado se apresenta em correspondência com a verdade.
O termo construção ao qual o delírio está aqui referido remete ao sentido cunhado por
Freud (1937/2019) ao fazer equivalência entre as formações delirantes e as construções elaboradas
no tratamento analítico, pois ambas trazem à tona uma parte da história perdida, uma porção de
verdade na forma de uma explicação. Nas condições da psicose, no entanto, o que ocorre é uma
completa substituição de uma porção da realidade previamente rejeitada, sendo o afastamento
do mundo a condição necessária para a imposição de conteúdos inconscientes sobre o conteúdo
do delírio. O fenômeno da alucinação opera um deslocamento de um cerne de verdade histórica,
emaranhada em deformações e ligações, para o presente.
As formações delirantes dos doentes parecem-me equivalentes
das construções que elaboramos nos tratamentos analíticos,

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tentativas de explicação e reconstituição, que sob as condições
da psicose, aliás, só poderão levar a substituir aquela parte
de realidade que é renegada no presente por uma outra
parte, que nos primórdios também foi renegada. (FREUD,
1937/2019, p. 379)

O delírio é, assim, um trabalho de construção, cujo percurso de constituição possibilita ao


sujeito sustentar-se em uma significação, e é tanto mais sofrido quanto mais o sujeito não o organiza
(LACAN, 1955-1956/1985). Assim, o estado crepuscular – marcado pela confusão alucinatória, pelo
inundamento perceptivo, pela profusão de pensamentos, ainda sem interpretação definitiva – é
sucedido por um esforço de reinterpretação da realidade, agora infestada por material psíquico. A
partir das atribuições de sentido, cercadas de convicção (de certeza delirante) de que o mundo está
tomado por significação, um processo de reestruturação do mundo se inicia.
Sua articulação é lógica e obedece a uma coerência interna que, a despeito da característica
notável de romper com o sentido socialmente compartilhado, tem na certeza delirante, radical e
inabalável, a evidência de seu rigor. Como construção, é por definição inacabado; não se trata de
uma forma final e definitiva, mas que requer repetidamente novas formulações, à maneira das
construções em análise. O sistema delirante, portanto, não é hermético, seu sentido está sempre
pronto a um conserto, uma retificação, admitindo tantas integrações e reinterpretações quanto
necessárias para se adequar à nova realidade. Elementos da realidade podem ser inseridos,
reinterpretados para se adaptar às novas percepções, descartados para preservar a congruência e
48
48A
assim por diante.
Nesses termos, o trabalho delirante parece um ato de construção realizado por um sujeito
vivendo em uma realidade impossível. Ele cria um mundo novo onde possa viver. Entende-se
por construção o processo de subversão do que está posto, um deslocamento, que emerge da
necessidade de transformação da realidade. O processo de cura pode ser exprimido por essa
realidade criada, que se manifesta como algo novo, inédito, uma invenção ou transformação da
realidade que o sujeito experimenta. Se a falta do significante primordial pode ter um peso de
petrificação ou de esvaziamento que impede o sujeito de se deslocar, haveria na função do delírio
uma tentativa ou, ainda, uma possibilidade de deslocamento.
Poderíamos dizer, em suma, que a psicanálise ensinou duas coisas sobre o delírio. Em
primeiro lugar, que não deve ser descartado, pois contém um dizer do sujeito e, portanto, requer
leitura. O tratamento analítico busca preservar as condições para que possa ser elaborado assim
como se aprofundar em sua gênese, em suas ligações e na assunção da história realizada por meio
dele. Em segundo lugar, demonstrou que não é um sistema fechado em si mesmo, impassível de
entrada, mas uma construção em favor da cura, uma tentativa de solução diante da foraclusão do
significante paterno. Como construção, obedece a um rigor ritmado, a um encadeamento, mais ou
menos regular, na construção da narrativa fictícia, narrativa do desejo inconsciente em sua forma
menos deformada.

O delírio do verbo e a realização do verbo


O resgate da equivalência freudiana entre o delírio e as construções em análise não
implica em uma equivalência com o poema, conforme pudemos entrever até aqui. Reconhecemos
suas divergências estruturais, seus distanciamentos quanto às operações que lhes dão origem,
de natureza diversa. Entendemos o poema como uma obra decorrente de um trabalho que exige
algo mais que a mera manipulação das palavras. Não se pode atribuir a criação simplesmente ao
dinamismo da língua; deve haver uma vontade criadora, uma intervenção operada na linguagem.
Poderíamos dizer, um jogo deliberado com a submissão do humano à lei simbólica, realizando assim
deslocamentos e transformações nas normas da língua e na ordem do mundo, protagonizadas por
alguém que, por força de sua criação, requisita do campo social a licença para tal – a licença poética.
O poema é o ato de fazer o verbo delirar (BARROS, 2010), transgredir sua estrutura, abrir
infinitas possibilidades de significação, um ato regido pelo universo simbólico. O poeta faz contornos
ao vazio, com a ciência da impossibilidade de preenchê-lo, reconhecendo a incompletude que nos

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condiciona enquanto seres falantes e que comparece na estrutura da linguagem.
O delirante psicótico vive a realização do verbo. No texto dedicado ao inconsciente, Freud
(1915/2010) constatou, por meio de um caso a ele relatado, a concretude e literalidade das palavras
na psicose. Conforme observado nas expressões verbais da paciente, o esquizofrênico trata as
palavras como coisas. As palavras perdem sua qualidade significante de deambular o sentido, são
reduzidas ao estado de coisa e carecem da mediação do símbolo (SOLER, 2007). A ausência de
mediação simbólica decorre da recusa ao pai como ordenador da fala, havendo identidade entre
palavra e coisa. O sujeito vive um mundo de certezas, onde sua linguagem carrega a marcante
desavença com o ordenamento comum, de caráter neológico.
Não podendo ser igualadas ao poema, as formações delirantes estariam, de acordo com
nosso ponto de vista, mais próximas das expressões poéticas, das formas verbais rítmicas e da
produção de imagens que surgem nas vozes dos falantes, palavras sendo incendiadas pela fantasia
e pela imaginação. As construções delirantes e as expressões poéticas são criações efêmeras, e por
esta particularidade diferenciam-se do poema, que se consolida como obra.
O delírio não tem longevidade no conjunto das obras literárias. E não intenta ter: constitui-
se como possibilidade de compensação da dispersão do gozo por meio da criação, e podemos supor
que não visa “o endereçamento ao Outro da cultura e sim o tratamento do gozo para enquadrá-lo
e atenuá-lo” (QUINET, 2006, p. 90), pois não é por prazer ou reconhecimento como artista que o
psicótico produz, mas por obediência às vozes, por gozo disperso e não endereçado. Se, no entanto,
chegam eventualmente ao estatuto de arte ou de obra, como foi o caso do renomado artista plástico
brasileiro Bispo do Rosário e tantos outros esquecidos pela história (ou sequer celebrados por ela),
49
49A
é porque deve haver, se não um endereçamento mesmo, ao menos um esboço ou uma tentativa de
endereçamento ao Outro. Levando em consideração a tentativa de cura que o delírio empreende,
deve haver algum esforço de reconstituição dos vínculos com o outro.
A construção delirante, uma solução para a perturbada paralisação das alucinações, é
um processo gradativo, um encadeamento ritmado dos elementos que compõem sua forma final.
Ritmado, pois “a linguagem, por inclinação natural, tende a ser ritmo” (PAZ, 1956/1982, p. 82), e
somente pela violência da razão deixa de ser. A radical divisão entre o significante e o significado
decorrente da ausência do Nome-do-Pai levam o sujeito a uma corrente na qual não vigoram as leis
do discurso, de coerência e claridade conceitual, e muito mais as leis de “atração e repulsa” (p. 82),
uma corrente de imagens e não de conceitos, que caracterizam o ritmo. Regido pelo sem-sentido
próprio da linguagem, sendo visível o predomínio rítmico e imaginativo, o trabalho delirante é algo
mais que uma ruptura.
Consideramos pensar na produção delirante como uma das manifestações da
natureza poética da linguagem, das expressões poéticas de uma língua, da corrente rítmica que
eventualmente vigora no discurso, e nos distanciar mais e mais do campo das anomalias que
condena os sujeitos ao asilo e ao silenciamento. É uma construção que não se faz no vazio, mas que
tem alguma amarração, algum enlaçamento, ainda que sutil, e que coloca em jogo o funcionamento
da linguagem, funcionando na ambiguidade e nos vacilos do sentido. O delírio pode ser essa forma
linguística que desmascara nossa impossibilidade de sentido?
E esta não seria, enfim, a verdade que uma obra literária tem como costume desvelar? Ao
menos, foi o que permitiu a Barthes (1984/2004) afirmar que não há nada a ser decifrado em uma
obra – uma escritura, como prefere designar –, mas “deslindado”, pois “a escritura propõe sentido
sem parar, mas é sempre para evaporá-lo: ela procede a uma isenção sistemática do sentido” (p.
63). Essa é sua posição enquanto um pensador dito pós-estruturalista, menos propenso portanto
a entender o texto literário como um conjunto equilibrado e coerente de palavras que revelam
uma verdade do que a valorizar a ambiguidade e a polivalência da palavra, a desarmonia, a falta
que se instala menos por acidente do que por estrutura. É com o mesmo espírito que Lacan se
aprofundou na falta de sentido que nos constitui enquanto seres falantes e que abre vias para
conceber o abismo entre a palavra e seu suposto significado.

A questão clínica

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O trabalho freudiano foi iniciado e desenvolvido pela subversão dos parâmetros da clínica
médica da qual se originou, havendo um descentramento radical do olhar. A própria experiência
da psicanálise é subversiva, uma vez que coloca ao sujeito a exigência de uma fala em associação
livre, dirigida pelo inconsciente, uma modalidade discursiva distinta de qualquer outra. A escuta
em psicanálise não privilegia o campo do sentido, da linearidade da significação, mas o campo do
significante, via pela qual o inconsciente se articula e comparece.
Apesar dessa particularidade da clínica, por meio da qual a suposição de um dizer no
delírio é possível, o psicótico traz interrogações diversas ao lugar do analista, as quais Freud hesitou
em solucionar. O clínico não atua, como na neurose, com a interpretação, mas a partir de uma
posição que Lacan (1955-1956/1985) denominou de secretário do alienado. Não só seremos seus
secretários, ele nos disse, como também “tomaremos ao pé da letra o que ele nos conta” (p. 235),
pois não há razão para não aceitar como tal o que ele nos diz. O sujeito nos testemunha que mantém
uma relação muito específica com o sistema da linguagem, na qual sofre de maneira particular o
fenômeno discursivo como uma apassivação.
Tomar ao pé da letra o que o alienado nos diz supõe que se saiba escutar o que ele comunica
de sua relação com o significante. O analista surge como testemunha da relação com o Outro, e deve
assumir uma posição em que possa haver um esvaziamento de gozo: ele deve provocar falta nesse
Outro absoluto. O tratamento analítico da psicose possibilita ao louco criar, secretariado pelo analista,
as condições de sua própria contenção. Impedida a via em que o trabalho de elaboração do delírio se
realiza, o sujeito corre o risco de um empobrecimento no trabalho psíquico. Quando a resposta à crise é
a inibição do delírio, “o que se instaura é uma permanência do crepúsculo que se traveste de demência”
50
50A
(CALLIGARIS, 1989, p. 70). A constituição do delírio enquanto tal é a possibilidade de saída da crise.
O caminho que percorremos buscou refletir sobre os pontos de ligação entre a leitura
de um poema ou uma expressão poética e a leitura que o psicanalista faz do discurso, na posição
de testemunha de um dizer. Não é a posição de suposto saber que este assume na análise de
um psicótico, mas de secretário ou a testemunha do que o sujeito produz, ofertando a escuta
tal como as produções aparecem. Para escutá-lo, não é preciso compreender o que diz, pois no
sem-sentido do delírio pode conter a possibilidade de organização subjetiva, a possibilidade de
alguma estabilização, introduzindo um sistema de interpretação do mundo mais estável, que para
a significação em excesso. Deve-se desligar da linearidade, do encadeamento regular do discurso.
A relação com o outro-semelhante tem grande efeito na transferência do psicótico, que
não supõe saber ao psicanalista. A dimensão imaginária comparece, e deve-se evitar a posição
de duplo especular. O analista, Lacan (1955-1956/1985; 1957-1958/1998; 1953/1998) indicou,
não deve se aliar à alienação imaginária que na psicose é preponderante (ao menos no nível dos
fenômenos). Deve-se romper o ciclo no qual o Outro está excluído e que se fecha no outro com
minúscula, do qual ressoa a própria mensagem do sujeito, de modo a não perpetuar a perplexidade
na qual se encontra o sujeito diante da exclusão do Outro. A restituição do psicótico é decorrente
do estabelecimento de uma ordem – a ordem delirante – que o analista não deve deter, assumindo
posição tal que possa fazer emergir o sujeito. Não defendemos que a formação delirante deva ser
incentivada ou idealizada, mas que frequentemente surge de condições subjetivas em favor de
uma compensação dos efeitos da foraclusão.
O analista pode servir a alguma moderação de gozo por meio do lugar de secretário,
evitando, assim, encarnar a posição de Outro gozador. A direção do tratamento é da ordem de
um estímulo à “historização dos fenômenos” (QUINET, 2006, p. 54), de modo que o sujeito possa
identificar em suas alucinações as palavras que tenham vindo do Outro e favorecer as construções
delirantes que permitam circunscrever o gozo.
O analista pode secretariar o esquizofrênico em suas tentativas
de estabelecer pares de oposição significante e promover
a pontuação em sua fala para possibilitar a precipitação do
sentido. (QUINET, 2006, p. 54)

Deve-se conduzir o delirante a, como dizia o poeta, “saber errar bem o seu idioma”
(BARROS, 2010, p. 319). Tal é o ato da criação, a de conduzir a língua às suas errâncias próprias,
capazes de criar e recriar realidades.
Os fenômenos característicos da fase mais produtiva da paranoia devem ser considerados

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como tentativas de fazer laço social, de restituir o vínculo com o outro, pois os delirantes não apenas
“amam o delírio como a si mesmos” (FREUD, 1895/2016, p. 20), mas são também “apaixonados
pelo Outro, e são amados do Outro” (QUINET, 2006, p. 54). Com a cautela de não despertar a
erotomania, o analista, defende Soler (2007), deve se colocar no lugar do Outro primordial real,
surgindo com seu corpo e suas palavras no plano do significante, no lugar dos ditos do Outro.
O trabalho da psicose é “uma maneira de o sujeito tratar os retornos no real, de efetuar
conversões que civilizem o gozo até torná-lo suportável” (SOLER, 2007, p. 187). Podem ser soluções
a nível simbólico de suplência, ou, ainda, que procedem a uma operação sobre o real do gozo não
aprisionado na rede da linguagem, uma obra passada do simbólico para o real, o fora-do-sentido.
Quando o analista serve apenas de duplo especular do sujeito, não há vínculo social possível. Deve-
se ressaltar que a questão clínica da psicose só será propriamente desenvolvida por Lacan ao longo
das décadas seguintes, em especial no Seminário sobre James Joyce, nos anos de 1970, embora já
estejam estabelecidas indicações clínicas desde o início de seu ensino.
Se tomado pelo analista como uma construção ou mesmo como uma criação de um sujeito
que, à sua maneira, transforma a realidade, o delírio poderia encontrar no dispositivo analítico as
condições de possibilidade para sua elaboração. Este é um desdobramento clínico importante se
mantivermos firme o propósito freudiano de não se desinteressar pelo trabalho do delírio, pois
é um trabalho, em última instância, de cura. Trata-se de uma posição ética diante da psicose que
Freud fundou e que não deve ser abandonada pelos analistas dispostos à escuta de suas produções.

51
51A
Fins

O percurso aqui introduzido visou colocar a ênfase devida aos esforços freudianos de não
relegar o delírio ao campo das produções patológicas disfuncionais que devem ser interrompidas
a todo custo. Freud insistiu em dar ao delírio a condição de tentativa de cura e de reconstrução
do mundo, dando ao psicanalista o encargo de se aprofundar na história de seu desenvolvimento.
Supondo na formação delirante um dizer, a condução de Lacan da teoria psicanalítica possibilitou ao
campo da psicose uma escuta e um tratamento, a despeito da tendência ainda atual da psiquiatria e
demais áreas psi a asilar o psicótico e fazer cessar suas manifestações. Retomar os ensinamentos de
Freud e Lacan intenta manter a chama de seus projetos viva, sem se deixar conduzir por caminhos
que silenciem o delirante.
Constituir um delírio, longe de ser entendido como a evolução de um padecimento, faz
parte de um esforço de reconstrução de um mundo despedaçado pela invasão imaginária sofrida
pelo sujeito, que surge como efeito de conteúdos inconscientes sendo lançados para o exterior ou,
na terminologia de Lacan, o reaparecimento no real do que é recusado na ordem simbólica.
A construção delirante se edifica mediante o grau de certeza que o significante adquire,
“um peso proporcional ao vazio enigmático que se apresenta inicialmente no lugar da própria
significação” (LACAN, 1957-1958/1998, p. 545). Trata-se de um efeito do significante, cuja estrutura
escancara o equívoco próprio à comunicação, efeito da fragilidade do mundo do sentido. Assim, o
delírio subverte as ordenações da língua e denuncia que a linguagem é, por excelência, incompleta,
e que no sujeito que a produziu subsiste um rombo análogo, uma impossibilidade inviolável de
sentido.
A criação poética é uma operação simbólica que intenta dar algum contorno ao vazio do
real. Criação de um sujeito impondo uma nova ordem simbólica com o mundo, o poema não rejeita
as incompletudes do sistema de comunicação humana, atestando que não se pode tudo dizer. Há
espaços deixados em vazio que a língua jamais poderá alcançar, há algo que sempre escapa, de
modo que eliminar o nonsense ou produzir sentidos inequívocos é uma pretensão irrealizável. Em
vez de se prestar a discursos inquebrantáveis, da maneira como idealizou o paradigma científico do
século XX – cuja expressão pode se dar, por exemplo, em um texto em prosa, mais comumente na
forma de argumentação lógica –, o poema dispõe da desordem do mundo e da natureza, brinca
com o sistema de leis da língua que tenta impor uma ordem impossível à natureza. Jogando com as
ressonâncias do sentido, o poeta desmonta de forma irremediável o signo linguístico.
Há um eixo, que esperamos ter ficado evidenciado, entre o delírio e o poema, que os deixa

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ligados sem intenção de os igualar, e que deve servir para realçar a posição ética do psicanalista
diante da psicose. Ambos transformam e mesmo subvertem as convenções da língua, acatam a
natureza ambígua, polissêmica e equívoca da linguagem, embora evidentemente a partir de
operações distintas, o que frequentemente resulta em circulações diferentes por entre os laços
sociais vigentes. Há nisso, ao que nos parece, uma contribuição importante à escuta em psicanálise,
na medida em que pudermos tecer pontos de ligação entre a leitura do poema e a leitura que o
psicanalista faz enquanto testemunha de um dizer, um dizer que se consolida como um verdadeiro
esboço de restituição dos vínculos.
Constituir um delírio representa uma tentativa de passagem do despedaçamento do
corpo e da dispersão de gozo para uma inserção parcial no pacto social. Propusemos, por um lado, a
escuta do neologismo psicótico (no qual há realização do verbo) como expressão poética, em lugar
de desprezá-lo enquanto loucura, e, por outro, atribuir ao poema o ato de fazer o verbo delirar.
O analista, por sua posição ética, abre espaço para a construção de narrativas e para o
advir do sujeito, possibilitando a constituição de um delírio que reorganize sua existência. Buscando
romper com a concepção tradicional da loucura, esperamos poder contribuir com reflexões teóricas
e clínicas consistentes com a despatologização da psicose e uma introdução de suas produções no
campo da cultura, no meio do povo, em vez de enclausurar nos lugares sociais que colaboram com
o efeito de ruptura que mantém o sujeito excluído do pacto de simbolização.

52
52A
Referências
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QUINET, Antônio. Psicose e laço social. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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54
54A
OS EFEITOS DO NÃO-DITO SOBRE A MORTE PARA A CRIANÇA

THE EFFECTS OF THE UNSAID ON DEATH FOR THE CHILD

Leidiane Francisco Diniz 1


Layla Raquel Silva Gomes 2
Luzia Silva dos Santos 3

Resumo: O artigo tem como objetivo discutir os efeitos do não-dito sobre a morte para crianças, a partir de uma articulação
teórica sobre o (s) efeito (s) do não-dito, das histórias que não se contam sobre a morte na experiência clínica com crianças
enlutadas. Foi realizada uma pesquisa teórico-clínica fundamentada em conceitos psicanalíticos de base freud-lacaniana
interligados a reflexões sobre o tema em questão a partir de vinhetas clínicas de atendimentos psicológicos com crianças
que perderam uma pessoa amada. Conclui-se que, o não-dito em relação à morte estaria relacionado com a produção do
sintoma, como repetição, e que se apresenta pela via da angústia, da dificuldade de aprendizagem e de outras formas de
sofrimentos.

Palavras-chave: Não-dito. Morte. Efeitos. Criança.

Abstract: The article has as its objective making a theoretical articulation about the effect (s) of the unsaid, of the stories that
are not told about death in the clinical experience with mourning children. A theoretical-clinical research was conducted,
based on Freud-Lacanian psychoanalytic concepts which, in turn, were linked to reflections on the subject in question,
sourced from clinical fragments of psychological care with children who lost a loved one. It is concluded that, the unsaid in
relation to death, by the child’s parent (s) or by those who play the role of caregiver, would be related to the production of
the symptom, as repetition, and that it is presented through the anguish, learning difficulties and other forms of suffering.

Keywords: Child. Death. Symptom. Unsaid.

1 Mestre em Psicanálise e Cultura (UFU) e Residência Multiprofissional em Paciente em Estado Crítico (UFU). Psicóloga e psicanalista.
Lattes:  http://lattes.cnpq.br/7102977476566605. ORCID:  http://orcid.org/0000-0003-4127-1918. E-mail: leidiane_fdiniz@hotmail.com

2 Doutoranda em Psicologia Clínica (USP) e mestre em Psicanálise e Cultura. Psicóloga-psicanalista. Lattes:  http://lattes.cnpq.
br/5704282827188848. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7030-9511. E-mail: layla_r@hotmail.com

3 Mestre em Psicologia Clínica e Cultura (UNB). Psicóloga-psicanalista. Lattes:  http://lattes.cnpq.br/4447592710160020. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-5738-4143. E-mail: luziasantos.psicologia@hotmail.com
Introdução
Tantos assuntos proibidos. Essa foi a minha história. O fôlego
faltou e me achei autorizada para dizer qualquer coisa que não
o silêncio. Uma constante caça às palavras que construíssem
um enredo sobre os não-ditos que marcaram a ignorância da
minha origem. (SALUM, 2015, p.79).
Desde o início o mundo doeu em mim. Dentro, mas também
fora. Alguns creem que as memórias da primeira infância ou
são boas ou não existem, temerosos de que até o mito da
infância feliz lhes escape. São os que preferem não lembrar.
Eu lembro muito, sempre lembrei. E ainda hoje há noites,
muitas noites, em que acordo com o coração descompassado.
Sempre vou temer o retorno da escuridão, que para mim é o
mundo sem palavras[…]. A morte é mundo sem palavras[...]
(BRUM, 2014, p.12)

O primeiro fragmento acima foi retirado da tese de doutorado de Luciana Salum (2015),
intitulada Sobre o que se escreve de uma psicanálise (Isto é uma Tese). Nessa obra, a autora ressalta
como sua história foi atravessada pela morte silenciada, pelo não-dito, por histórias não contadas
ao outro, e, consequentemente, a deixou sem acesso à palavra para dar borda ao Real (Salum,
2015). De acordo com Lacan (2018/1973-1974), o Real refere-se ao inassimilável, ao impensável, ao
insuportável, ao não simbolizado.
Por sua vez, o segundo fragmento extraído do livro Meus desacontecimentos: a história
da minha vida com as palavras, escrito por Eliane Brum (2014), aborda como a morte simbólica,
concreta e real estava presente em sua vida antes mesmo do seu nascimento. Nas palavras da
autora, “nasci não de um, mas de vários túmulos. O primeiro deles foi o corpo da minha mãe,
assassinado pela morte da criança que veio antes. Uma menina, a primeira menina” (p.13). Assim,
para a autora, a irmã morta representava seu nascimento, mas, ao mesmo tempo, ela se sentia
mais morta do que viva, pois tornou-se a substituta da irmã morta e enganchada ao significante
morte (BRUM, 2014).
Trago esses fragmentos para falar como, desde cedo, minha história também foi habitada
pelo silêncio, por fatos não contados sobre significantes fundamentais para a constituição subjetiva:
como a morte, a origem do nascimento e, entre outros, os efeitos da falta de palavras, de articulação
de significantes no meu corpo. Como a maioria das crianças, também queria saber várias coisas
sobre a existência humana. Era bastante curiosa. Queria saber sobre o nascimento e sobre a morte.

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Entretanto, ao realizar perguntas para minha mãe a respeito de onde vinham os bebês, a resposta
dada por ela marcava uma impossibilidade: “É a cegonha que traz”. E quando eu questionava para
onde vão as pessoas quando morrem? Ela respondia: “vão para o céu”, encerrando minhas dúvidas.
Comecei a escutar e ter acesso a outras narrativas acerca do tema na escola, nas relações
cotidianas; narrativas um pouco mais elaboradas sobre a morte, como: “Quando as pessoas
morrem, elas irão retornar à Terra, pois Deus irá ressuscitá-las”. Ouvi também: “as pessoas não
voltam mais”. As contradições contidas em cada versão e a marca da impossibilidade de falar sobre
esses assuntos, me deixavam confusa e angustiada, de modo que minha vida foi atravessada por
perdas reais e simbólicas não faladas, histórias nunca contadas, versões confusas e inacessíveis que
não conseguiam aplacar minha angústia.
Ao ingressar na Residência Multiprofissional em Saúde, no Programa de Atenção ao Paciente
em Estado Crítico, no ano de 2018, em um Hospital Escola de Minas Gerais de referência à média
e à alta complexidade, continuei o meu encontro com os não-ditos sobre a morte para criança. Na
cena hospitalar, percebi as dificuldades e o sofrimento, tanto dos pais quanto dos profissionais de
saúde, em falar a respeito da temática, pois o discurso dos próprios familiares e até mesmo dos
profissionais de saúde é baseado no senso comum: “a criança não entende, é pequena demais
para lidar com um assunto tão temeroso e traumático”. Desse modo, optam por silenciar e omitir
dados relacionados ao assunto na infância. Neste contexto, qual(quais) o(s) efeito(s) do não-dito
realizado pela figura parental tangenciando óbito para as crianças? É comum esses pais acreditarem
que ao não comunicar sobre e omitir as causas da partida de um ente querido estão protegendo
56
56A
a criança do sofrimento. Mas, será? Diante disso, este artigo busca discutir os efeitos do não-dito
sobre a morte para crianças, a partir de uma articulação teórica sobre o(s) efeito(s) do não-dito,
das histórias não contadas a respeito da morte na experiência clínica com crianças enlutadas, bem
como levar em consideração os fragmentos retirados de atendimentos clínicos, ou seja, vinhetas
clínicas.
Concernente à metodologia, é uma pesquisa teórica clínica e de base psicanalítica. A
pesquisa em psicanálise é similar à prática clínica. E na clínica, a escuta psicanalítica acontece pela
transferência ‒ o paciente relata sobre si para a analista, enquanto do outro lado, a analista oferta a
escuta flutuante. Nesse sentido, a pesquisa com base no método da psicanálise, também acontece
na e pela transferência, isto é, na passagem da experiência vivenciada entre o pesquisador e seu
objeto de estudo (ROSA, 2004).
No primeiro momento desta pesquisa, realizou-se um levantamento teórico a partir dos
principais autores que estudam o tema, como Freud, Lacan, Dolto, Kübler- Ross e Rosa. Em seguida,
foi feita uma articulação entre a teoria com vinhetas clínicas de crianças que perderam pessoas
queridas. Os fragmentos extraídos são da minha experiência clínica com crianças em um hospital-
escola de Minas Gerais, a partir de visitas infantis e de um grupo de luto infantil, realizadas na Clínica
Escola de Psicologia como parte das atividades da Residência Multiprofissional.
O grupo de luto infantil consistiu em um projeto de extensão vinculado ao projeto pedagógico
da Residência Multiprofissional. Os encontros foram realizados por residentes e/ou estudantes de
psicologia, e supervisionado pela psicóloga coordenadora do projeto de extensão. O grupo teve
como objetivo oferecer espaço para as crianças produzirem uma narrativa, em formato livre, sobre
a experiência de perda vivenciada. A seleção das crianças participantes do grupo foi elaborada por
meio da lista de espera da Clínica Psicológica, a partir de um rastreamento da história de perda de
pessoa próxima. Desse modo, foi realizado contato e a proposta dos encontros foi explicada aos
responsáveis legais. Foram organizados seis encontros com três grupos separados por faixa etária:
de 6 a 9 anos; 10 a 13 anos, e outro com os pais e/ou responsáveis pelas crianças.
O grupo do qual fiquei responsável, junto a uma residente e a uma estudante da graduação,
foi o de crianças de 6 a 9 anos de idade. Elas foram encaminhadas para atendimento clínico em
função da dificuldade no processo de aprendizagem e de comportamento, porém tinham vivenciado
perdas de familiares descritas de modo secundário em suas fichas. A fim de resguardar as crianças
participantes do grupo, os nomes foram substituídos por fictícios e suas histórias abordadas e
narradas de forma cuidadosa.
Este estudo foi organizado da maneira a seguir: primeiramente, abordei como se dá a

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constituição do sujeito para psicanálise. Em segundo, discorri as concepções a respeito da morte,
como o adulto se relaciona com o tema e qual sua atitude diante dessa ocorrência, principalmente
quando se trata de falar sobre isso com crianças. Posteriormente, trouxe aspectos teóricos e reflexões
acerca do não-dito quanto à morte e sua causa para as crianças, realizando uma articulação com
fragmentos dos atendimentos clínicos de perdas vivenciadas por elas.

Constituição subjetiva

O mundo que o filhote humano depara ao nascer, é um mundo de linguagem, ele já é


falado antes mesmo de seu nascimento, isto é, dão-lhe um nome, constroem expectativas, uma
história para o bebê, dizem-lhe o que sentem, como será e o que fará.... Tal nomeação, a inserção
de significantes realizada pelo seu semelhante continua após o bebê nascer (BERNARDINO,
2006). O bebê nasce em total desamparo e despreparo para a vida no âmbito neurológico, motor
e simbólico. Se não for cuidado, acolhido, nomeado, realizada a antecipação da sua existência
por um semelhante, ele pode morrer (CORTES e SIRELLI, 2016). O semelhante aqui, é aquele a
desempenhar a função materna, também, conceituado por Lacan como Outro primordial1, o qual
não se refere, necessariamente, à mãe biológica, mas sim a pessoa desempenhando esta função
para o pequeno ser em constituição.
No encontro da criança com aquele que desempenha a função materna, ela vai tomando
1 O Outro primordial, também, é chamado de função materna.
57
57A
para si os seus ditos e por meio deles cria-se o processo de alienação. Ou seja, alienar-se ao desejo,
às palavras do Outro primordial. A alienação é fundamental para ser cuidado e ter existência
simbólica, pois no início como vimos, o bebê é apenas um pedaço de carne, um corpo ainda
indiferente às palavras, e com o tempo as palavras e os afetos vão sendo inscritos em seu corpo
(LACAN, 1953; DOLTO, 1999/2002). Nesta direção, Flesler (2012), sustenta a colocação anterior ao
dizer como essa primeira operação é necessária para sua sobrevivência e sua existência simbólica,
mas “por sua vez, um perigoso desafio para o sujeito. A criança tentará bravamente se transformar
em seu equivalente e preencher as expectativas propostas para ser cuidada e atendida em suas
necessidades básicas” (FLESLER, 2012, p.42).
Neste contexto, com o tempo, é necessário que a criança comece a separar das palavras, do
desejo do Outro primordial. Pois, o sujeito não pode se desenvolver aprisionado a essa vontade,
requer o exercício de se separar do Outro para se constituir a partir do seu desejo, ter voz própria
e ser autor da sua história. A separação é alicerçada na falta, no intervalo que produz um sujeito
desejante. Pois, ao separar daquele desempenha a função materna, sua falta é evidenciada, a falta
é a força motriz em direção ao desejo.
A operação de separação é realizada pela função paterna que, enquanto terceira na relação,
busca romper com a crença de completude da criança em relação à mãe, e implica em reconhecer a
incompletude materna e a própria; suportar a queda da onipotência da maternidade para se inserir
no campo simbólico, ou seja, na lei e no desejo-falta e formular demanda a partir da palavra (ROSA,
2009). Na operação de separação, portanto, o filhote humano desvela que o Outro primordial
não é tão absoluto, algo lhe falta; essa descoberta possibilita ao sujeito indagar sobre seu desejo
(BERNARDINO, 2006), bem como a interrogar “o que outro2/Outro3 quer de mim?”.
Para Dolto (1999/2002), o sujeito é uma construção de linguagem, a palavra é marcadora de
seu corpo, ou seja, é por meio dela que se funda o fato e faz registrar a história (ROSA, 2009). Ainda,
Dolto (1987/1989) e Rosa (2009) destacam a importância dos pais ou cuidadores em oferecer um
espaço de materiais simbólicos4 a respeito de questões fundamentais à constituição da criança,
como a sexualidade, a origem do seu nascimento, sobre a morte e sua relação com a perda de
pessoas próximas, pois a ausência de questões fundamentais pode ter implicações na constituição
subjetiva da criança. Nesse sentido, o próximo tema abordado será a morte. Isso porque, como
vimos, a morte envolve um dos significantes primordiais e, conforme o objeto discutido no trabalho,
muitas vezes, fica no campo do não-dito.

Morte

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A morte é única certeza que temos na vida, mais cedo ou mais tarde morreremos e
perderemos nossos entes queridos. Todavia, embora a finitude faça parte do percurso, produz em
nós diversos sentimentos, como estranheza, inquietação, medo, angústia, etc. E, representa o ponto

0 O outro, é seu semelhante; os pais\familiares; seu entorno...


3 Outro, em Lacan, refere-se à linguagem e seus tesouros de significantes: palavras, leis, língua, saber, cultura.
Ele é encarnado pelo outro. Na obra de Lacan, o Outro passa por três formulações; a primeira: o Outro enquanto
formação do inconsciente ‒ sintoma, chiste, ato falho e sonho. Segunda: no processo de alienação constitutiva,
o bebê vem ao mundo marcado pelo discurso dos pais (quem faz função), da sua época, da cultura, e necessita
assujeitá-lo para sobreviver e advir como sujeito; este Outro, no tempo da alienação, é cheio de significantes, porta
“todos saberes\sentidos”. A terceira: o Outro inconsistente, há a queda (precisar deixar cair) da ilusão de que ele
tem todos os significantes, porque ele é falho, porta a falta, bem como a si mesmo também, abrindo possibilidade
para o sujeito advir enquanto desejante (Pena; Silva, 2018).
4 O simbólico é o campo da linguagem: das palavras, da simbolização, da metaforização, da lei de interdição do
gozo desmentido. A linguagem é estruturante, funda e registra a criança na história e na cultura a partir da relação
a dois: da criança com as figuras parentais. Lacan (1938/2003a) em sua obra Os complexos familiares, salienta a
família com dupla função biológica para a criança: a de garantir a sobrevivência e a de atender suas necessidades
fundamentais. Contudo, tal família tem como tarefa primordial a transmissão da cultura, da ética, dos limites, das
regras e, principalmente, dos significantes da linguagem, e se faz essencial no processo da constituição subjetiva.
O sujeito em constituição só se torna indivíduo falante e desejante mediante o encontro entre um organismo e
a linguagem, pela mediação dos pais ou de quem desempenha o papel de cuidador da cria. Vale dizer que isso
esbarra no limite da palavra, da representação.
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58A
final da construção e reconstrução da nossa história. Significa, também, o não-ser e o não-estar no
mundo. Ela é e aponta para o Real, aquilo que é da ordem do sem sentido, sem representação,
do insuportável de tolerar; escapa do campo da simbolização, o impossível de inscrever a relação
sexual (LACAN,1974-1975).
Freud (1915/2010), em Considerações atuais sobre a guerra e a morte, nos diz que:
Na realidade nós agíamos como se as coisas fossem diferentes.
Manifestávamos a inconfundível tendência de pôr a morte
de lado, de eliminá-la da vida […]. Pois a própria morte é
também inconcebível, e, por mais que tentemos imaginá-la,
notaremos que continuamos a existir como observadores no
fundo ninguém acredita na própria morte; ou, o que vem a
significar o mesmo, que no inconsciente cada um de nós está
convencido de sua imortalidade.

Para Ariès (1977, apud PAIVA, 2014), a morte consistia em um tema frequente nas conversas
na Idade Média, mas a partir do século XV ocorreram grandes mudanças na forma de lidar com o
tema, isso porque ela foi transferida para o hospital e passou a acontecer de maneira mais solitária.
Para Kübler-Ross (1926/2017), a morte continua sendo assustadora. A mudança emergente com o
avanço da tecnologia e da medicina, foi a nossa atitude em relação ao assunto, haja vista que ela
passou a não ter lugar na sociedade, tornando-se sinônimo de fracasso e de impotência.
A fim de ilustrar, Kübler-Ross (1926/2017) em Sobre a morte e o morrer, apresenta suas
memórias de infância ao recordar a morte do fazendeiro: ela narra como ele caiu de uma árvore e
não tinha possibilidade de sobrevivência. Pediu para morrer em casa, e seu desejo foi aceito. Nos
seus últimos dias, realizou despedidas com seus familiares, amigos e Kübler-Ross e seus irmãos foram
incluídos também. O velório aconteceu na casa do morto, contando com a participação de seus
familiares, amigos e das crianças. Mesmo a morte sendo o “estranho-familiar”, o irrepresentável,
algo que nosso inconsciente não consegue simbolizar, neste período, ela era falada nas rodas de
conversas e as crianças participavam dos eventos de despedida. Na atualidade, porém, o velório
ocorre longe das casas dos mortos e o tempo de velar foi encurtado.
Kübler-Ross (1926/2017,p.10) nos apresenta:
A morte é encarada como tabu, onde os debates sobre ela são
considerados mórbidos, e as crianças afastadas sob pretexto de
que seria “demais” para elas. Costumam ser mandadas para a
casa de parentes, levando muitas vezes consigo mentiras não-

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convincentes de que “mamãe foi fazer uma longa viagem” ou
outras histórias incríveis.

Parafraseando a autora, a morte na sociedade contemporânea tornou-se um não-dito,


um segredo para o adulto e, sobretudo, para a criança. Assim, o próximo item tem a proposta de
abordar com mais detalhe o não-dito, a morte e a criança.

Não-dito, morte e a criança

O não-dito refere-se a histórias não contadas, a palavras censuradas, interditas, verdades


omitidas, distorcidas, postas em suspensão, caladas e relacionadas com significantes fundamentais
para a constituição subjetiva da criança, como a adoção, a origem do nascimento e a morte. O
não-dito está fora do campo da linguagem, da simbolização, da historicização (ROSA 2009). Nesta
direção, em O estranho, Freud (1919) remete ao não-dito como desconhecido, aquilo que não é
familiar, recalcado, reprimido e não pode vir à tona.
Nesse sentido, podemos dizer que ele vai de encontro ao conceito de Real lacaniano – isto é,
o encontro com a falta, com o impensável, com o sem sentido, e escapa à palavra, não cessa de se
inscrever, que não é simbolizado pela palavra (LACAN, 1973-1974/2018).
Rosa (2009) apresenta três modalidades de não-ditos: ditos possíveis – mal-entendido, o
mal-dito; impossíveis – indizível e o desejo, bem como o impensável é de caráter sagrado, que deve
59
59A
permanecer como ideal; e os não-ditos voluntários, compreendidos como implícitos, associados
às regras sociais, ao mito e ao segredo imposto pelo outro. Assim, é plausível dizer que o segredo
como expressão do não-dito é o mais se próximo da temática deste estudo. Neste caso, o segredo
dos pais com relação à morte e sua causa que atinge as crianças.
Chargas (2014) diz que o segredo tem duas dimensões: a primeira, como vimos, é imposta
pelo outro. A segunda refere-se à escolha da criança em ocultar, guardar para si alguns pensamentos,
em vez de falar tudo para os pais, pois quando a criança fala tudo aos pais, pode se tornar serva
deles, isto é, ser alienada ao desejo deles. Portanto, essa escolha é fundamental para o indivíduo
construir sua subjetividade e sua autonomia. Para Dolto (1979, apud Maud, 2004), o segredo está
relacionado com:
[...] todas as situações em que a criança é envolvida e cuja
divulgação lhe é interditada ou em que lhe seja permitido
neles se reconhecer ou conhecer a verdade que percebe de
maneira muito sutil e cujas palavras justas, para traduzir a sua
experiência com eles compartilhados, lhe faltarem, levam-
na a sentir-se estranha, objeto de um mal-estar mágico,
desumanizante (p.17).

Para ilustrar o não-dito como expressão de um segredo, trago o fragmento da história do


menino Matheus, seis anos, participante do grupo de luto infantil. A criança perdeu o pai há dois
anos por suicídio. Seu genitor foi encontrado pela mãe pendurado em uma árvore. Quando ela viu
a cena, gritou intensamente e, rapidamente, retirou a criança da casa [...]. A causa da morte foi
distorcida, omitida e tornou-se um segredo, pois sua mãe lhe disse que o pai havia subido em uma
árvore para pegar um passarinho e caído.
José, de oito anos, é outra criança que participou do grupo de luto. No caso dele, o significante
fundamental da história também foi omitido. Para ele, foi contada uma mentira para esconder a
causa da morte do pai. Seu pai suicidou quando ele tinha 3 anos. Foi encontrado alguns dias depois
do ato, pendurado em uma árvore, em estado de decomposição e com mau cheiro. A mãe disse ao
menino que o pai morreu de problemas do coração.
Vale pontuar que não foi proposital colocar duas crianças com histórias tão semelhantes em
um mesmo grupo. Além disso, as crianças não sabiam a causa da morte de seus respectivos pais,
tampouco o motivo que trazia o colega ao grupo.
Retornando à teoria, o segredo tem como intuito, de acordo com Rosa (2009, p.53-54):

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Cala-se o que faz sofrer para se esquecer a existência dos
males, dor, morte [...] desejo de romper com um passado
ultrapassado e trágico... O segredo, o mistério das coisas,
tem uma dimensão de superação com respeito à razão e à
existência cotidiana e permite instalar um sistema de regras
e de ideias, tanto coletivos como individuais. Os segredos são
histórias não verbalizadas, mas, insistentes...

Em síntese, como já dito, o segredo é uma das expressões do não-dito. É aquilo que é
imposto pelo outro, nesse caso, pelas mães das crianças ou por quem cuida delas. Mas por que os
adultos se calam sobre a morte e sua causa para criança?
Diante desse questionamento, relato de forma breve a minha experiência com visitas
infantis em um Hospital Escola de Minas Gerais, principalmente na Unidade de Terapia Intensiva
(UTI) de adulto. Nos acolhimentos realizados com pais de crianças, percebi como eles manifestavam
grandes dificuldades em abordar o assunto sobre a morte com as crianças. Alguns diziam que a
criança “não entende”, ou é “pequena demais” para falar sobre a morte e sua causa, e tais fatos
produzem sofrimento, são traumáticos; e assim por diante. Sobre isso, recordo uma visita infantil
de um menino (oito anos) que chamarei de Angel. Seu avô estava morrendo e a sua mãe disse a ele
que o avô iria “viajar para o céu”.
Paiva (2011) aponta que a morte, geralmente, em nossa cultura ocidental, é compreendida
como um assunto assustador, doloroso e, sobretudo, representa sinal de fracasso, impotência
e derrota. Consequentemente, a morte se torna uma palavra interdita, um tabu, o não-dito,
60
60A
especialmente, para a criança. Afinal, os pais costumam mentir, ocultar, fazerem uso de metáforas
e negar informações a respeito da morte de uma pessoa próxima à criança, com a justificativa de
protegê-la do sofrimento.
Nas palavras de Paiva (2011):
Os adultos costumam dizer que morte não é assunto para
crianças, porque é triste, como desculpa de que querem
protegê-las. Mas, na verdade, nós não sabemos como abordar
esse tema com as crianças. Para nos protegermos de nossa
própria ignorância e por recear as possíveis reações das
crianças, preferimos evitar o assunto, fazendo de conta que a
morte não faz parte do universo infantil (p.32).

Para Rosa (2003), os pais acham que podem perder o controle, a autoridade em transmitir
as normas, os valores, bem como acreditam que sua relação com o filho pode mudar, pois o efeito
desse falar não é previsível. Assim, imaginam: o que a criança vai pensar e fazer com o que sabe?
Além disso, há componentes de culpa, moral, dívidas e frustrações não trabalhadas pelos pais com
potencial de alterar sua relação e seu discurso com o filho. E mais, os pais evitam contar uma história
sobre as questões existenciais para a criança, isso também seria uma forma de não acessarem sua
ferida narcísica, também, de pensarem que o tema pode gerar sofrimento. Dessa maneira, eles
fazem suposições de como esses sofrimentos também ressoariam.
Voltando à criança, a autora aborda que ela é um ser com uma percepção aguçada, capaz
de adivinhar, intuir, mas não sabe o que é, pois falta nomeação, representação. Ela necessita da
articulação de significantes, das palavras advindas do outro que, aqui, seriam as dos seus genitores/
cuidadores. Quando ela encontra o silêncio, a falta de palavras, de significantes e outras espécies
de não-ditos, pode exprimir seu saber inconsciente pela via do sintoma, da angústia ou da inibição
(ROSA, 2009).
Kovács (1992) fala que desde cedo a criança experimenta situações possibilitadoras do acesso
à certa noção de morte. Ela percebe quando algo ocorre em seu redor, porém, muitas vezes, sente-
se confusa com relação à sua percepção. Omitir e ocultar a morte para a criança pode produzir mal-
entendidos, pois ela fica confusa por não ter alguém a fim de confirmar sua percepção.
A esse respeito, Raimbault (1979, p.93) afirma: “as crianças sabem. Elas lhe contam através
de desenhos, sem saber que contam. Elas sabem inconscientemente”. Ademais, a criança, bem
pequena, expressa esse saber pelas manifestações do seu corpo, necessitando da tradução das
expressões pelo cuidador, e ela descobre o mundo e a si mesma através dele (DOLTO,1989/1987;

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KÜBLER-ROSS, 2003).
Para exemplificar o dito dessas autoras, apresento a menina Mel, seis anos. Sua mãe estava
em estado grave na UTI. No acolhimento à criança para a visita infantil, perguntei a ela: o que
você sabe sobre sua mãe? A menina diz que a mãe está muito doente. Logo, o pai interrompe o
atendimento e fala que a mãe irá voltar para casa e que eles irão viajar. Em uma folha em branco, a
criança desenha sua família. Ela, a irmã e seu pai estão próximos, mas a mãe está distante deles. O
que a criança estaria nomeando a partir dessa distância no desenho? É possível utilizar o desenho
como ferramenta para acessar a compreensão da criança em relação à possibilidade de morte da
mãe?
Em outro caso, Pietro, de seis anos, tem um irmão que sofreu um acidente automobilístico,
ficando em estado grave na UTI. No acolhimento à mãe, ela me diz que ao receber a notícia sobre o
acidente, gritou: “meu filho morreu”. Pietro estava perto. Ao perguntar à mãe sobre a criança, ela diz
que o menino queria visitar o irmão no hospital, mas a mãe negou, argumentando que no hospital
não é permitida a entrada de crianças […]. A criança apontou para a mãe que ela mentia a respeito
do ocorrido com o irmão. Pietro começou a ter pesadelos, dificuldade para dormir e a manifestar
angústia intensa. Pietro estaria apresentando um sintoma diante da falta de representação, de
verbalização?
Com esses fragmentos de atendimentos clínicos, recorremos à teoria referente ao sintoma
com Rosa (2009), afirmando que o sintoma tem a ver com uma palavra que não pode ser falada,
não pode ser dita – a negação da linguagem, a não-simbolização. Assim, o sujeito fica submerso ao
61
61A
Real avassalador, pois é a palavra que faz borda ao Real.
Em “Inibição, sintoma e angústia”, Freud (1925-1926/1996) ressalta a função de defesa do
sintoma, uma forma de evitar uma situação de perigo que surgiu pelo desenvolvimento da angústia.
Também estaria relacionado com aquilo anteriormente reprimido; é um enigma pedindo para ser
lido e traduzido pelo outro.
O sintoma pode se apresentar por meio de uma queixa de dificuldade de aprendizagem, ou
uma inibição na fala, por exemplo. Mas sua verdadeira demanda não está na queixa apresentada
pela criança, há sempre algo, uma história por detrás, escondida, não dita (DOLTO, 1987/1989;
RAIMBAULT, 1979; KÜBLER-ROSS, 2003).
Nesse sentido, Lacan (1953/1998) aborda quando o não-dito não é posto em palavra, ele se
manifesta em ato, ao elucidar que:
O inconsciente: é o capítulo da minha história que é marcado
por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo
censurado. Mas, a verdade pode ser resgatada, na maioria
das vezes, já está escrita em outro lugar. Qual seja: nos
monumentos: é esse é meu corpo, isto é, o núcleo histérico
da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura
de uma linguagem e se decifra com uma inscrição que,
uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda grave;
Nos documentos de arquivo, igualmente: e esses são as
lembranças de minha infância, tão impenetráveis quanto
eles, quando não lhes conheço a procedência. Nos vestígios,
enfim, que conservam inevitavelmente as distorções exigidas
pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que
o enquadram, e, cujo sentido minha exegese restabelecer
(p.260-261).

Exemplifico com Matheus que repetia, na maioria das vezes no grupo de luto, uma
brincadeira com a casinha de brinquedos. Ao vê-la, logo dizia que “ela está muito bagunçada, as
coisas estão fora do lugar”. A partir daí começava a arrumar, arrumar... desarrumar e desarrumar
a casa. No decorrer da brincadeira, Matheus introduzia um fantoche, o nomeando “Pequeno
Senhor”... O Pequeno Senhor, de repente, desaparecia (uma das coordenadoras do grupo de luto
o escondia). A criança iniciava uma busca incessante à procura do fantoche, dizendo “cadê você,

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Pequeno Senhor?”, com muita angústia.
Podemos dizer que, talvez, o menino estaria apontando para uma tentativa de elaboração,
de busca de algo que foi omitido, negado da sua história por meio da brincadeira de encenação
com a casinha quando tira e coloca os brinquedos dentro da casa, como compulsão à repetição, em
busca pelo Pequeno senhor (fantoche).
Por sua vez, trago José novamente, cujo pai foi encontrado pendurado em uma árvore em
estado de decomposição. No grupo de luto, a criança desenhou uma árvore, dizendo que ela está
com mau cheiro [...]. Seria plausível afirma uma referência de José ao relatar, inconscientemente,
que possui um saber acerca da causa da morte do pai, mas um saber inconsciente, um significante
que necessita de outro significante vindo de outro (alguém), neste caso, da mãe, para ter existência
simbólica. Na ausência, na lacuna desse significante-causa da morte do pai na sua história, o menino
comunica pelo ato de desenhar.
Freud (1914/1980), em seu texto Repetir, recordar e elaborar, salienta que aquilo que não
é dito, não verbalizado, é reprimido, não pode ser rememorado, é repetido por meio do ato, da
atuação, como forma de contar e na tentativa de elaboração.
Em resumo, aquilo presente no campo da atuação e da repetição é compreendido como um
sintoma, um enigma, solicitando ao outro uma tradução. No caso, as crianças estariam dizendo:
escuta-me, leia-me, decifra para mim aquilo que em minha história falta pedaços, isto é, o quebra-
cabeça da minha história está faltando peças. Procura e procura, como o menino Matheus, mas
não encontra.
Por fim, apresento outra questão importante a se ressaltar em relação à questão das
62
62A
crianças que participaram do grupo de luto infantil. Antes de participar do grupo, elas haviam sido
encaminhadas para atendimento clínico em função da dificuldade de aprendizagem, como vimos
anteriormente.
No grupo, observei como elas apresentavam certa dificuldade de contar uma história sobre
si. Rosa (2009) lembra que aprender e saber caminham juntos. Como aprender e contar sobre si,
se foi omitido e ocultado parte da narrativa da criança sobre a morte de seus pais, especialmente
como morreram? O não-dito, não elaborado, pode retornar como sintoma, como repetição.

Considerações Finais

Quando a criança se depara com o não-dito, com a omissão de dados das histórias, com o
não-elaborado em relação à morte e ao esclarecimento da forma como os pais morreram, como
vimos a partir da discussão teórica e da articulação de fragmentos de atendimentos clínicos, o
que emerge nela é a produção do sintoma – como repetição, podendo se apresentar por meio da
angústia, da dificuldade de aprendizagem, e de outras formas de sofrimentos psíquicos ou físicos.
O sintoma porta um enigma, uma interrogação, apontando que há uma história que não foi
contada, há lacunas ou dados omitidos pelo outro, que seria um dos pais das crianças ou cuidadores.
Nesse sentido, o sintoma estaria dizendo: decifra-me. Traduza-me. Escuta-me. Conte-me a verdade
sobre ou como meu pai morreu? Sinto que a mamãe oculta algo sobre a morte do meu pai, mas
não sei o que é. Por que mamãe esconde a história sobre a morte do meu pai?
Também percebi com a experiência como os pais têm dificuldades e receios de abordar o
tema. Apontamos, ainda, um despreparo para conversar sobre a morte com as crianças. Talvez,
não seja dito às crianças, pois foi sequer esteja elaborado, acessível simbolicamente pelos adultos.
Desse modo, como abordar, como falar para as crianças? Diante disso, o sintoma da criança estaria
relacionado ao sintoma dos pais. Portanto, é plausível dizer que não adianta realizar um trabalho
clínico apenas com a criança, mas também com seus pais. Para trabalhar com as crianças e os pais
precisamos de profissionais capacitados, preparados, que consigam trabalhar com a morte e com
o morrer.
A partir da minha experiência na Residência Multiprofissional no Hospital de Minas Gerais,
percebi que os profissionais, de modo geral, apresentam dificuldades de trabalhar com essa
temática. Inclusive, em minha experiência como residente, escutar e suportar o paciente falar
da morte, que aparecia também nas visitas infantis, foi difícil e desafiador. Nesse contexto, senti

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necessidade de atravessar minhas fantasias, minha angústia e fazer uma elaboração possível em
relação ao que o tema morte desperta dentro de mim, pois, assim, haveria possibilidade de suportar
e escutar de forma mais leve as histórias sobre a morte. Nesse sentido, podemos discorrer como tal
escuta passa primeiro pela elaboração do adulto, para, depois, a criança conseguir escutar e acessar
quando traz o tema pela via do sintoma, como repetição, nos desenhos e nas brincadeiras.
Destarte, apontamos como seria interessante realizar um trabalho de capacitação com a
equipe de saúde e com os pais, relacionado à relevância de falar sobre a morte para crianças como
via de prevenção de possíveis sintomas, sobretudo, de elaboração do sofrimento. Outra questão
diz respeito à implantação de mais visitas infantis nos hospitais, pois, como cita Borges, Genaro
e Monteiro (2010) ainda acontece pouco nos hospitais do Brasil e, quando ocorre, geralmente o
único profissional responsável para realizá-las é o psicólogo.
Neste contexto, seria relevante para o serviço de saúde, ofertar capacitação aos profissionais
(enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, médicos, assistentes sociais e outros) para estarem
aptos a realizarem a visita infantil, e não deixar centrado e dependente do trabalho da psicologia,
bem como flexibilizá-la e oferecer um espaço para a criança poder se despedir do ente querido.
É imprescindível pensar em estratégias para o infante participar ativamente do processo de
adoecimento do seu familiar e seja mais inserida no contexto hospitalar quando pertinente,
especialmente, ter a possibilidade de ser informada e compreender o que está acontecendo ao
seu redor.
Além deste artigo oferecer suporte para os pais e profissionais de saúde, a respeito da
importância de falar da morte para criança, também salienta a existência de poucos trabalhos
63
63A
escritos condizentes ao objeto em questão, e acerca das possibilidades de trabalho do psicólogo com
a criança nessa realidade – em que a morte de uma pessoa próxima e querida lhe foi escamoteada,
tornou-se um não-dito. Como seria o trabalho do psicólogo direcionado ao não-dito relacionado à
morte para a criança?
Ademais, seria plausível dizer que a criança pode apresentar o não-dito ‒ morte como um
luto não elaborado, um trauma; mas aqui, desvelamos tal efeito como formação sintomática e,
portanto, deixamos estes outros possíveis efeitos para investigação de futuras pesquisas.

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núm. 8, julho-dezembro, p. 123-137, 2001.

Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

65
65A
RACISMO EPISTÊMICO E SECULARIZAÇÃO RELIGIOSA NA
PSICANÁLISE – ENTRAVES ÉTICOS PARA A FORMAÇÃO DE
PSICANALISTAS BRASILEIROS

EPISTEMIC RACISM AND RELIGIOUS SECULARIZATION IN


PSYCHOANALYSIS – ETHICAL BARRIERS FOR THE TRAINING OF
BRAZILIAN PSYCHOANALYSTS
Raoni Machado Moraes Jardim 1
Miriam Debieux Rosa 2
Gabriel Inticher Binkowski 3

Resumo: O artigo propõe uma análise crítica sobre a secularização do discurso religioso na conformação do discurso
científico moderno, bem como seus desdobramentos no interior da obra freudiana. Nos interessa sublinhar, em um primeiro
momento, que a racionalidade científica se estruturou a partir do recalque à alteridade, operando uma hierarquização
epistêmica que acompanhou a divisão racial do trabalho e organizou cognitivamente o capitalismo a partir de então.
Em seguida tomamos o processo de secularização do discurso religioso na epistemologia psicanalítica, marcada por um
projeto científico e por uma classificação valorativa dos conhecimentos terapêuticos que guarda importantes reflexões
sobre a sua atual restrição ao diálogo horizontal com saberes historicamente subalternizados em solo brasileiro. Sendo
esses saberes de matrizes africanas e indígenas, acusamos aí um racismo epistêmico. Tal análise busca contrapor a diretriz
ética da Psicanálise contemporânea aos discursos coloniais e capitalistas que a atravessam. Um esforço de descolonização
da formação psicanalítica brasileira.

Palavras-chave: Racismo Epistêmico. Secularização Religiosa. Psicanálise. Formação em psicanálise.

Abstract: The article proposes a critical analysis of the secularization of religious discourse in the conformation of the
modern scientific discourse, as well as its consequences within Freud’s work. We are interested in underlining, at first, that
scientific rationality was structured from the repression of otherness, operating an epistemic hierarchical classification that
accompanied the racial division of labor and cognitively organized capitalism from then on. Next we take the process of
secularization of the religious discourse in psychoanalytic epistemology, marked by a scientific project and by an evaluative
classification of therapeutic knowledge interspersed with important reflections on its current restriction to horizontal
dialogue with historically subalternized knowledge in Brazilian soil. As this knowledge comes from African and indigenous
matrices, we accuse it of epistemic racism. Such an analysis seeks to oppose the ethical guideline of contemporary
Psychoanalysis to the colonial and capitalist discourses that permeate it. An effort to decolonize Brazilian psychoanalytical
training.

Keywords: Epistemic Racism. Religious. Secularization.Psychoanalysis. Training.

1 Doutor pelo Dep. de Estudos Latino-americanos da Universidade de Brasília (bolsa CNPq). Mestre em Sociologia pela Universidad Nacional
de San Martín (bolsa OEA). Pós-doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (bolsa Fapesp). Membro do Laboratório de
Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL/USP). ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1398-7230. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9561505664164215.
E-mail:raoni.mmj@gmail.com

2 Professora Titular do Instituto de Psicologia da USP. Coordena o Laboratório Psicanálise, Sociedade e Politica (PSOPOL/USP) e o Grupo Veredas:
psicanálise e imigração (IP/USP). Pró-Reitora Adjunta para Inclusão e Pertencimento da Universidade de São Paulo (2022/26).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9518-0424. Lattes:http://lattes.cnpq.br/3826964831651958. Email: debieux@terra.com.br

3 Professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Mestre em Clínica Transcultural e Doutor em Psicologia pela Université
Sorbonne Paris Nord. Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL/USP). Coordena e supervisiona o Grupo Veredas:
psicanálise e imigração (IP/USP). ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4908-9221. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9915572605264386.
Email: gabriel.binkowski@gmail.com
Introdução

O diálogo entre a Sociologia do Conhecimento e a Psicanálise favorece um método dialético


de investigação na tentativa de trazer à luz da consciência as ideologias1, atores, estratégias,
relações de poder-saber escamoteados no curso das práticas e das produções teórica e analítica
correspondentes. Tal processo demanda a suspensão do saber já instituído, bem como de uma
investigação sobre os pressupostos do próprio sujeito que elabora a análise, buscando tocar
conteúdos latentes que movem as superfícies discursivas que nos orientam.
Dado o sistema capitalista em que estamos inseridos, partimos da afirmação de que as
modalidades discursivas e estratégias correspondentes de mais valia transbordam a própria
produção material, estabelecendo um ordenamento das relações que, hegemonicamente, as
legitimam. A linguagem que compõe os discursos é a própria prática social condensada, composta
de relações, regida por uma política. Há um saber que o sujeito veicula apesar de muitas vezes o
ignorar; que orienta as relações de poder que exercemos diante de cada um dos pequenos outros.
Em seu conjunto, enquanto linguagem, confirma um certo discurso hegemônico, mesmo que – ou
justamente porque /para que - a verdade sobre a distribuição de poder contida em cada relação
permaneça predominantemente inacessível à dita consciência (JARDIM; GUIMARÃES, 2022).
Ainda que de forma superficial e sem fôlego para verticalizar alguns pontos, iremos, num
primeiro momento, estabelecer alguns paralelos entre o discurso religioso e o discurso científico,
tomando o processo de colonização e o desenvolvimento capitalista moderno enquanto eixo
central em sua tentativa de se estabelecer como a verdadeira experiência de vida. Adotamos uma
perspectiva mais generalista, de longo alcance, na busca de elementos estruturais desses discursos,
especialmente daqueles que emergem a partir do período colonial com o recalque ou recusa à
alteridade, operando uma hierarquização epistêmica2 que acompanha a divisão racial do trabalho
e organiza cognitivamente o capitalismo a partir de então.
Na “extimidade” que caracteriza a coisa religiosa, privilegiaremos uma via de abordagem
sócio-histórica, que encontre o sujeito3 em suas condições de produção de subjetividade e que possa
delinear características estruturais da racionalidade moderna. Tal racionalidade, antes de cumprir
a sua promessa de sanar as lacunas subjetivas pela razão, seculariza os fundamentos da lógica
religiosa presentes nas instituições, ideologias ou mitologias (BINKOWSKI, 2021). Ou seja, busca
emancipar, os hábitos, costumes e a consciência, dos elementos religiosos que os constituíram.
Ainda que a ciência tenha como pressuposto epistemológico a sua permanente
reformulação – e aqui ela se difere enquanto método do discurso religioso -, interessa perceber

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como elementos míticos demandados pelo lugar de enunciação de um discurso religioso – de onde
vê, aquele que tudo sabe – permanecem presentes enquanto um pilar da racionalidade científica
e do ordenamento afetivo inaugurados pela modernidade, no ponto exato em que ela se apoia no
recalque da alteridade como solo para a afirmação de verdades sobre o mundo, os sujeitos e suas

1 Marilena Chauí (1981/2008) ressalta o caráter multifacetado da ideologia, mostrando ser esta “um conjunto
lógico, sistemático e coerente, de representações (ideias e valores) e normas ou regras de conduta que indicam aos
membros da sociedade o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer” (p.11) . 
2 O conceito de “episteme” traz, em geral (em alguns dicionários da língua portuguesa), um conceito etnocêntrico,
associando-o com o conhecimento “real, “verdadeiro”, “científico”, “oposto às opiniões individuais, infundadas”,
etc. Mas teóricos do século XX, como Michael Foucault, Thomas Kuhn, Gaston Bachelard, Bruno Latour, entre
outros, trazem outros horizontes possíveis, menos etnocêntricos, para esse termo, entendendo-o mais ou menos
como um paradigma comum a vários indivíduos, como corpo organizado de conhecimento, o que não significa que
ele seja estático. Muito ao contrário, “revoluções” e “rupturas” parecem ser uma marca em comum das epistemes.
De qualquer forma, aqui nos referimos a esse termo de forma mais ampla, como elementos estruturais de uma
racionalidade moderna ocidental caracterizada pelo recalque à alteridade.
3 No caso do discurso religioso, não temos a intenção de desdobrar uma abordagem centrada no sujeito, para daí
pensar o papel das religiões. Apesar de estar em relação, o argumento aqui não pretende aprofundar a função
religiosa para os processos de simbolização e organização psíquica dos sujeitos; para produção de “reservadas
de sentido”; para o “desamparo originário e inevitável” em sua perspectiva de neurose projetiva; ou mesmo dos
possíveis paralelos entre o papel de cuidado e da dinâmica transferencial na religião e na Psicanálise ao lidar
com o desamparo constitutivo e com o mal-estar dissolvido no mundo psíquico e social, argumentos esses que
perpassam a obra freudiana e que são delineados, por exemplo, no texto “Cuidado religioso e cuidado psicológico:
uma questão de fronteiras”, de Paiva e Granato (2014).
67
67A
relações. Tal trilha já fora apontada por Freud em textos seminais de sua abordagem do social,
como O futuro de uma ilusão (1927/1996) e Mal-estar na civilização (1930 [1929])/1996.
Num segundo momento, tentaremos perceber como o processo de secularização do discurso
religioso se apresenta como substrato de uma racionalidade científica requerida pela epistemologia
psicanalítica, desdobrando-se em uma hierarquização dos conhecimentos terapêuticos que, se
atualizado ao cenário brasileiro atual, guarda importantes reflexões sobre o hermetismo desse
campo e de sua restrição à escuta e ao diálogo horizontal com saberes historicamente subalternizados
sobre o sofrimento subjetivo. Sendo esses saberes de matrizes africanas e indígenas, acusamos aí
um racismo epistêmico. Tal esforço busca contrapor a diretriz ética da Psicanálise aos discursos
coloniais e capitalistas que a atravessam. Um esforço, portanto, de descolonização da Psicanálise
brasileira com incidência nos processos de formação de psicanalistas.

O capitalismo moderno: religião e raça

Qualquer análise sobre o capitalismo, em todas as suas fases, não deve prescindir de
uma perspectiva histórica de seu estabelecimento enquanto modus operandi do sistema-mundo
moderno (WALLERSTEIN, 2012). Referimo-nos ao período colonial e suas heranças na atualidade,
particularmente as que decorrem da escravidão e da organização racial do trabalho demandadas
pelo capitalismo moderno que, por sua vez, organiza-o cognitivamente.
Nesses termos, o conceito de raça se coloca enquanto um eixo cognitivo que estrutura o
capitalismo e a racionalidade moderna ocidental. Difícil seria ter uma conclusão definitiva sobre o
surgimento do racismo nos termos que hoje o concebemos. Talvez o racismo moderno, enquanto
doutrina ideológica que promove a organização produtiva em termos globais ainda na atualidade
seja mais uma demanda do capitalismo (expansão comercial, territorial e de acúmulo de riqueza)
do que a causa do sistema escravocrata que lhe serviu de motor. Essa visão materialista da história,
presente na obra de Eric Williams (2012)4, por exemplo, merece destaque aqui, muito embora não
caiba nos posicionarmos definitivamente sobre os impasses que a sua pesquisa suscita quanto à
datação do racismo.
Lélia Gonzalez (1988[2020]) identifica elementos de uma tradição etnocêntrica pré-colonial
que considerava absurdas, exóticas e irracionais as manifestações culturais dos povos “selvagens”,
o que reforçaria o ímpeto colonizador das metrópoles ibéricas e as formas como o racismo –
disfarçado ou por denegação - foi articulado nos países dominados5.

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4 Eric Williams (2012), partindo de uma visão economicista da história, diz que o racismo enquanto doutrina
ideológica fora uma invenção do século XIX, com o propósito de justificar a existência de mais de trezentos anos
de tráfico e escravidão de mão-de-obra originária da África. Esse autor promove uma importante inversão do
entendimento corrente afirmando o racismo como consequência, e não causa, da escravidão. A razão também
estaria no nível da infraestrutura, ou seja, das condições materiais: a manutenção da escravidão de indígenas para
o projeto colonial no Brasil seria mais custosa do que a mão-de-obra africana que, além de servir aos interesses
lucrativos do tráfico, era mais abundante do que a indígena. Apenas a força de trabalho africana garantiria a
grandeza do projeto colonial. E não apenas desse projeto, senão da acumulação de capital primitivo necessário
para a Revolução Industrial. O chamado “comércio triangular” (ver p.90) foi o que garantiu o financiamento da
indústria britânica. Assim, ao contrário do lugar comum que tende a estabelecer antagonismos entre o período
colonial e o industrial, existia, segundo Williams, sinergia entre essas fases.
5 Ao descrever o racismo disfarçado, ou por denegação, próprio das sociedades de colonização latina, Lélia
Gonzalez recorre à história dos territórios ibéricos para compreender as estratégias de dominação/opressão,
dentre as quais se destacam as teorias de miscigenação, da assimilação e da “democracia racial”, e lembra que essa
região esteve sobre domínio de um exército islâmico, composto por árabes (minoria) e mouros (ampla maioria), e
sob o comando do negro general Tariq ibn Ziyad. Menciona, ainda, que as duas últimas dinastias que governaram
Al-Andalus procediam da África Ocidental (almorávidas e almóadas). Esse domínio, iniciado por volta dos anos
711, foi enfrentado pelos exércitos cristãos europeus, no que ficou conhecido como a Reconquista, que perdurou
até 1492. Durante esse período, Espanha e Portugal adquiriram uma vasta experiência quanto aos processos mais
eficazes de articulação das relações raciais, devido à presença e ao inegável impacto deixado pelos povos de origem
africana na região. O formalismo e a estrutura social rigidamente hierárquica foram estabelecidos, sujeitando
judeus e mouros a um estratégico e violento controle social e político. As sociedades posteriores sob o domínio
ibérico herdaram características jurídico-administrativas e ideologias de classificação sexual e racial das metrópoles
ibéricas. A hierarquização naturalizada garantia a superioridade branca e masculina, ao mesmo tempo em que
poupava os dominantes de críticas por uma segregação mais aberta, evidenciando que o racismo por denegação
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68A
Contudo, não nos parece que essas visões entrem em discordância. Se existem sociedades
com diversos elementos racistas em períodos pré-coloniais, sua forma enquanto ideologia que serve
a uma organização racial da produção em termos mundiais parece ser um fenômeno articulado
pela lógica capitalista moderna.
Alinhamo-nos ao pensamento de Franz Fanon (1961[2010]) quando de sua crítica sobre a
perspectiva psicologizante do racismo, que o eleva ao campo ideológico a partir do recalque de
uma análise materialista. Certamente Fanon, enquanto psiquiatra e militante da libertação do povo
negro e colonizado, está preocupado com os efeitos psicológicos da racialização, inclusive para todos
os seres humanos. Mas a possibilidade de sua superação não estaria apenas no enfrentamento
discursivo e, sim, na tomada de consciência das estruturas sociais e econômicas de onde surge
tal processo. Se o racismo é um fenômeno cultural, a cultura, enquanto parte da infraestrutura
capitalista, atualiza-se em função das necessidades de exploração e de produção de mais-valia.
Como forma de evitar essa tomada de consciência, o grupo dominante busca neutralizar
possíveis insurreições dos grupos racializados, desarticulando os seus “sistemas de referência”. A
hierarquização social dos sujeitos mediada pelo conceito de raça está associada à sobreposição
de uma visão de mundo, uma linguagem, uma epistemologia (branca, eurocêntrica, patriarcal,
heterossexual, monoteísta e principalmente cristã), sobre outras diversas (não-brancas, etc.).
A partir dessa diferenciação, o binarismo valorativo faz sua marca na racionalidade ocidental,
estabelecendo uma gramática que dá contorno às experiências subjetivas.
Tal hierarquização encontra na “coisa religiosa” um ponto de afirmação, estando ela em
relação fusional com a cultura, a sociedade e a política. Do ponto de vista psicanalítico - que
toma essas camadas em sua relação com a linguagem, com o inconsciente e com os processos de
subjetivação - as matrizes religiosas serviram de solo fértil para uma gestão do real a partir de suas
camadas imaginárias e simbólicas, ganhando ainda mais força a partir do monoteísmo cristão e da
figura de um pai onipresente, poderoso, simultaneamente compreensivo e punitivo, e que lança as
margens de uma conduta moral a ser seguida, condição para a resposta aos mais íntimos anseios do
sujeito, tal como posto por Freud em Mal-Estar na Civilização (BINKOWSKI, ROSA; BAUBET, 2020).
Segundo Binkowski (2015, p.174), a gestão do real e da angústia diante dele ganha força
a partir do monoteísmo, cuja instauração força um processo comum de gestão desse objeto
perdido, gérmen do psiquismo e da cultura. Seguindo a via freudiana, o monoteísmo promove um
“progresso para a humanidade”, ao impor a adoração de um pai que tampona o sensível (Sinnlich)
em prol do espiritual (Geistlich). Temos aí uma imposição em que podemos reconhecer a marca de
uma certa violência contínua, violência esta articulada por uma boa dose de apagamento de traços,

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de qualquer inscrição onde apareça alteridade e diferença.
Se a unicidade de uma cosmovisão opera boa dose de apagamento da alteridade, por
outro lado “os outros” que compõem essa alteridade não deixam de existir, sendo o contraponto
fundamental para que haja a imposição de uma verdade e de um discurso correspondente,
que autorize a colonização daqueles tomados por “inferiores” (no caso do discurso religioso,
“desalmados”, “profanos”, “pagãos”, praticantes de animismos e fetichismos) que terminam por
ser o motor de um sistema produtivo alimentado por sangue, suor e lágrimas.
O binarismo valorativo balizado pelo conceito de raça é servido e serve ao reforço de uma
liturgia monoteísta e dicotômica - bem-mal; deus-diabo; céu-inferno; sagrado-profano; cristão-
herege -, que termina por reificar um entendimento mítico da superioridade humanitária de
brancos sobre não-brancos, justificando a cruzada para levar o reino de Cristo ao mundo “selvagem”,
carente de humanidade e civilidade. Temos aqui um circuito dito “virtuoso” no plano ideológico e
discursivo que serve ao impulso e à reificação da estrutura capitalista e cristã sob bases racistas.

e a ideologia da democracia racial compõem um sofisticado tipo de racismo. Nesses países a luta antirracista teria
mais dificuldades de se articular, uma vez que as estratégias de dominação e a segregação são menos visíveis,
mas não menos perversas. Ao descrever o racismo aberto, característico das sociedades de colonização anglo-
saxônica, germânica ou holandesa, afirma que nessas sociedades a segregação é mais explícita, pois afinal o grupo
dos brancos, buscando manter a sua “pureza”, estabelece como negro aquele que tenha qualquer gota de sangue
negro nas veias. Nesses países, segundo a autora, a luta antirracista teria mais facilidades de se articular, uma vez
que a segregação explícita reforçaria a identidade racial da população negra, que nas sociedades de racismo por
denegação são minimizadas e invisibilizadas, expropriando os sujeitos de suas histórias, de suas identidades e de
elementos de fortalecimento comunitário.
69
69A
Esse parece ser justamente o mecanismo pelo qual se instaura o mito, ou seja, no ponto exato
onde se deixa de considerar um lado concreto e sacrificado dos “fatos” que causam inconvenientes
à manutenção de uma determinada ideologia. Souza (1983[2021], p. 54) lembra que, enquanto
instrumento formal da ideologia, “o mito é um efeito social que se pode entender como resultante
de convergências e determinações econômico-político-ideológicas e psíquicas”.
No século XVI, vemos um fato ilustrativo da conjugação entre a questão racial, a religiosa e
a econômica: o Julgamento de Valladolid, em 1552. Naquele momento, a maior acepção histórica
do “ser” seria a alma, substância divinatória onde residiria a própria humanidade do sujeito.
Protagonizado por Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, o julgamento, que atendia
obviamente aos interesses da monarquia espanhola, “conclui” que os indígenas possuíam alma e
que não deveriam ser escravizados, mas sim convertidos em cristãos.
Em termos produtivos, isso significou a passagem da escravidão para outra forma de
coerção e trabalho imposto, denominado “encomenda” (na prática, outra forma de escravidão).
Os negros, por sua vez, eram considerados desprovidos de alma, sendo a mão-de-obra que deveria
substituir os indígenas no trabalho escravo. Tal decisão, absolutamente arbitrária pelo conteúdo
da matéria em si (uma superioridade entre seres a partir de uma característica fenotípica), parece
estar nevralgicamente relacionada com o argumento de Eric Williams (2012), sobre os custos de
uma escravização indígena diante da africana (ver rodapé 7). Trata-se de um episódio ilustrativo do
imbricamento entre o capitalismo, a escravidão racista e a naturalização de uma racionalidade sob
a base religiosa.
A Psicanálise nos ensina que o desejo de se munir da verdade enquanto signo justificador de
nossos atos implica o fundamento violento da sociedade (BINKOWISKI, 2021). Parece ser a partir daí
que o sujeito se autoriza ao afeto do ódio enquanto marcador da defesa narcísica àquela alteridade
que traz uma outra perspectiva, que ameaça por nos mostrar a nossa não totalidade, ou a nossa
falta primordial. Aqui vemos como se exprime a precariedade subjetiva, a partir de uma extimidade
religiosa – esse conhecido-estranho ou de um dentro-longe. O ódio racial parece ser o conteúdo
latente que se manifesta enquanto uma recusa estrutural à alteridade, garantindo socialmente a
naturalização de uma divisão racial da produção.
Assim sendo, a extimidade, noção forjada por Lacan a partir do conceito de estranho, de
Freud, arregimenta essa delicada economia entre o que está dentro e fora, nos contornos do outro
no qual se assume uma parte abjeta do sujeito. O outro-abjetificado a partir de uma maquinaria
ideológica que congrega religião e economia pavimenta caminhos para um tratamento brutal da
alteridade, retirando dela a possibilidade de um sentido e mesmo de uma legitimidade para com

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sua existência.

A ciência moderna sob bases míticas

Quijano (2007) diz que, a partir do século XVII, as relações sociais e intersubjetivas foram
elaborando um modo de produzir conhecimento que dava conta das necessidades cognitivas
do capitalismo. Tais necessidades passam por ajustes e reajustes éticos e perceptivos de modo
a justificar a manutenção de um tratamento de abjeto dado ao outro. Pois é desde então que a
questão racial foi secularizada em termos “científicos”, mantida, porém, mesmo após o chamado
“desencantamento do mundo” (WEBER,1982), a conotação com relação à “humanidade” ou
“não-humanidade” dos povos indígenas e negros, postos agora numa escala de humanidade
(meramente) biológica.
Mesmo que os binarismos maniqueístas de um temor a um deus tentem criar um
ordenamento social, eles não puderam aplacar o fardo civilizacional. Sendo essa uma condição do
sujeito em sociedade, as luzes da razão tampouco aplacaram tal desamparo originário, demandando
novos termos e discursos na tentativa de um nem tão novo ordenamento social. A racionalidade
ocidental hegemônica a partir da dominação colonial americana e, mais intensamente, do
Iluminismo, reificou sua lógica binária: Oriente–Ocidente; Europa–não Europa; primitivo–civilizado;
mítico/mágico–científico; irracional–racional; tradicional–moderno (GROSFOGUEL, 2016).
O monoteísmo enquanto eixo da noção de progresso dá forma a um discurso religioso que
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70A
antecipa o darwinismo social que encarna posteriormente o discurso científico. O lugar mais alto,
de onde se vê o mundo e de onde não se pode ser visto, é o elemento de secularização do discurso
religioso, tal qual o olhar celeste, onipresente, que enuncia a verdade.
O “Eu” cartesiano foi ganhando contornos próprios ao sujeito da ciência moderna, capaz de
produzir um conhecimento verdadeiro além do tempo e do espaço. Não há figura mais literal para
o suposto saber que o sujeito da ciência moderna, herdeiro que é da sabedoria divina. Essa é uma
transferência massiva que orienta os processos mais primitivos de subjetivação, de socialização e de
orientação do sujeito sobre si e diante do mundo. Para afirmar a existência de um “Eu” que produz
conhecimento equivalente à visão do “olho onipresente de Deus” são utilizados os argumentos
ontológico6 e epistemológico7. Esses, ao mesmo tempo em que auxiliaram na secularização do único
lugar de enunciação sobre a verdade, estabeleceram uma oposição razão-natureza e a tentativa
constante dos sujeitos de compreender as coisas ao seu redor para poder dominá-las e submetê-las
à lógica do sujeito pensante. Não se trataria apenas de um sujeito pensante (“ego cogito”), mas de
um “sujeito-conquistador-pensante” (“ego conquiro”)8.
Certamente, essa concepção cartesiana do sujeito teve um enorme valor para a forma
filosófica da psicologia moderna. As luzes da razão foram tomando a forma do “espiritu”, antes
entendido enquanto alma, agora sinônimo de consciência e de racionalidade. A ideia de uma razão
descolada do seu meio serviu de base para a concepção do sujeito liberal.
Nesse modelo, a intersubjetividade enquanto parte mesmo da constituição subjetiva é
comprometida, assim como a possibilidade de percepção das demandas narcísicas de quem
realiza tal obstrução. Assim, nasce uma concepção de consciência que atende aos desígnios de
uma burguesia iluminada pela razão e pela lógica do capital que tampona as contradições sociais
que lhe permitem uma existência concreta e um lugar de privilégio no período histórico. Se tal
entendimento de consciência não ocorre sem resistências e contrapontos mais recentes – seja com
Marx ou o próprio Freud9 –, ele termina por se estabelecer hegemonicamente.
É esse projeto de sujeito e de consciência, burguesa, que está na base da formação dos
Estados-nação latino-americanos, “conformados” pelos herdeiros dos colonizadores. A maioria
dos Estados atuais manteve uma ficção aparente de características monétnicas ou uninacionais
(STAVENHAGEN, 2001), tal qual um “truque óptico” de uma imagem parcial refletida pelo grande
Outro como total10.
Ampliando-se para um debate que remete à noção de identidade nacional, esta é forjada
por mecanismos de contraposição ao que é barrado da consciência que define as construções
identitárias e suas recusas e recalques11. Concretamente, isso tornou possível que os povos

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subalternizados, escravizadas e mortos durante o regime colonial passassem a ocupar, com
a constituição dos Estados-nação, o status de minorias, sofrendo condições semelhantes às
que vivenciaram no passado. Essas condições dizem respeito à ausência de uma representação
governamental, administrativa, jurídica, política, militar e, finalmente, epistêmica, como intentamos
mostrar no presente escrito.
As universidades latino-americanas, no marco dos Estados-nação, ganham o molde das
6 O primeiro argumento, o dualismo ontológico, afirma que a separação da mente e do corpo, por serem
“substâncias” diferentes, traria à mente a possibilidade de estar fora da influência de fatores terrestres (situação
em que o corpo se encontra), assim como a visão do olho de Deus, estando além de qualquer condição particular
da existência.
7 O segundo argumento, o epistemológico, afirma que o único modo de o “Eu” alcançar a certeza na produção
do conhecimento é através do método do solipsismo ou dúvida metódica. O conhecimento verdadeiro, portanto,
poderia ser alcançado através de um monólogo interior do sujeito consigo próprio, e não através do diálogo –
conhecimento dialógico.
8 Ver GROSFOGUEL (2016)
9 Ver FROMM (1963) e ALTHUSSER (1964[1978]).
10 Em LACAN (1949[1998]), é explícito que a constituição subjetiva não pode prescindir de uma intersubjetividade,
tal como descrita em O estádio do espelho como formador da função do eu. A suposta autonomia do processo de
subjetivação é sustentada pela ilusão de completude do eu que provém de uma imagem fornecida e chancelada
pelo Outro.
11 Barrado em termos, pois sabemos o quanto a elite nacional bebeu do conhecimento africano e indígena em
todos os seus níveis, da lida com a terra, passando pela astronomia, preparo de pratos, produção de medicinas,
hábitos de higiene, entendimentos filosóficos, etc. Os elementos são intermináveis porque não se trata de entendê-
los enquanto colaborações a uma identidade nacional, mas sim como parte fundante da mesma.
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71A
instituições educativas modernas europeias do início do século XIX (CARVALHO; FLÓREZ-FLÓREZ,
2014). Enquanto nos territórios de domínio espanhol as universidades seguiam o parâmetro das
instituições católicas espanholas ao final do século XVI, no Brasil, as instituições de ensino superior
ocorrem apenas a partir da segunda metade do século XIX, sendo estas fruto de um projeto
eurocêntrico e ocidental já no estilo da Revolução Industrial. Nesse projeto, nada anterior à chegada
dos europeus nas Américas estava presente.
Assim, naturalizou-se um lugar fictício, essencializado, onde não existia possibilidade de se
refletir criticamente sobre os propósitos e ideologias diluídos nas narrativas. A propriedade sobre
a “caneta da história oficial” decretou o ponto de vista colonial como verdadeiro, exclusivo ao
domínio da escrita e do idioma12.
Esses traços transparecem na linguagem científica e acadêmica enquanto parte constituinte
do lugar de suposto saber, seja em seus pressupostos metodológicos de “neutralidade”, em sua
recomendação da primeira pessoa do plural (evocando uma comunidade onisciente) ou em sua
pretensão universal.
Aqui, muito ao contrário de qualquer obscurantismo científico, tais problematizações
pretendem caminhar rente aos pressupostos da própria ciência, no sentido de tornar-se objeto de
análise de si própria, no esforço constante de vigilância epistêmica (BOURDIEU, 2000). Sabemos
que a linguagem não pode ser separada da natureza ideológica de um discurso. Certamente, os
conhecimentos científicos não estão isentos desse pressuposto. Ainda que existam parâmetros
rigorosos para a sua produção, podemos nos perguntar sobre os elementos que a condiciona,
da sua idealização à sua destinação final, passando, obviamente, por fontes de financiamento13.
Estarmos atentos a esses elementos converge justamente com a possibilidade de desrecalcar os
elementos míticos que estão latentes a um discurso, dando-lhe um tratamento justamente outro.
Neusa Santos Souza (1983[2021], p. 54), num produtivo diálogo com a obra Mitologia, de
Roland Barthes, nos oferece outra assertiva fundamental sobre o mito:
Quando a natureza toma o lugar da história, quando a
contingência se transforma em eternidade e, por um “milagre
econômico”, a “simplicidade das essências” suprime a
incômoda e necessária compreensão das relações sociais, o
mito se instaura, inaugurando um tempo e um espaço feitos
tanto de clareza quanto de ilusão.

A esta altura, talvez caiba afirmar que, no Brasil, dois dos maiores mitos sobre os quais se
erguem a lógica capitalistas e a desigualdade que lhe é pressuposta são o da democracia racial

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e da meritocracia. São eles que dissolvem as contradições próprias do capitalismo colonial,
absolutamente atual.
O grau de recalque dos elementos concretos desse sistema produtivo é tal que a icônica
afirmativa de Mark Fisher, sobre ser mais fácil conceber o fim do mundo do que o fim do capitalismo,
parece se confirmar a cada ano que avançamos rumo ao limite civilizacional. Também poderia ser
citada, enquanto performance da nossa neurose cultural14, os resultados da pesquisa de Souza
(1983[2021]), na qual conclui que a possibilidade de “ser” e ascender socialmente dos sujeitos
negros no Brasil passa por uma violenta adesão à estrutura da branquitude, mesmo que tal adesão
nunca os retribua plenamente, ou melhor, os incentivem a um “mais trabalho”, reificando o seu
lugar de subalternizado.
A distância que as universidades – e instituições de transmissão da Psicanálise –
estabeleceram com relação ao território em que estavam, e estão, impede uma produção mais
pertinente sobre a realidade e deflagra o nosso desamparo discursivo (ROSA, 2016), performando

12 Internamente à academia, o século XIX também foi marcado pelo processo de disciplinarização, entendido
como a institucionalização em profissões de um conjunto de práticas intelectuais distintas. Cada disciplina foi
criando o seu “território”, suas fronteiras, tradições e campos, solicitando “credenciais” aos possíveis interessados
em ingressar no seu território. A autonomia das disciplinas encontrou forma física nos edifícios, departamentos e
salas. A fragmentação cartesiana dos saberes ganhou forma física e até hoje mantém em grande medida as suas
fronteiras, sendo muito difícil romper os seus limites rumo à interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade.
13 Ver JARDIM (2016)
14 Ver GONZALES (1984)
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72A
a necessidade do colonizado de refletir enquanto seus os traços do colonizador. A identificação
com o lugar do suposto saber torna crônico o desinteresse em articular a teoria psicanalítica com os
saberes difundidos no território em que estamos.
Psicanaliticamente, isso diz sobre a surdez sistemática de quem se propõe a escutar o
recalcado. Feita essa trajetória argumentativa, talvez possamos afirmar o desamparo discursivo de
amplas parcelas da população brasileira como parte do mesmo fenômeno sócio-histórico que fez
da universidade um local absolutamente limitado quanto à escuta daqueles excluídos dos muros e
ocultados da fundação da cidade letrada.
Dito isso, sustentamos que, em grande medida, o caráter mítico presente no discurso
hegemônico da ciência moderna se deve ao seu racismo epistêmico, assim como no discurso
religioso, ambos se afirmando por uma violenta negação da alteridade, construindo sub-versões do
“outro” que paulatinamente retiram sua legitimidade de ser.

A questão psicanalítica

A ética psicanalítica está interessada no furo do discurso, que revela elementos latentes,
políticos e ideológicos, em seu curso, como parte de sua possibilidade de incidir sobre as condições
sócio-históricas produtoras de desigualdades sociais e sofrimento para amplas parcelas da
população. Ademais, como aponta Rosa (2016), criam-se verdadeiras maquinarias sociais e políticas
de gestão dessa diferença pela via do desamparo discursivo.
Contudo, a ética psicanalítica também tem como vetor elementos teóricos e metodológicos
que incidem terapeuticamente sobre o sofrimento de um sujeito que lhe confia a fala. Esse vetor
diz respeito à posição do analista na estrutura social, onde se inscreve o seu percurso formativo e
sua amplitude de escuta.
Nesse esforço, podemos nos dar conta de um dado inicial: a epistemologia psicanalítica,
dado o seu lócus embrionário, não escapa a priori do eurocentrismo, o que se comprova em
pontos estruturais: a mitologia grega que serve de arcabouço simbólico operado como universal
para pensar o funcionamento psíquico; os casos atendidos por Freud oriundos de uma elite
vienense que serviram de base para a sua teorização; a adoção de credenciais científicas para o
seu reconhecimento e um desejo de se constituir enquanto epistemologia e técnica universal para
pensar a psicopatologia e o sofrimento psíquico.
Sobre esse último ponto, como bem recorda Althusser (1964[1978]), após anos de desprezo

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e desconhecimento da Psicanálise, a racionalidade ocidental terminou por admiti-la desde que
fosse anexa a outros campos científicos já existentes, como a Psicologia, a Neurologia, a Psiquiatria,
a Sociologia, a Antropologia ou a Filosofia.
Althusser (1964[1978], p. 53) ressoa o questionamento do meio científico de sua época:
Talvez, então, simplesmente, magia? Que conseguiria,
como qualquer magia, pelo efeito do seu prestígio, e dos
seus prestígios, colocados a serviço de uma necessidade
ou demanda sociais, que seria, então, sua única razão, sua
verdadeira razão. Levi-Strauss teria feito a teoria dessa magia,
dessa prática social que seria a Psicanálise, designado no xamã
o antepassado de Freud.

Podemos ali ler o sintomático e recorrente hermetismo das instituições e dos próprios
psicanalistas como parte de um mecanismo de defesa a esse histórico contato com a margem
científica e as acusações de uma prática sem teoria, ou de uma teoria que reflete as regras da
prática.
Curiosamente, ao sair da marginalidade científica e se estabelecer academicamente, a
Psicanálise termina por se encastelar e erguer muros contra um diálogo horizontal com saberes
não-eurocêntricos, mantidos fora dos limites da ciência e da academia – ou tomando-os como
ponto de confirmação de hipóteses pré-existentes como o faz La Porta15, mesmo depois de Lévi-

15 Ver MANTOVANI; BAIRRÃO (2005).


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73A
Strauss propor o estranhamento antropológico do campo de onde se parte para uma análise.
Mas, ainda sobre a citação anterior, tomemos mais um momento. Sim, a Psicanálise apela a
uma demanda social (portanto individual, em primeira instância) e a um prestígio oriundo do suposto
saber do qual se utiliza para estabelecer uma transferência e iniciar as possibilidades de cura, assim
como qualquer magia ou religião. Ambas têm uma prática terapêutica; uma técnica; e um saber
que está em relação com a prática e a técnica. Talvez esse mesmo olhar tenha a sua pertinência ao
ser lançado à ciência e ao seu atendimento à uma demanda social de desenvolvimento capitalista.
Ainda sobre o paralelo entre Psicanálise e religião ou magia, pode-se dizer, por um lado, que
ambas se ocupam do mesmo espaço na vida psíquica, que é aquele deixado aberto pelo objeto que
está ausente. Por outro lado, cabe realizar uma diferença fundamental:
[...] a religião consolaria diante da perda, ritualizando com o
objeto perdido e sua ausência de modo a torná-la presença.
Assim, com a repetição ritual, a ausência se inscreve como
marca de pertença grupal, comunitária e genealógica. A
Psicanálise, por sua vez, opera não como um rito, mesmo
que seja permeada por repetições estruturais (a sessão, o
enquadre, o pagamento, o endereçamento), mas enquanto
um exercício): neste, o sujeito é impulsionado a encontrar nas
próprias repetições de sua cadeia significante algo que aponte
para sua verdade, para uma ausência que o leve a se produzir
enquanto um sujeito a partir da diferença (BINKOWSKI, 2021,
p.41).

Feita essa distinção fundamental, cabe retomar o propósito central desse texto e ir em
busca de algo menos visível que o método terapêutico em si. Vimos como a construção do edifício
epistemológico da ciência moderna é impulsionado por uma reivindicação de suposto saber que
opera sempre em oposição ao “outro da modernidade”, havendo nesse processo um recalque de
elementos míticos – ou que não dizem respeito ao conhecimento em si - para sustentação do que
é considerado conhecimento verdadeiro e o que não é.
Nesse trajeto, verifica-se a secularização do discurso religioso cristão e sua estrutura
epistemológica como forma de estabelecer um olhar sobre o mundo que atenda a um projeto
político-ideológico, agora sob parâmetros estabelecidos pela racionalidade iluminada pelo capital.
O que temos, então, pode ser lido como um emparelhamento da discursividade religiosa para com
todo um aparato colonizatório e capitalista. O pilar racial, por sua vez, aqui é um eixo cognitivo

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fundamental para operar essa transição, dando forma e consequência à divisão do trabalho em
termos mundiais.
Sendo a Psicanálise marcada por um projeto científico, cabe perguntar como a questão
religiosa se presentifica no pleito psicanalítico à validação científica. Quais os seus traços mais
evidentes e quais poderíamos suspeitar que sofreram secularizações com o propósito de afirmar
um saber, tendo em conta que tal afirmação no campo científico/acadêmico guarda sempre
uma relação com o “outro que não sabe”? Qual é o efeito disso sobre a escuta do sofrimento em
sociedades marcadas por um passado colonial, absolutamente presente enquanto condicionante
do desamparo subjetivo?
Essas são perguntas que ganham volume no momento em que a Psicanálise brasileira busca
democratizar o seu acesso a camadas da população mais pobres – e menos brancas. Cabe, então,
problematizar não apenas o lugar ao qual o movimento psicanalítico respondeu e no qual se alojou,
mas também compreender os vetores de diferenças que grupos psicanalíticos puderam assumir
de modo a transformar tanto as suas práticas e composições teóricas, indo, assim, ao encontro de
projetos de transformação social que compreendiam a ética psicanalítica e suas valências.
Birman (2018), Em seu texto A problemática da religião na Psicanálise: a crítica freudiana
do fundamentalismo e da segregação, Birman (2018) faz um percurso conceitual para pensar a
“secularização do mundo”, dando ênfase ao argumento de que o retorno triunfal da religião
monoteísta, e especialmente neopentecostal, está intrinsecamente relacionado à perda de
soberania do Estado-nação em uma era neoliberal marcada pela precarização dos vínculos
trabalhistas e uma teologia da prosperidade que agudiza o desamparo dos sujeitos – e onde o
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74A
discurso científico ganha uma acepção também mercadológica, em uma função técnico-científica
a serviço do capital.
Concordamos com seu argumento, sobre o cenário histórico operado pelo neoliberalismo
que favorece um discurso religioso neopentecostal marcado pela chamada teologia da prosperidade.
No entanto, é preciso dizer que interessa aqui uma abordagem do conceito de secularização que
diga respeito mais à permanência de pressupostos do lugar de enunciação e dos compostos
míticos para estruturar uma contraposição hierarquizante entre saberes e povos, latentes no
discurso científico, do que propriamente um retorno manifesto do discurso religioso em uma era
supostamente científica. Ou seja, para além da convivência entre esses dois discursos em certo
regime de exclusão entre si – onde um não está, o outro está –, haveria uma transição em que são
mantidos pressupostos de enunciação que garantem a hegemonia do capitalismo racista sob bases
científicas.
De todo modo, o escrito de Birman (2018) traz um importante recorrido sob o qual nos
baseamos para seguir em busca de maior precisão no que estamos chamando de secularização
religiosa na Psicanálise e de seus possíveis efeitos para o racismo epistêmico desse campo.
Dito isso, recuperamos que Birman (2018) apresenta um trajeto das obras centrais pelas quais
Freud pensou a questão religiosa: Em Atos compulsivos e exercícios religiosos (1907), encontramos
a articulação entre ideação e ato nos quadros de neurose-obsessiva, quando o sujeito busca regular
na manifestação do ato o que não pode ser formulado. Em Totem e Tabu (1913 [1912-13]) vemos a
comparação entre certas formações psicopatológicas e algumas formações culturais.
Histeria, neurose obsessivo-compulsiva e paranoia (ordem do erotismo e do sintoma)
seriam correspondentes às manifestações da arte, religião e filosofia (ordem da sublimação),
respectivamente. Já em O futuro de uma ilusão (1927), a ilusão é entendida como experiência da
ordem do desejo infantil de proteção por um ser onipotente, o pai, em consequência do desamparo
primordial, sendo essa experiência não apenas individual, mas coletiva, o que o leva a designar a
religião como uma neurose coletiva.
Em Mal-estar na civilização (1930 [1929]/1996), Freud descreve os efeitos da nostalgia desse
pai protetor, a partir da falta do objeto perdido, do desamparo originário, e da impossibilidade de
tamponamento ou sutura dessa falta pelos laços sociais, resultando o mal-estar que a modernidade
instaura, o que leva Freud a designar a religião, agora, como um delírio coletivo. Em seguida,
temos na Conferência XXXV, em Novas conferências de introdução à Psicanálise, a caracterização
do discurso religioso enquanto visões de mundo totalizante, sem brechas, que têm a função de
apaziguar a experiência psíquica marcada pela falta e pelo desamparo originário. Essas visões de

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mundo estariam, pois, contrapostas ao discurso científico nos seus menores detalhes, uma vez que
a dúvida seria um pressuposto do método científico.
Tentando se diferenciar do discurso religioso e do discurso filosófico – este último também
considerado uma visão de mundo totalizante e sistemática, além de restrita aos iniciados – a
Psicanálise estaria mais próxima ao discurso científico, uma vez que estaria marcada pela parcialidade
e incompletude de suas proposições. Contudo, cabe salientar que a posição freudiana era de que
a Psicanálise não encarnaria uma visão de mundo, ou cosmovisão, mas de que ela poderia, no
máximo, funcionar (discursivamente) apoiada nas construções forjadas pela perspectiva científica.
Por fim, localizamos, em Moisés e o Monoteísmo (1939 [1934-38]/1996), a tentativa de
Freud de sublinhar o elemento teórico-político do discurso religioso, o que teria ganhado força
com a tradição religiosa do monoteísmo em seu avanço do registro sensorial próprio do campo
do sagrado (presente nas tradições pagãs) para o registro da racionalidade (BINKOWSKI, 2022).
Em seguida, Freud vai contrapondo o judaísmo ao cristianismo: enquanto na primeira tradição a
redenção é impossível, pelo não retorno do pai da horda primitiva, Moisés, na segunda a redenção
pela volta de Cristo, caracterizaria a visão de mundo ilusória do cristianismo. Tal contraposição
também ocorre com relação ao budismo, igualmente composto por uma visão de mundo ilusória
manifesta pela possibilidade de plena fusão entre a força da pulsão e o objeto, obstruindo a
experiência psíquica da falta e uma elaboração racional correspondente.
Feito esse recorrido no texto de Birman (2018), interessa sublinhar algo não apontado pelo
autor, qual seja, uma proposta freudiana de hierarquização, via leitura psicanalítica e pretensamente
científica, da experiência religiosa em diversas de suas manifestações – sendo estas indissociáveis
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75A
de seus locais e sujeitos de prática. As religiões pagãs estariam no polo mais baixo de uma escala
evolutiva; em seguida, estariam os monoteísmos, dentre os quais o judaísmo estaria no lugar
mais próximo da racionalidade. O discurso filosófico incidiria em um elemento totalizante que o
distinguiria da Psicanálise, posicionada ao lado do discurso científico. Se é uma preocupação de
Freud evitar que a Psicanálise fique restrita a um gueto judaico, que ela seja vista como ciência
judaica, ele leva, mesmo assim, o judaísmo enquanto parte fundamental de sua ciência (HADDAD,
2003).
Curiosamente, talvez como fruto do comprometimento profundo com o ofício por ele criado,
Freud não permite manter o recalque da secularização do discurso religioso por inteiro, como ocorre
no discurso científico que herda o “olhar divino” sem o dizer. Freud diz algo sobre isso. Em Moisés de
Michelangelo (1914 [1987]), o pai da Psicanálise performa explicitamente a sua identificação com
Moisés, quando de sua contestação da rebelião teórica contra a Psicanálise empreendida por Jung;
ou na salvaguarda da tradição judaica enquanto discurso ético e não religioso – já que a ausência
de uma visão de mundo totalizante no judaísmo levaria o sujeito à uma posição de incompletude,
marcada por uma falta. Lidar com esse mal-estar civilizatório traria ao judaísmo a proximidade com
uma ética e uma estruturação psíquica que favoreceria uma racionalidade para além das ilusões de
redenção do catolicismo, por exemplo.
De qualquer forma, essa leitura comparativa de Freud deflagra a eleição de elementos mais
ou menos arbitrários, os quais nos cabe sublinhar: como estabelecer uma hierarquia a partir dos
desígnios de redenção quando estamos tratando de uma crença metafísica em um pai celestial? O
que vem depois disso seria passível de critérios racionais? Também sobre os critérios para posicionar
a Psicanálise acima da filosofia e ao lado do discurso científico, que malabarismo retórico poderia
dar conta por inteiro dessa afirmativa se a própria filosofia do conhecimento está interessada na
racionalidade e em suas formas de se afirmar, sendo tão importante à própria Psicanálise?
Como exposto anteriormente, tomar a arbitrariedade enquanto elemento de estruturação
hierárquica ocorre por contraposição. É isso que garante o recalque do elemento hierarquizante
enquanto suposta consequência natural de uma realidade histórica. Não nos esqueçamos de que a
matriz da valoração epistêmica da modernidade capitalista busca se naturalizar a partir do recalque
de seu elemento arbitrário, entendido enquanto natureza biológica: a raça.
Lo Bianco (2007) faz um importante estudo que parte do texto Moisés e o monoteísmo
para resgatar o conceito de tradição herdada e diferenciá-la da tradição comunicada. A primeira é
marcada pelo inassimilável e irrecuperável de um trauma que busca neuroticamente circunscrever o
real que está em sua fundação ao longo de gerações; dito de outra forma, é uma tradição composta

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por disposições filogenéticas que são reanimadas e atualizadas pela cultura, a exemplo da tradição
do judaísmo. Nessa tradição, encontram-se em primeiro plano não os ensinamentos passados –
ou “comunicados” - de pai para filhos, e sim a elaboração a posteriori (Nachträglichkeit), abrindo
espaço para um dinamismo desses conteúdos, que passam a incluir a dialetização, em rupturas e
contrapostos.
Já a tradição comunicada, a qual é característica do neopentecostalismo cristão, desconsidera
o impossível que o real impõe, ou dito de outra forma, substitui a reflexão em torno dos enigmas do
fundamento religioso por palavras de ordem de um líder do momento, estabelecendo uma relação
comercial com o divino, buscando nele receitas simples e opacas para a cura do mal-estar cotidiano.
Esta última seria própria da “nova economia psíquica” que rege os fiéis. É essa economia psíquica
que comanda o crente neopentecostal e que, diante da profunda penetração do neoliberalismo no
tecido social e subjetivo, ganha cada vez mais força, o que se ilustra, por exemplo, na força política
da bancada evangélica no parlamento brasileiro desde pelo menos as últimas duas décadas.
Edin Sued Abumanssur (2022) descreve esse fenômeno religioso em sua relação com o
neoliberalismo a partir de três elementos: a meritocracia religiosa16; o endereçamento dos discursos

16 Correspondente à ideia de que o indivíduo pode salvar a si mesmo por esforço e mérito próprio. Tal ideia
salvacionista é própria das religiões que rejeitam o mundo concreto a partir do misticismo e do ascetismo ativo, ou
seja, do controle sobre o corpo e o espírito - instrumento de Deus - que permite ao fiel significar a sua experiência
concreta em termos de uma promessa, esta sim de gozo e usufruto.
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para as massas17; e a alquimia monetária18.
Mas para abordar uma tradição assim herdada, Freud, em Moisés e o Monoteísmo, introduz
um elemento dramático, biológico, como base dessa transmissão. Quer dizer, o herdado pelas
gerações mais novas o foi com base no “desenvolvimento biológico de caracteres adquiridos” (LO
BIANCO, 2007, p. 96), não necessariamente comunicados pelos mais velhos, não necessariamente
vivenciados pelo próprio indivíduo, mas trazidos pelo nascimento – uma “herança arcaica” feita de
“fragmentos de origem filogenética” (LO BIANCO, 2007, p. 94/p.103).
A passagem geracional e filogenética de um trauma - expresso no paralelo entre Totem em
Tabu e Moisés e o Monoteísmo, ou seja, o assassinato do pai da horda primitiva e o assassinato
de Moisés – também diz respeito a um desamparo constitutivo, sendo este também objeto da
Psicanálise, como já dito. Deparamo-nos aqui com um dos pontos mais nítidos da secularização
judaica, e sua tradição herdada, dentro da Psicanálise.
Se existe uma hierarquização evolutiva das religiões que toma o judaísmo como a sua
expressão mais alta, e se o judaísmo encontra pontes com a Psicanálise em sua busca ética e
racional por lidar com o desamparo primitivo e civilizacional, então, seguindo com o paralelo, quais
as psicologias correspondentes à tradição comunicada? Sim, parecem ser aquelas que buscam
repor o objeto perdido de forma mais imediata possível. Sobre as psicologias correspondentes às
chamadas religiões pagãs, aquelas de mais baixo nível na escala freudiana, bem, temos elementos
do olhar desse autor em obras como Totem e Tabu. Quais seriam as permanências dessa visão
hierarquizante no campo psicanalítico atual?
É certo que a hipótese filogenética está presente na obra freudiana em muitos momentos e
até mesmo de forma estrutural, quando de sua argumentação de que o desenvolvimento libidinal
geral dos indivíduos recapitula uma sequência de estágios da história da civilização. A questão é
que, aqui, isso aparece latente em uma hierarquização religiosa e de abordagens psicológicas sobre
o desamparo subjetivo de sujeitos em um mesmo tempo histórico, indissociáveis de elementos
territoriais, culturais e étnico-raciais.
Talvez nos sirva aqui uma sociogênese, como proposto por Franz Fanon (1952 [2008]),
sobre a questão racial implícita nessa escala evolutiva religiosa e psicológica atravessadas pela
filogenética na base da epistemologia psicanalítica. É possível que esse aprofundamento nos
revele o quanto o projeto científico freudiano herda elementos míticos em sua base; o quanto
o esforço pelo lugar de saber socialmente legítimo fez com que a Psicanálise precisasse aderir a
pressupostos epistemológicos hegemônicos de um discurso científico racista estruturados a partir
da contraposição ao “outro da modernidade”.

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Se Freud deflagrou a fragilidade de uma concepção burguesa de consciência – sujeita que
era às profundidades do que lhe escapava, seja os conteúdos inconscientes ou o real que lhe
precede – enquanto parte do projeto de naturalização de um ordenamento capitalista do mundo,
talvez seja a hora de atualizar esse novo giro epistêmico interno ao projeto psicanalítico, no que
lhe escapa enquanto permanência (residual e/ou cultivada pelas instituições de transmissão) do
racismo científico, a partir da secularização do discurso religioso que opera.
Parece que a Psicanálise, em seu longo diálogo com a teoria social e crítica consolidou uma
tradição altamente relevante de reflexão sobre a questão de classe e seus condicionantes nos
quadros de sofrimento. Mas tal reflexão encontra certa dificuldade em ganhar a sua vinculação
radical com a questão étnico-racial, operando uma perda cognitiva fundamental, especialmente
em países com forte herança colonial e em clínicas que se propõem escutar para além dos
consultórios burgueses. Nossa hipótese é de que a questão religiosa é parada obrigatória para que

17 Relacionado à escalada de pastores enquanto proprietários de grandes meios de comunicação. O autor lança
o conceito de “homem-massa”, em uma correspondência religiosa ao “homem médio”, comum, que reproduz
em si um genérico. Enquanto peça de uma multidão ele é um homem-em-si, mas pelo seu esforço e o mérito
correspondente – operado pela ética da Teologia da Prosperidade – pode chegar a ser um homem-para-si,
tornando-se um sujeito diferenciado da massa amorfa de indivíduos da qual faz parte.
18 Quando essa moeda deixa de servir ao propósito inicial (comércio material) e passa a atuar enquanto moeda
divinatória, de salvação e de graça, o que leva o fiel a ofertá-la como sinal de fé. Fé esta não relativa à crença de
que o pastor ou a Igreja vão fazer um uso “público”, no sentido de reverter aos fieis o dinheiro ou prestar contas
do seu uso. Na realidade, tal prestação de contas retiraria a capacidade mágico-sacrificial do sacrifício – doação de
dinheiro – desarticulando a mitologia da salvação do homem-massa.
77
77A
a Psicanálise possa assentar esse giro em sua transformação e fazer jus ao contemporâneo a serviço
da necessária luta antirracista.
No seio da Psicanálise brasileira, defendemos que o silêncio ou a precariedade de fala dos
subalternizados e dos desamparados faz parte do mesmo processo de surdez ou precariedade da
escuta do analista e da sua formação, tendo como intenção perceber que a recusa operada por uma
racionalidade científica moderna a outras gramáticas e pontos de vistas para nomear e manejar o
sofrimento psíquico de parcelas significativas da população brasileira ocorre como parte do mesmo
fenômeno de hierarquização dos sujeitos no seio de um sistema-mundo capitalista estruturado
pela divisão racial do trabalho, absolutamente vigente.
Trata-se de entender o racismo epistêmico da Psicanálise, aqui relacionada à secularização
do discurso religioso em seu interior, como um entrave à práxis de uma ética teórica e clinicamente
comprometida com o enfrentamento dos condicionantes socio-históricos postos pelo capitalismo,
e pelo racismo em suas raízes, especialmente em solo brasileiro.

Conclusão

No momento em que a Psicanálise brasileira passa a ser marcada por grupos que pretendem
operar a sua democratização, a dialetização de elementos de sua colonialidade eurocêntrica
encontra obrigatoriamente uma longa e diversa história de violências étnico-raciais recalcadas do
projeto de identidade nacional, invisibilizadas em grande parte das formações teórico-clínicas. Se
pretendemos considerar os determinantes sócio-históricos de produção do sofrimento psíquico,
será preciso lidar com a neurose que opera esse recalque, começando pela sintomática resistência,
ainda hoje, do campo psicanalítico em se abrir para diálogos mais horizontais com outras
epistemologias e saberes – de matriz africana e indígena – que lidam há séculos com o sofrimento
psíquico em outros termos, radicalmente diversos entre si e da Psicanálise.
Essa nos parece ser hoje uma tarefa fundamental a ser assumida como central na formação
de psicanalistas críticos no Brasil, que buscam escutar para além dos consultórios particulares.
A democratização do acesso à escuta psicanalítica demanda a democratização epistêmica da
formação do psicanalista.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.
Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

80
80A
A METAPSICOLOGIA DA PULSÃO DE APODERAMENTO:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA

THE METAPSYCHOLOGY OF THE DRIVE OF POWER: CONSIDERATIONS


ON THE PSYCHIC CONSTITUTION

Antonio Trevisan 1
Denise Sousa Lira Bertoche 2

Resumo: Parte-se do princípio que a metapsicologia ainda constitui um dos campos mais obscuros da epistemologia
psicanalítica. Diante disto, esta proposta resgata a pulsão de apoderamento, apontando suas expressões num bloco
de ações psíquicas, nomeadas aqui de Metapsicologia da pulsão de apoderamento, sendo primeiro, o apoderar-se
do mundo para constituir-se, e depois a dominação, ambas operacionalizadas pelo amor e ódio. Para tal empreitada
retorna-se à obra de Freud, atravessando os impasses intérpretes-tradutórios referente ao termo que origina a tradução,
o Bemächtigungstrieb, atentando-se às observações de Piera Aulagnier. Como resultado, o estudo fornece uma posição
teórica para releitura das forças originárias articuladas pelo amor e ódio, vias pelas quais tornam-se evidentes os aspectos
da potência da pulsão de apoderamento.

Palavras-chave: Criação. Metapsicologia. Pulsão de Apoderamento.

Abstract: It is assumed that metapsychology still constitutes one of the most obscure fields of psychoanalytic epistemology.
In view of this, this proposal rescues the drive for empowerment, pointing out its expressions in a block of psychic actions,
named here Metapsychology of the drive for empowerment, being first, taking over the world to constitute itself, and
then domination, both operationalized by the love and hate. For such an undertaking, we return to Freud’s work, crossing
the interpreter-translator impasses regarding the term that originates the translation, the Bemächtigungstrieb, paying
attention to Piera Aulagnier’s observations. As a result, the study provides a theoretical position for re-reading the original
forces articulated by love and hate, ways in which aspects of the power of the drive to seize become evident.

Keywords: Creation. Metapsychology. Possession Drive.

1 Doutorando em Psicologia Clínica e Cultura (pela UnB). Mestre em Psicologia (pela UFMS). Graduado em Psicologia (pela Unigran – Centro
Universitário da Grande Dourados – MS).Lattes: http://lattes.cnpq.br/8066157849991456. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8251-0183.
E-mail: netogarcia8@mail.com

2 Mestranda em Psicanálise, Saúde e Sociedade (pela UVA - Universidade Veiga de Almeida – RJ). Graduada em Psicologia (pela Unigran Capital –
Centro Universitário de Campo Grande – MS). Especialista em Psicanálise e Saúde Mental (pelo SEPAI- Instituto São Zacharias-RJ). Lattes: http://
lattes.cnpq.br/5262583447821450. ORCID https://orcid.org/0000-0001-6918-6075. E-mail: deniselirabertoche@gmail.com
Introdução

Partimos do campo freudiano conhecido como o bloco da Metapsicologia para revisitar
a especificidade do conceito de pulsão de apoderamento. Entretanto, esclarecemos que a
Metapsicologia é abordada aqui, num conjunto de observações conceituais a respeito do aparelho
psíquico, que Freud esboçou desde 1895 formalizando em 1915, e que versam sobre as pulsões, o
funcionamento do prazer, dentre outros aspectos.
Em nosso recorte, consideramos que a maior complexidade da Metapsicologia se encontra
nas definições de Eros e de pulsão de morte, principalmente no modo como elas se relacionam no
inconsciente. Entendemos que este eixo continua apresentando inquietações, principalmente ao
tratar-se desta última.
Cabe marcar que a pulsão de morte nos interessa inicialmente, para esclarecimentos
quanto ao impasse conceitual do termo, Bemächtigungstrieb, que origina a tradução de pulsão
de apoderamento. Sobretudo, porque houveram interpretações teóricas, como Cardoso (2002),
Caropreso (2013), Efken (2017), que a compreendem numa espécie de versão da pulsão de morte,
isto é, estaria em semelhança, posição da qual, assim como Trevisan, Vivès e Maesso (2022a) não
compartilhamos
A divergência conceitual e tradutória encontra-se presente na escassez de teorização a
respeito, o que nos levou a formular esta revisão, numa tentativa de fornecer mais esclarecimentos.
Entretanto, sublinhamos que não foi sem razão, que o apoderamento foi ligado à pulsão de morte,
já que foi abordado por Freud (1905/2016), como não sexual, deixando margem para deslocá-la ao
vetor de Thanatos.
Por tais razões, retornamos ao pensamento de Freud, num exame mais cuidadoso, utilizando
as contribuições da psicanalista Piera Aulagnier, pois entendemos que, a partir de seu postulado,
é possível aprofundar as investigações sobre a pulsão de apoderamento, recorrendo às noções
do amor e do ódio. Em consequência desta retomada, firmamos uma posição conceitual, distinta
do modo como a questão foi observada até o momento, cujo caráter exclusivo é a dominação,
incluindo em seu uso, a forma de pulsão de dominação.
Partindo deste ponto, apresentamos a Metapsicologia da pulsão de apoderamento: a qual
consiste em ações das quais participam a apropriação/rejeição, a incorporação, a dominação, cujas
operações são realizadas pela via do amor e do ódio, criando condições para o advento do sujeito.
Nesta perspectiva, evidenciamos o quanto o trabalho do apoderar-se distingue-se da noção da
pulsão de morte, da qual esta última, segundo Freud (1920/2020), seria uma força empenhada

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num suposto retorno ao estado original da vida.
Para demonstrar a composição destas ações, as organizamos da seguinte maneira:
inicialmente, elucidamos o contexto histórico-tradutório do termo. Em seguida, sublinhamos dois
pontos cruciais para seu desenvolvimento, cujo o primeiro é ressaltar a anterioridade do apoderar-
se, em relação às outras pulsões, dos quais os motivos se mostram na obra de Freud (1905/2016). Já
no segundo, tratamos das funções operacionalizadas pelo amor e ódio, partindo dos apontamentos
de Aulagnier, acrescentando a temporalidade pulsional que especifica o apoderar-se.

Algumas considerações sobre a tradução.

No levantamento do estado da arte, notamos no Brasil a tradição tradutória realizada sob


a nomeação de pulsão de dominação, referência posta em diversos dicionários, como Laplanche
e Pontalis, (1967/1989) Kaufmann (1996), Roudinesco e Plon (1998). Porém, esta interpretação
foi severamente criticada por White (2010), Trevisan, Vivès, Maesso (2022b), e Trevisan e Medina
(2022), pois força uma adaptação reducionista da ideia freudiana, desconsiderando o contexto em
que eles foram utilizados.
Embora a ideia de dominação esteja presente nas formulações de Freud (1913/2010), o
qual incluiu até um aparelho, Bemächtigungsapparat traduzido como aparelho de dominação,
localizado na função muscular, não se mostra suficiente para classificar sua ação.
Esta lógica demarca dois momentos fundamentais na construção do conceito, o primeiro 82
82A
em 1905, atrelado a teoria da sexualidade, onde Freud (1905/2016), adjetivou como não sexual,
participando de forma organizativa na vida pregenital, e a segunda, em 1920, quando observou o
jogo Fort-da, de seu neto, insinuando o controle, inclusive num trabalho simbólico, como empenho
da pulsão (FREUD, 1920/2020).
Em ambos momentos, a ênfase aparece sobre o termo Bemächtigungstrieb, que pode
ser traduzido como apoderamento, uma vez que, sua composição gramatical carrega a partícula
macht, derivado do verbo reflexivo sich macht, o que denota a ação de apossar-se, apoderar-se,
legitimando a posição de apoderamento, e não dominação (HANNS, 1996). No entanto, Freud
(1920/2020), além do Bemächtigungstrieb, empregou Bewältigungstrieb, que implica em dominar
a tarefa à força, ou superar.
Neste arrolamento, não negligenciamos o papel da dominação, sem, contudo, deixar de
ressaltar sua importância na constituição psíquica, principalmente por sua ação sobre os estímulos
ameaçadores causados pela realidade. O aferimento da insuficiência da dominação para sustentar
uma tipologia pulsional, reside numa leitura interpretativa que reúne diversos elementos, e
extrapola o campo da linguística gramatical e dos impasses da tradução.
Sobretudo, fundamenta-se nos pontos ressaltados por Freud permitindo destacar sua
posição quanto ao empenho de uma força psíquica muito particular, que busca apreender traços da
realidade material para manter seu fluxo de satisfação linear. Tais aspectos podem ser encontrados
nas interpretações dadas pelo próprio Freud (1920/2020), quanto à sua análise da brincadeira do
Fort-da.

A Metapsicologia da pulsão de apoderamento

É bem conhecida a trama dos conceitos e as dificuldades científicas de Freud (1905/2016,


1915/2010) para construir uma Metapsicologia. Entretanto, alguns autores como Assoun
(1989/1991), Trevisan (2022), Trevisan, et al, (2022b), retomam as investigações de uma de suas
partes, aquela sobre as pulsões, fornecendo a especificidade do apoderamento. Tais autores,
enfatizam ainda que, a ação desta força, empenha-se na direção de apoderar-se, no sentido de
obter poder e condições operatórias no mundo. Trevisan et al (2022b) ressaltou inclusive, um traço
particular da referida pulsão, atribuindo a ela o caráter o epistemofílico, ou seja, o impulso para
explorar o mundo
Para esclarecer o apoderar-se é necessário ressaltar seu modus operandi, isto é, uma

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posição temporal, por meio da qual institui seu circuito, lembrando que temporal aqui, tem um
sentido lógico, e não cronológico. A despeito disso, Freud (1915/2010) já havia assinalado os tempos
da pulsão como ativo, passivo, e a volta contra si, no qual localizamos, o terceiro, aquele de se-
fazer, isto é, ocorre a apassivação. Desde as modalidades destacadas por Freud (1905/2016) como
a pulsão oral e anal, notamos a condição apassivada, num tipo de se fazer, expressado na posição
do se-fazer-comer. Já na fase anal, Freud (1913/2010) identificou a noção de se fazer-controlado,
como uma ligação ao apoderamento.
Reencontramos no ensino de Lacan (1963-64/2008), principalmente em sua compreensão
sobre as pulsões, incluindo a extensão deste terceiro tempo, sob a forma escópica, aquela do se
fazer-visto, e na invocante, se-fazer-escutar.
A posição de ambos teóricos, tanto Freud como Lacan, sobre o terceiro tempo, expressaram
a exigência de trabalho pulsional, numa volta a si para se efetivar, o que Lacan (1963-64/2008),
chamou de circuito da pulsão, num tipo de vai e vém. Tal premissa fortalece a ideia de que existe
um empenho em manter em si o destino, do qual participa, em alguma medida, toda categoria
pulsional. Em outros termos, indicamos que toda pulsão visa se-fazer satisfeita, e para isso exige um
retorno, e o faz, na posição apassivada.
Diante dessas constatações, e da operação no terceiro tempo da pulsão, extraímos os
princípios norteadores de sua atividade na constituição psíquica, até as formas com as quais o sujeito
adoece, na expressão máxima da patologia pulsional, a compulsão à repetição. Mas esta última,
numa via específica, aquela de controlar o circuito pulsional, por meio de seus representantes,
se colocando no lugar de objeto, como no caso de algumas patologias, como a melancolia, e os
83
83A
transtornos alimentares.
Podemos assim, partindo das ideias Aulagnier (1975/1979) quanto ao funcionamento arcaico
da psique, propor no encontro, entre boca-seio, a ilustração simbólica, onde ocorre o exercício de
apoderamento, cuja expressão primeira seria a incorporação do mundo, mesmo antes da divisão do
Eu, e não Eu, que será a posteriori. Nesta experiência se forma nas zonas ditas erógenas, justamente
o local no corpo onde é possível incorporar algo, ou seja, torna-se erógena à medida que há ali a
transformação. Porém, para que tal condição seja criada, é preciso apropriação em algum nível dos
elementos experimentados.
Ainda sobre este ponto, o impulso de incorporação, ou, como Simmel (1943/2022) chamou
de pulsão de devoração, teria como principal objetivo a captura do mundo e os estabelecimentos
de seus limites, buscando a autonomia sobre os estímulos, a fim de construir a homeostase, daí
o princípio radical do termo domínio. Aulagnier (1975/1979) demonstrou a mesma lógica, com
seus esforços para dizer de um registro psíquico na relação com o mundo, realizado por meio
das sensações, o qual nomeou de Pictograma. No mesmo sentido, Anzieu (1989/2000) situou a
operação anatômica do corpo, num exercício realizado na função da pele, como veículo realizador
da captura da experiência.
Tanto Aulagnier (1975/1979), quanto Anzieu (1989/2000), observaram que, embora haja o
estímulo do mundo sobre o corpo do bebê, há internamente uma atividade que não corresponde à
homogeneidade do mesmo. No entanto, Aulagnier (1975/1979), nomeou de autoengendramento,
a atividade da autocriação, realizada pelo registro psíquico que se apropria da experiência para
forjar respostas internas, o que localizamos sob o rol da ação do apoderamento.
Podemos dizer que o auto engendramento é produzido pela força pulsional, cujo empenho
consiste numa produção psíquica estabilizadora para seu aparelho. Neste postulado, a alucinação
seria um exemplo, uma vez que, o bebê não alucina o seio, mas alguma coisa da experiência com
o seio.
O ponto vital, e fundamentalmente ilustrativo sobre a pulsão de apoderamento, em sua
manifestação corporal, está naquilo que Aulagnier (1975/1979), chamou de metabolização, que
nada mais é do que a operação da anatomia em continuidade aos processos psíquicos. Na vivência
metabólica, o corpo tem a função de informante do contato com o mundo, e a diferença que nele
encontra.
Ainda, sobre estes processos originários da vida psíquica, houveram tentativas de elucidar
seu funcionamento, como Aulagnier (1975/1979), Abraham (1924/1970), observadores da fase
sádico-oral, localizando a agressão diante da impossibilidade de obter o controle, influenciando

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a teorização de Klein na década de 1930. Para tornar claro o estudo é indispensável delimitar o
que compreendemos como originário. Assim, tomamos a definição de Mijolla-Mellor, (2005, p.
1324), a qual, “designa-se por originário o conjunto de representação produzidas à margem da
vida psíquica, quando esta se encontra ainda aquém das diferenciações interno/externo ou psique
soma”, acrescentando, ainda que: “o originário não se confunde com a origem, (filogenia, vestígios
de eventos traumáticos) da vida fantasmática, mas constitui sua primeira expressão, com seus
conteúdos e sua lógica próprios”.
Mediante tal assento avançamos quanto ao apoderar-se. A este propósito, Freud (1914/2010,
1920/2020, 1923/2011), indicou o exame atento à biologia para evitar as aporias teóricas, e
advertiu sobre a necessidade de observar minuciosamente o corpo, seu funcionamento, as células
e a atividade muscular.
Freud (1920/2020), deixou menções sobre a anterioridade da fundação do princípio do
prazer, que para nós tem valor epistêmico sobre a ação do apoderar na constituição da psique: a)
“Assim nos permitem vislumbrar uma função do aparelho psíquico, que, sem contrariar o princípio
do prazer, é independente dele, e parece mais primitiva que a intenção de obter prazer e evitar
desprazer (1920/2020, p. 143), b) “Até então, porém, a outra tarefa do aparelho psíquico, controlar
ou ligar a excitação, teria precedência, não em oposição ao princípio do prazer, é certo, mas de
forma independente dele, e sem consideração por ele, em parte” (p. 146). c) “Se querer restaurar
um estado anterior é realmente uma característica universal dos instintos, não podemos nos
admirar de que na psique tantos processos ocorram independentemente do princípio do prazer”
(p. 169), e por fim, ao referir-se ao jogo do Fort-Da, Freud assinalou que “tal empenho poderíamos
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84A
atribuir a um impulso de apoderamento, que passou a não depender de que a recordação em si
fosse ou não prazerosa” (p. 129), balizando um certo poder sobre as excitações.
Freud, incluiu a tratativa do domínio em seu Projeto (1895/1996) formulando as noções
basais sobre o aparelho psíquico, com a gênese de um princípio, chamado de inércia, e que
mais tarde se chamará princípio de constância, ou seja, do prazer. A pesquisa de Freud aferiu a
participação biológica frente aos processos excitatórios, articulando suas ações como respostas ao
meio externo, introduzindo a noção do Eu. Neste ínterim, Freud (1895/1996), notou o exercício
do aparelho muscular, para fazer, então, a ponte à esta energia psíquica que é manifestada com as
excitações.
Utilizando a ideia de domínio presente no Bemächtigungstrieb, a qual Freud (1905/2016,
1913/2010, 1915/2010, 1920/2020) usou com mais frequência, entrevemos a função do Eu, como
aquela que destina as excitações, que por sua vez, deveria ter força suficiente para apossar-se e
manter o controle sobre as exigências de satisfação. O mesmo foi notado por Grunberger (1959),
pioneiro na abordagem da pulsão de apoderamento, tradutor do alemão para o francês, usando
a forma de pulsion d´emprise. Para ele, o Eu torna-se forte o suficiente para controlar o mundo
interno, usando a pulsão que retém em si, e isto lhe confere poder para não sucumbir ao caos do
mundo (TREVISAN, 2022).
Para a inquietação de Freud quanto ao regime dos poderes inerentes às pulsões, observamos
que o objeto revela em parte a estrutura em que foi obtido pelo controle. Isto se manifesta de
modo mais consistente, naquilo que conhecemos por segunda tópica freudiana, uma reformulação
sobre o aparelho psíquico, compondo o inconsciente na versão do Isso, do Eu, e do Supereu, onde
cada um tem uma função articulada ao outro.
Num propósito elucidativo Freud (1923/2011) chama de êxito na constituição psíquica,
quando o Eu se sobrepõe ao Isso, e tem poder para redistribuir suas ações, incluindo a atividade
do Supereu, ao exercer algum tipo de poder sobre as atividades, evitando ser tomado totalmente
por suas exigências de satisfação. Ao passo que a patologia, ou o adoecimento do sujeito, consiste
na impotência do Eu diante de tais exigências, agora, impostas também pelos ideais supereóicos.
Para fornecer outros indícios da dinâmica desta força, retomamos seus operadores
originários, representados pelo amor e ódio. Articulamos esses afetos como dispositivos da pulsão
de apoderamento, já que Freud (1920/2020) também nos alertou que ambos, só se distinguem no
início da adolescência. Sob as orientações de Freud, e na retomada teórica de Aulagnier (1975/1979),
localiza-se os fundamentos para reler a ação do apoderar-se na subjetividade do humano.

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O Amor e ódio operadores do apoderar-se
Para compreender como o amor e ódio operam no apoderamento, é necessária uma breve
introdução a respeito. Os fenômenos decorrentes do amor e do ódio são de extrema importância
para elucidar o funcionamento do inconsciente. É salutar demarcar que para Freud (1905/2016,
1915/2010, 1920/2020), o amor e o ódio não são forças antagônicas no início da vida psíquica, e que
o ódio está a serviço da pulsão de vida, inicialmente. Não é à toa que Freud escolhe a palavra Eros
para designar a pulsão de vida, o que faz uma ligação direta entre o amor e a pulsão. Lembremos
que Eros decorre da literatura grega como deus do amor, que organiza o espaço à sua volta, e a
ordem das coisas no mundo (FERREIRA, 2004).
Então vejamos a ação desses dois elementos, tendo a mesma direção no início da vida,
preservando o funcionamento do aparelho. A entrada do bebê no mundo produz uma série de
estímulos que lhe são desconhecidos, os quais, por sua vez, causam diversos efeitos no seu corpo.
Para alguns teóricos, como Rank (1924/2016), e até mesmo para Freud, haveria nisso uma espécie
de trauma do nascimento, isto é, uma experiência que não pode ser representada.
Tendo como consequência os altos níveis de excitações fisiológicas, que segundo Freud, são
nocivos à própria existência, exigindo como resposta defensiva para manter os níveis mais baixos
possíveis, fundando do princípio do prazer (FREUD, 1905/2016).
Na condição bastante primitiva do psiquismo, e do frágil corpo do bebê experimentando
o caos do desconhecido, produz um tipo de resposta endógena para tratar destas ameaças, que
Freud (1905/2016) abordou nas expressões de dominação, ou seja, a resposta interna precisa
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85A
dominar, controlar a excitação, redistribui-la, diminuindo a tensão
Chamamos atenção ainda quanto à atividade do apoderar-se presente na constituição
psíquica, designada em particular pela extensão amor e ódio. Sobretudo, porque quanto ao amor,
existe atração para tomar para si, apropriar-se, isto é, um investimento na tomada de algo, o
empenho a empossar-se, ou nos termos de Freud (1925/2011), o incorporar, para então, exercer
poder. Este movimento seria uma tentativa de diminuir as excitações tornando parte de si.
Já, quanto ao ódio, atua naquilo que não se pode incorporar, e/ou tomar para si, logo, ele
funciona como força dissipadora daquilo que lhe escapa o controle, expressando-se por meio da
destruição, e da negação (DIDIER-WEILL, 1997, 2010), e até da agressão.
Assim, sustentamos nossa releitura sobre a atividade da pulsão de apoderamento e sua
anterioridade. Ainda no exame destas funções anteriores ao princípio do prazer, sublinhamos a
função do ódio como defesa, a qual Freud notou por meio da crueldade.
Que a crueldade e a pulsão sexual estão intimamente
correlacionadas é-nos ensinado, acima de qualquer dúvida,
pela história da civilização humana, mas no esclarecimento
dessa correlação não se foi além de acentuar o fator
agressivo da libido. Segundo alguns autores, essa agressão
mesclada à pulsão sexual é, na realidade, um resíduo de
desejos canibalísticos e, portanto, uma co-participação do
aparelho de dominação, que atende à satisfação de outra
grande necessidade ontogeneticamente mais antiga (FREUD,
1905/2016, p. 136).

Trevisan et al (2022b), reitera a posição de Freud (1905/2016) sobre a crueldade, destacando


seu papel, na versão sexual da pulsão de apoderamento, isto é, seu regime de prazer, e sua ligação
com a performance libidinal, possibilitando a transformação do amor em ódio.
Deste ponto em diante, articulamos o amor e o ódio como atividades expressadas no
aparelho muscular, na função de apropriação ou rejeição do mundo, constituindo os alicerces para
sustentação do Eu.
Ao se referir aos momentos pertinentes ao processo do originário, Aulagnier (1975/1979)
demarcou diversas ações atribuídas a Eros, que para nós, coincide diretamente na ação do
apoderamento, vejamos: a) “para que toda a atividade psíquica seja possível é necessário que ela
possa se apropriar, ou incorporar uma matéria exógena (p. 35); b)  “a psique toma empréstimo das
funções sensoriais do órgão para a produção pictográfica” vemos nisso uma maneira freudiana

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de citar a função do aparelho de dominação, o muscular, como fonte de acúmulo das sensações e
portanto informações libidinais; c) “o apropriar-se e o rejeitar como fundamento da oscilação do
organismo” (p. 50). No mesmo sentido, Mijolla-Mellor (2005, p. 1388), afirmou que o pictograma
formulado por Aulagnier ilustra a dimensão mais primitiva especulada no originário, compreendido
sob a perspectiva de que:
o pictograma é uma representação que versa sobre uma ação
instantânea (tomar para si/rejeitar), e cuja particularidade
principal, nessa fase de desenvolvimento da psique que ignora
o fora-de-si, é a relação especular de que ele é feito. A teoria
do originário pode ser aproximada do que Freud escreveu
a propósito das linhas gerais da operação judicatória que
chega ao julgamento da existência a partir de uma avaliação
da qualidade boa ou má do objeto. (MIJOLLA-MELLOR, 2005,
p.1389)

A abordagem construída por Aulagnier, constitui uma extensão das concepções freudiana,
servindo de apoio para a Metapsicologia, neste caso, do apoderar-se. Além destes postulados, tal
posição reafirma a noção deixada por Freud (1905/2016) quanto ao ódio, e isso nos interessa à
medida que demonstra a atividade da pulsão em questão.
O trabalho de Aulagnier (1975/1979) permite visualizar os processos que Freud não
esmiuçou, dada à complexidade dos conceitos que desenvolvera. Embora os aspectos da
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ambivalência pulsional, conjugados nas ações em construir e desconstruir, proteger e agredir, entre
produzir a vida e a aniquilá-la, não tenham sido tão enfatizadas, encontramos por meio deles a
expressão mais clara da força pulsional operatória na constituição do psiquismo.
Mais precisamente, localizamos tanto para Freud quanto para Aulagnier, o ódio como
primícia na vida psíquica, ou seja, no nascimento do sujeito psíquico. Mas porquê? Primeiro,
porque neste tempo da vida ainda caótica e informe, o corpo biológico experimenta as oscilações
do mundo e de sua instabilidade, o que produz a sensação de desprazer, ao elevar os níveis de
excitabilidade interna.
Ainda num exame mais detalhado do processo de metabolização, sublinhamos que “o
trabalho solicitado à psique consistirá em metabolizar um elemento de informação que vem de um
espaço que lhe é heterogêneo, em um material homogêneo” Aulagnier (1975/1979, p. 42). Com
agudeza na definição do ódio temos, então, a seguinte lógica: o ódio é uma forma de preservar o
material homogêneo, ou seja, com isso exercer domínio e estabilidade, incluindo a característica de
erradicar qualquer apresentação que faça com que ele tenha que buscar outra coisa.
Sobre estas afirmações situamos o ódio radical, o desejo e a pulsão de morte. O ódio, então,
se revelaria ao apego de manter-se na condição apaziguada, longe das excitações e riscos que os
objetos, por sua fissura, apontam ao movimento de ter que desejar. O desejo de não desejo é a
máxima freudiana nomeada por Aulagnier, (1975/1979) que evidencia a proposta de Freud sobre a
tendência da vida pulsional, isto é, o desejo de retorno ao inorgânico, lugar desertificado de objeto
e, portanto, sem representantes de desejo. Nesta tarefa pode até surgir a dimensão secundária do
ódio, em sua tendência destrutiva, mas motivado por seus fins, ou seja, extinguir o desejo.
As ordenações que Aulagnier propõe sobre o funcionamento do ódio e do amor, operando no
originário, revelam o trabalho do apoderamento. O avanço da autora permite, não apenas visualizar
a ação da incorporação, como meio de apoderar-se, mas também os aspectos da dominação.
Freud introduz o amor e ódio elucidando a dinâmica das oposições pulsionais, servindo para
investigar sua montagem, afirmando que “a transformação ocorre por meio de um deslocamento
reativo do investimento, quando se subtrai energia do impulso erótico e se introduz energia no
impulso hostil” (FREUD, 1923/2011, p. 54). Mas porque haveria um câmbio nesse investimento? O
que organiza a troca de adição ou subtração dos impulsos? Algo da forma de existir coloca-se em
jogo.
Para mais esclarecimentos quanto a essa questão Freud, recorreu aos estudos de A.
Weisman o qual afirmou que a substância viva possui uma metade mortal e uma imortal. Na
interpretação freudiana, a mortal refere-se ao corpo, ou seja, a soma, sujeita à morte natural, mas

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quanto as imortais, declara o seguinte:
As células germinativas são potentia (potencialmente), na
medida em que são capazes de em certas condições favoráveis
desenvolver-se num novo indivíduo, ou espero de outra forma,
rodear-se de um novo sistema (FREUD, 1920/2020 p. 214)

Enquanto dimensão imortal, entendemos a condição da pulsão para a criação além do


próprio corpo, como por exemplo a fantasiação, ou delírio como ato de criar corpo, e na própria
idealização que eterniza a experiência corpórea, ou propriamente a realidade psíquica. Notamos
assim, que Freud mantém o valor dessa afirmação, e em muito se aproxima do caráter imortal da
força criadora, ou, o que Aulagnier (1975/1979) toma como auto engendramento. No entanto,
Freud recorreu a processos biológicos para explicar a coexistência das oposições pulsionais,
afirmando que:
De acordo com a teoria de E. Hering, na substância viva operam
ininterruptamente dois tipos de processos, em direções
opostas, uns construtivos, anabólicos, os outros, destrutivos,
catabólicos. Podemos ousar reconhecer nessas duas direções
dos processos vitais, a atividade de nossos dois movimentos
instintuais, dos instintos de vida e instintos de morte
(interrogação). E há outra coisa que não podemos ignorar:
que inadvertidamente adentramos o porto da Filosofia de
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87A
Schopenhauer, para quem a morte é o autêntico resultado
e, portanto, objetivo da vida, enquanto o instinto sexual é a
encarnação da vontade da vida. (FREUD, 1920/2020, p. 217)

Assim como Freud, Aulagnier também utilizou como guia na explanação da constituição
da psique, quando se refere ao empréstimo somático e outras expressões similares, ou mesmo a
noção de metabolização. Freud (1920/2020) ao deparar-se com a suposta oposição das pulsões,
ou seja, com suas metas contraditórias, destacou sua ação na fisiologia. Recorrendo à teoria de
E. Hering, para retratar os processos construtivos, anabólicos, e os destrutivos, catabólicos, numa
ação demonstrativa das pulsões, de vida e de morte, respectivamente. Freud (1923/2011) fez
menção do campo orgânico, onde atuam as forças psíquicas, sobretudo, enfatizando o próprio
órgão. Atentemos para a colocação de Freud:
A cada uma dessas duas espécies de instinto estaria associado
um processo fisiológico especial (assimilação e desassimilação
anabolismo e catabolismo, em cada fragmento da substância
viva estariam as duas, mas em mistura desigual, de modo que
uma substância poderia assumir a principal representação de
Eros. Ainda não podemos conceber de que modo os instintos
das duas espécies se ligam, se misturam, amalgam uns com os
outros, mas que isto sucede regularmente e em larga medida
é uma suposição inescapável de nosso contexto (FREUD
1923/2011, p. 53).

Admitimos que a contribuição de Aulagnier (1975/1979) é nomear o ódio como desejo,


seu objeto e sua direção, coisa que Freud (1920/2020, 1923/2011) deixou nas entrelinhas. No
entanto, tomamos a noção freudiana, acrescida dos postulados de Aulagnier (1975/1979), em sua
abordagem das experiências que poderiam ocorrer nas origens da vida psíquica. Deste modo, o
amor e ódio são expressões, instrumentos que vetorizam a força para apoderar-se do mundo, e
poder para operá-lo, da qual a fantasia será a roupagem, como continuação ao campo de domínio.
Contudo, não podemos deixar de destacar que ao nomear o ódio como radical, no sentido
de desejo de não desejo (AULAGNIER, 1975/1979), existe um traço de desejo, mesmo no ódio, e,
portanto, uma fissura que seria o centro de todo desejo. O desejo de não desejo tem implicações
tanto nos aspectos quantitativos, como nos qualitativos em termos pulsionais. Uma vez que esta
meta, a de erradicar o objeto, a fim de extinguir qualquer alteração em seu movimento, é por
excelência inalcançável, o que justifica a afirmativa de que a satisfação toda é impossível.

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Abordando de outro modo, temos o seguinte: o ódio como desejo de não desejo visa a
extinção do espaço, que está presente no objeto e no Eu, os quais são representantes do desejo de
desejar. Enquanto o amor tem como fonte incansável o vazio, no qual se pode ligar as coisas.

O apoderar-se na constituição psíquica.

Inicialmente Freud (1914/2010) mencionou a primazia do ódio na vida psíquica, Aulagnier


(1975/1979, p. 32) reiterou a posição, admitindo a “dualidade inicialmente presente na energia
operante no espaço psíquico, e que é responsável pelo que definimos como desejo de não desejo:
desejo de não ter que desejar - tal é a meta própria de todo desejo”. 
Nesta esteira,o ódio aparece primordialmente objetivando a preservação por maior tempo
possível da estabilidade. Por esta razão mantemo-nos ao lado de Freud, descrevendo o ódio num
tipo de preservação, portanto guerreiro de Eros, ao evitar/aniquilar a ameaça vital. Referindo-se a
tal intenção Freud esclareceu que:
O ódio, enquanto relação com objetos, é mais antigo que
o amor. Provém do repúdio primordial do ego narcisista
ao mundo externo com seu extravasamento de estímulos.
Enquanto expressão da reação do desprazer evocado por
objetos, sempre permanece numa relação íntima com os
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88A
instintos auto preservativos, de modo que os instintos sexuais
e os do ego possam prontamente desenvolver uma antítese
que repete a do amor e do ódio. Quando os instintos do ego
dominam a função sexual, como é o caso na fase da organização
anal-sádica, eles transmitem as qualidades de ódio também à
finalidade instintual (FREUD, 1914/2010, p. 161).

Compreendendo a priori, que o ódio está posto a serviço da conservação, e num segundo
momento que ele poderá funcionar de outro modo, mais avizinhado à pulsão de morte, a qual dará
diversos sinais sob o nome de desejo de destruição, retorno ao inorgânico, a extinção da vida. Para
aprofundar a ação deste ódio radical, operando a favor da vida, Aulagnier, afirma que:
Daí resulta originário, a atividade psíquica forjará duas
representações antinômicas da relação entre o representante
e o representado, cada uma conforme a realização de uma das
metas do desejo. Uma primeira, na qual a realização do desejo
comporta um estado de reunificação entre o representante e
o objeto representado e será esta união que aparecerá como
causa de prazer vivido. Uma segunda, a qual a meta do desejo
será o desaparecimento de todo objeto que possa suscitá-lo,
o que faz com que toda a representação do objeto aparece
como causa de desprazer do representante (AULAGNIER,
1975/1979, p. 40).

Relemos neste ponto, o processo de incorporação, no qual se engendra os objetos.


Avistamos assim, uma das ações metapsicológicas da pulsão de apoderamento no nascimento
do sujeito psíquico, como a força inclinada à criação, incluindo a ambivalência que circula entre o
amor e ódio. Nesta composição, a ambivalência será imprescindível, pois constitui o movimento
originário que fará surgir o sujeito, unindo o que é possível, na apropriação/incorporação, localiza-
se a ação do amor, a extensão do outro eixo, rejeitando a diferença que causa descontinuidade para
o funcionamento, e assim, aciona um trabalho excessivo que a psique rejeita, a ação do ódio.
Em tal exame abordamos o traço do apoderamento numa particularidade, cuja performance
visa fundar o lugar para existir, isto é, condições para se fazer sujeito. De tal modo, temos a expressão
de que o desejo de incorporar ou não, seria uma forma de expressar o trabalho da pulsão de
apoderamento, operacionalizada pelo amor, quando possível, e o ódio, quando não se pode operar.

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As ressonâncias clínicas do apoderar-se

Para além da revisão teórica, incluímos as incidências desses pressupostos na práxis analítica,
e que seriam fragmentos das origens que constituíram o sujeito, apresentando diretamente sua
montagem pulsional para existir na relação com o outro. Na prática clínica do tratamento das
neuroses, observamos os fenômenos do amor, principalmente naquele que se configura como
paixão.
Nesta modalidade, a posição do sujeito amante é colocar o outro no lugar do objeto, para se
fazer-ser, isto é, apassivando e apaziguando suas exigências de satisfação, realizando na tendência
de incorporar, devorar, controlar o outro, na qual constitui expressão da pulsão do apoderamento,
em sua vértice adoecido, na condição do excesso (FERREIRA, 2004). Nisto está a face da paixão
que faz surgir o ódio como uma ligação, às avessas, quando o controle ou seu poder não se efetiva
sobre o outro, isto é, não pode aprendê-lo.
Por tais razões é frequente nos consultórios psicanalíticos as queixas devastadoras quanto
aos desencontros amorosos, e as relações afetivas, cuja tragédia se desenha nas repetições, nas
violentas insistências, e na impotência do Eu, implicando numa degradação, ao preço devastações
imensuráveis, caso permaneça a impossibilidade ou falha nessa tarefa.
Torna-se possível, interpretar nesses casos amorosos, caracterizados por investimentos
libidinais extremistas, a evidência do desejo de posse do outro, como uma reativação de se-fazer
sujeito, tomando o outro para si, que é uma expressão rudimentar do apoderar-se, noticiando sua
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89A
ação pela via amorosa.
No entanto, sublinhamos que tal dimensão é predominantemente multifacetada pelo
imaginário, onde se pratica a crença da existência do objeto inalcançável, lógica aproximativa da
alucinação, uma vez que, cria a realidade psíquica produzindo uma volta a si. Nesta perspectiva,
o que se almeja é tornar-se sujeito acoplando a si o ser objetalizado do Outro, assim o neurótico
determinado em sua busca de satisfação encontra via de extensão de seu domínio.
Nossa hipótese para a metapsicologia da pulsão de apoderamento, verifica-se naquilo que
Freud (1913/2010) anunciava já na característica herdeira da experiência oral. O autor metaforizou
no mito do canibalismo, uma condição para que o sujeito possa vincular-se ao outro, onde é
necessário tomar para si partes dele, ou seja, este é o trabalho da pulsão.
Nossa formulação sobre amor-paixão não visa apontar somente a conectividade do sujeito
com o mundo, por sua posse ou incorporação do objeto, e parte do outro. Neste dispositivo teórico,
o Eu assume o protagonismo e passa a nutrir-se desse objeto a fim de, como tentáculos, evitar
qualquer tentativa de perder o controle como se pode ver, o Eu fortalecido evita encontrar o espaço
do vazio, revelando as direções de Eros e Thanatos, na qual a perda imaginária, deixa o sujeito
desbussolado em sua existência.

A guisa de conclusão

A partir da revisão sobre a pulsão de apoderamento, fornecemos marcações que reabrem


a discussão sobre seu conceito, para incluir nela, pontos inobservados da atividade originária,
principalmente sobre o apoderar-se na constituição psíquica, - e não apenas na brevidade da
pulsão de dominação, como expressão continuada da pulsão de morte. Sublinhamos ainda a forma
operacional, desta categoria pulsional, centrada no terceiro tempo da pulsão, conhecido como
volta-a-si, ou apassivação, na via possibilitadora no advir do sujeito.
A discussão permitiu propor um bloco de ações do apoderar-se que nomeamos como
Metapsicologia da pulsão de apoderamento, das quais participam a incorporação, a apropriação/
rejeição, criação, em consequência do empenho da força para se-fazer existir, em seu ímpeto
primeiro. Por fim, apoiados no postulado de Freud e Aulagnier, indicamos que o amor e o ódio são
dispositivos fundamentais para ilustrar o movimento insistente do se fazer.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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92A
PSICANÁLISE NOS ESPAÇOS PÚBLICOS: ESCUTA E TRANSMISSÃO
PSICANALÍTICA NA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

PSYCHOANALYSIS IN PUBLIC SPACES: LISTENING AND


PSYCHOANALYTICAL TRANSMISSION IN THE UNIVERSITY EXTENSION

Christiane Carrijo 1

Resumo: O trabalho apresentado é fruto de dois projetos de extensão universitária executados por coordenadora e por
discentes para populações vulneráveis, crianças, adolescentes, usuários de serviços públicos do Centro de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS) e do Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi). O objetivo é discutir
alguns dos vértices teóricos, metodológicos e considerações parciais advindas da execução de ambos, de maneira a propor
bases para uma psicanálise comprometida com espaços públicos e com a escuta das pessoas vulneráveis e invisibilizadas.
Os resultados apontam como a psicanálise dos espaços públicos, feita na práxis universitária, auxilia na construção de
dispositivos potentes para uma clínica ampliada e na psicanálise como operador político, levando em consideração
fenômenos complexos da realidade social. Por propiciar o acolhimento e a circulação livre das palavras e das brincadeiras,
marca o lugar do outro como testemunha das histórias narradas.

Palavras-chave: Psicanálise. Espaços Públicos. Clínica Ampliada. Extensão Universitária. Transmissão Psicanalítica.

Abstract: The work presented is the result of two university extension projects carried out by the coordinator and students
for vulnerable populations, children, adolescents, users of public services at the Specialized Reference Center for Social
Assistance (CREAS) and the Psychosocial Care Center for Children and Adolescents (CAPSi ). The goal is to discuss some
of the theoretical and methodological vertices and partial considerations arising from the execution of both in order to
propose bases for a psychoanalysis committed to public spaces and to listening to vulnerable and invisible people. The
results show how the psychoanalysis of public spaces, carried out in university praxis, helps in the construction of powerful
devices for an expanded clinic and in psychoanalysis as a political operator, taking into account complex phenomena of
social reality. By providing hospitality and free circulation of words and games, it marks the place of the other as a witness
to the narrated stories.

Keywords: Psychoanalysis. Public spaces. Extended Clinic. University Extension. Psychoanalytic Transmission.

1 Professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências - UNESP/Bauru-SP. Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São
Carlos-UFSCar/SP. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP. Membro do NEEPPSICA - Núcleo de
Estudos, Extensão e Pesquisa em Psicanálise da FC/UNESP. Membro do Observatório de Educação em Direitos Humanos - OEDH-FAAC/UNESP.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8543191018207911. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1486-7006. E-mail: christiane.carrijo@unesp.br
Introdução

O trabalho apresentado é fruto de dois projetos de extensão1 universitária, sendo um


desenvolvido para crianças, no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS); e
outro para pré-adolescentes no Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi). O objetivo é
colocar em discussão alguns dos vértices teórico-metodológicos e também as considerações parciais
advindas da execução destes, de maneira a propor bases para uma psicanálise comprometida com
espaços públicos e com a escuta da população brasileira vulnerável e invisibilizada. A fundamentação
teórica partiu de propostas psicanalíticas encontradas em Sigmund Freud (1919 [1918])/1996) e
Françoise Dolto (1977/2009), em sua vertente europeia, e dos trabalhos psicanalíticos brasileiros
da Casa da Árvore, no Rio de Janeiro, e da Casa dos Cata-Ventos, em Porto Alegre. Os dispositivos
de inspiração doltoniana das Casas brasileiras servem de referência e auxiliam na compreensão de
que o brincar é terapêutico e potencializador da elaboração de traumas e de situações de conflito.
Uma Psicanálise em Extensão em uma Clínica Ampliada – para fora dos consultórios
e dialogando com outros campos do conhecimento – para usuários do CREAS e do CAPSi,
especificamente crianças e adolescentes, foi feita com a construção de espaços de escuta
psicanalítica para a compreensão do fenômeno da violência sexual, no primeiro momento, e,
posteriormente, do sofrimento mental. Esses lugares institucionais, um da Assistência Social e outro
da Saúde, recebem ações afirmativas e consolidam políticas públicas para a garantia de direitos
constitucionais.
O abuso sexual infantil é um dos maiores problemas da saúde pública no país e no mundo e, por
ser um fenômeno complexo, exige enfrentamento com estratégias de abordagem multidisciplinar –
o CREAS é a porta para o atendimento psicossocial dessa população. Mundialmente se observa uma
grande defasagem entre a necessidade de atenção em saúde mental para crianças e adolescentes e
a oferta de uma rede de serviços capaz de responder por ela, além da ausência de políticas oficiais
de saúde mental infantil e juvenil – o CAPSi realiza o acolhimento e atendimento dessa demanda.
É urgente que se estude as especificidades para o atendimento dessa população – crianças
e adolescentes que sofreram abuso sexual e/ou com transtornos mentais, com a sistematização de
uma política de saúde mental detalhada para esse segmento, que auxiliaria na disponibilização de
mais serviços e informações relevantes para se construir uma clínica ampliada, ética e humanizada
e uma prática multidisciplinar.
A exposição desse artigo procura traçar as bases teóricas e metodológicas utilizadas no fazer
e na escuta dessas práticas extensionistas com o objetivo de propor argumentos e reflexões para

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uma psicanálise dos espaços públicos, uma clínica psicanalítica ampliada.

Metodologia

Utilizou-se o método da cartografia para a sistematização do trabalho de campo extensionista,


pois, a ênfase metodológica é acompanhar processos junto com a dimensão interventiva das
ações. Inspirados no trabalho de Rolnik (1989), Cintra, Mesquita, Matumoto e Fortuna (2017, p. 50)
afirmam que: “A cartografia tem como amparo ao trabalho metodológico a análise da implicação
do pesquisador articulada à concepção de que o conhecimento é inseparável e nele há uma
processualidade em relação ao movimento da vida e das afecções”.
A cartografia, na perspectiva de Gilles Deleuze e Félix Guattari, conceito apresentado na
introdução de Mil Platôs (1995), procura mapear linhas constitutivas das coisas e dos acontecimentos
dos territórios existenciais para acompanhar processos de produção de subjetividade, de maneira

1 Os projetos receberam apoio e recursos da Pró-reitoria de Extensão e Cultura (PROEC/UNESP). Agradecimento


aos discentes do curso de Psicologia, psicanalistas na cidade, executores desses projetos e também aos mestrandos
e profissionais, participantes, voluntários engajados de nossa clínica ampliada. Os nomes dos Projetos de Extensão
citados neste artigo são: Saraus e Contação de Histórias: Psicanálise e Arte como Estratégia Clínica e Política na
Atenção à Infância; e Ateliês de Contação de Histórias com Escuta Psicanalítica para o Centro de Apoio Psicossocial
Infantil - CAPS i, como parte do Projeto Atendimento e Assistência Psicológica às Demandas dirigidas ao Centro de
Psicologia Aplicada FC-UNESP-Bauru.
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94A
a construir um mapa móvel de paisagens psicossociais: “[...] eis, então, o sentido da cartografia:
acompanhamento de percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou
rizomas” (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009, p. 10).
Dessa maneira, essa metodologia possibilita o estudo de objetos de caráter mais subjetivo
e em territórios nos quais o pesquisador habita e transforma para conhecer, ao mesmo tempo em
que também é afetado. Nesse sentido, o conhecimento produzido é um processo de criação: “o
desafio é o de realizar uma reversão do sentido tradicional do método – não mais um caminhar
para alcançar metas pré-fixadas (metá-hódos), mas o primado do caminhar que traça, no percurso,
suas metas” (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009, p. 17).
Em sua aplicação nos projetos de extensão, fazemos o registro das ações e afetações
ocorridas nos territórios, utilizando para isso o diário de campo e, a posteriori, na supervisão clínica
das ações que ocorreram nos ateliês, fazemos uma implicação coletiva dos efeitos do território
sobre nós e sobre os participantes/população.
Como estratégia e dispositivo clínico, a contação de histórias foi utilizada enquanto recurso
terapêutico e educativo, dada a possibilidade de construção de um espaço potencial e criativo para
identificação e comunicação de sentimentos represados, reflexão de conflitos e questões sociais –
além de processos de simbolização e de forma dialógica, ou seja, nós, os executores, propúnhamos
contos, mas, também, escutávamos quais os contos as crianças queriam ouvir e brincar.
A escuta psicanalítica exercitada nas ações de clínica ampliada procura, com atenção
flutuante, se atentar para as livres associações e sequências de brincadeiras dos participantes, com
ênfase: ao desejo inconsciente; as repetições temáticas e, algumas vezes, traumáticas; as defesas;
aos atos falhos; e a presença de significantes.

Argumentos Psicanalíticos para a construção de uma Clínica Ampliada


– ser Psicanalista na Cidade

As bases teóricas e metodológicas para pensar e fazer uma Psicanálise em Extensão ou,
como diria Françoise Dolto, um trabalho de “psicanalistas na cidade” (DOLTO, 1977/2019), são
encontradas em artigos freudianos. É possível assumir essa escuta e identificar as manifestações
clínicas das crianças sem qualificar esse trabalho como sendo exclusivamente psicoterapêutico. Mas
fica o questionamento: como caracterizar as intervenções de psicanalistas em espaços públicos e
quais os alcances possíveis dessa atuação?

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No texto Linhas de Progresso na Terapia Analítica (1919 [1918]/1996), Freud foi visionário,
pois afirmou que o conhecimento e a capacidade psicanalítica eram incompletos, e que seriam
necessárias alterações no método como forma de avançar no conhecimento; dessa maneira, ele
se dispôs a rever o procedimento terapêutico e se abriu a novos desenvolvimentos para a clínica
psicanalítica. Existem importantes colocações feitas nessa obra, pois os procedimentos de manejo
postulados até então teriam tido sua gênese na clínica da histeria, mas outros sofrimentos mentais,
como as fobias, deveriam estar submetidos a uma atuação técnica diferente.
Freud colocou que a sugestão poderia ser empregada em pacientes fóbicos, como manejo
técnico, indicando que, em tais casos, existiria uma aproximação do método analítico com as
psicoterapias. Estas últimas eram entendidas por Freud como toda terapêutica que utiliza da
sugestão. Foi feita essa recomendação técnica porque o paciente fóbico grave teria uma grande
dificuldade de produzir livres associações. Esse texto freudiano parece anunciar as fundamentações
teóricas e clínicas do que mais tarde foi chamado de psicoterapia de orientação analítica. Freud
apresentou as seguintes propostas de manejo:
A nossa técnica desenvolveu-se no tratamento da histeria e
ainda é dirigida, principalmente, à cura daquela afecção. As
fobias, porém, já tornaram necessário que ultrapassemos os
nossos antigos limites. Dificilmente se pode dominar uma fobia,
se se espera até que o paciente permita à análise influenciá-lo
no sentido de renunciar a ela. Nesse caso, ele jamais trará para
análise o material indispensável a uma solução convincente
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95A
da fobia. Deve-se proceder de forma diferente. Tome-se o
exemplo da agorafobia; existem dois tipos de agorafobia, um
brando, o outro grave. Com estes últimos, só se obtém êxito
quando se consegue induzi-los, por influência da análise, a
comportarem-se como os pacientes fóbicos do primeiro tipo
– isto é, a ir para a rua e lutar com a ansiedade enquanto
realizam a tentativa. Começa-se, portanto, por moderar a
fobia; e apenas quando isso foi conseguido por exigência do
médico é que afloram à mente do paciente as associações
e lembranças que permitem resolver a fobia (FREUD, 1919
[1918]/1996], p. 179).

Ele anunciou as considerações clínicas acima como avanços na técnica psicanalítica e


integrando o escopo do tratamento analítico. Dessa maneira, sofrimentos mentais, e mesmo
as fobias, estariam sujeitos a certas suspensões de seus sintomas devido à transferência
(FREUD,1913/1996).
A distinção entre transferência e sugestão, como desenvolvimento da técnica psicanalítica,
foi feita tempos mais tarde, quando ele indicou um segundo avanço, e novamente necessidade de
mudanças na técnica: o atendimento psicanalítico em instituições públicas, destinado às classes
menos abastadas:
Agora, concluindo, tocarei de relance numa situação que
pertence ao futuro – [...]. Os senhores sabem que as nossas
atividades terapêuticas não têm um alcance muito vasto.
[...] Presentemente nada podemos fazer pelas camadas
sociais mais amplas, que sofrem de neuroses de maneira
extremamente grave. Vamos presumir que, por meio de
algum tipo de organização, consigamos aumentar os nossos
números em medida suficiente para tratar uma considerável
massa da população. Por outro lado, é possível prever
que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade
despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente
tanto direito a uma assistência à sua mente, quanto o tem,
agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses
ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose
[...] Quando isto acontecer,haverá instituições ou clínicas de
pacientes externos, para as quais serão designados médicos

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analiticamente preparados, de modo que homens que de
outra forma cederiam à bebida, mulheres que praticamente
sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças para as quais
não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose,
possam tornar-se capazes, pela análise, de resistência e de
trabalho eficiente. Tais tratamentos serão gratuitos. Pode
ser que passe um longo tempo antes que o Estado chegue
a compreender como são urgentes esses deveres. [...].
Defrontarnos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa
técnica às novas condições. [...] É muito provável, também,
que a aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a
fundir o ouro da análise livre com o cobre da sugestão direta
[...] (FREUD, 1919 [1918]/1996, p. 180-181).

As palavras do fundador da psicanálise a respeito das possibilidades futuras das classes


trabalhadoras serem atendidas por analistas, e mesmo do Estado custear um tratamento para as
mesmas, marcou a construção de um campo teórico e clínico fora dos limites do consultório e do
divã: uma psicanálise para fora dos muros se coloca como um legado e um desafio deixado por
Freud.
Rosa (2016) relembra a visita de Freud aos EUA, em 1909, e sua colocação a respeito da
entrada da psicanálise em território americano como um processo de contágio de ideias, que seria
algo irreversível – assim como uma peste. Eis uma face subversiva da psicanálise. A autora também
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96A
busca em Lacan e na Ata da fundação da Escola Freudiana de Paris, em 1964, a proposta para uma
distinção entre psicanálise como intenção e como extensão. Se a primeira trata da doutrina, do
corpo teórico; a segunda se refere à prática, e é composta pela articulação da clínica com ciências
afins. Ela aponta: “A psicanálise em extensão está na dependência da psicanálise em intenção, o
que a diferencia de uma sociologia quantitativa” (ROSA, 2016, p. 90).
O objetivo ao trazer ideias de Freud e Lacan, como argumentação para a construção de uma
clínica psicanalítica ampliada, está brevemente descrito acima e marca a importante defesa desta
clínica. A existência da psicanálise é dependente da fundamentação epistemológica da descoberta
do inconsciente e de seu método específico: a associação livre.
A invenção da psicanálise se inscreve na subversão científica operada no início do século
XX, pois ela é uma forma de investigação e, ao mesmo tempo, uma intervenção clínica, portanto,
pesquisa e tratamento coincidem. A teoria psicanalítica possui um estatuto próprio, pois sustenta
o desejo no centro de toda atividade humana. Ela jamais pode garantir, a priori, um resultado
determinado quando se trata do estudo de casos.
Pensamos que são dois os objetivos da clínica psicanalítica ampliada. O primeiro é manter
viva a clínica psicanalítica, por intermédio do estudo de casos clínicos. Estes atendimentos são feitos
a partir de uma psicanálise extensa, nos espaços públicos e na escuta da população vulnerável e
invisibilizada socialmente. Eles operacionalizam conceitos psicanalíticos que descolonizam a escuta
– uma vez que é preciso, também, escutar a demanda do zeitgeist da época.
O outro objetivo é duplo: realizar a psicanálise, como proposta por Freud em Linhas de
Progresso na Terapia Analítica (1919 [1918]/1996), para os trabalhadores e para os que não podem
pagar, ou seja, escarafunchar o cobre da Psicanálise; e, por outro lado, realizar a psicanálise em
extensão como proposta por Lacan: a sua possibilidade de ser um operador político que possui
como finalidade ampliar sua área de atuação para além da clínica privada, colocando-a em espaços
públicos e disseminando-a na cultura.
Pensamos nas condições do uso da psicanálise como experiência original no mundo e em
como podemos assumir as contradições e o desejo da práxis dos que a praticam extramuros.
A Psicanálise em Extensão, a prática de ser um psicanalista na cidade, operacionaliza como
compreendemos o fazer uma clínica psicanalítica ampliada. Por isso, temos como exercício dessa
escuta, as intervenções realizadas nos projetos de extensão universitária, nos quais discentes
e coordenadora/psicanalista se lançam em experiências de práxis voltadas para demandas da
realidade social.
Destacam-se, então, os projetos de extensão como possibilidades de experiências de

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transmissão de uma escuta e de uma práxis psicanalítica em espaços públicos, como são as
experiências extensionistas: dos sarauzinhos e contação de histórias, para crianças e adolescentes
vítimas de violência sexual (realizados nos CREAS); e do ateliê de contação de histórias para crianças
com transtornos mentais do CAPSi - ambos inspirados na clínica de Françoise Dolto e nas Casas
brasileiras inspiradas na Maison Verte (Casa Verde), fundada por Dolto, na França, em 1978.
Gostaríamos de afirmar que a Extensão Universitária pode ser subversiva. Sua subversão
está em confrontar o centro imaculado do saber científico acadêmico naquilo que ele mais preza:
o controle e o produtivismo cientificista. A rigor, professores muito envolvidos com a práxis, isto
é, com atividades voltadas à população em ações fora dos muros universitários, não produzem
conhecimento científico na mesma velocidade dos outros colegas pesquisadores. Entendamos bem:
não estamos falando simplesmente da Extensão como campo de pesquisas qualitativas, no qual
discentes, após a coleta de dados, não possuem mais vínculo com a população, mas nos referimos
a práticas de psicanalistas/professores que entram diretamente em contato com os territórios da
práxis de seus alunos e vão junto com eles para fora dos muros da Universidade. Muitas vezes, eles
estão presentes em momentos do trabalho nos campos institucionais e, por vezes, na rua; dessa
forma, testam a teoria, os métodos e as estratégias de intervenção, para depois, com a supervisão
clínica, escreverem resultados e inscrever, no psíquico, uma transmissão. Porém, principalmente, os
psicanalistas na cidade estão nos locais públicos para escutarem e serem afetados pela escuta – e
possibilitarem a construção de um espaço para a circulação da palavra e dos afetos.
No Brasil, as práticas assistenciais desenvolvidas pelas políticas públicas, como é o caso
do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e do Sistema Único de Saúde (SUS), necessitam
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da extensão universitária para pensar a realidade social e as propostas de intervenção para os
usuários desses territórios. Nesse contexto, defendemos uma psicanálise praticada nos dispositivos
extensionistas para construir uma clínica psicanalítica ampliada verdadeiramente brasileira.
[...] a clínica não é lugar de aplicação de saber, mas de
produção, o que significa que, havendo produção de saber,
há necessariamente condições para a prática clínica, uma
vez que o saber produzido, não tendo caráter especulativo,
foi gerado a partir de uma experiência em que o sujeito está
necessariamente implicado (ELIA, 2000, p. 32).

Broide (2019) aponta que a clínica não é restrita ao consultório particular e defende o
trabalho psicanalítico exercitado nas situações sociais críticas: atendimento de população que vive
nas ruas, prisões, nos morros e as vítimas de violências, por exemplo. Ele defende uma experiência
psicanalítica cuja intervenção solicita a colocação do próprio corpo do analista no trabalho,
pois exige a escuta do outro no território da cidade, onde não existe o controle do dispositivo
analítico como o classicamente realizado no consultório. Ele nos auxilia com a compreensão de
uma transferência, despertada nesses dispositivos, que nos remete ao desamparo e a fragilidade.
Também diríamos que esta é uma transferência que nos toca, comove e que pode provocar uma
sensação de impotência.
Uma prática de clínica ampliada para espaços públicos, e com compromisso com a
realidade, leva em consideração que o psicanalista precisa voltar sua escuta para as questões
mais urgentes do sofrimento mental da população brasileira. Dessa forma, discussões teóricas e
clínicas, empreendidas em eventos científicos, que abordam contextos e realidades muito diversas
da nacional, e com intenção de aprofundar ou descrever conceitos psicanalíticos, na verdade
produzem efeitos de 1) nos deixar receptivos à produção psicanalítica, muitas vezes europeia; e 2)
nos afastar, em parte, de nossas raízes e de uma produção própria e original da psicanálise. Esse
cenário pode ser observado se considerarmos o período dos anos 1980 até meados de 2014, no
qual se tornou comum, nos congressos da área, muitas conferências e comunicações orais que
abordavam o holocausto vivido na Segunda Guerra Mundial. A população vítima de genocídio fazia
parte das falas dos psicanalistas, a grande maioria brasileiros, e era citada para descrever conceitos
teóricos ou clínicos, como trauma; neuroses traumáticas; clínica do testemunho; pulsão de morte;
e compulsão à repetição, por exemplo.
Podemos pensar a ampliação da escuta e do olhar para a clínica psicanalítica com referenciais
brasileiros, ou da América do Sul, como um processo com contradições, no qual as questões

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sempre estiveram mais ou menos presentes em alguns momentos, porém, sem a devida ênfase.
Os trabalhos sobre o racismo, os presídios, os abrigos, a violência sexual contra crianças, a violência
de gênero, entre outros, e estudados a partir da realidade brasileira, com o devido destaque para a
produção de conhecimento psicanalítico que adviria dessas produções nacionais, caminhavam em
um ritmo peculiar.
Percebíamos, também, em eventos internacionais, que durante conferências de psicanalistas
brasileiros estes as faziam em língua estrangeira, mesmo com os ouvintes sendo de sua própria
nacionalidade – fato que se dava apenas por termos a presença de um palestrante estrangeiro na
mesa científica. Poderíamos pensar que existiria certo desprestígio com a língua natal de nosso
país? Em um evento, no contexto dessa época, e em uma conversa privada, escutamos o colega
Francisco Capoulade (2016) – a partir de sua trajetória na Psicanálise e escuta de interlocutores
psicanalistas para a produção do seu filme, Hestórias da Psicanálise – Leitores de Freud (2016) –,
colocar palavras para a transmissão da psicanálise produzida no Brasil, e sobre assumirmos nossa
língua: falamos brasileiro.
Enfim, a clínica psicanalítica, que é produção de saber, só se realiza se estiver compromissada
com a escuta da realidade. Logo, no Brasil, precisa estar em diálogo com a realidade brasileira –
se não for assim, ela se converte apenas em lugar de aplicação/reprodução de uma psicanálise
europeia, não faz escuta e corre o risco de ficar confinada a um referencial estrangeiro.
Nesse momento, voltamos a Lélia Gonzalez (2018) e a sua experiência com a psicanálise.
Precisamos nos atentar para nossos mecanismos de racionalização, de esquecimento e de
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recalcamento como brasileiros e enquanto psicanalistas. A autora, junto com M. D. Magno e Betty
Milan (RATTS; RIOS, 2010) – estes últimos, discípulos e analisandos de Lacan, participaram do
Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, fundado em 1975. Esses psicanalistas se voltaram para estudar
o samba, o carnaval e a umbanda, e quando perguntaram a Betty Milan se a teoria lacaniana teria
sido reinventada no Brasil, ela respondeu:
Não diria que a teoria foi reinventada, e sim que tivemos de
reinventar a prática dos analistas, a prática senso lato, para
não ficarmos marginalizados. O recurso à imprensa, no fim
da década de 1970, é um exemplo disso. Outro exemplo é o
trabalho de pesquisa dos analistas nos cultos umbandísticos
ou nas escolas de samba. Além de traduzir e ensinar Lacan,
nós nos valíamos do nosso conhecimento psicanalítico e da
nossa escuta para saber qual era a especificidade da cultura
brasileira, o que a diferenciava da cultura europeia e das
outras culturas latino-americanas (MILAN apud RATTS; RIOS,
2010, p. 62).

A partir do livro Améfrica ladina, de MD Magno (MACHADO DIAS, 1980), Lélia Gonzalez
(2018) formulou a ideia de uma América Africana ou Amefricana, baseada na concepção de que
a especificidade do Brasil era a participação africana na sua formação cultural e social; e não na
reiterada evocação a uma latinidade. A autora proporá a assimilação da cultura africana a partir da
figura da mãe preta, que realizou a função materna para as crianças brasileiras e tornou possível a
assimilação da língua, crenças e costumes, dizendo que aqui no Brasil se fala é o pretuguês. Então,
se pensamos em português, brasileiro e pretuguês, qual a nossa clínica?
Escutar populações vulneráveis e descolonizar a psicanálise se tornou uma realidade cada
vez mais presente, tanto nos territórios públicos e privados quanto nos espaços teóricos e clínicos.
Passamos a ter experiências em vários projetos de extensão universitária, com professores e
discentes exercitando uma psicanálise extramuros, diretamente em espaços públicos, e também
profissionais que passaram a exercer consultórios de rua com escuta psicanalítica gratuitamente.
As experiências nestes dispositivos psicanalíticos, com escuta psicanalítica e a práxis dos
psicanalistas na cidade, e que conta com a colaboração de professoras e professores, de discentes
de graduação e pós-graduação e profissionais, nos fornecem, também, a descrição de suas vivências
e das bases teóricas e clínicas da psicanálise nos espaços públicos.
Assim, descrevendo alguns exemplos, temos a Extensão da Residência Integrada em Saúde,

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Residência na Rua: Saúde, Cultura e Arte, da Residência Integrada em Saúde da Escola de Saúde
Pública da Universidade do Ceará (RIS-ESP/CE), na qual foram feitas abordagens noturnas junto à
população de rua no centro de Fortaleza a partir do referencial da Psicanálise (SILVA; NUNES, 2019).
Há também o trabalho de Guerra (2018) no Programa Já É de Extensão Universitária, da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com conversações psicanalíticas com jovens, e
que além de escutá-los também registra seus testemunhos por meio de quadrinhos mangá. O
projeto descreve reflexões teóricas e clínicas, nas quais a psicanalista diz ser necessário subverter
a Universidade e a Psicanálise. Segundo ela, a primeira está associada ao positivismo clássico e a
lógica binária; e a segunda, relacionada à burguesia e a uma individualização patológica e apolítica.
A autora aponta ser imprescindível uma posição ético-política de enfrentamento desses lugares
cristalizados e propõe utilizar, como base teórica para reflexões prático-clínicas, Lacan e Viveiros de
Castro (GUERRA, 2018).
Temos experiências de psicanálise na rua desenvolvidas por ações em campos de estágios
(BADIA, 2019). Esse serviço é oferecido pela rede de Assistência Social da cidade de Florianópolis
(SC) e também o trabalho desenvolvido por profissionais voluntários do coletivo brasiliense
Psicanálise na Rua (GUIMARÃES; JARDIM, 2019), com reflexões em autores como Freud, Lacan e
Adorno, por exemplo. Muitos outros trabalhos semelhantes são realizados em várias cidades do
Brasil e seria impossível citar todos eles – alguns ainda estão organizando suas produções textuais
(e, em alguns casos, fílmicas) dos registros da prática psicanalítica de populações vulneráveis e em
espaços públicos.
Nesse contexto, a proposta da Extensão Universitária, como ferramenta para a construção de
99
99A
uma psicanálise dos espaços públicos e de uma clínica ampliada, é indissociável de um compromisso
ético e político com a realidade social brasileira, porque, nessa práxis, é possível realizar a escuta
do que escapa ao laço social, ao que faz furo e ao que a política pública não dá conta. Ela é também
o espaço de uma proposta de formação acadêmica e de resistência à colonização de nossa escuta
e dos currículos acadêmicos. A partir desse ponto é preciso reinventar a prática psicanalítica, mas,
também diríamos complementando a visão de Milan, inventar novos conceitos psicanalíticos, que
são hoje imprescindíveis para abarcar os processos de subjetivação contemporâneos e a clínica do
cobre da psicanálise freudiana.

Extensão Universitária e a Escuta Psicanalítica dos Espaços Públicos:


reflexões e contribuições para a prática psicanalítica

Os projetos de Extensão desenvolvidos tanto para o CREAS quanto para o CAPS Infantil,
tiveram suas bases descritas, até o momento, com inspiração na fundamentação teórica e clínica
da Psicanálise de Françoise Dolto, especificamente no modelo da Maison Verte, da França (THIS,
2007), que é um lugar de brincar, conversar e contar histórias. Outros dispositivos com a mesma
inspiração foram desenvolvidos no Brasil, como a Casa da Árvore (MILMAN; BEZERRA JÚNIOR,
2008), no Rio de Janeiro, e a Casa dos Cata-Ventos (GAGEIRO et al., 2019), em Porto Alegre – ambos
também alicerçados em buscar soluções para o atendimento à infância vulnerabilizada.
Esses espaços partem da compreensão que o brincar é por si só terapêutico, pois por
intermédio das brincadeiras, a criança relaciona o seu ambiente social e cultural com seu mundo
interno, o que a leva a desenvolver sua criatividade; ressignificar traumas; desenvolver suas funções
simbólicas; e elaborar um projeto de vida. Nos Projetos de Extensão, focados na Psicanálise de
territórios da cidade – fora dos consultórios e dialogando com outros campos do conhecimento –
são construídos dispositivos de escuta psicanalítica nos espaços públicos.
Esse espaço possível do brincar, conversar, contar histórias ou do ateliê de contação de
histórias, teve como cerne propiciar aos pacientes ferramentas para a construção de recursos de
simbolização e elaboração das vivências traumáticas, ou mesmo no campo de fala e de brincadeiras
– sempre com o acolhimento e testemunho do outro. Jacintho, Kupfer e Vanier (2019) comentam
como o trabalho de desenvolvimento da Casa Verde auxiliou na construção de outros dispositivos
de acolhimento psicossocial na França. Eles ressaltam, entretanto, o quanto a marca de Dolto se
fez a partir de uma posição específica de escutar o que faz insistência e sem a proteção de um

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consultório – em um encontro sem garantias de um dia seguinte.
A Casa dos Cata-Ventos (GAGEIRO et al., 2015) é uma estrutura inspirada na Casa Verde
(THIS, 2007), e por isso é um local de brincar, contar histórias e conversar. O projeto é fruto de
parceria entre o Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
a Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e recebe semanalmente, para contação de
histórias e acolhimento, crianças em vulnerabilidade social, moradoras da Vila São Pedro.
Os contos passaram a ser estudados como instrumento psicoterapêutico pela psicanálise
e passaram a ser considerados mecanismos para desenvolver a resiliência (CYRULNIK, 1999),
ou mesmo encontrar a contenção da loucura. Gutfreind (2010) aponta que Michele Simonsen
destaca três abordagens, metodologias aplicadas ao conto: a clínica, dirigida ao diagnóstico e ao
tratamento psicanalítico – encontrada em Freud (1908 [1907]/1976), que se interessou sobre a
atividade imaginativa, o fantasiar e a brincadeira infantil e também a influência dos contos de fadas
sobre o desenvolvimento da doença ou sua cura; a centrada no estudo do psiquismo humano, por
intermédio de exemplos concretos de manifestações culturais, ainda sobre o olhar do autor, a partir
do estudo do folclore e dos mitos, e a observação “texto-analítica”, que foca no estudo literário dos
contos a partir de conceitos psicanalíticos.
Diversos autores defendem que o conto permite à criança elaborar seus conflitos psíquicos,
estimulando-a a se aproximar de seus afetos mais assustadores e, ao mesmo tempo, ajudando-a
a manter distância destes. Gutfreind (2010) comenta que Runberg (1993) descreveu o termo
safekeep para expressar a maneira como a ambientação vaga e completa do conteúdo dos contos
e o uso de fórmulas como “era uma vez”, propicia condições para proteger as crianças das próprias
100
00A
experiências, conflitos e sentimentos. Assim, ele funciona em duas direções na psicoterapia: a do
paciente – que pode trazê-lo como material para a sessão, como apontado por Freud e por analistas
junguianos –, ou o próprio psicoterapeuta o sugere como uma maneira de abordar os conflitos do
paciente; a outra é a criação de novas histórias durante a própria sessão ou o trabalho com contos
já existentes – neste último caso o conto inclui o uso simultâneo de outros mediadores como o
desenho ou o teatro (GUTFREIND, 2010).
Marie Bonnafé (1994) realiza um trabalho com crianças e bebês a partir dos contos, com a
utilização de livros, pautado no prazer em contar histórias às crianças, priorizando o aspecto lúdico
e o desenvolvimento da imaginação, com o efeito terapêutico como decorrente da contação. De
Conti (2004), ao explicar o trabalho da autora (BONNAFÉ, 1995), com relação a uma narrativa ser
terapêutica, enfatiza que quando uma palavra ou rememoração falta, de parte do analisando, as
representações ainda estão sem uma inscrição no psíquico e devem ser marcadas verbalmente
pelo analista de uma forma mais ampla, aberta e não interpretativa. Essa pontuação mais aberta
do analista possibilita o aparecimento de elementos variados, como os melódicos, narrativos,
imagéticos e também significantes, do lado do analisante – e que se inscrevem no laço transferencial.
Existirá um reconhecimento, na relação transferencial, dessas primeiras imagens e elementos,
como intimamente ligados ao sentido.
Pensamos que na clínica ampliada o analista realiza essas pontuações abertas, amplas e
não interpretativas, pois a intenção da livre circulação das palavras e dos afetos é acompanhada
pelo posicionamento do analista em estar no lugar de testemunha, muitas vezes de um sofrimento
indizível, e possibilitar o acolhimento e um lugar para a transmissão simbólica.
Gagnebin (2006), com seu conceito de testemunha, enfatiza a importância de se
compreender que esta não se trata daquele que viu com seus próprios olhos, mas, principalmente,
daquele que não vai embora:
[...] que consegue ouvir a narração insuportável do outro
e que aceita que suas palavras levem adiante, como num
revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou
por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica,
assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente
essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não
repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra
história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2006, p. 57).

Nos Projetos de Extensão no CREAS e no CAPSi foram utilizadas contações de histórias e

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brincadeiras livres como dispositivos clínicos para territórios da cidade.
A Casa dos Cata-Ventos (GAGEIRO et al., 2015, p. 4) tem a proposta da construção de um
espaço “[...] que promove o deslizamento da violência às palavras”, promovendo uma possibilidade
de simbolização e elaboração da violência.
A Maison Verte, adaptada para o Brasil, veio em sua primeira versão nacional como Casa
da Árvore (MILMAN; BEZERRA JÚNIOR, 2008), em meados de 2001, em um projeto de extensão
desenvolvido na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). O espaço enfrentou dificuldades
em sua construção para a realidade brasileira e no contexto das comunidades periféricas cariocas,
justamente pela proposta de ir até a população vulnerável. Faltaram financiamento e apoio público,
bem como dificuldades para encontrar um local que atendesse as demandas do projeto inspirado
no original de Dolto, além de ser percebido com descrença entre a própria comunidade psicanalítica
francesa quanto à adaptação para nossa realidade – uma vez que estes profissionais alegavam que
seria impossível trabalhar em lugares nos quais se destaca a fome e a pobreza: “por que entrar na
favela, onde a violência, segundo sua expressão, tinha torcido o pescoço das palavras” (MILMAN,
2005, p. 53),
Milman (2008, p. 4) também lembra que a influência da Maison Verte, lugar de conviver,
brincar e falar e “onde não há necessidade de falar sintomas” e nem lugar de reeducação, permitiu
a Dolto cunhar o termo, “psicanalistas da cidade”, ou “psicanalistas na cidade”, pois eles falam e
falam muito:

101
01A
Cabe a eles falar e opinar, já que estão interagindo em um
espaço social. Trata-se de um falar modesto, mas eficaz, que
atua justamente no ponto de surdez dos pais em relação a
seus filhos, e que se transforma, para a criança, num meio
de encontrar um lugar entre os humanos, um lugar próprio,
inspirado nos pais, mas ao mesmo tempo distinto do deles.
[...] cada profissional fala de si, de sua opinião, com um lugar
e uma palavra relativizados pela presença de tantos outros
que ali trabalham. A fala que circula não é definitiva nem
aprisionadora [...] (MILMAN, 2008, p. 4-5).

Dessa maneira, como recorte ilustrativo da execução de um dos nossos projetos de extensão,
descreveremos brevemente o trabalho realizado no CAPSi, onde foi formado um grupo de cinco
crianças entre oito e 11 anos de idade. Eram quatro meninos e uma menina, que participaram
de um grupo de contação de histórias com escuta psicanalítica; foram sete encontros, de duas
horas cada, realizados na sala do CAPSi; e mais duas reuniões com a equipe multidisciplinar. A
ação foi organizada e desenvolvida pela professora/coordenadora, duas estudantes de graduação
em Psicologia, um mestrando e uma profissional/psicóloga. A organização das atividades e as
supervisões semanais para discussão dos trabalhos foram feitas nas dependências da Clínica Escola
da Universidade (CPA/UNESP), e algumas vezes ocorreram nas dependências do próprio Centro.
Essa clínica ampliada possibilitou a compreensão de alguns importantes processos psíquicos
e dos sofrimentos mentais da população atendida. Ela também fomentou ideias e considerações
para a escuta e práxis de clínica ampliada no CAPSi, as quais compartilhamos com a seguinte
síntese: 1) A contação de histórias como argumento para o encontro com o outro e o Outro; o
ateliê permite lidar com a presença/ausência do outro; 2) A contação de histórias como dispositivo
desenvolvido em CAPSi precisa ter um enredo com início e fim no mesmo dia – histórias longas
devem ser evitadas; 3) Crianças com profundos sofrimentos psíquicos precisam de margens/bordas
materializadas como regras mínimas e algumas destas construídas na execução do dispositivo,
como, por exemplo, as que foram feitas pelas crianças e extensionistas do projeto: escrever o nome
e sobrenome; se alguém bater/agredir o outro ou quebrar coisas, se interrompe e finaliza o ateliê
de contos daquele dia; não falar palavrão; não pegar o que é do outro sem permissão; não destruir o
que é do outro; 4) as margens/bordas materializadas em regras e ação produzem traços de inscrição
no psíquico, realizando uma contenção da agressividade; 5) para o trabalho ser psicoterapêutico é
necessário a liberdade lúdica e discursiva com associações livres, assim, qualquer proposta fechada
de trabalho que obrigue as crianças a uma atividade forçada não permite a escuta psicanalítica e

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impede uma clínica psicanalítica ampliada, se convertendo em uma ortopedia pseudoeducativa; 6)
crianças com profundos sofrimentos psíquicos possuem dificuldades em suportar o outro, o Outro,
e este (outro) é sentido, na maioria das vezes, de forma persecutória; 7) o desafio é que as crianças
consigam permanecer em grupo, interagir e suportar o enquadre do setting até o final do ateliê;
8) Lacan (1971/2009, p. 43) dizia: “(...) Mas é curioso que os linguistas não vejam que todo uso da
linguagem, seja ele qual for, desloca-se na metáfora (...) essa linguagem-objeto é inapreensível (...)”.
Nesse bojo, a contação de histórias e o ateliê são possibilidades para o discurso da criança/paciente
se cruzar com uma cadeia significante, numa possibilidade de inscrição, e assim se constituir em
mensagem, submetida ao testemunho do Outro; 9) o ateliê como espaço de acolhimento do
sofrimento e como clínica do testemunho; 10) o ateliê como espaço possível de irrupção do desejo
inconsciente e do sujeito do inconsciente; 11) crianças com intenso sofrimento psíquico precisam
de análise individual, além da participação nos ateliês de contação de histórias.

Considerações Finais

Diante das reflexões sobre uma clínica com escuta psicanalítica nos espaços públicos
exercitada na Extensão Universitária, continua a pergunta: como a Psicanálise, em interface com a
Saúde Mental e a Assistência Social e realizada em territórios de políticas públicas (CAPSi e CREAS),
pode ter propostas de atenção à infância e juventude e também ser um dispositivo criativo e efetivo
102
02A
do ponto de vista clínico e político?
Percebemos o limite da nossa ação, em virtude da complexidade dos fenômenos da
realidade social vividos pelas crianças e suas famílias (sociais, econômicos, políticos e culturais), que
são problemas de ordem estrutural e que precisam encontrar respostas na ação efetiva do Estado
em atender direitos constitucionais indispensáveis para a garantia da igualdade e da dignidade
humana.
Um dos riscos da psicanálise em extensão, e no exercício de uma clínica ampliada, é
de psicologizar ou, como colocou a equipe da Casa dos Cata-ventos “de se incorporar a um
discurso competente, técnico, questões e problemas que são de ordem existencial, política ou
socioeconômica” (GAGEIRO et al., 2015).
Pensamos que a aposta é propiciar um espaço de acolhimento para a circulação das palavras
e brincadeiras, tendo o outro como testemunho que valida à história e o sentir da criança/sujeito.
Se existe um efeito clínico e político na ação, o resultado aparece apenas a posteriori. Esta clínica
ampliada e psicanalítica se faz pela tentativa de abrir um campo para a escuta do inconsciente
e para as palavras circularem livremente, e não pelo objetivo estrito de gerar um efeito clínico e
político. O psicanalista, com sua escuta e ação nos espaços públicos, dá visibilidade a desigualdade
da experiência da violência nas diferentes classes sociais e precisa resgatar para a sua prática a
apropriação do conceito de interseccionalidade (CRENSHAW, 2002). Ou seja, todos nós somos
afetados pelas experiências de forma desigual e de acordo com nossa classe, gênero, grupo étnico,
orientação sexual, religião, idade e outros eixos de identidade que interagem em níveis múltiplos e
muitas vezes simultâneos. A interseccionalidade que:
[...] trata especificamente da forma pela qual o racismo,
o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam
as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e
outras. [...] trata da forma como ações e políticas específicas
geram opressões que fluem ao longo de tais eixos [...]
(CRENSHAW, 2002, p. 177).

A partir de uma reflexão sobre as propostas de Miriam Debieux Rosa (2016) e de Jorge
Broide (2019), pensamos que a clínica psicanalítica ampliada mantém vínculo com o desamparo
discursivo desses sujeitos invisibilizados – que são seu público –, e se depara cotidianamente com
a problemática do sujeito excluído do modelo neoliberal. Consideramos que esta é uma clínica
marcada pela violência da exclusão e por uma transferência impactada pela fragilidade e dificuldade

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na construção de vínculos nos territórios da cidade. Nesse contexto, projetos de extensão
universitária são práticas que se configuram como verdadeiros laboratórios para o exercício de uma
escuta psicanalítica nos e dos espaços públicos. Temos a possibilidade de descolonizar a psicanálise
para que esta seja feita de acordo com o espírito de sua época e, assim, se desenvolver e propiciar
as contribuições teóricas e técnicas necessárias para a invenção de uma clínica brasileira.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

105
05A
O CASO JONATAN*A PRÁTICA DIAGNÓSTICA
E O INVESTIMENTO PÚBLICO NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

THE JONATAN CASE AND THE PUBLIC INVESTMENT


IN THE FIELD OF MENTAL HEALTH.

Sonia Alberti 1
Gilliane Rodrigues 2
Adriana Bastos 3

Resumo: Concomitante a articularmos assistência no hospital, a importância de debater os diagnósticos e a formação acadêmica
com a clínica, tecemos algumas considerações sobre dois temas que se revelam extremamente importantes no que tange à
condução do tratamento de crianças e adolescentes. Aparentemente dizendo respeito a problemáticas diversas, os temas na
realidade convergem no que tange à direção do tratamento em saúde mental quando trabalhados pela psicanálise: de um lado,
as formas discursivas atuais e suas consequências para o estabelecimento do diagnóstico e do tratamento; de outro, o incentivo
financeiro aos equipamentos de saúde mental que depende dos discursos que lastreiam as políticas públicas voltadas para a
saúde. Fato é que, na última década, todo o campo da saúde mental no país sofreu importantes revertérios. O caso Jonatan, de
que trataremos, nos serve aqui de exemplo da situação que tanto trabalhadores quanto pacientes e seus familiares vêm vivendo.

Palavras-chave: Infância. Diagnóstico Psiquiátrico. Políticas Públicas. Psicanálise.

Abstract: Concomitantly with articulating hospital care, the importance of discussing diagnoses and academic training, we
consider two critical topics concerning conducting the treatment of children and adolescents. Apparently concerning different
issues, the themes actually converge regarding the direction of mental health treatment referred to psychoanalysis: on the one
hand, the current discursive forms and their consequences for the establishment of diagnosis and treatment; on the other hand,
the financial incentive for mental health equipment, which depends on the discourses that support public policies aimed at
health. The Jonatan case will serve as a guiding thread. As a matter of fact, in the last decade, the entire field of mental health in
the country has suffered important reversals. The case Jonatan that we will deal with here serves as an example of the situation
that both mental health workers as well as patients and their families have been experiencing.

Keywords: Childhood. Psychiatric Diagnosis. Public Policy. Psychoanalysis.

*Nome fictício.

1 Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pesquisadora 1B do CNPq. Membro do GT “Psicanálise, política e clínica” da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia. Membro do Colegiado do Programa de Pós-graduação em Psicanálise (Mestrado
e Doutorado) e do Colegiado da Residência em Psicologia Clínica Institucional, ambos da UERJ. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano (A.M.E.). Autora e organizadora de vários livros e de artigos. Lattes: https://lattes.cnpq.br/4603633364355463. ORCID:https://
orcid.org/0000-0002-5120-5247

2 Psicóloga formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e residente (R1) de psicologia no Programa de Residência Multiprofissional em
Oncologia do Hospital Central do Exército. Lattes:http://lattes.cnpq.br/9348082164855955. ORCID: https://orcid.org/0009-0002-4125-1490

3 Pós-doutoranda em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pelo do Programa de Pós-graduação em Psicanálise
da UERJ. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (UERJ). Especialista em Psicologia Clínica Institucional(residência) pela UERJ. Especialista em
Psicologia Clínica pela PUC-RJ. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Atuou como Psicóloga da Secretaria Municipal
de Saúde de São Gonçalo - Saúde Mental - Serviço de atendimento a usuários de álcool e drogas de 2005 à 2018. Psicóloga concursada HUPE/
UERJ, na Unidade Docente de Assistência de Psiquiatria - UDA/HUPE. Professora convidada do Curso de Especialização em Psicologia Hospitalar
HUCFF/UFRJ. Professora convidada na Pós-graduação em Psicanálise: teoria e práxis da Universidade de Vassouras. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/4099603447830937. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3158-2635?lang=pt
Introdução

Desenvolvemos a pesquisa no contexto de um estágio em Instituto de Psicologia, intitulado


“Psicanálise com crianças e adolescentes”, em Ambulatório de Psiquiatria de hospital universitário
do estado. Faz-se necessário explicitar o locus onde se desenvolveu a pesquisa, pois justifica sua
dupla vertente assistencial e acadêmica. O tema a ser discutido nesse trabalho implica, além da
experiência da prática clínica supervisionada da estagiária, a parceria com a psicóloga do hospital.
Também é mister situar a época: tanto a supervisora de estágio do Instituto de Psicologia quanto a
psicóloga do hospital, ambas psicanalistas, só entraram no caso entre 2017 e 2018, respectivamente,
momento em que a situação econômica do estado tinha se tornado insustentável – no ano anterior
chegara a ser decretada calamidade pública (BOECKEL et al., 2016). Tanto o hospital universitário
quanto a própria universidade sofreram muito com a falta de investimentos causados por essa
crise, com inúmeras consequências, inclusive a falta de pagamento dos trabalhadores. Isto acabou
levando a aposentadorias pedidas por aqueles que já possuíam tempo de serviço suficiente, e sua
concomitante não reposição no quadro de funcionários. O setor de psiquiatria só voltou a receber
novos psiquiatras com formação especializada no tratamento de crianças e adolescentes em
2021, cinco anos depois, quando pôde finalmente ser retomado o trabalho de articulação entre a
assistência no hospital e a formação acadêmica.
Fato é que, na última década, todo o campo da saúde mental no país sofreu importantes
revertérios. O caso Jonatan, de que trataremos, nos serve aqui de exemplo da situação que tanto
trabalhadores quanto pacientes e familiares vêm vivendo. Pensamos poder sinalizar com ele
algumas das questões que precisamos tecer sobre as dificuldades encontradas por conta da falta
de investimento do Estado e suas consequências para a clínica; o tratamento de uma criança no
contexto dos discursos que fomentam a prática da medicina, mais especificamente da psiquiatria, e
suas consequências para o estabelecimento do diagnóstico e do tratamento do sofrimento psíquico;
a direção do tratamento sustentada pelo instrumental teórico da psicanálise e seu correspondente
manejo clínico; as políticas públicas voltadas para a saúde, que se entrelaçam aos interesses
econômicos nelas contidos.
Com as contestações surgidas na década de 1970 quanto ao modelo manicomial de
tratamento (COUTO; ALBERTI, 2008), a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, os
importantes movimentos que resultaram na última Reforma Psiquiátrica brasileira, e a luta por
novos paradigmas que orientassem a saúde mental, promulgou-se, em 2001, a Lei nº 10.216/2001,
a qual dispõe sobre a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos e sobre a criação de recursos

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extra-hospitalares. Dá-se início à construção de uma rede substitutiva de cuidado, visando a
superação do modelo asilar e é nesse contexto que os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são
instituídos. Segundo Elia (2005), o CAPS surge nesse cenário como uma unidade de base da Reforma
Psiquiátrica brasileira, tornando-se a referência primordial dos serviços substitutivos, ordenando a
rede. Ele tem uma perspectiva cidadã, inclusiva, reabilitadora e social, contrapondo-se a uma clínica
baseada exclusivamente na medicalização e na patologização.
Neste ano de 2022, segundo dados da Prefeitura do Rio de Janeiro (RIO, s/d), local em que
está inserida a pesquisa, conta-se com 18 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), 6 Centros de
Atenção Psicossocial Álcool Outras Drogas (CAPSad) e 8 Centros de Atenção Psicossocial Infantil
(CAPSi), totalizando 32 unidades especializadas próprias (Secretaria Municipal de Saúde). Outras
3 unidades das redes estadual e federal completam a rede de 35 CAPS dentro do município. No
entanto, a Portaria nº 336//GM/MS de 19 de fevereiro de 2002, há vinte anos, estabeleceu que
deveria haver um CAPSi para cada 200.000 habitantes e, segundo dados do último censo do IBGE
em 2010, a estimativa da população do município do Rio de Janeiro era superior a 6 milhões.
De acordo com esta Portaria, deveríamos contar com 30 CAPSi, quando efetivamente contamos
com apenas 8! O que se revela a partir desses dados é a impossibilidade de atender a demanda
da população que precisa desse tipo de serviço, o que levou a outros tipos de investimentos e
políticas públicas, contrários às políticas da própria Reforma Psiquiátrica. Exemplificamos com os
atuais investimentos em comunidades terapêuticas para usuários de drogas, no lugar das Unidades
de Acolhimento (UA), que atualmente ficaram reduzidas a duas, enquanto que das previstas UA
Infanto-Juvenis não há nenhuma (idem). Eis o que vem sendo denunciado por vários autores (p. ex.: 107
07A
ALMEIDA, 2019; ARAUJO, 2022; BASTOS; ALBERTI, 2019; MENEZES et al., 2022).

Jonatan e sua trajetória clínico-pedagógica

Jonatan nasceu em 2007 e tem hoje 15 anos de idade. Desde seu segundo ano de vida era
acompanhado pela pediatria do hospital universitário e, a partir de encaminhamentos feitos nela,
foi sendo acompanhado também pelas neuropediatria, fonoaudiologia, genética e psicologia do
ambulatório de pediatria. Aos 5 anos, recebeu um quinto encaminhamento, desta feita para o setor
de psiquiatria. Sempre com a mesma queixa principal – conforme o diagnóstico psiquiátrico, de
transtornos do desenvolvimento –, a qual sustentou uma miríade de diagnósticos, em que nunca
faltaram as referências à agitação e à agressividade.
Na época em que foi encaminhado à psiquiatria do hospital, inseria-se nela um Serviço de
Psiquiatria da Infância e Adolescência (SPIA), que acolheu o caso em 2012, para um trabalho em
oficinas, atendimento psiquiátrico, assistência aos familiares em função da construção de um projeto
terapêutico orientado para a particularidade do caso. Durante os quatro anos em que permaneceu
ali atendido, foi possível um trabalho cujos frutos se mostraram inclusive nos relatórios que a
escola encaminhava. Mas em 2017, o SPIA fechou as portas, consequência da insustentabilidade
da situação do Estado.
Tratando-se de um hospital universitário, a troca de médico ocorre com o final do tempo de
residência, por isso cada vez que um novo médico passa a ser o assistente do caso há, na maioria
das vezes, uma nova anamnese. O médico que o atendeu até abril de 2019 terminou a residência,
deixando o retorno marcado para junho de 2019, época em que seria encaminhado a um novo
médico. Algo aconteceu que Jonatan não veio a essa consulta e essa passagem não se fez.
Quando a estagiária de psicologia assumiu o caso em 2019, a única interlocução com o
Setor de Psiquiatria se dava com a psicóloga que ingressara por concurso no hospital, em 2018.
Ocorre que não havia mais staff-médico da psiquiatria com especialização no atendimento à
infância e adolescência, e os atendimentos de crianças e adolescentes ficaram muito prejudicados,
submetidos ao mesmo funcionamento que aquele dos adultos.
Nas reuniões clínicas, a passagem a outro residente ou especializando é feita durante a
supervisão médica. A psicóloga concursada, integrante da equipe multidisciplinar, pôde acompanhar
o momento da passagem para um novo médico residente em 2019, depois que o residente anterior
se formou. Ela esteve presente quando Jonatan veio acompanhado de seu pai. Este, ao mesmo
tempo em que dizia do comportamento agressivo do menino e das demandas da escola, também

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relatava o comportamento agressivo para com o menino, segundo ele, principalmente por parte
da mãe. Jonatan, por sua vez, dizia estar passando mal com o remédio, que ficava enjoado e sem
fome.
Houve muita resistência em manter Jonatan na instituição por causa da falta de um
psiquiatra infantil. Entretanto, diante do fato de ele ter sido acompanhado por tanto tempo nessa
instituição, não apenas na psiquiatria, mas nas outras especialidades clínicas; diante da retirada
de investimentos em saúde básica e em saúde mental que fazia com que vários equipamentos
estivessem com falta de funcionários e sem psiquiatras e psicólogas, e diante do fato de uma
então médica-especializanda na instituição ter se interessado em dar continuidade ao tratamento
psiquiátrico, optou-se por manter Jonatan na instituição. Esta médica levou em conta a queixa de
Jonatan de que “a Ritalina dá enjoo e tira a fome”, mas, ao mesmo tempo, escutou ele próprio
observar que precisa do remédio para ter fome e ficar mais calmo.
A médica em questão avaliou a delicadeza do caso, ela afirmava perceber dois discursos: o do
próprio paciente e o discurso de seus pais. Tal divisão e, provavelmente, o fato de mãe e avó fazerem
acompanhamento psiquiátrico, a fez concluir que Jonatan seria uma criança normal em uma casa
com muitos conflitos. Em supervisão da psicologia, percebeu-se a sensibilidade da especializanda,
mas ao mesmo tempo colocou-se em questão o fato de esta médica ter passado a atribuir somente
aos pais todas as questões apresentadas pelo menino. Se, em consequência, a especializanda
questionava os repetidos diagnósticos de hiperatividade, também nas supervisões do estágio em
psicologia percebêramos que não estávamos tratando de uma simples hiperatividade, mas de uma
dificuldade de Jonatan situar-se nos laços sociais por causa de sua psicose. No contexto das querelas
108
08A
diagnósticas em que vivemos, Jonatan era diagnosticado com o transtorno da hiperatividade, o que
a especializanda percebia ser uma falácia. No entanto, ao interpretar a verdade que Jonatan lhe
contava como factual, e não como a verdade psíquica dele, advinda de sua forma de estruturar
a realidade e de sua resposta diante do que lhe ocorria, não lhe foi possível ver que muitas das
histórias que ele lhe contava poderiam ser tentativas de barrar o que era invasivo para ele na
relação com o Outro1 e, portanto, com aqueles que o encarnavam, no caso, seus familiares, colegas
de escola e professores.
A relação familiar era efetivamente bastante conturbada, é preciso dizer. Isso chegou a
se mostrar no próprio ambulatório, quando foi necessário intervir diante de uma agressão física
feita por sua mãe na recepção da instituição. Como já observado, tanto a mãe quanto a avó eram
pacientes psiquiátricas, mas isso não reduz Jonatan a mero espelho delas, era necessário supor ali
um sujeito com sua própria estrutura psíquica, tentando se haver em um contexto extremamente
conturbado. Havia um sofrimento em Jonatan, por mais problemáticos que fossem, efetivamente,
seus familiares. Em particular a mãe, que demandava constantemente um aumento das
medicações porque seu filho “não parava quieto”. O que originalmente influenciou sobremaneira a
abordagem do caso pela médica-especializanda foi sua observação de que a criança estava sendo
muito medicada com psicofármacos. Em verdade, ela entendera que seria necessário diminuir a
medicação para que se pudesse fazer um diagnóstico mais fidedigno.
Ao longo dos meses, a diferença de discursos foi se intensificando e a médica-especializanda
se viu numa queda de braços com os pais. Sem com eles saber lidar, em função de sua inexperiência,
decidiu sair do caso, deixando o paciente mais uma vez desamparado do acompanhamento
psiquiátrico, o que levou a mãe a voltar a repetir as medicações prescritas desde sempre.
Então uma outra psiquiatra da Unidade aceitou conhecer o caso. No entanto, só pôde
acompanhar Jonatan por pouco tempo. Em oposição à avaliação da médica precedente, esta
identificou uma importante gravidade no sofrimento psíquico do próprio paciente, o que, segundo
ela, exigia um encaminhamento para um CAPSi, pois afirmava ser inadequada a permanência de
um caso tão delicado no serviço sem supervisão apropriada. Um ano depois de a primeira médica
ter anunciado que tiraria toda medicação, Jonatan finalmente foi encaminhado a um CAPSi, no
qual permanece em atendimento psiquiátrico até hoje, um ano depois do encaminhamento. Nas
conversas possíveis de sustentar com o CAPSi, eles alegaram muitas dificuldades em relação ao
tratamento individual por conta do excesso de pacientes e número reduzido de funcionários.
Finalmente, com o término do curso da estagiária de psicologia, que se formou, ficou acertado
que o melhor lugar para o acompanhamento de Jonatan seria mesmo o CAPSi, e o psicólogo dessa

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instituição nos disse que o atenderia quinzenalmente.
A hipótese diagnóstica e direção de tratamento: contribuições da psicanálise.
Desde as primeiras entrevistas com a estagiária de psicologia, Jonatan se mostrou desconfiado.
Afirmava já ter passado por várias psicólogas e não entendia o motivo de tanto “quererem saber
de sua vida” e de precisarem falar com seus pais sobre ele. Dizia que, se o atendimento era para
ele, era com ele que deviam tratar. Entre desconfiança e assunção de suas próprias questões, desde
cedo Jonatan demonstrou uma posição resistente ao tratamento, que sempre implicou um manejo
difícil e desafiador quanto à tarefa de não apenas escutá-lo, mas, sobretudo, de fazê-lo falar.
Cabe dizer que a resistência não estava posta somente do lado de Jonatan. Como
mencionado acima, sua trajetória não fora simples: Por um lado, havia a resistência familiar,
sobretudo da mãe de Jonatan, que podia não trazê-lo ao tratamento, ou muitas vezes conseguia
medicações repetindo receitas psiquiátricas anteriores para deixar seu filho mais apático, tendo em
vista ela frequentemente não suportar as manifestações mais agressivas do filho. Por outro lado,
havia as trocas de serviços, médicos e psicólogos, devido ao fato de estudantes ou residentes terem
um período de prática institucional limitado pelos respectivos cursos, além das consequências
mencionadas decorrentes da situação geral do Estado. A gravidade e a complexidade do caso
demandariam um acolhimento e uma supervisão muito mais cuidadosos e um staff de referência,

1 Conceito psicanalítico introduzido por Jacques Lacan que engloba a alteridade de um sujeito. O Outro o pré-
existe e o determina simbolicamente. No caso da neurose, conforme a teoria, ele é barrado, em se tratando de
psicose, o Outro é sem barra, o que impede ao sujeito de experimentar uma separação dele. No início da vida, o
Outro é encarnado por aqueles que acolhem a criança e lhe transmitem a linguagem, a cultura, o desejo.
109
09A
o que, depois do fechamento do SPIA, não mais ocorreu. Levantamos a hipótese de que isso acabou
por promover uma resistência da própria instituição que, apesar de manter os atendimentos, pelos
motivos já citados acima, o fazia com desconforto, por não haver um profissional especializado
no atendimento a crianças e adolescentes, e a demora em se cumprir a promessa de que eles
chegariam e que o SPIA seria retomado, o que acabou por gerar uma descrença.
Antes da pandemia de Covid-19, os atendimentos com a estagiária em psicologia eram
realizados em uma sala do ambulatório da psiquiatria destinada ao público infanto-juvenil e por isso
contava com diversos jogos, instrumentalizando o trabalho terapêutico com diferentes recursos
do jogar. De fato, foi naquele contexto de jogo, especificamente a partir do futebol de botão,
que Jonatan pôde começar a tratar de questões suas e não das questões de seus pais. Não sem
abandonar a desconfiança, mas abrindo-se um pouco mais para o estabelecimento de um vínculo.
A interação no futebol de botão permitiu a Jonatan identificar suas sessões não mais tanto como
um “os psicólogos querem saber de minha vida”, e sim, um lugar em que dois jogadores disputam
com as mesmas peças um jogo. Talvez o futebol de botão tenha permitido a Jonatan desidentificar
sua terapeuta no lugar de um Outro onisciente e querendo todo saber para si, e isso permitiu com
que trouxesse um discurso próprio, com novidades a cada semana.
Não foi sem percalços que este caminho se deu. A posição desconfiada de Jonatan gerava
atitudes difíceis de contornar. Desde o primeiro atendimento, quando entendia que lhe eram
dirigidas perguntas em demasia, bloqueava a psicóloga no celular. Ao longo de todos os meses
iniciais do atendimento, ainda antes da pandemia, em que sempre foi tomado o cuidado de
confirmar as sessões seguintes por WhatsApp, frequentemente Jonatan bloqueava o celular do
pai através do qual lhe eram enviadas tais mensagens de confirmação. Isso às vezes impedia o
contato por várias semanas. Somente no final do atendimento de Jonatan conosco, quase três anos
depois, ele nos esclareceu: “lembra que já no primeiro atendimento eu te bloqueei? É porque você
perguntava muito, tanto a mim quanto a meu pai”.
Reconhecemos a importância de tais atitudes ao pensar nelas como tentativas de barrar o
Outro. Lacan, ao analisar o caso Schreber escrito por Freud (2010), se utiliza de um termo jurídico,
foraclusão – a tradução que Lacan faz do termo freudiano Verwerfung normalmente traduzido por
rejeição –, para conceituar o mecanismo específico e estrutural da psicose (LACAN, 1955-1956/2008).
Trata-se da não inscrição do Nome-do-Pai no simbólico, cuja inclusão permitiria o surgimento da
falta no campo do Outro, castrando-o, barrando-o. A consequência da ausência dessa operação,
da inscrição da falta no Outro, para o psicótico, é a experimentação de um Outro avassalador,
não barrado, diante do qual o sujeito não tem como se proteger e que se presentifica de diversas

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formas na relação do sujeito com o simbólico, assim como, em alguns casos, nas alucinações e nos
delírios. Bloquear a psicóloga foi o recurso que, desde cedo, Jonatan encontrou por supor que a sua
“psicóloga” queria “todo saber para si”. O trabalho clínico seguiu a direção de tentar criar, semana
após semana, condições para que Jonatan pudesse encontrar um espaço confortável a fim de se
dizer ali, não no sentido de preencher o interlocutor de um saber sobre ele, ao contrário, poder se
escutar, através da presença do interlocutor. Essa presença e lugar de endereçamento trouxe, ao
mesmo tempo, a possibilidade de ele se instrumentalizar com formas de se defender do que vinha
do seu Outro não barrado, muitas vezes de forma invasiva. Afinal, como observa Guerra (2017, p.
47), todo sujeito psicótico precisa realizar uma “operação de reparação, qual seja, a reparação da
ausência do Nome-do-Pai”, para construir sua própria solução, seja na arte ou no delírio, bem como
em outras formas. Levantamos a hipótese de que Jonatan começava a construí-lo através de sua
identificação com um campeão de box, invencível.
Se um dos diagnósticos dados a Jonatan dizia de um menino atrasado em relação ao que
se esperava em sua idade, nós nos deparamos com um pré-adolescente inteligente, que com
frequência utilizava a tecnologia para tentar impor uma barra no que para ele era excessivo.
Nos atendimentos, oferecíamos nossa escuta e o convidávamos para jogar futebol de botão
e, apesar de nem sempre recebermos uma resposta positiva, de que ele gostaria de jogar, aos
poucos ele pôde começar a expressar suas ideias e preferências, de maneira que, após um tempo
de persistência, em algumas sessões Jonatan já, ao chegar, aceitava nosso convite e então escolhia
seu time, montava a mesa de futebol e iniciava a partida.
Jonatan nunca baixou a guarda. Enquanto jogávamos, mantinha-se alerta para o caso de
110
10A
fazermos muitas perguntas, e se recusava a responder “sobre minha vida”. Não queria falar sobre
seus dias, seus passatempos, seus amigos, sua escola, sua relação com os pais... Começou a falar
bastante, no entanto, sobre sua “competição no boxe”, esporte que, segundo ele, praticava todos
os dias.
Jonatan, é preciso dizer, nos chegou aos 12 anos, franzino, e permaneceu assim durante
os quase três anos em que pudemos acompanhá-lo. Talvez por isso, construiu essa estória de que
praticava boxe diariamente. Não poucas vezes, “precisara treinar desde as primeiras horas do dia” e
por isso estaria muito cansado para comparecer às sessões. Às vezes, as “competições” aconteciam
justamente no horário que havíamos combinado uma sessão semanas antes, às vezes ele dizia
que precisava sair mais cedo para não se atrasar para uma “competição”. No ringue, dizia, valia
tudo: seus oponentes levavam martelos, cintos, foices, pás e eram homens altos e fortes. Apesar
de sofrer bastante durante a “competição”, também conseguia se sobressair e, no final, era sempre
o vencedor.
É interessante destacar que desde o início buscamos desenvolver um vínculo que priorizasse
a construção de uma transferência que viabilizasse o trabalho, então buscamos ocupar ali um
lugar de testemunha, seguindo o caminho do tratamento a partir do que o próprio Jonatan nos
apresentava, sempre reforçando que naquele espaço ele podia falar do que quisesse, sem que
fosse julgado por isso. Essa postura clínica é conceituada por Lacan como sendo a de secretariar o
alienado (Lacan, 2008). Se a mirabolante estória de suas competições de boxe pôde ser escutada
nesse sentido, por outro lado nos perguntávamos que verdade havia nessa mirabolante estória.
Levantamos a hipótese de que construir uma realidade na qual o nosso franzino paciente vencia
gigantes que lutavam deslealmente, respondia ao que Freud observou já em 1924 (FREUD, 2011),
que, na psicose, o sujeito, quando se depara com uma realidade muito ameaçadora, constrói outra,
em seu lugar: no caso, um Jonatan capaz de vencer todos aqueles homens altos e fortes.
Com a pandemia de Covid-19, diante da impossibilidade de encontros presenciais, as
sessões precisaram sofrer adequações. Mantivemo-nos disponíveis on-line passando a realizar o
atendimento por chamada de vídeo. O celular, então, passara a ser nosso único meio de comunicação
e possibilidade de sessão. As sessões seguiram sendo marcadas semanalmente apesar de Jonatan
não ser assíduo. Não dava notícias às vezes por semanas, nos deixando sem saber o que acontecera
e não poucas vezes se atrasava dizendo que se esquecera do horário marcado. A sustentação de um
atendimento que precisou ser adaptado não foi simples. Jonatan ligava em horários que não haviam
sido combinados, ora cedo demais, ora depois do horário acertado, com frequência desligava o
microfone e a câmera do celular não respondendo a qualquer tentativa de comunicação e algumas

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vezes tentava incluir contatos próprios, salvos no celular dele, convidando outros a participarem da
chamada de vídeo. Quando perguntado sobre quem eram esses participantes, apenas os designava
como amigos, jamais contando o motivo de querer incluir outras pessoas na chamada. Mais uma
vez, nos mantinha sem saber, no não saber, em mais uma de suas tentativas de fazer valer uma falta
no Outro.
Os atendimentos on-line com Jonatan eram sempre diferentes: não foram poucas as vezes
em que ele nos ligou enquanto soltava pipa no terraço de sua casa ou enquanto jogava videogame
no seu quarto, ou ainda enquanto jogava um jogo on-line no próprio celular. Durante muito tempo
se ocupou em falar sobre seus jogos preferidos e de descrever ações de seu personagem na partida,
nos contava de suas missões nos jogos e do que precisava fazer para vencer as partidas.
É importante ressaltar que, mesmo quando falava sobre seus jogos preferidos, Jonatan
não baixava a guarda, de modo que muitas vezes dizia que já havia falado demais e interrompia a
ligação repentinamente. Também se incomodava quando perguntávamos o que era determinado
aspecto do jogo, e paradoxalmente se exaltava quando percebia que, como dizia, “não sabíamos
de nada” e por isso ele precisava ficar explicando o tempo inteiro. Paradoxo na medida em que,
por um lado, sempre procurava nos manter no não saber, mas, por outro lado, tinha a expectativa
de que soubéssemos. Nos momentos em que se exaltava diante da nossa ignorância, tomávamos
como direção clínica apenas explicar que o jogo não era mesmo de nosso conhecimento e que,
caso ele não nos dissesse como jogar, não conseguiríamos fazê-lo. Com isso, sempre que possível,
buscávamos mostrar nossas limitações, buscávamos mostrar um Outro furado, o que, de tanto ser
mostrado, permitiu a Jonatan manter-se conectado, mesmo durante todo o período da pandemia,
111
11A
mesmo com os intervalos acima citados durante os quais não comparecia, pois somente assim pôde
constatar que, de alguma forma, não nos colocávamos no lugar de um Outro que lhe impusesse uma
orientação a priori, que respeitávamos seu tempo, e que não invadiríamos seu espaço. Somente
estávamos ali para o caso de ele querer conversar. Jonatan, digamos, suportou uma continuidade
do atendimento quando nós suportamos a posição de não saber para ele, o que tanto reclamava
quando, por exemplo, se irritava com nossas perguntas que o levavam a crer que nós queríamos
saber tudo. Suportar não saber permitiu, ao mesmo tempo, garantir a transferência que terminou
por mobilizar também a equipe médica a encontrar um CAPSi para Jonatan. Hoje ele tem um lugar
na Saúde Mental e sabe que, quando quiser, pode entrar em contato conosco.

Os transtornos de Jonatan e algumas anotações de seu prontuário

Quisemos iniciar contando-lhes de nosso trabalho com Jonatan, quisemos falar de Jonatan
pois entendemos que dar lugar ao sujeito é nossa função nas instituições em que trabalhamos,
quando estamos sustentados na psicanálise. Ela se contrapõe tanto à falta de investimentos na
sustentação do que promovia a Reforma Psiquiátrica promovida no Brasil nos anos que inauguravam
o século XXI, quanto se opõe ao furor taxionômico com o qual tantas vezes nos deparamos no
exercício de nossa prática. Quisemos iniciar falando de Jonatan e, portanto, não de seus diagnósticos.
Mas não podemos não falar de seus diagnósticos, pois, se queremos testemunhar a importância
de dar lugar ao sujeito que é o paciente que nos é encaminhado no hospital, não podemos evitar
de denunciar essa prática que está longe de acabar, de classificações conformes a modismos e
manuais, que por um lado excluem o sujeito e, por outro, acobertam as falhas tanto na formação
da prática clínica quanto aquelas dos investimentos do Estado a que já nos referimos. Passemos,
pois, aos diagnósticos de Jonatan.
No mesmo ano em que iniciou o tratamento no ambulatório de psiquiatria quando tinha
5 anos, em 2012, a pediatria registrava no prontuário: “Menor com quadro de agressividade
e agitação intensa (CID-F99)”2, ou seja, “Transtorno mental, sem outra especificação (SOE)”,
referência ao texto da OMS (1993, p. 283). Da anamnese de 2013 na Psiquiatria, constam as
hipóteses diagnósticas dadas pela neurologia infantil e pela pediatria, respectivamente “retardo
mental leve com agitação” e F84, “Transtornos invasivos do desenvolvimento”, referência ao texto
da OMS (1993, p. 246). No laudo da psiquiatra daquele mesmo ano, o diagnóstico baseado no
CID-10 é F-70, isto é, “Retardo mental leve” (OMS, 1993, p. 221). Menciona-se ainda que, perante
a palavra “não”, ficava “muito agitado, mordendo e batendo a cabeça na parede” e, talvez por isso,

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para a neurologia infantil em 2016, “o paciente com transtorno global do desenvolvimento evoluiu
com retardo mental e agitação psicomotora, CID: F71.1”, o retardo sendo então considerado como
“moderado”. Esse diagnóstico se manteve nos laudos de 2017 e 2018, e é interessante notar que
já não se restringe à neurologia infantil, a psiquiatria assumiu o mesmo diagnóstico e acrescenta
no Prontuário, agora já sem interrogação: “F.90, Transtorno hipercinético”, diagnóstico que foi
mantido até 2019. Da anamnese feita em 2019, poucas semanas antes de começarmos a atendê-lo,
consta o seguinte: TOD+TDAH (Transtorno Opositivo Desafiador + Transtorno de Déficit de Atenção
e Hiperatividade). Ora, foi justamente em 2017 que Jonatan já não tinha mais um atendimento
psiquiátrico especializado, devido ao fechamento do SPIA em decorrência da situação econômica
do Estado.
Quando Jonatan frequentava o SPIA, as anotações de prontuário privilegiavam as situações
vividas pelo paciente, sua família e as notícias de sua escola, os diagnósticos classificatórios, mais
abrangentes do que os que vinham da pediatria, tinham um caráter interrogativo, colocando em
relevo que havia problemas no desenvolvimento de Jonatan que cursavam com a agitação e a
agressividade. Observamos também o cuidado com o qual o SPIA anotava no prontuário as grandes
contribuições que a escola enviava ao ansiar por um atendimento do aluno.
Em um dos primeiros registros feitos no serviço de psiquiatria por uma psicóloga que ali então
atuava – com quem Jonatan não ficou em atendimento uma vez que fazia tratamento psicológico
na pediatria –, ela refere a seguinte origem do encaminhamento feito pela neuropediatria: [o

2 Todas as expressões entre aspas foram retiradas do Prontuário de Jonatan.


112
12A
paciente apresenta] “frequentes episódios de agressividade em casa e na escola, hiperatividade,
distúrbios do comportamento, se autoagride e agride os professores e colegas da escola, [...] mãe
e avó”. No pedido de parecer feito à psiquiatria consta, segundo esse registro, um “atraso global
do desenvolvimento neuropsicomotor e distúrbio de comportamento, com episódios diários de
agressividade relatados por [creche] e familiares”. A psicóloga da creche solicitara “urgência de
providências”, inicialmente à mãe, de acordo com quem “A professora ameaça expulsá-lo ou levar
o caso ao juizado de menores”.
Um ano e meio após o início de seu tratamento no SPIA, em 2014, consta uma nova
anamnese, nela há o relato de que Jonatan aos nove meses de idade já “manifestava” agressividade
e “chorava muito”. A idade de quatro anos é dita como um momento de piora na agressividade,
“mordia os colegas” e “chutava a professora”. Mesmo com o uso de medicamentos – começou
o uso da Risperidona com um ano e seis meses (!) –, o relato é de que “ele não melhorava com
a medicação e precisou usar vários remédios”. Aos cinco anos teria sido transferido para uma
classe especial devido a grandes conflitos com os colegas, a mãe refere que ele tentava falar e não
conseguia, e que foi apenas então que aprendeu seu nome.
Além de vários relatórios dessa escola, o prontuário também reproduz aqueles anteriores,
da creche, na qual entrara em 2008, aos nove meses. Após um pouco mais de um ano de avaliação,
as educadoras relatam que, “Quando chegou à creche, já sentava, mas demorou um pouco mais
do que os outros para andar com independência e equilíbrio, pois caía com muita frequência,
chegando até a quebrar os dentinhos. [...] Ainda não pronuncia nenhuma palavra, apenas grita,
é compulsivo por comida, [que] chega a tentar tirar da mão dos colegas”. Referem preocupação
com ele, por ser “criança agitada e nervosa, chegando a ter tremores quando fica irritado ou é
contrariado” e morder seus colegas como forma de ele extravasar a raiva. Referem ainda que a
criança não expressa dor quando se agride ou é agredido por outra criança, e a dificuldade de
participar de atividades dirigidas juntamente com outras crianças.
Um ano mais tarde, 2010, consta do relatório da escola que “seu desenvolvimento é
bastante divergente das demais crianças”. Ainda assim, há avanços, pois, pela primeira e única vez
em seu prontuário, lê-se, no relatório pedagógico, a palavra “carinhoso”: “ele gosta da atenção das
educadoras e é carinhoso com elas. Porém, por vezes é agressivo com os colegas quando se sente
contrariado. [...] gosta de música e histórias, não consegue manter o interesse [...] Tem preferência
por brincadeiras com movimento e ainda assim precisa de bastante estímulo para realizá-las.
Percebemos também que ele ainda não identifica partes de seu próprio corpo” – Jonatan já tinha
três anos de idade aqui.

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Antes de deixar a creche em 2011, esta ainda relata que, apesar das dificuldades, Jonatan
“participa parcialmente das atividades”, já rabisca folhas, faz atividades com massinha etc.
Algumas atitudes dele chegaram a surpreender os colegas, como sentar-se em rodinha, cantar e
outras, mesmo que ele não tivesse conseguido mantê-las por muito tempo. Além disso, o aluno
acompanha a professora quando ela sai da sala, independentemente de ter outro profissional na
sala ou de a professora chamá-lo, corroborando o fato de que Jonatan agora é capaz de sustentar
alguns vínculos. O enfoque dado nesses dois últimos relatórios – mas principalmente no de 2011 –
a seu comportamento se diferencia dos demais, pois agora sobressaem as observações sobre o que
ele gosta ou não de fazer.
Em 2012, é descrita uma piora no comportamento de Jonatan, isto é, um aumento da
agressividade, razão provável de seu encaminhamento para a psiquiatria pela pediatria. Mudara
da creche – que havia observado um incremento nos vínculos – para um CIEP (Centro Integrado
de Educação Pública), mas no prontuário sugere-se que a piora teria ocorrido em razão de uma
“modificação na dosagem da medicação”. O atendimento no SPIA revê a medicação ao longo do
ano de 2012 e recebe Jonatan em diferentes atividades. O relatório de 2013 da professora, anexado
ao prontuário, observa uma melhora, por ela também é atribuída à medicação. Ainda em 2014, o
aluno “obteve avanços significativos após o tratamento medicamentoso”. As anotações feitas então
pelo SPIA observam: “Orientado alopsiquicamente e autopsiquicamente”; “Linguagem um pouco
empobrecida, falou pouco, negou-se a dialogar”; “Não agrediu a mãe e não me agrediu durante o
atendimento”. A hipótese diagnóstica exploratória desse período foi transtorno do desenvolvimento
e da linguagem e o CID interrogado foi F.71, portanto, como já dito acima, de um retardo moderado.
113
13A
Em 2017 o SPIA foi se extinguindo, Jonatan, retornando no prontuário, com observações
mais classificatórias. Agressividade e agitação (ou hiperatividade) foram palavras muito frequentes,
persisitindo como queixa principal da família e da escola, mas também é preciso sublinhar que a
questão do retardo/atraso se repetia com frequência.

Discursos contemporâneos que agenciam a prática da medicina

Se um dos primeiros diagnósticos de Jonatan dado pela pediatria foi Transtorno Mental sem
Especificação, já o diagnóstico dado pela neuropediatria foi Atraso global do desenvolvimento,
seguido pelo de retardo leve e moderado que, na sequência, também foram hipóteses diagnósticas
levantadas pela psiquiatria. Seguiram-se o de Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, e a
hipótese de Transtorno do Desenvolvimento da Fala e da Linguagem também foi aventada. Sempre
marcando o desvio do comportamento e a agitação/agressividade, o que inicialmente aparece
como Transtornos Hipercinéticos e, mais tarde, renomeados com hipótese diagnóstica Transtorno
Opositor Desafiador com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TOD + TDAH). No
DSM-V, todo esse pot-pourri diagnóstico se encontra dentro de um item denominado Transtornos
do Neurodesenvolvimento (APA, 2014, p.75),
um grupo de condições com início no período do
desenvolvimento. Os transtornos tipicamente se manifestam
cedo no desenvolvimento, em geral antes de a criança
ingressar na escola, sendo caracterizados por déficits no
desenvolvimento que acarretam prejuízos no funcionamento
pessoal, social, acadêmico ou profissional. Os déficits de
desenvolvimento variam desde limitações muito específicas
na aprendizagem ou no controle de funções executivas até
prejuízos globais em habilidades sociais ou inteligência.
É frequente a ocorrência de mais de um transtorno do
neurodesenvolvimento; por exemplo, indivíduos com
transtorno do espectro autista frequentemente apresentam
deficiência intelectual (transtorno do desenvolvimento
intelectual), e muitas crianças com transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade (TDAH) apresentam também um
transtorno específico da aprendizagem. No caso de alguns
transtornos, a apresentação clínica inclui sintomas tanto de

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excesso quanto de déficits e atrasos em atingir os marcos
esperados. Por exemplo, o transtorno do espectro autista
somente é diagnosticado quando os déficits característicos de
comunicação social são acompanhados por comportamentos
excessivamente repetitivos, interesses restritos e insistência
nas mesmas coisas (APA, 2014, p.75),

condição em que “a criança não está se desenvolvendo e/ou não alcança habilidades de
acordo com a sequência de estágios pré-determinados” (DORNELAS et al. 2015, p. 90). No Brasil,
o termo começou a ser utilizado como diagnóstico para crianças na década de 1980. A partir da
década de 1990, para qualquer criança que manifestasse algum tipo de atraso do desenvolvimento
(APA, 2014, p.85).
A ausência de padronização nos Transtornos do Neurodesenvolvimento gera confusão
entre profissionais da saúde desnorteando principalmente os pais que, no final das contas, não
compreendem o diagnóstico. A falta de consenso tem por consequência o fato de que uma
miríade de termos aparece vinculada ao diagnóstico: atraso do desenvolvimento, atraso do
desenvolvimento neuropsicomotor, retardo mental, retardo do desenvolvimento neuropsicomotor,
atraso do desenvolvimento global. Apesar de não terem o mesmo significado, muitas vezes são
usados de maneira semelhante. O uso indiferenciado do termo pode ser aplicado tanto a uma
criança com atraso leve como a uma criança com grave comprometimento.
Discutindo diferentes trabalhos publicados que contêm referência ao diagnóstico, Dornelas
114
14A
et al. (2015) concluíram sua pouca fiabilidade. Para Petersen, Kube e Palmer (1998), o termo
Developmental delay é usado para identificar crianças com atraso no cumprimento dos marcos
anátomo-fisiológicos do desenvolvimento; para Bataglia e Carey (2003), o mesmo termo é usado para
diagnosticar crianças abaixo de 5 anos de idade com suspeita de retardo mental. Mais abrangente
ainda é o campo proposto por Moeschler e Shevel (2006), ao incluírem como possibilidade
diagnóstica na referida síndrome, nada menos do que a seguinte lista de determinações: causas
hereditárias (razão de os autores julgarem necessária a presença de um geneticista ao exame clínico
e provável encaminhamento do Jonatan para essa clínica quando bem pequeno), dismorfismos,
comprometimentos neurológicos, casos na família e desordens metabólicas que possam ser
verificadas em tomografias e/ou ressonâncias magnéticas do crânio.
É interessante destacar que, nas conclusões às quais chegam Dornelas et al. (2015), foi
notado que internacionalmente há um movimento pela definição padronizada do termo e do
uso dele em situações específicas até os cinco anos de idade. As autoras o apontam como um
movimento necessário para a melhora na comunicação entre profissionais de saúde. No entanto,
em publicações nacionais, sugestões como essas não foram acatadas. Vimos ocorrer o contrário
no caso Jonatan, inserido no que já ficou conhecido como um esperanto psicopatológico (DOUTEL;
KATUNDA, 2017; PEREIRA, 2000; QUINE, 2009, p. 11; SAUVAGNA et al., 2012, p. 25;). A unificação
pragmática apenas enfraquece o conjunto, observa Pereira (2000), e o efeito é que já “não
sabemos mais se o DSM classifica o que é visto ou se ele cria os tipos que ele pretende classificar”
(SAUVAGNAT et al., 2012, p. 25). Se isso já foi bastante observado para com a psiquiatria de uma
forma geral, inclusive interpretado como uma tentativa de “terminar com o mal-entendido próprio
à comunicação” (QUINET, 2009, p. 11), o que acompanhamos hoje na clínica com crianças é ainda
bem mais grave por estigmatizá-las definitivamente no momento em que estão se constituindo
sujeitos.
O caso de Jonatan demonstra, a partir dos diversos diagnósticos recebidos ao longo do
tempo, como o diagnóstico baseado nos manuais psiquiátricos, mais especificamente no DSM e no
CID-10, ao excluírem o sujeito, excluem a própria psicopatologia, que “perde progressivamente seu
papel de fundamento das práticas psiquiátricas, cedendo lugar a um convencionalismo nosográfico
que busca responder aos ideais de uniformização de linguagem nesse campo (PEREIRA, 2000, p.
119).
Quinet (2006, p.11) afirma que a substituição das “doenças próprias da psiquiatria por
transtornos” significa a prevalência da opção de se fazer circular de forma consensual entre
os pares de profissão os fenômenos, em detrimento de “uma clínica em que cada caso seja

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efetivamente um caso”. No caso de Jonatan, pode-se averiguar claramente essa advertência,
diante da fenomenologia: agitação, agressividade, dificuldade tanto na articulação da fala como
aprendizagem e, consequentemente no relacionamento com os colegas, professores. Fenômenos
que não dizem por si só sobre o sofrimento do sujeito do qual são, ao mesmo tempo, causa e efeito.
É preciso que o sujeito os articule em sua fala ou em sua brincadeira para que possamos entender
a etiologia da fenomenologia e mesmo para que os “fenômenos sejam considerados sintomas, ou
seja, formações de compromisso entre as diversas instâncias do aparelho psíquico” (idem). Aliás,
o recurso à brincadeira também foi fundamental no acompanhamento de Jonatan, “pois tanto a
linguagem como o pensamento estão presentes na relação do brincar da criança”, abrindo caminho
à expressão “até mesmo [a]o que não está explícito” (CONCEIÇÃO; RAMOS, 2021, p. 132).
Ao contrário, a abordagem pragmática dos manuais é hoje crescente, apesar de já
denunciada em 2000 (PEREIRA, 2000), como um reducionismo da abordagem particular. Se uma
de suas virtudes proclamadas era de ser um manual ateórico, livre de uma ideologia, posto que
baseado naquilo que é observável, mostra-se uma virtude falaciosa, já que não há discurso que seja
articulado fora da cultura, daquilo que a constitui em cada época. Discurso que inclusive visa a uma
hegemonia, a partir da exclusão de “todas as disciplinas cuja abordagem do sofrimento psíquico
não repousasse sobre definições convencionais de fatos clínicos imediatamente constatáveis. Este
é o caso notadamente da fenomenologia, da psicanálise e da análise existencial” (PEREIRA, 2000,
p.120).
Lacan (1969-1970/1992) conceitua os quatro discursos como formas de aparelhar o gozo
com a linguagem. Na estrutura de um discurso, o agente se dirige a um outro, e o faz por estar
115
15A
sustentado por uma verdade. Essa operação produz um resto, o que não deixa de se relacionar
com a teoria pulsional. A estrutura quadrípode do discurso – agente, outro, verdade e produção –
implica a renúncia pulsional teorizada por Freud (2006) no contexto de suas conceituações sobre as
imposições da civilização. Portanto, os discursos são a própria estrutura do laço social, “o que está
em questão no discurso como uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra, sempre
mais ou menos ocasional [...] é um discurso sem palavras” (LACAN, 1969/70/1992, p. 10-11). Os
manuais são repletos de palavras – cada vez aumentam mais as novas nomenclaturas, incluindo
novos transtornos, na tentativa de abrangerem todas as possíveis combinações de comportamento,
e assim corresponderem aos novos medicamentos produzidos pela indústria farmacêutica. Assim,
os manuais são eles próprios discursos, no sentido atribuído a essa palavra no dicionário, isto é,
exposição metódica sobre certo assunto; arrazoada “[...] Qualquer manifestação concreta da
língua” (FERREIRA, 1999, p. 690) que passa a ter a função de construir novas formas de pensar e agir
no mundo. Tantas palavras reduzem a psicopatologia ao binômio ‘medicina do comportamento’
que constitui o produto híbrido do processo em que o discurso científico é agenciado pelo discurso
do capitalista (ELIA, 2014, p. 20).
Vejamos o Manual Merck de Informação Doméstica para o Lar com sua proliferação de
novos diagnósticos “que quase sempre reportam ao caráter neuroquímico da afeção” (FENDRIK;
JERUSALINSK, 2011, p. 6), no lugar de “levarem a uma maior precisão no diagnóstico” (idem). Se é
verdade que as atuais técnicas de imagem e estudos genéticos permitem melhor diagnosticar certas
síndromes neurológicas, isso não é verdade para a maioria das categorias diagnósticas, dentre elas
várias das que foram sugeridas no caso de Jonatan: AGD, TDAH, TOD e TID. Aliás: por que a indústria
farmacêutica – a Merck, no caso – teria tanto interesse no lar? “Um sistema de classificação nunca
constitui uma expressão pura e inocente de fatos clínicos auto-evidentes. Ao contrário, classificar
implica desde início uma tomada de posição quanto àquilo que é pertinente ou não de servir como
critério classificatório” (PEREIRA, 2000, p.137), servindo a melhor auferir os lucros “dos grandes
conglomerados e laboratórios da indústria psicofarmacológica” (ELIA, 2014, p.21). Como ironiza
Quinet (2006, p.10), ao verificar que o “invólucro formal do sintoma” que muda de acordo com
a época – posto que o discurso vigente dá a tessitura com a qual se pode fabricar um sintoma: “a
novos males novos remédios. Ou será que é o avesso – a novos remédios, pseudo novos males?”.
Quem hoje não conhece um TDA, um TGD, um TOC? Quem
está isento de sofrer um transtorno alimentar, de sono, urna
adição, um transtorno de comportamento sexual? A ligeireza
(e imprecisão) com que as pessoas são transformadas em

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anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a
psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram
seu mercado (FENDRIK; JERUSALINSK, 2011, p.6).

Colegas britânicos já o haviam constatado, e manifestaram que “a aplicação do DSM-IV


tem produzido ao menos três epidemias falsas: 1) o Transtorno Bipolar; 2) Transtorno de Déficit de
Atenção; e 3) o Autismo Infantil” (FENDRIK; JERUSALINSK, 2011, p.10). Este, aliás, um caso à parte
atualmente, a ser examinado muito detalhadamente em outros momentos.
Levantamos então uma nova hipótese, para prosseguirmos em nossa pesquisa, que emana
da própria elaboração do caso Jonatan, uma criança com dificuldades psíquicas importantes
decorrentes de sua estrutura psicótica, mas que luta para fazer valer minimamente uma barra
no Outro. Isso porque sua própria experiência o constrange a viver num contexto familiar pouco
salutar, e que tenta encontrar no trabalho com um ou outro terapeuta um espaço para se fazer
ouvir: quanto maior o número de diagnósticos, ou a maior ênfase no diagnosticar conforme esses
manuais, menor a efetiva construção de uma rede de assistência à população que apresenta um
sofrimento psíquico. É como se o diagnosticar permitisse calar o sujeito-sintoma, o que efetivamente
ocorre, na medida em que a cada diagnóstico de um transtorno corresponde uma medicação que
é vista como a única forma de tratamento. Lembremo-nos das observações do caso, em que não
se levou em conta, por exemplo, que Jonatan tinha saído da creche para o CIEP, somente se julgou
que ele tinha apresentado um comportamento mais dificilmente controlável porque houve uma
mudança na medicação. E que no ano seguinte, quando já estava bem inserido na nova escola, e
116
16A
acompanhado no SPIA, novamente se creditou sua melhora a uma afinação da medicação.

Para concluir: a que (quem) serve o diagnóstico?

Já em 2013 Kamers nos alertava para o fato de que os “encaminhamentos realizados pelas
diversas instâncias que demandam tratamento para a criança consistem em um ciclo repetitivo: a
escola, confrontada com as dificuldades de aprendizagem ou indisciplina da criança, solicita à família
uma intervenção” (p.154). Ao se considerarem insuficientes os recursos da “intervenção parental”
para a contenção do comportamento de seus filhos ou de sua dificuldade de aprendizagem, outras
instâncias são acionadas: “neuropediatra ou psiquiatra infantil, ou aciona o conselho tutelar,
alegando negligência familiar” (idem). É a escola, finalmente, que regula a “inclusão/exclusão da
criança no domínio do saber médico”, bem como a medicação como principal forma de “responder
às demandas sociais realizadas, fundamentalmente, pelas instituições de assistência à infância”
(idem). Por outro lado, e em consequência, a medicalização da infância provoca uma “destituição
dos educadores e a consequente apropriação médica da educação” (KUPFER, 2011, p.143). Em
verdade, segundo a autora, houve mesmo uma apropriação da educação pela própria psicologia
com seu discurso dos transtornos de aprendizagem. Kamers (2013) sugere que o que sustentaria
essa apropriação seria a própria demanda da educação, de que a psicologia venha a “preencher
a lacuna de seu saber a respeito do psiquismo do aluno, podendo assim salvar educadores e pais
do mal-estar inerente ao ato educativo” (p.144). Ao tentar tamponar o mal-estar inerente ao que
há de impossível no educar, conclama-se o arsenal de drogas capaz de fazê-lo calar, mas o que
acaba sendo calado é a própria educação e a criança. Consoante nosso próprio questionamento,
como essa nova forma discursiva direciona o tratamento, “Trata-se de constatações que nos levam
a refletir sobre a função que a medicalização da criança – entendida como dispositivo médico-
disciplinar – vem cumprindo para as instituições de assistência à infância na atualidade” (KAMERS,
2013, p.154).
Com a proliferação de diagnósticos (BERNARDINO, 2011; CORIAT, 2011; PÉREZ DE PLÁ, 2011;
VORCARO, 2011), diríamos mesmo um furor diagnóstico em oposição ao furor sanandi criticado
por Freud em sua época, já não se considera mais a possibilidade de encontrar nesta criança, e
naquela, e ainda naquela outra, sujeitos que poderiam vir a se exercer nas suas singularidades de
sujeitos, vindo a contribuir na construção de um futuro diferente, novo e, talvez, melhor do que
nosso presente. Diante das “demandas sociais a ele endereçadas”, o médico diagnostica o “desvio
comportamental”, para pretensamente responder àquelas demandas, consertando o desvio. Ora,

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Concerta é, sugestivamente, o nome de um dos remédios indicados para TDAH!

O fato é que, contemporaneamente, observa-se que a práxis


médico-psiquiátrica na infância prescinde completamente
da escuta da narrativa dos pais sobre seus filhos, localizando
o olhar médico, exclusivamente, nas sintomatologias
apresentadas pela criança, cuja causa é atribuída a uma
falha no real do corpo, mais precisamente a uma falha no
funcionamento cerebral e seus mecanismos neuroquímicos, o
que, aliás, justifica e fundamenta a medicalização (KAMERS,
2013, p.155).

Afinal, o DSM, que constrói tantos transtornos quanto se produzem medicamentos, recebe
financiamento da indústria farmacêutica (ROSA et al., 2015), orientando inclusive os médicos a
demandarem a retirada de crianças e adolescentes de seus tratamentos psicanalíticos, a serem
substituídos por terapia cognitivo-comportamental. E nessa orientação,
Constatamos que os discursos sobre a infância e adolescência
na atualidade não são homogêneos, mas transitam entre
a judicialização para uns, a medicalização para outros e a
mercantilização para todos. A depender das circunstâncias,
117
17A
nossa sociedade dirá: “crime, bandido, cadeia e morte”
ou “doença, criança/adolescente, tratamento”, contudo,
todos serão atravessados pela mercantilização, seja como
consumidor ou como produto (ROSA et al., 2015, p. 228).

Freud (1913/2006), ao contrário: quando ele se ocupa com o diagnóstico é para dele se
servir como índice para a direção do tratamento – diferente quer o sujeito seja psicótico ou neurótico
–, ainda que o diagnóstico não exclua, muito ao contrário, a singularidade de cada sujeito, o que faz
com que o tratamento se reinvente a cada novo analisante. Freud imaginava ser possível trabalhar
com a psiquiatria, pois “na natureza do trabalho psiquiátrico não há nada que pudesse rebelar-se
contra a investigação psicanalítica” (FREUD, 1916-17/2006a, p. 233). É por sermos freudianos que
mantemos essa expectativa, de podermos trabalhar com a psiquiatria, apesar do que constatamos
no discurso que atualmente sustenta sua prática, agenciado pelo discurso do capitalista. Cabe
sempre estar tão atento quanto Jonatan diante da tentativa de um Outro querer todo saber para si.
Concluímos que o diagnóstico serve para o tratamento do outro, nesse caso, das crianças
e adolescentes, de acordo com o agente do discurso que o sustenta. Perguntamos, então, se a falta
de investimentos nos serviços de atenção psicossocial destinados às crianças e adolescentes, bem
como de outros serviços de garantia de seus direitos pelo Estado, não se coadunam, atualmente,
à fabricação da loucura denunciada por Kamers, a partir de um mesmo discurso? No que tange
o caso de Jonatan, como de muitos outros sujeitos em sofrimento psíquico, a dessubjetivação
promovida pelos manuais de psiquiatria objetaliza o sujeito de tal forma que não se pode mais
identificar uma psicose infantil. O desinvestimento em equipamentos de saúde mental primários e
secundários, por seu turno, implica, por um lado, a desassistência ao sofrimento infantil; por outro
lado, cria uma demanda enorme aos serviços terciários, que por esse motivo não conseguem dar
conta da demanda que lhes seria adequada.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

120
20A
O LUGAR DA MULHER NEGRA E O DA ANALISTA NO BRASIL: UM
ENSAIO CLÍNICO-POLÍTICO DA FUNÇÃO NEGRA DA ESCUTA

THE PLACE OF THE BLACK WOMAN AND THE ANALYST IN BRAZIL: A


CLINICAL-POLITICAL ESSAY OF THE BLACK FUNCTION OF LISTENING

Clarice Pimentel Paulon 1


Thamires Kelly Andrade Barbosa 2

Resumo: Trata-se de um ensaio clínico-político que tenciona as articulações históricas do Brasil concernentes ao lugar da
negritude, em especial, da mulher negra. Através da forma como Gonzalez utiliza a noção de memória trazendo à tona
materialidades atuais do cotidiano racista brasileiro também o faz a psicanálise na clínica com diversos conteúdos de teor
histórico-inconsciente. Podemos endereçar o lugar da mulher negra brasileira como a analista no Brasil. Sua posição e
as possibilidades transferenciais com ela desenvolvidas, produzem uma escuta material quanto as subjetividades, todas
atravessadas pelo mito relativo a essa mulher. A mulher negra é objeto a, assim como deve ser a posição do analista. Ela
está na centralidade do Édipo Brasileiro e, também, no erotismo da cultura. Endereçar questões analíticas a ela que, em
sua exterioridade, sustenta a fantasia da identidade do povo brasileiro, produz efeitos de rememoração e ressignificação
para um Brasil que pode se descobrir e ser outro.

Palavras-chave: Clínica. Política. Memória. Mulher Negra. Transferência

Abstract: This clinical-political essay intends to strain the historical articulations of Brazil concerning the place of blackness,
in particular, of the black woman. Through the way in which Gonzalez uses the notion of memory, bringing up current
materialities of the Brazilian racist daily life, also psychoanalysis in the clinic does so with various historical-unconscious
content. We can address the place of the black Brazilian woman as the analyst in Brazil. Her position and the transference
possibilities developed with her, produce a material listening regarding subjectivities, all crossed by the myth of this
woman. The black woman is object a, just as the analyst’s position should be. She is in the centrality of the Brazilian
Oedipus and, also, in the eroticism of the culture. Addressing analytical questions to this woman who, in her exteriority,
sustains the fantasy of the identity of the Brazilian people, produces effects of remembrance and resignification for a Brazil
that can discover itself and be another.

Keywords: Clinic. Politics. Memory. Black Woman. Transference

1 Psicóloga, psicanalista, mestre e doutora em psicologia pela USP, especialista em gestão em saúde pública pela UNICAMP. Pós doutora pelo
Instituto de Psicologia da USP. Atualmente é professora e supervisora da Residência em Rede da prefeitura de São Paulo, co-coordenadora do
GITS (Grupo de Investigação de Territórios e Subjetividades) da USP e membra do projeto sobre Mal estar colonial do Rede de Redes (UFMG).
Professora credenciada no Programa de Pós-Graduação de Educação Sexual da Universidade Estadual Paulista (UNESP) campus Araraquara.
Lattes:  http://lattes.cnpq.br/4025775678638356 . ORCID:  https://orcid.org/0000-0003-4881-7725 . E- mail: claricepp@gmail.com

2 Mulher negra, periférica, psicóloga graduada pela Universidade Federal Fluminense, campus de Volta Redonda. Pesquisadora no tema Psicanálise,
gênero, raça e saúde mental. Integrante do Coletivo Nacional ENEGRECER. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5356862910858208. ORCID: https://orcid.
org/0000-0003-0356-1009. E-mail: psi.andrade.barbosa@gmail.com
Introdução: Das relações múltiplas do registro histórico com a
psicanálise

Há muitas acepções do termo história em psicanálise. Possivelmente, essa gama de distintas


acepções constitui-se pelo caráter de báscula que a disciplina apresenta: ao tratar de condições
psíquicas aponta sua diagnóstica ao meio social, ao modus operandi da cultura e às modalidades de
subjetivação possíveis, associando, como bem enunciou Freud, as predisposições inatas às primeiras
experiências de vida (FREUD, 2017): “[...]poderíamos arriscar a entender a própria constituição
como o precipitado das influências acidentais sobre a infinita série de antepassados.”(2017,p.108).
Esta definição, utilizada por Freud em um texto no qual ele desenvolverá sua teoria e prática clínica
sobre a transferência, evidenciando as condições necessárias para a condução da vida amorosa
e suas idiossincrasias, diz do lugar de contingência e de “hereditariedade” para a constituição
psíquica: aspecto que coloca a história em um lugar central na teoria freudiana, dado que essa
hereditariedade se apresenta através de registros simbólicos, discursos, não-ditos, dentre diversas
outras manifestações que localizam o sujeito sem que ele seja totalmente determinado por esses
aspectos.
Em momento posterior da teoria, no ensaio “Moisés e a religião monoteísta”, Freud
(2018) apresenta uma outra forma de construir registros historiográficos: faz uma distinção entre
três histórias que atravessariam a teoria psicanalítica: a História (Geschichte), a história conjectural
(Historie) e a história vivencial (Historisch). A história conjectural associada à estrutura dos mitos e
aos traços diferenciais da cultura, articula-se com a história vivencial e seus aspectos experienciais
frente ao legado cultural (AMBRA; PAULON, 2018). Estas articulam-se, ainda, a História, este campo
pouco aprofundado em Freud, que diz de “um exercício da história como um desvelamento da
verdade para além da aparência e, mais do que isso, de uma verdade ligada ao escrito” (AMBRA;
PAULON, 2018, p. 414).
Nesse ensaio freudiano, vemos, portanto, uma verdade desvelada para além da aparência,
que constitui o psiquismo a partir de três eixos principais. Uma historiografia que passa pelo
escrito dos documentos, mas, também, do que podemos depreender das fissuras que deixou
(tal como depreendido na noção de letra1), dos indícios que ficaram, perseguindo uma verdade
ocultada pelos registros formais, porém, presente na ideia de movimento, ação, tal como Freud
realiza, em um momento outro de sua teoria, entre ambos textos supracitados, em seu ensaio:
Moisés de Michelângelo (2015), através do que o autor denominou como “método Morelli”: um
método utilizado para descobrir obras de arte falsas que percorria essas obras através de seus

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detalhes: linhas dos dedos e ouvidos, por exemplo, que um copista, por mais detalhista que fosse,
não reproduziria de forma idêntica. Nas ciências da linguagem ele é muito próximo do que se
denominou “paradigma indiciário”, contido na obra “O queijo e os vermes” (GINZBURG, 2006).
Vemos, a partir da articulação destes três ensaios, concluídos em “Moisés e a religião
monoteísta” (FREUD, 2018) que a noção de verdade articulada aos modos de funcionamento dos
registros historiográficos é associada à noção de enunciação e essa aponta para a História. Sem a
História não há possibilidade de contingência, apenas de repetição de articulações mal-ajambradas
entre a história conjectural e a vivencial. A História é necessária para a percepção de fissuras.
Neste ensaio clínico-político2 utilizaremo-nos destas três formas de compreender a
história em Freud: daquela apresentada na “Dinâmica da transferência”, entre hereditariedade e
contingência; aos tempos dos registros históricos e seus regimes de verdade em “O Homem Moisés
e a religião monoteísta”, passando pelos indícios de “Moisés de Michelângelo” e suas possibilidades
de enunciação, para, assim, apercebermo-nos de uma psicanálise atenta aos registros da história
no inconsciente e seus efeitos de repetição e elaboração possíveis, através do retorno ao passado
para vislumbrar horizontes futuros atravessados pela contingência, quando de um passado vivido
e deixado “em seu devido lugar”. Falamos de uma psicanálise, portanto, de mãos dadas com a

1 A noção de letra, depreendida de Lacan em seu seminário livro XX, (1985) se apresenta como um litoral entre
saber e gozo, realizando uma separação entre esses dois domínios, delimitados a partir de uma marca, decalque.
2 Para mais desenvolvimentos sobre a noção de clínica-política: ROSA-DEBIEUX, Miriam A clínica psicanalítica em
face à dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Editora Escuta, 2017.
122
22A
história para que exista direção do tratamento, dado que é a partir destas possíveis articulações
historiográficas que será possível viver narrativas apontadas para o futuro.

O historial clínico Brasil

Sigamos, agora, essas pistas historiográficas em território brasileiro. Nos anos 2020, a
historiadora e romancista Micheliny Veruschk (2022) afirma que, ao realizar sua pesquisa para a
produção do romance: “O som do rugido da onça (2021) deparou-se com o documento deixado por
Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), botânico alemão, que registrou os biomas brasileiros,
tal como os conhecemos até hoje e registrou, também, a população nativa, categorizando-a como
fauna. Juntamente com sua catalogação da natureza brasileira, produziu um diário de campo e
um romance de auto-ficção, que continha cenas de suas relações com uma indígena nativa,
apresentadas de forma ambivalente: eróticas e paternas, ora de cuidado ora de exploração.
Podemos observar que Martius realiza, nessa articulação, dois feitos fundantes: um
tripé de uma subjetividade científico-ocidental que consiste em um estudo do meio (empírico),
uma descrição de seus processos (dinâmico) e uma narrativa, constituída a partir do encontro e
desencontro entre personagens (historiográfico), formando o que entendemos por contexto, até
os dias de hoje. Realiza esse feito dentro de uma perspectiva colonial, evidenciando as referências
centrais de civilidade, organização e progresso nos desenvolvimentos europeus da época. Além
disso, sua ficcionalização, realizada de forma ambivalente, traz notícias do lugar do sexual e do
infantil nos corpos em território brasileiro, perspectiva que será desenvolvida mais adiante neste
texto.
Devido a este trabalho, ainda hoje, no Brasil, temos o Prêmio Von Martius de sustentabilidade,
que registra e autoriza, assim, a memória e história do país, calcadas nesta escrita da fauna e flora
brasileira, longe da civilização e de qualquer traço de humanidade: um prêmio que sustenta a
história oficial do Brasil de que “não havia vida civilizada e humana, antes dos europeus chegarem
aqui” (VERUSCHK, 2022). A historiadora ainda continua, ao afirmar que se a tese de Von Martius é
a que fundamenta a história do Brasil, entende-se, por conseguinte, o lugar dos corpos brasileiros
na atualidade e a forma como tratamos a diversidade de povos existentes no território. Veruschk
afirma, então, que a história do Brasil é “lacunar e criminosa” (2022).
Refletindo sobre as condições que fundam a história do Brasil atual, calcadas no
eurocentrismo e no apagamento constante de nossas origens criando, inclusive, monumentos que

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confirmem ainda mais esse apagamento, Veruschk (2022) sugere que a história seja feita a fim
de rachar nossos monumentos. Devemos, então, continuar seguindo os rastros (indícios) deixados
pela verdade do povo latino-americano, não nos deixando afetar pelo “barulho dos documentos”.
Nesse sentido, a forma que propomos aqui lidar com a história na psicanálise, a partir de sua tripla
articulação que possibilita suas formas de enunciação e registros de verdade, vinculadas à outros
conceitos clínicos, tal como o de construção, em Freud (2017) ou o método Morelli, utilizado pelo
mesmo, em Moisés de Michelângelo (2015), contribuem para seguir a verdade contida nesses
apagamentos e a consequente produção da verdade subjacente as nossas práticas cotidianas, tal
como a de opressão e violência no Brasil contra o povo negro, por exemplo.
A história oficial do Brasil, há pouco tempo, mal apresentava os movimentos de resistência
e luta popular da população negra frente ao trabalho escravo. Também não apresentava o
protagonismo da população negra na luta abolicionista, na construção dos direitos e da cidadania (tal
como saúde, cultura e assistência social), apropriando-se de produções culturais dessa população,
entendendo-as como brasileiras. O apagamento do protagonismo negro no Brasil é um projeto
que se articula as práticas eugenistas, sendo construídas em todos os campos de atuação das
políticas públicas: na saúde com práticas manicomiais3 e higienistas4, na cultura com o apagamento
3 vide a construção do nosso primeiro hospital psiquiátrico, Dom Pedro II, edifício que hoje abriga a UFRJ e que,
dentre seus internos, albergava, em grande parte população preta e pobre, acusada de burlar a chamada “Lei da
Vadiagem”.
4 importante rememorar aqui o exemplo dado por Rita Segato em seu texto: O Édipo Negro (2021) que apresenta
o discurso racista travestido de discurso da saúde ao afirmar que as amas de leite poderiam trazer doenças e
mazelas aos bebês brancos, através do leite, fazendo uma campanha de amamentação para as mães biológicas que
123
23A
das origens do samba, na educação apagando educadores negros, tal como Querino5, na saúde,
ainda, apropriando-se das práticas de cura desse povo e dos povos originários, hoje, muito bem
articuladas através das PNPICS (práticas integrativas e complementares em saúde), por exemplo6.
Clóvis Moura, sociólogo e historiador brasileiro, apresenta de forma bastante contundente
a forma como, em prol da “civilização e modernização” europeias, a cidadania do povo negro
foi sendo confiscada, e a população mantida no lugar de objeto, propriedade de senhores ou de
uma determinada classe social, as elites, mesmo após e Lei Áurea. O autor (MOURA, 2014) após
analisar as temporalidades do escravismo no Brasil, entendendo-os como pleno e tardio, aponta
que as políticas de miscigenação do país funcionam a partir de uma lógica do embranquecimento
da população e apresenta as culturas africanas e o aquilombamento como formas de resistência,
leitura apagada para a sustentação do discurso hegemônico da democracia racial, em nosso
território. Moura (2014), totalmente avesso a essa perspectiva, afirma sobre as diásporas e sobre o
movimento negro no Brasil, apresentando a autonomia e altivez de um povo marcado pelo trabalho
escravo e pela pauperização. Constitui-se assim, o denominado “mito da democracia racial”, efeito
do apagamento de lutas da população africana e da relação imaginária das elites brasileiras com o
continente europeu.
Duas verdades obliteradas pelo “mito da democracia racial” (o apagamento das lutas da
população de origem africana e o imaginário branco europeu que paira sobre as elites brasileiras)
no Brasil se apresentam de forma patente na constituição subjetiva atual, voltando na forma de
sintomas, tal como desenvolveu Gonzalez (1984) a partir da noção de neurose brasileira, para
enunciar sobre o racismo. Neste ensaio observamos que essa neurose se constitui também a partir
da construção ideológica que se tem, no Brasil, com o significante trabalho, constituído a partir
de um lastro escravagista recalcado com a chegada dos imigrantes-trabalhadores, relegando o
entendimento dos corpos negros à objetos o que, dentro de um sistema capitalista, significa como
propriedades de outros corpos e classes.
Calcando-nos, então, nas palavras de Lacan (1998) de que “a interpretação [...] é coextensiva
a história” (p. 604), propomos aqui uma via interpretativa desses traços conjecturais que se repetem
no Brasil e que são vivenciados7 cotidianamente pelas pessoas que habitam esse território. Essa
interpretação advém da recuperação dessa História (Geschichte) brasileira, com o legado deixado
por Clóvis Moura, e da realização de uma historiografia psicanalítica dos apagamentos discursivos
e seus efeitos. Apresentaremos como horizonte de tratamento e de retomada da história a mulher
negra como o protótipo da função do analista8 no Brasil, dado que ela, segundo Gonzalez (1984)
ocupa o lugar de objeto a: causa de desejo e rebotalho, justamente o lugar que, segundo Lacan

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(1998), o analista deve ocupar, para que se efetive a transferência, da sua imaginarização à sua
dissolução.
Essa relação transferencial no território é desenvolvida em seu processo histórico através
de uma análise do sexual brasileiro empenhada por Bastide, em Psicanálise do cafuné (2016),
como mostraremos mais à frente no texto e evidencia que as posições que a mulher negra ocupa,
seja na casa grande, como mucama da sinhazinha seja com o senhor de engenho – são ambas
posições originadas na sexualidade estrutural e estruturante da cultura brasileira. Posições estas
que remetem ao cerne do desenvolvimento da transferência, tal como preconizado por Freud
(2017) sobre o investimento libidinal do analisante sobre a figura do analista, sendo estes de caráter
erótico, terno ou hostil e territorializados, no Brasil, a partir do corpo dessa mulher.
O corpo da mulher negra evoca memória, história e desejo fundantes de um país que vive as
reforçou o preconceito contra as mulheres negras, ocupantes desse espaço.
5 Aqui referimo-nos a “O colono preto como fator da civilização brasileira” de Manuel Querino, texto a partir do
qual o autor evidencia as insurgências contra os senhores de escravo bem como a notabilidade dos descendentes
africanos em solo brasileiro.
6 mais informações sobre essas produções podem ser acessadas no Projeto Querino, um podcast que possui
extenso material audiovisual e de arquivo, produzido pela rádio novelo, e idealizado e organizado pelo pesquisador
Tiago Rogero.
7 Em todos os momentos que utilizarmos os termos conjectura, vivência e História nesse texto, eles estarão
diretamente remetidos à história conjectural, vivencial e a História freudianas, submetidas, portanto, aos regimes
de verdade desses registros.
8 Aqui nos referimos ao analista como função, a partir da noção de semblante de objeto a, tal como apresentou
Lacan em seu texto: A direção do tratamento e os princípios do seu poder” (1998)
124
24A
memórias repisadas da escravidão e é objetalizado devido a marca do recalque em relação ao lastro
escravagista no significante trabalho: todas as suas atividades estão significadas em elementos
libidinais que outros realizam nela, a partir do que sua presença evoca. Uma mulher objeto de
desejo do senhor de engenho e de ternura da sinhazinha, ama de leite de seus filhos. Encontra-se
aí, nessa sua livre circulação esvaziada de subjetividade, o que denominaríamos na psicanálise com
suposto saber, essencial a transferência em análise.
Compreender, portanto, o lugar da mulher negra como o lugar de analista no território,
reconhecendo a sua posição e seu trabalho seria alçar sua circulação à possibilidade de interpretação
e retificação subjetiva do caso Brasil, fazendo rachaduras no monumento da democracia racial e
desvelando a verdade sobre essa Améfrica Ladina (GONZALEZ, 1988). Ao reinscrevê-la em seu lugar
de analista, quem sabe, outros elementos do Brasil possam ser elaborados e, então, possamos
sonhar com um horizonte de transformação histórica e elaboração coletiva no país, sem que esse
processo tenha que ser individualizado e privilégio de alguns poucos. Quem sabe assim, também,
a função possa circular e possamos todos, enegrecer nossa escuta: retomar uma história obliterada
por um sintoma e dissolvê-lo em novos saberes e caminhos.
Para tanto, neste ensaio clínico-político, iremos circular pelo trabalho de análise e escuta
conduzido por mulheres negras, atravessados pelas marcas historiográficas do país, observando
como esse trabalho se desenvolve em termos de transferência devido a essa imago negra e apontar,
a partir da lógica do reconhecimento do desejo e do trabalho, para a posição de sujeito da mulher
negra, e, portanto, do exercício da função de analista, como função enegrecedora da escuta, que
possa, então, se universalizar.

Das escutas do borralho: o trabalho obliterado pela “boa vontade” –


Imago negra

O borralho, tido como esse lugar da cozinha e das cinzas, é também de onde renasce a fênix,
afinal, ele remete às cinzas que ainda produzem calor e podem voltar a queimar. Ao longo dos anos
1990, nas novelas brasileiras, o lugar do borralho era o lugar da cozinha, relegado a mulher negra
como personagem que assumia todo o trabalho reprodutivo de uma casa (grande)9. Ao longo de
tais novelas, sempre haviam cenas nas quais uma mulher branca, a “boa sinhazinha” entrava na
cozinha, lamentando-se, falando de todas as suas questões amorosas, os seus problemas com o pai,
a sua angústia quanto a ocupar um espaço público como mulher10 e a mulher negra, a empregada,

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paciente e cuidadosamente, escutava, perguntava, sugeria algumas coisas que estavam fora de sua
condição e alçada, dada a desigualdade social contida na cena, porém, obliterada pela suposta
horizontalidade da conversa que faziam com que a boa sinhazinha encarnasse sua feminilidade e
seguisse sua heroica jornada. Ao mesmo tempo, havia também a “má sinhazinha”, que entrava na
cozinha espezinhado a empregada, caçoando de sua falta de fineza e, ainda assim, não se abstendo
de seus serviços11. Essa escuta reproduzida e construída nas novelas, representada pela mulher
negra na cultura brasileira, encarna o que é esperado da saúde mental no Brasil nos dias de hoje:
escuta, acolhimento e “transformação” (em alguns casos, sustentação de privilégios, mascarados
como diferenças, obtidos, justamente, pelo apagamento da mulher negra na cultura). Essa
representação possui alguns antecedentes históricos que tentaremos ficcionar nesse ensaio e que
dizem respeito ao campo da transferência.
Bastide (2016) em “Psicanálise do Cafuné”, apresentará a função das mucamas, escravas
que acompanhavam as sinhazinhas nas fazendas de engenho na Bahia ao longo de seus afazeres

9 Essa personagem encontra-se desde os clássicos infantis tal como o Sitio do Pica-Pau Amarelo, em tia Anastácia,
como em novelas como A Indomada, O rei do gado, Terra Nostra, dentre outras produções culturais e evidencia,
historicamente, o lugar da mulher negra nos núcleos rurais e urbanos das novelas e seu significado na cultura
brasileira.
10 Importante marcar: evidentemente, questões que se escutam em uma análise.
11 Mais recentemente na versão do Big Brother Brasil em 2023, em um dos “rachas” da casa, um grupo de
mulheres brancas apelidou, carinhosamente, a mulher negra que se colocava pertencente ao mesmo grupo
que elas de “mummy” (mamãe). A repetição deste significante quando associado a essa mulher não diz de uma
coincidência ou novidade, mas de um lugar estruturalmente constituído na história do país. Para mais informações 125
e análises: https://www.instagram.com/p/CqDT6TeOxqJ/?utm_source=ig_web_copy_link
25A
cotidianos e explicitará uma atividade pouco apresentada ao redor do globo em outras elites: a
prática do cafuné na cabeça das sinhazinhas pelas mucamas, ritual analisado pelo antropólogo
como índice da relação homossexual recalcada entre mulheres e dos traços de convivência em
uma sociedade escravocrata, na qual a mulher negra, excluída da sua condição de cidadã e relegada
ao lugar de objeto, era, então, objeto sexual de ambos os brancos: senhor de engenho e sinhazinha.
Essas práticas, ritualizadas em nossa cultura, deixam lastro nas relações transferenciais com a
posição da mulher negra: desejada (e excluída) e acolhedora. Nas palavras do sociólogo:

[...]o importante é que aqui o gesto deixa de ser um simples


gesto utilitário para se transformar em um cerimonial
demorado e complicado, uma lenta carícia da mão hábil
entre os cabelos soltos, uma festa da preguiça nas horas
quentes do dia, que não é mais uma medida de higiene ou
de limpeza da cabeça, mas a procura de um prazer; e que
este prazer é um prazer ancorado nos costumes de certo
tipo de sociedade: a sociedade escravagista, que se reveste
assim de um caráter sociológico. É preciso, portanto, mostrar
sucessivamente como um gesto utilitário pôde transformar-
se em um gesto de prazer e, então, procurar no cafuné uma
metamorfose da Libido; ver, em seguida, a razão pela qual essa
metamorfose se transformou em uma espécie de instituição
social, um costume coletivo, em vez de permanecer como
um hábito próprio de alguns indivíduos e, assim, completar a
interpretação psicanalítica por uma explicação sociológica (p.
194).

Esse gesto, o cafuné, é então ritualizado, segundo o autor, por uma mulher específica: a
mulher negra, que ao ser colocada nessa posição, na cultura, estabelecerá, portanto, relações
transferenciais a partir desta posição. Outra antropóloga, um pouco mais adiante, Rita Segato (2021)
em “O Édipo Negro” afirma sobre o lugar da ama de leite e suas derivações para ama seca e babá
como fundantes da constituição edípica brasileira sendo a exclusão sobre esse reconhecimento
a partir do discurso higienista, sem abster-se da necessidade elitista do exercício dessa função,
segundo a autora, o principal causador do racismo e da misoginia em nosso país, dado que a mulher
negra é necessária e desejada, porém, sem participar das gramáticas de reconhecimento que a

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possibilitem assumir uma posição sujeito, relegada ao lugar de objeto na cultura.
Este lugar, de exclusão desejante faz com que a produção de transferências no campo da
clínica psicanalítica, quando ligadas a mulher negra, sejam articuladas tanto em sua horizontalidade
quanto em sua verticalidade. Segundo Zygoyris (2003) o campo da clínica psicanalítica deve
sustentar-se nesse duplo funcionamento da transferência: a vertical, muito bem elucidada pela
maior parte das teorias psicanalíticas, tratando das relações de autoridade a partir da imago
paterna e a horizontal, que diz das relações fraternas e que sustenta o espectro lúdico do vínculo.
Segundo a psicanalista, sem o exercício da transferência horizontal a direção do tratamento torna-se
prejudicada, dado que é nesse nível transferencial que é possível sair das repetições de autoridade
e da constante emboscada de evitação da confrontação e dissolução edipiana. Segundo Zygouris:
Eu a havia distinguido de um outro tipo de transferência: a
horizontal, em que temos uma relação menos desigual, ainda
que assimétrica – o analista pode ser levado a expressar algo
daquilo que é indizível ou impensável para o próprio analisando
e onde ele funciona, segundo a terminologia anglo-saxã, como
um “eu-auxiliar” (2003, p. 07).

A analista (mulher negra) ocuparia, então, tanto o lugar evidenciado por Segato (2021) da
mãe preta quanto o da mucama, apresentado por Bastide (2016). Ela sustentaria, dentro do lastro
histórico do Brasil, a mãe preta e seu lugar de acolhimento e sabedoria e, também, o da mucama,
126
26A
causa de desejo e fundadora de certo erotismo brasileiro, calcado na mulata como objeto de
desejo, tão bem apresentado por Gonzalez (1984). Vemos nessa ficcionalização do lugar do corpo
da mulher negra na cultura brasileira que ele ocupa o lugar de objeto a como semblante (LACAN,
1992), suturando as relações entre trabalho e reconhecimento, obliterado aqui pela ideia de “boa
vontade”. Esse semblante é constituído pela articulação entre a História e a história vivencial, que
produz repetições contínuas e não consequentes destes aspectos da cultura: as coordenadas
conjecturais não se apresentam tornando essa articulação, de certo modo, imune às relações de
contingência. A relação imaginarizada, calcada na cultura que produz esse efeito sobre o corpo da
mulher negra apresenta a construção de um suposto saber no horizonte, se articulado a história
conjectural, ou seja, as fissuras dessa imagem: uma mulher que sabe das origens infantis e da
sexualidade, uma mulher que sabe sobre o inconsciente brasileiro, que, porém, quando destituída
desse saber, torna-se fetichizada.
Essa dupla inscrição (vivencial e Histórica) produz uma clínica conduzida por mulheres
negras que é intensa e que lida de forma mais crua e direta com as histórias de abuso e construções
fantasísticas de analisantes: é comum o acesso a relatos de opressão e violência de forma mais
direta, a apresentação e a abertura ao traumático se encontram mais rapidamente: poderíamos
dizer que o universal (territorializado) da escuta se encontra em ouvidos negros: o trauma,
as fantasias primordiais, a sexualidade infantil e o hereditário freudiano se encontram mais
rapidamente ali. Deste modo, o material clínico apareceria de forma mais contundente e direta
e isso pode ser resgatado também em nossa cultura, quando vemos as representações que estas
mulheres ocupam nas telenovelas brasileiras, principalmente até o início dos anos 2000.
A mulher negra, em sua presença, demarca a fundação desse inconsciente calcado no
recalque primordial da negritude e do escravagismo no Brasil produzindo um entrelaçamento
Histórico e vivencial: Real e Imaginário, se quisermos. Esse entrelaçamento constitui o vínculo
(ZYGOURIS, 2003) basal através do qual irá alicerçar-se a transferência, introduzida por esse corpo:
O que sustenta as palavras? O tecido do vínculo é o real entre
dois organismos humanos. Trata-se, antes de tudo, de uma
característica da espécie humana, uma realidade feita de
“sentires” (fellings), emoções, em sua maioria inconscientes,
mas também conscientes, de sensorialidades que nada têm
de especificamente analíticas, inclusive na sessão analítica. O
que faz vínculo entre dois humanos são os alicerces de uma
presença [...] É a partir desses alicerces que um se liga ao outro
e que o vínculo se estabelece ou não. É aí que a transferência

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se entrelaça (ZYGOURIS, 2003, p. 11).

A presença diz, portanto, de uma corporeidade. Imaginariamente, no Brasil, essa


corporeidade, que é colocada pra jogo, na cena pública, no trabalho e no desejo é a da mulher
negra e é necessário que dessa articulação possamos extrair consequências. Ao circunscrever a
noção de corpo pretendemos retomá-lo aqui a partir da perspectiva do semblante do objeto-a,
que produz, então, um primeiro movimento transferencial na análise, de identificação, acolhimento
e desejo (submetidos a lógica inconsciente do analisante), sendo este demarcado, no Brasil, pela
necessidade de uma escuta que retome o reconhecimento ao corpo da mulher negra como
produção de saber, reabrindo, deste modo, a superposição ainda presente no Brasil entre trabalho
e escravidão.
O que denominamos aqui de imago negra na transferência diz dessa retomada das posições
de autoridade e cuidado, nas palavras de Zygouris (2003), transferência vertical e horizontal,
para a direção do tratamento, transferências essas que se associam com a posição histórica de
determinados agentes no Brasil: o senhor de engenho, a sinhazinha e a mulher negra nas posições
de mucama, ama de leite e babá.

127
27A
Trabalho, enegrecimento e reconhecimento: a função da analista e a
mais-valia
Podemos nos perguntar, a partir dos rastros deixados para além e com os nossos documentos
de fundação do país: quantos ouvidos olvidados são necessários para formar uma escuta no Brasil?
Qual miscigenação ocupa nossa história e produz ruídos em nossos ouvidos que os capacitem a
escutar a verdade? Vemos que o lugar histórico da verdade – relegada ao apagamento – no Brasil
demarca também onde se ampara o lugar psíquico do brasileiro: essa entidade que vai de Gilberto
Freyre a Clovis Moura, que transita entre as brasilidades e constitui esse curioso caso do brasileiro
– não racista, que reconhece o racismo; não machista, mas que sabe da violência de gênero –
observando aqui a hiância, que se apresenta como uma cisão entre enunciado e enunciação,
entre o que é dito e o que fica por dizer e que, de alguma forma, constitui a nega-ativa12 no dito.
A negritude compõe o que dizemos às avessas do nosso dizer. Para além da negritude e como
condição anterior do estabelecimento desta, os povos originários da América também fazem parte
desse olvido, esse lugar que, no Brasil, nós mal sabemos onde está e, por isso, expropriamos (sem)
saber onde nos posicionarmos nessa terra de alguém, alguém não reconhecido.
A subjetividade brasileira foi, assim, desenvolvendo-se a partir da negação da negritude
como constituinte de suas origens. O apagamento dessa presença acontece, inclusive, dentro do
campo da saúde mental: o pioneirismo negro de Juliano Moreira (SANTOS, 2021), Neusa Santos
Souza (AIRES; TAVARES, 2021) e de Fanon, amplamente citado por Basaglia, porém tardiamente
integrado aos preceitos da reforma psiquiátrica no Brasil (PASSOS; MORAES, 2021) são exemplos
desse apagamento. Porém, como mencionado acima a partir de Bastide (2016) e Segato (2021), a
presença da negritude, especificamente da mulher negra, é fundante na cultura e subjetividade e,
consequentemente no lugar transferencial ocupado pelo profissional de saúde mental no Brasil,
dado que esse lugar representa o lugar do cuidado: assim, um caso curioso acontece no país – o
encontro de uma certa condição psicanalítica europeia à uma certa condição de subalternidade do
trabalho fazem laço no território.
A analista no Brasil vem de além-mar, constitui o que Lélia Gonzalez nomeou como Améfrica
Ladina (1988), aquele lugar onde o recalque consolidou-se em uma pele – a negra, em uma cultura
– as diversas africanas que nos compuseram, em uma sociedade – a escravocrata. Ela tem sangue e
leite negros pelas suas diversas ocupações trabalhistas – os ditos trabalhos reprodutivos, tal como
colocou Rita Segato (2021), e que constituem a base de toda e qualquer atividade humana – cuidar
de uma casa, dos filhos – seus e dos outros – de uma cultura e educação – mas, que a elite brasileira

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supõe que é sua condição e privilégio – devido a sua posição escravocrata.
O trabalho, assim, obliterou-se pela noção de “boa vontade”. A mãe preta, como enuncia
Gonzalez (1984), pronta a acolher e acudir o seu senhor e senhora, sem qualquer restrição de
horário e de recortes de função, ou seja, de limites, tal como o exercício doméstico desenvolvido
posteriormente no Brasil, ocupa-se por “boa vontade” e acolhimento de toda e qualquer questão
que esteja alheia a ela, compondo o tecido social através da exclusão de sua subjetividade e do
“oferecimento” de seus serviços. Ela seria o elemento externo capaz de produzir conjunto (e valor)
dentro da identidade nacional.
Esse valor identitário13 produzido pela posição histórica e cultural da mulher negra é o que
se retira de mais-valia sobre seu trabalho não reconhecido. Essa mais-valia apropriada por uma
elite branca no Brasil sustenta, dialeticamente, a posição da mulher negra como objeto-a14 agora
associada a uma posição gozoza branca15 quando do não reconhecimento da mulher negra como

12 Gonzalez (1984) fará uma brincadeira com a noção de negativa em psicanálise e a nega-ativa, ao afirmar sobre
a verdade que se evidencia na construção do lugar da mulher negra no Brasil.
13 O termo identitário aqui está sendo utilizado de forma irônica a fim de evidenciar o paradoxo existente entre
um conceito – o de valor, que é dialético – e a noção de identidade, muitas vezes remetida a uma certa fixidez de
posição quando entendida, dentro do discurso capitalista, como propriedade.
14 A homologia entre mais-valia e objeto-a encontra-se estabelecida por Lacan em seu seminário, Livro XVI: De
um Outro ao outro (2008)
15 Aqui podemos nos remeter a todo o espectro de branquitudes, que podem ser melhor analisados em: BENTO, M.
A. Branqueamento e branquitude no Brasil disponível em: https://www.nupad.medicina.ufmg.br/arquivos/acervo-
cehmob/foruns/racismo-institucional/Caderno-Racismo.pdf; GUERRA, A. Branquitude e Psicanálise: segregação
128
28A
sujeito. Trabalho e propriedade se articulam aqui evitando a construção de um saber inconsciente
sobre a nossa história. Saber que é vivenciado pelo corpo da mulher negra e que, ao ser estabelecido
como conjectural, pode vir a produzir retificações subjetivas.
Seu trabalho, não reconhecido porque escravo, inviabiliza que seja reconhecida como
cidadã, dado que “não trabalha” e sim, é submetida, o que se relaciona de modo peculiar com o
funcionamento da psicanálise no país, dado que seus desenvolvimentos se dão por regimes de filiação
e não de regulamentações públicas, sejam elas estatais ou não16 (PAULON, 2022). Os trabalhadores
são identificados aos imigrantes europeus, que chegam após a abolição da escravatura no Brasil e
este apagamento, inclusive, produz rachaduras na própria composição sindical do país e no termo
“trabalho” – subentendido como algo temporário no tecido social, ao qual você se endereça por
um tempo para que, um dia, não mais precise trabalhar e se torne “empreendedor”17: trabalhar
continuamente é submeter-se e escravizar-se no Brasil (o retorno ao lastro escravagista apagado)
e esta questão não tem correlato direto em países cuja desenvolvimento do Estado de Bem Estar
Social se efetivou: trabalhar no Brasil é enegrecer.
Em outra das análises empreendidas auscultamos o apagamento desse trabalho e seu
aprisionamento em objeto. Ao formar-se médica, o peso das antepassadas encontra-se em seus
ombros e a analisante negra lembra das marcas do sutiã deixadas nos ombros da avó, que se queixava
do peso de seus seios. Identifica-se (e é identificada) à enfermeira do ambulatório e não consegue
discutir casos com seus professores. É necessário pegar mais plantões para ajudar nas contas de
casa: duplas jornadas, muito diferentes das possíveis jornadas médicas e pavor ao peso que o erro
pode causar em seu percurso profissional a acompanham. Quando a história deixará de ser peso
nos ombros e se tornará motor de transformação aos descendentes de pessoas escravizadas?
A mais-valia, que não pode ser reconhecida, vira uma espécie de abuso sobre esse corpo,
ao acessá-lo pelo ouvido ao invés do olvido, talvez a retificação subjetiva se faça presente nos
processos de análise, dado que é a extração desse excesso de gozo que a analista irá operar, para
fazer emergir o desejo e a construção do saber inconsciente. A analista enquanto propulsora
deste objeto causa de desejo irá operar justamente nesse excesso, podendo, pelo trabalho de
transferência, construir essa ponte entre passado, presente e futuro, removendo assim as amarras
do destino18, possibilitando a transmissão de um saber geracional e histórico.
A mulher negra está, portanto, em muitas posições transferenciais na cultura brasileira. Ela
faz parte da nossa história como empregadas domésticas, com babás, como amas de leite, como
trabalhadoras que sustentam um lar, sendo colocadas em um lugar mítico, que a impede de tornar-
se cidadã. Ela é entendida como esse lugar da escuta sem barreiras ou julgamentos, aquela que

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escuta e sempre tem algo a compor e, mesmo quando é impedida de dizer, como no caso da “má
sinhazinha”, trazida na sessão anterior, diz desaforadas verdades ao longo das novelas, restituindo o
lugar da verdade e de um saber que a “sinhazinha má” nunca terá, mas que a “sinhazinha boa”, via
transferência, pode construir a partir de uma necessidade de escutar a diferença e de mudar, então,
de seu lugar alienado de branca, presa ao regime patriarcal e as necessidades de uma sociedade
que também a oprime. Se ela puder escutar o que está além de seu engajamento epidérmico, olhar,
através de sua alvura o que se constitui nos recônditos do Brasil profundo verá a sua negritude e,
arriscamos dizer: o seu inconsciente negro, que, quando recalcado, torna-se negreiro.

racial e a matriz colonial do saber disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/


article/view/60052/751375152618; SCHUCMAN, L. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude
paulistana disponível em: https://www.scielo.br/j/psoc/a/ZFbbkSv735mbMC5HHCsG3sF/?format=pdf&lang=pt
16 Podemos obter um pequeno exemplo desse processo a partir de duas vias: (1) quando observamos que entre
analistas há forma de nomeação remetidas a um certo discurso familista: freudianos, lacanianos, kleinianos, etc,
que dizem mais de um lastro hereditário que de um método de trabalho; e (2) entre os lacanianos, em especial, é
comum que utilizemos termos como função ou ética para dizer do processo de análise, apagando, no entanto, a
noção de trabalho desse processo.
17 Uma análise marxista-psicanalítica sobre a condição de trabalhador e seu lastro escravagista no Brasil será
realizada posteriormente com o devido cuidado pois trata-se de assunto extenso e complexo, que foge da temática
do presente ensaio.
18 Utilizamo-nos aqui da fórmula empreendida por Bairrão (2000) de que “analisar é mudar o destino”. Esta
fórmula se articula a partir de dois princípios lacanianos: “analisar é mudar o ser” e “o que se atinge é o destino”
(LACAN, 1966) – entendendo o destino como as amarras significantes. Voltaremos a essa questão ao longo da
parte final do texto.
129
29A
Entre a benevolência e a maldade da sinhazinha reside, também, o lugar de ideal da mulher
branca na cultura brasileira: a mãe-jurídica – já que, como evoca Segato (2021), ela não cuida e
sim a babá, porém, dá o nome e as condições de subjetivação à criança (muito semelhante aí a
função do “pai”, na psicanálise), a mulher casta e sem desejo, a enfermeira do senhor de engenho,
tal como aponta Bastide (2016), a mulher que pela sua alvura só consegue acessar seu desejo em
uma condição limite: a de estrangeiridade – entre as negras e as prostitutas polacas, talvez, ela não
precise ser beata.
Essa posição gozoza encontrada no ideal de branquitude (entre senhores de engenho e
sinhazinhas) que não reconhece, então, a mulher negra como sujeito dado que não reconhece seu
trabalho e sim, a coloca no lugar de propriedade, é o que impossibilita a construção de um saber
inconsciente sobre as condições fundantes do país. Na dialética hegeliana do Senhor e do Escravo,
vemos que o que fica inacessível ao Senhor é o saber, sendo este, do Escravo. Este saber, imputado
a um objeto inumano como o escravo, torna-se produto, dado que o que é impossível ao senhor é
compreender que a construção desse saber se dá pela lógica do trabalho – inacessível ao senhor
sob a pena de deixar de sê-lo, inacessível ao reconhecimento do trabalho do escravo sob a pena
de considerá-lo humano. O saber entendido como produto se torna objeto acessível a senhores
privilegiados que podem obtê-lo. Reconhecer que o saber é construído e não possuído implica em
pensarmos o trabalho inconsciente e não as “propriedades” inconscientes. Deste modo, o que a
dialética hegeliana evidencia na extração de mais-valia do saber do escravo é o próprio apagamento
do trabalho e uma alienação a noção de acesso direto a um saber (já-dado). O reconhecimento
do trabalho passará pelo reconhecimento do desejo e, então ao acesso ao registro da história
conjectural, ficcionada nas fissuras e reentrâncias dos nossos documentos.

Clínica, escuta, materialidade e interpretação: transferências de


cafuné

Estamos sempre dispostos e condicionados a nos entregar ao que confiamos e devotamos


à mulher negra. É nossa história e nossa verdade. Nossa história e nossa violência. No podcast
da Folha, “A mulher da casa abandonada” (2022) essa condição adquire uma alva espessura: “era
minha amiga, brincava comigo quando criança” – dizia Margarida, a dona abandonada da casa. Ao
mesmo tempo que dizia: “ela não trabalhava, minha mãe perguntava e ela dizia que tinha limpado
os móveis e não tinha. O que eu podia fazer? Eu era criança.” O que fica enunciado aí, porém não

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dito é: “ela era criança, como eu”. Por que uma criança trabalharia e outra não? As crianças todas
mentem para que possam se divertir? Que infância é essa, relegada a uma empregada doméstica-
menina? Que lugar é esse, de uma branca, menina, que adulteceu e acha que continua brincando
de bola-queimada com sua amiga-empregada? Vemos aí como social e psíquico não são idênticos
um ao outro e sim, moebianos19: há efeitos de um e outro que não são rebatidos em uma idêntica
reciprocidade, mas que conduzem a um complexo jogo que estrutura a realidade – é necessário
dizer de responsabilização subjetiva e inimputabilidade jurídica a partir dessa tessitura.
Quando o sentido sobre um corpo se torna único e imaginarizado, articulado, portanto, a
uma função gozoza da lei, temos a vinculação entre corpo e propriedade. Um corpo que se torna
propriedade de outro que pode reclamá-lo a partir do direito contratualista, para que continue
sob modo de exploração (e, portanto, sem responsabilização subjetiva já que o corpo do outro
não adquire humanidade). Segato (2003) afirmará que essa construção é possível porque dar ao
feminino o atributo místico torna a mulher alheia à cidadania e, como os deuses, é então tida
como propriedade dos homens e sustenta, nessa propriedade, a dignidade de uma sociedade. Diz
a autora:
[...] a posição ambivalente da mulher como um termo que
participa desse ciclo de economia simbólica, mas que também
constantemente se coloca como sujeito social e psíquico,

19 Figura topológica que, pela torção de uma das bordas que une um círculo, apresenta o continuum-torcido entre
dentro e fora.
130
30A
diferenciado e capaz de autonomia, faz com que uma
parte dela se adapte a posição a ela atribuída, mesmo que
permaneça um resto que não caiba inteiramente em seu papel
na ordem vigente, um algo mais, uma livre-agência, um desejo
outro que não o da submissão. A mulher, nesse sentido, é uma
posição híbrida, um anfíbio da ordem do status e da ordem do
contrato, com uma inserção dupla no sistema total de relações
(SEGATO, 2003, p. 145) (tradução livre).

Segato diz da mulher em suas diversas raças e etnias nesse texto. Essa posição híbrida que
se traduz como externalidade ambivalente conduz toda uma relação do feminino com o desejo, a
demanda, o gozo e suas relações. No caso da mulher negra, entretanto, para além da ambivalência,
a mesma autora (SEGATO, 2021) irá afirmar de sua foraclusão na sociedade e cultura brasileiras,
constituindo, como efeito, a nossa branquitude como misógina e racista.
Foraclusão, termo que diz de um apagamento que é irretornável na simbolização, que
só aparece a partir de um ato, de uma ação, de algo que se sustenta na existência, diferente do
recalque, simbolizável, dito, articulável, interpretado – na foraclusão um dos registros falta para
que possamos consolidar uma significação para além da nossa epiderme, ou seja, do nosso registro
concreto e literal. A antropóloga nos propõe essa leitura a partir da análise histórica no Brasil do
apagamento das amas de leite, amas secas e babás, e, assim, de nosso traço afetivo também,
como já citado neste ensaio. Um apagamento que diz da nossa verdade: não conseguimos encarar
mulheres negras sem dizer de onde somos: do encontro da tradição com o borralho.
A mulher negra, então, foracluída e, a partir dessa foraclusão, compondo com os processos
de subjetivação brasileiros, faz parte das transferências horizontais e verticais das constituições
vinculares do país. Em termos de transferência vertical como a mãe preta, apresentada por Segato
(2021), em termos de transferência horizontal como a mucama, apresentada por Bastide (2016). Ela,
ainda, nas elucidações de Gonzalez (1984) permanece na posição de objeto a, na cultura brasileira,
dado que representa o recalque. É essa mulher que é desejada – “a mulata tipo exportação” e
ao mesmo tempo que é rebotalho, lixo – segundo as palavras da autora (GONZALEZ, 1984), por
estar em trabalhos minorizados, de sobrevivência – um desejo recalcado que se institui, pela nega-
ativa. Pela negação de sua verdade. Vemos, então, materializada nas condições de existência e
corporais dessa mulher um entrelaçamento de transferências, desejo e rebotalho – construção
que sustentaria o que chamamos de função do analista (LACAN, 1998): a função de colocar em
movimento a construção de um saber inconsciente e, para isso, sustentar, no corpo, a possibilidade
de divisão subjetiva para a emergência do sujeito em análise.

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Para além da discussão endogâmica que os termos foraclusão e recalque possam provocar
na diagnóstica da psicanálise, é evidente que tanto Segato (2021) como Gonzalez(1984) miram,
com uma única flecha, e acertam a alvura brasileira que se faz pelo apagamento e exclusão da
negritude e que produzem um sintomático delírio: um delírio à flor da pele, um sintoma da nossa
lida com a memória: seria a cultura brasileira uma adolescente borderline, carregando na pele
aquilo que não se dissolve e nem se ancora a símbolo algum no nosso território? Seja por uma
leitura que convoque nossa relação com a memória20, tal como faz Gonzalez (1984; 1986), seja pela
via do ato, como propõe Segato (2021) a elaboração elegante da primeira, situando a mulher negra
como objeto-a da cultura brasileira é o que causa a liga, que evidencia a mulher negra como essa
grande analista no Brasil.

A analista é a mulher negra: objeto de desejo, rebotalho do sujeito

Quem nos afirma essa liga é Lacan (1998) que diz sobre a escuta estruturada pela linguagem
e desenvolta a partir da experiência, essa, que não se encontra apenas no registro do imaginário,
mas compõe a cena enunciativa de toda e qualquer história conjectural-vivencial com pitadas de

20 É a partir da memória e das possibilidades de ressignificação que a história apresenta como lastro simbólico
que os horizontes do futuro podem se alterar, evitando a repetição do traumático. Essa constatação é clínica e
também política.
131
31A
repetição e aberturas transformativas. Dizia ele que o analista deve situar-se como semblante de
objeto-a do analisante – diríamos nós, a partir das elucidações de Lélia Gonzalez (1984), que o
analista ocupe esse lugar de desejável e deplorável – tal como a autora nos diz sobre a mulher negra
na cultura brasileira.
É como objeto-a que conseguimos nos constituir como essa escuta em ato para a “sinhazinha
boa” e a “sinhazinha má” – a escuta sem barreiras . É desse lugar de rebotalho-desejo que a verdade
pode enunciar-se. No caso do Brasil: a verdade negra de sua brancura. Dita, lá no primeiro hospital
de alienados de Dom Pedro II, dita nas falas higienistas, dita, sem dizer, em uma limpeza étnica que
teme enunciar sua verdade: O Brasil não é europeu. O Brasil é ladino. O Brasil é amefricano.
Se, voltando ao início deste ensaio, não nos havermos com a História (Geschichte) em sua
conjectura, nossas constatações estarão sempre no plano da história vivencial juntamente com a
História: baseadas na presentificação do recalque e no apagamento do reconhecimento de nossas
origens. Um país que não reconhece a sua história, nunca poderá avançar rumo ao desejo e sim
ficar nos olhos daqueles patriotas como a grande esperança que nunca foi fundada – sempre mítica,
ideal e irreconhecível: porque não somos (europeus).
Para uma análise desse caso brasileiro é necessário resgatar os traços do seu passado. É
necessário negritar-se. O sintoma brasileiro, essa construção entre a foraclusão de Segato (2021) e
o recalque de Gonzalez (1984) só conseguirá ser olvida – e aí sim, colocada em seu lugar de justeza
no tempo – quando auscultada por ouvidos enegrecidos: relegar o negreiro ao passado e abraçar a
negritude do nosso território. Quando reconhecermos o cheiro e o suor negros na nossa história e,
só aí, poderemos dizer de um país: latino, brasileiro, verdadeiro. É necessário negritar nossa escuta.
A mulher negra sustenta ao mesmo tempo em que é excluída a fantasia de subjetivação
e identidade do povo brasileiro. O papel do analista se relaciona com isso na medida em que
deve escutar em ausência, presentificando o discurso do inconsciente: deve escutar as amarras
significantes para que o sujeito possa posicionar-se a partir delas (LACAN, 1988). No entanto, para
este trabalho, é necessária uma presença que faça barra. Presentificar a mulher negra na escuta
clínica é qualificar essa escuta na medida em que se presentifica um signo cultural brasileiro
recalcado/ foracluido que, no entanto, compõe, em ausência, sua presença. Importante que seja
negritado aqui que não é porque a psicanálise trabalha e lida com o campo da fantasia, inclusive
possibilitando uma historiografia das produções inconscientes, sobre processos e posições das
pessoas na cultura, que essa análise deve ter o efeito de ratificar posições. Pelo contrário, é a
partir do retorno desse conteúdo de memória recalcado que ele pode se ressituar e, então, ser
transformado.

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A articulação entre a mulher negra e a função da analista no Brasil retorna aqui no
reconhecimento da noção de cuidado e de análise como trabalhos. Só assim será possível ao
saber que ele circule e não fique submetido a um estatuto gozante da propriedade. Por isso se faz
necessário passar pela mulher negra como imago das posições transferenciais em jogo no Brasil
para que então a escuta enegreça, retornando dos recônditos de nossa história e possa, finalmente,
vir a ser uma função universal, de todos que estão posicionados nessa articulação historial: para
que exista um verdadeiro universal (comum) não é possível que ele se faça a partir de exceções.
Fizemos aqui uma tentativa de radicalizar alguns conceitos em suas articulações historiográficas no
território para que eles não sejam meras metáforas da materialidade e sim efeitos de uma práxis.
As cinzas também são o lugar da fênix, já que ela ressurge e se transforma delas. Será que do
nosso borralho também haverá espaço para a transformação e o renascimento? Tal como Mateus
Aleluia enuncia em seu “Amor Cinza”: “Não aceito quando dizem que o fim é cinza/ Eu vejo o cinza
como um início em cor” – que o Brasil negrite-se para transformar-se e colorir.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04

134
34A
PERTO DO FOGO – O QUE SE ESCUTA DE UM TRAUMA?

CLOSE TO FIRE – WHAT ONE CAN HEAR FROM A TRAUMA?

Gesianni Amaral Gonçalves 1


Cláudia Aparecida de Oliveira Leite 2

Resumo: Este trabalho articula a função da dor e da distribuição da libido com o advento do trauma que indica um mais
além do princípio de prazer. Esses aspectos, no caso aqui descrito, culminam em um acontecimento de corpo. O objetivo
principal é avançar em um saber teórico que possa nortear o fazer clínico que suscita questionamentos sobre como
engendrar o deslocamento do campo do gozo ao campo da palavra. Com a escuta atenta à incidência do trauma, permite-
se que algo surja no discurso, oportunizando que o sujeito reescreva sua história a partir do surgimento de um significante
capaz de estruturar todo um campo de significado. O presente trabalho se insere em um espaço mais amplo e permanente
de investigação que busca refletir acerca da tese lacaniana do sintoma como acontecimento de corpo.

Palavras-chave: Trauma. Dor. Acontecimento de Corpo.

Abstract: This work articulates the function of pain and libido’s distribution concerning the advent of trauma that indicates
beyond the pleasure principle. These aspects culminate in an event of the body to the presented case. The main objective
is to advance the theoretical knowledge that can guide clinical practice, which raises questions about how to engender the
displacement from the field of enjoyment to the words. With attentive listening to the incidence of trauma, something is
allowed to appear in the discourse, allowing the subject to rewrite his story from the emergence of a signifier capable of
structuring a whole field of meaning. This work is part of a broader and more permanent space of investigation, to reflect
lacanian thesis of the symptom as a body event.

Keywords: Trauma. Pain. Event of the Body.

1 Docente da UEMG/Unidade Divinópolis. Pós-doutorado em Processos de Subjetivação, linha de pesquisa Processos Psicossociais pela PUC Minas.
Doutora em Estudos Psicanalíticos, linha de pesquisa Conceitos Fundamentais em Psicanálise e Investigações no Campo Clínico e Cultural pela
UFMG. Mestre em Psicologia pela PUC Minas. Especialista em Arte e Educação. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5464259294427621. ORCID: https://
orcid.org/0000-0001-5905-3973. E-mail: gesianni.goncalves@uemg.br

2 Docente do Curso de Psicologia da UEMG / Unidade Divinópolis. Pós-doutorado em Clínica psicanalítica do sujeito e do laço social pela Université
de Toulouse-II, França. Doutorado e mestrado em Linguística pela Unicamp. Graduada em Psicologia pela UFMG. Psicanalista membro do Parlêtre
Divinópolis. Lattes:  http://lattes.cnpq.br/5587813480385289. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1634-4866. E-mail: claudia.leite@uemg.br
Introdução

O ato inaugural de Sigmund Freud fundou um modo de tratar a dor e o adoecimento pela
via da palavra. Desde então, o corpo que interessa à Psicanálise é aquele que sofre os efeitos do
dizer. O que sustenta a clínica, por sua vez, é a possibilidade de uma escuta que eleve o sintoma ao
estatuto de enigma. Entretanto, alguns acontecimentos rasgam as configurações do sujeito e, com
isso, novas elaborações teóricas devem ser formuladas, tal qual a elaboração de Lacan, ao final do
seu ensino, sobre o acontecimento de corpo.
Apresentamos, neste artigo, algumas elaborações que percorrem os elementos fundamentais
dispostos por Freud para tratar o sintoma e avançam até a proposição lacaniana sobre acontecimento
de corpo. Tais discussões foram recolhidas de uma pesquisa teórica, de caráter qualitativo, que foi
desenvolvida por meio de estudos bibliográficos estabelecidos por marcadores conceituais extraídos
das obras de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Aos desdobramentos conceituais, articulamos uma
pontuação clínica que interroga o saber teórico e nos permite questionar os elementos que se
estabelecem ao engendrar o deslocamento do campo do gozo ao campo da palavra. Contamos,
ainda, com a contribuição de autores que escreveram a respeito das incidências do sintoma no
corpo, da dimensão radical do trauma e do acontecimento de corpo. Essas temáticas mantêm sua
importância no campo clínico e teórico e nos permitem avançar nas elaborações e pesquisas em
Psicanálise.

A dor, o corpo e a morte


O verdadeiro acontecimento é o da própria subjetividade,
ilusória como possa ser (ZIZEK, 2017).

Ocorreu um acidente automobilístico no qual a vítima teve o corpo carbonizado, não


sobrando nenhum fragmento de corpo. Um acontecimento.
Na língua francesa, um acontecimento é considerado um fato importante que ocorreu a
alguém; portanto, um fato significativo (ARPIN, 2016). Na língua portuguesa, o termo encontra-se
registrado com os seguintes significados: o que acontece, que tem existência real; evento, fato;
aquilo cuja ocorrência é imprevista, não planejada; eventualidade (HOUAISS, 2001). No âmbito
da Filosofia, o termo acontecimento designa uma ocorrência ou mudança no estado do mundo,
isto é, algo que sucede em um ponto do espaço e que tem um caráter pouco comum ou mesmo

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04


excepcional. Em sentido estrito, acontecimentos são apenas as ocorrências dignas de registro,
aquelas que merecem ficar na história. Zizek (2017) alude a um acontecimento como:
Uma noção anfíbia com mais de cinquenta tons de cinza. Um
acontecimento pode significar um desastre natural devastador
ou o último escândalo protagonizado por uma celebridade, o
triunfo do povo ou uma brutal transformação política, uma
experiência intensa proporcionada por uma obra de arte ou
por uma decisão de foro íntimo (ZIZEK, 2017, p. 7).

A amplitude dessa menção a acontecimento não é nada útil para a delimitação de um


conceito. Por outro lado, essa visão geral, ao modo de um voo panorâmico, permite estabelecer
conexões e localizar fronteiras. Daí, podemos empreender que um acontecimento porta uma
transformação, como se marcasse um antes e um depois. Eis um acontecimento em estado puro:
algo fora do normal, que emerge subitamente interrompendo o fluxo natural das coisas.
O acidente mencionado é um acontecimento em estado puro, que, em sua vertente de real,
surge como algo que não pode ser diretamente simbolizado, como um encontro traumático que
desestabiliza inteiramente o universo de significado. O real, que estabelece o encontro tangível
entre morte e vida, potencializa-se, nesse caso, com a impossibilidade de um sepultamento. Não
há corpo, não há nada a ser visto, nada a ser feito, nada a ser velado.
O conto À noite os ratos dormem sim, escrito por Borchert (1947), citado por Dantas (2020),
narra a história de Jürgen, um menino de nove anos que passa os dias protegendo o corpo do
136
36A
irmão, de quatro anos, morto após um bombardeio. Com medo de que o irmão fosse devorado
por ratos, o menino permanece ao lado dos escombros da casa da família vigiando e espantando
esses animais. Agindo assim, o pequeno enaltece seu papel de irmão mais velho e protetor que
permanece vivo, mesmo após o falecimento do irmão.
A atitude de Jürgen mostra que os deveres com os familiares não terminam com a morte
deles, ao contrário, o falecimento gera uma série de eventos que devem ser executados e ritualizados.
As cerimônias fúnebres têm uma função simbólica que, ao modo de um tempo para compreender,
amplia a possibilidade de a família estar com o morto, preservando uma etapa necessária para a
elaboração da perda e para a despedida. Como nos apresenta Milner (2006, p. 12), para todo ser
capturado pela representação, a irrupção da morte só pode suscitar um afeto: o horror. Segundo
esse autor, mesmo que, no instante seguinte, outros afetos se alinhem e se liguem, “nesse nada que
separa um antes de um depois, ao sujeito aconteceu um real” (MILNER, 2006, p. 14).
Em nossa cultura, os rituais funerários estão centrados na presença e no simbolismo
invocados pelo corpo, que pode ser tocado, lavado, vestido, purificado e contemplado uma última
vez. Ver o corpo traz concretude à morte e nos prova que enterramos a pessoa certa. O cuidado com
o corpo do morto faz parte do modo de se relacionar com a morte, com o luto e com a separação
(FUSTINONI; CANIATO, 2019).
Há anos, repercussões desse acidente automobilístico se repetem com data marcada.
A mãe da vítima age como se fosse obrigada a repetir o acontecimento como uma experiência
atual. Essa experiência de sofrimento não “procura” se repetir de modo consciente; ela se repete
por compulsão, isto é, inconscientemente. Tal como propõe Freud (1920/1980, p. 31), o sujeito “é
obrigado a repetir o material recalcado como se fosse uma experiência contemporânea, em vez
de […] recordá-lo como algo pertencente ao passado”. O autor nos orienta a compreender que a
compulsão à repetição, em muitos casos, está associada ao conteúdo recalcado, ou seja, ela é uma
expressão do poder do recalcado que insiste em se apresentar. Nessa perspectiva, “a compulsão à
repetição deve ser atribuída ao recalcado inconsciente” (FREUD, 1920/1980, p. 33).
No caso em questão, a experiência traumática se repete na forma de um herpeszóster1, que
se enquadra na classificação de uma dor neuropática. A dor é intensa, mas o tempo de duração é
curto, ou seja, refere-se a uma dor aguda que “vai e volta” como relata essa mulher. Entretanto,
do dizer desse sujeito é possível extrair algo desse sintoma que porta a marca de um significante:
“queima como fogo”. Queima a cada aniversário do filho que morreu próximo à data do nascimento.
A inclusão da dor (sintoma) desse sujeito em uma cadeia de significantes, que reportam à maneira
como o filho morreu e às crises de dor em datas que marcam o acontecimento traumático, autoriza-

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nos a considerar essa dor como psicogênica, ou seja, uma dor que se relaciona a uma organização
psíquica. Freud (1905/1980, p. 271) orienta: “Ao formar um juízo sobre as dores, que se costuma
considerar como fenômenos físicos, em geral cabe levar em conta sua claríssima dependência das
condições anímicas”. Para além da doença, o herpes-zóster (uma lesão concreta infligida ao corpo),
existe uma dor que é um sintoma, que se inscreve na cadeia discursiva da paciente e expressa um
conflito psíquico. Consequentemente, há aí uma afecção no sentido amplo, um pathéma que atua
sobre um organismo em sua sensibilidade e sentimentalidade.

O trauma como acontecimento em Freud

Em Além do princípio de prazer (1920), Freud se refere à energia pulsional, que é transferida
para o corpo, como o último recurso capaz de conter o transbordamento de excitações no psiquismo.
Articulamos as ideias apresentadas por ele nesse texto à noção lacaniana de acontecimento de

1 Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia (c2021), herpes-zóster é um vírus que resulta da reativação
do vírus da varicela-zóster, causador da catapora. O que faz o vírus ser reativado é geralmente desconhecido, em
alguns casos, a reativação ocorre quando uma doença ou medicamento enfraquece o sistema imunológico. A dor
é o sintoma mais importante no herpes-zóster. Ela costuma preceder o aparecimento das lesões e pode persistir
por várias semanas ou meses após a resolução das lesões. Estas consistem em vesículas dispostas em trajeto
linear, acometendo frequentemente o tronco, a face ou os membros. O diagnóstico costuma ser clínico. No estágio
pré-lesão, pode ser confundido com outras causas de dor localizada; no entanto, quando a erupção aparece, o
diagnóstico é quase sempre óbvio.
137
37A
corpo (LACAN, 1979), destacando as referências freudianas sobre o trauma. Nesse momento de
sua obra, Freud examinou a questão relativa à transferência da energia pulsional para o corpo com
base na distinção entre a dor física e o trauma. Para configurar essa distinção, ele vincula trauma e
acontecimento2. Consideremos o que Freud escreveu a respeito disso.
Um acontecimento como um trauma externo está destinado
a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento
da energia do organismo e a colocar em movimento todas as
medidas defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio
do prazer é momentaneamente posto fora de ação (FREUD,
1920/1980, p. 45).

A dor seria uma efração do escudo protetor em área limitada e o trauma seria uma ruptura
em grande extensão. A respeito desse último, Freud comenta: “descrevemos como traumáticas
quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o
escudo protetor” (FREUD, 1920/1980, p. 45). O psicanalista está em busca de compreender o que
ocorre nos casos que contradizem a dominância do princípio de prazer, e o trauma parece ser um
fator capaz de lançar luz à questão, dado que, nas situações traumáticas, o princípio de prazer é
desativado. Dessa maneira, o desprazer do sofrimento físico resulta de um alto investimento de
energia que desconhece o princípio do prazer. Conjecturamos que, tal qual os sonhos que repetem
traumas vividos não estão a serviço do princípio do prazer, mas sim contribuindo para executar
outra tarefa (elaboração de um luto, por exemplo), também a dor tem aqui uma função que está
para além desse princípio e que surge em obediência à compulsão à repetição.
No caso anteriormente mencionado, “o desprazer específico do sofrimento físico” (Freud,
1920/1980, p. 45), resultante do atravessamento de estímulos pelo escudo protetor, teria a função
de uma defesa contra o excesso de energia advinda do acontecimento traumático (a morte súbita
do filho) que, por sua vez, é capaz de provocar um acontecimento no corpo: a dor que queima como
o fogo, o mesmo fogo que carbonizou o filho. Desse modo, o princípio do prazer é posto fora de
ação, cedendo lugar a um “além do princípio do prazer” e indicando que as neuroses traumáticas
são facilitadas por um conflito no eu. Freud detalha esse mecanismo considerando que
Não há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental
seja inundado com grandes quantidades de estímulos; em
vez disso, outro problema surge, o problema de dominar as
quantidades de estímulo que irromperam, e de vinculálas,

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no sentido psíquico, a fim de que delas se possa então
desvencilhar (FREUD, 1920/1980, p. 45).

O surgimento do problema parece ser a solução, ou seja, a dor exerce o poderoso efeito
de redistribuição da libido e de vinculação a um sentido psíquico como modo de dominar uma
superexcitação, um investimento libidinal muito grande. Portanto, a função da dor, ao exigir “uma
hipercatexia narcisista do órgão prejudicado” (FREUD, 1920/1980, p. 49), vincula o excesso de
excitação dando-lhe um destino. Sendo assim, o trauma é pensado por Freud, nesse texto, por uma
perspectiva econômica, isto é, de moção de libido, aproximando-se do modo como ele explicou
a dor no texto Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Conjuga-se, assim, a função da dor,
de distribuição da libido e vicissitude da pulsão, com o advento do trauma, que indica um mais
além do princípio de prazer. Todos esses aspectos, no caso aqui descrito, culminam em um sintoma
no corpo, na manifestação da dor psíquica em uma dor orgânica que pode ser considerada um
acontecimento de corpo.
Seguiremos a trilha freudiana no texto Além do princípio de prazer (1920), que marcou
profundamente a prática clínica psicanalítica. Freud afirma que “vinte e cinco anos de intenso trabalho
tiveram por resultado que os objetivos imediatos da psicanálise sejam hoje inteiramente diferentes
do que eram no começo” (FREUD, 1920/1980, p. 31). Reiteramos o valor dessa obra que apresenta
conceitos e noções tão heterogêneos quanto importantes para a Psicanálise contemporânea. O

2 A língua alemã usa as palavras geschehen e vorkommnis para designar o acontecimento. No texto original Freud
utilizou vorkommnis.
138
38A
texto, que apresenta um limite ao princípio do prazer como regulador da vida sexual, possibilita-
nos extrair noções caras à clínica, como a pulsão de morte e os paradoxos da repetição, e fazer uma
atualização da teoria do trauma, deixando a porta aberta para os desdobramentos lacanianos como
o gozo e o real.
Retomamos aqui a questão do trauma, com a função da dor, por compreender que essas
noções fornecem diretrizes clínicas importantes. Examinemos o que Freud menciona a respeito do
dano físico causado pelo trauma:
[…] moléstias poderosas e febris exercem um poderoso
efeito, enquanto perduram, sobre a distribuição da libido.
Assim, por um lado, a violência mecânica do trauma liberaria
uma quantidade de excitação sexual que, devido à falta
de preparação para a angústia, teria um efeito traumático,
mas, por outro lado, o dano físico simultâneo, exigindo uma
hipercatexia narcisista do órgão prejudicado, sujeitaria o
excesso de excitação (FREUD, 1920/1980, p. 49).

O que se estabelece mediante essa proposição freudiana é a demarcação do trauma como


resultante de um acontecimento que não encontra defesas psíquicas, produzidas a partir de uma
angústia sinal. Ou seja, o traumático diz respeito a encontrar algo que não estava antecipado no
discurso. Segundo Freud, a angústia sinal aciona as defesas para a constituição do sintoma. Destituído
das defesas produzidas pela angústia, o sujeito fica preso na reprodução da cena traumática, sem
conseguir constituir a Outra cena, no caso em questão, padecendo de sintomas somáticos.
As considerações dessa vinheta clínica, examinadas pela ótica psicanalítica, autorizam
algumas conjecturas. Trata-se, nesse caso, de um sujeito cuja estrutura apreendida no decorrer
da análise sinaliza para uma neurose histérica, na qual a sintomatologia, além da dor, poderia
facilmente nos conduzir à hipótese de uma conversão histérica, haja vista para o insuportável da
representação que se converteu em dor física. O esclarecimento do termo conversão indica tratar-
se de um conflito extravasado no corpo por meio de um determinado sintoma. Freud afirma que:
Na histeria, a representação incompatível é tornada inócua
pela transformação de sua soma de excitação em alguma
coisa somática. Para isso eu gostaria de propor o nome de
conversão. A conversão pode ser total ou parcial. Ela opera ao
longo da linha de inervação motora ou sensorial relacionada
[…] com a experiência traumática (FREUD, 1894/1980, p. 56).

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Para o autor, a conversão possibilita omitir do consciente a representação conflitante,
sendo esta, como sabemos, de natureza sexual. O procedimento consiste em separar o afeto
da representação, neutralizando-a e tornando-a inofensiva. Assim, o afeto (agora desligado da
representação) é transposto ao corpo. O que está em jogo na conversão histérica e que se diferencia
da repulsa, considerada por Freud como fenômeno primário da histeria, é que a conversão histérica
evidencia um tipo de funcionamento do corpo oposto ao que se produz no fenômeno da repulsa.
Nesta, o corpo é transmutado do erótico para o orgânico, enquanto no sintoma de conversão ocorre
o contrário, há uma supererotização do orgânico, por isso ela é analisada como uma representação
sexual, sendo, portanto, uma simbolização. Assim, a histeria se produz pelo recalcamento de uma
representação incompatível com o ego, da qual fora extraído seu afeto associado que é utilizado
para a inervação somática, nomeada por Freud de conversão.
Processo semelhante ocorre na obsessão sem, contudo, converter-se ao somático. Nesse
caso, o afeto liberado da representação fica na esfera psíquica e se liga a representações não mais
conflitantes, que foram neutralizadas, mas se tornam obsedantes. O afeto não se dirige mais à
instância somática, ele se liga a uma representação neutra, não sexual. Percebemos que o trabalho
é o mesmo, tanto na histeria quanto na neurose obsessiva: transformar a lembrança traumática em
representações enfraquecidas, residindo, no fim dado a tais representações, a diferença entre esses
dois tipos de neurose.
Na perspectiva psicanalítica, que se pauta no diagnóstico sob transferência, o efeito do dizer
de cada um sobre o sintoma norteia a direção do tratamento, priorizando o singular ao universal e
139
39A
valorizando a maneira como cada sujeito fala do seu sofrimento.
Portanto, com a escuta atenta à distinção das incidências do sintoma no corpo, conduzimos
de modo a permitir que algo mais surgisse no discurso da paciente, oportunizando que o sujeito
reescrevesse sua história a partir de sua fala. Assim, foi possível entrever uma cadeia de significantes
que direcionou nossa escuta de modo a não relacionar o acontecimento de corpo dela a uma
conversão histérica, pois o mecanismo envolvido neste caso é distinto do que está em jogo no caso
das conversões, apontando para um acontecimento de corpo que porta no efeito contingencial (do
acontecimento) uma ruptura simbólica. Na vinheta clínica que aqui apresentamos, a determinação
simbólica deriva da contingência e possibilita considerar o acontecimento de corpo como um gozo
do corpo. Laurent (2016) esclarece que o termo acontecimento (événement) ressoa, em francês, o
verbo latino evenire – que corresponde a vir de fora/chegar – e o substantivo eventos que significa:
procedente de. Dessa maneira, o autor esclarece que “acontecimento é ‘tudo o que chega’ com
uma dimensão de surpresa ou de contingência, antes que se possa estabelecer o sentido desse
encontro. Apresentar assim o sintoma é acentuar sua dimensão fora de sentido” (LAURENT, 2016,
p. 50).
Ao acentuar a dimensão “fora de sentido” do sintoma, advindo da surpresa que gera
o acontecimento de corpo, podemos inferir que a escrita no corpo se distingue da dimensão
significante, apontando para a escrita do real. O que está em questão não é mais uma mensagem a
ser decifrada, como no caso da conversão histérica, mas um afeto que é enigmático e, por isso, deve
ser relacionado à vertente do enigma. Assim, o que está em jogo são as vertentes do sentido e do
fora de sentido em relação às manifestações corporais. Dessa feita, o sintoma neurótico se insere na
vertente do sentido, na produção de um saber. Por outro lado, no viés do fora de sentido operante
no cerne do acontecimento de corpo, Lacan (1975-1976) mostra que Joyce renuncia às articulações
de sentido, ao lograr fazer do seu sintoma um sinthoma. Com a noção de acontecimento de corpo,
Lacan busca diferenciar o sintoma da vertente simbólica do sintoma como um modo de gozo,
dimensão da escrita e do real.

O acontecimento e os registros Simbólico, Imaginário, Real

Zizek (2017, p. 9) mostra que um acontecimento é “o efeito que parece exceder suas causas –
e o espaço de um acontecimento é aquele que é aberto pela brecha que separa o efeito das causas”.
Pensar o acontecimento como um efeito que excede suas causas traz de volta a multiplicidade

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e o questionamento: “seria um acontecimento uma mudança na maneira como a realidade se
apresenta a nós ou uma violenta transformação da realidade em si?” (Zizek, 2017, p. 11).
Nessa perspectiva, o autor propõe certas classificações capazes de facilitar a definição
do acontecimento (événement), tais como: separar o acontecimento em espécies e subespécies
e distinguir em acontecimentos materiais e imateriais. Contudo, ele recua desse propósito
por concluir que essa forma de abordar o acontecimento ignora sua característica básica: “o
surgimento surpreendente de algo novo que solapa qualquer esquema estável. A única solução
adequada é abordar o acontecimento de maneira acontecimental” (ZIZEK, 2017, p. 11), ou seja,
como o nada que separa o antes e o depois. Essa perspectiva de abordagem permite expor os
inescapáveis impasses das definições, abordando suas dificuldades e seus paradoxos. Entretanto,
ainda assim, o autor estabelece uma classificação do acontecimento, tendo como base a tríade
lacaniana Imaginário, Simbólico e Real. Como estabelecer um acontecimento tomado em cada um
dos registros: Simbólico, Imaginário e Real?
O acontecimento simbólico é a emergência de um novo significante mestre. Ele apresenta
uma clara articulação linguística, é um efeito da linguagem sobre o objeto. “Um ato discursivo
torna-se um acontecimento simbólico quando sua ocorrência reestrutura o campo inteiro: embora
não haja um novo conteúdo, tudo é de alguma forma profundamente diferente” (ZIZEK, 2017, p.
130). O autor adverte quanto ao risco de se confundir o poder transformador de um significante
mestre com o chamado performativo (ato de fala). Ele elucida que a intervenção de um significante
mestre tem a forma de só se declarar posteriormente ao fato que algo já existe, omitindo que,
retroativamente, essa declaração muda tudo. Assim, a transformação subjetiva ocorre no momento
140
40A
da declaração (a posteriori) e não no momento do ato.
O acontecimento imaginário é aquele que mais se aproxima da teoria estoica dos incorporais,
semelhante ao que Deleuze (2007) chamou acontecimento-emoção abstrato. Zizek (2017, p.
144) comenta que esse acontecimento é imaginário no sentido estritamente lacaniano porque
“ele flutua à distância de seu suporte material, o qual o representa e o produz, na frágil esfera de
superfície entre o ser e o não ser. […] Sentidos são superfícies que não existem, apenas subsistem:
não são coisas ou fatos, mas acontecimentos”. Proveniente da noção de incorporais, esse extrasser
impassível está na superfície das coisas, trata-se do ideacional que não pode ser mais outra coisa
senão um efeito.
O acontecimento real é algo que não pode ser nem diretamente vivenciado nem simbolizado,
como um encontro traumático que desestabiliza inteiramente o universo de significado. Na busca
por delimitar a natureza acontecimental, o autor propõe a seguinte definição: um trauma que
desestabiliza a ordem simbólica em que existimos, o surgimento de um novo “significante-mestre”,
um significante que estrutura todo um campo de significado […] (ZIZEK, 2017, p. 12).
Muitas questões podem ser desdobradas dessa inquietante citação, como, por exemplo,
o aspecto traumático do acontecimento. A afirmação do filósofo é pertinente porque, se não há
uma alteração da ordem simbólica, o acontecimento deixa de ter sentido ao não se vincular a uma
experiência marcante para quem a vivencia. Seguindo por essa via, do acontecimento como algo
capaz de comprometer a ordem simbólica, passemos à visada lacaniana do caso em discussão.

O trauma como o real em Lacan

Pela perspectiva de Lacan, podemos reportar a esse caso pela via de uma noção por ele
inventada: o Real, que ele indica da seguinte maneira: “Mas quanto ao que chamo de real, eu
inventei, porque se impôs a mim” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 128). Para esse autor, a realidade
humana e o direcionamento da clínica estão marcados por três registros: Imaginário, Simbólico e
Real. Lacan introduz esse ternário no campo analítico durante sua conferência pronunciada em 8 de
julho de 1953, na abertura das atividades da Sociedade Francesa de Psicanálise (Société Française
de Psychanalyse). As dimensões Real, Simbólico e Imaginário se constituíram ao longo do ensino
de Lacan, ultrapassando a aparição desse ternário em 1953 e transpondo sua articulação sobre os
nós no Seminário 22, R.S.I. (1974-1975, inédito). Lembramos que, nesse seminário, Lacan se dedica
a falar do R.S.I., Real, Simbólico e Imaginário, manipulando o nó borromeano. Ele nos indica que

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sua tarefa durante esse seminário é “delimitar ao máximo o que pode ser o real de um efeito de
sentido” (LACAN, 1974-1975, p. 30, inédito) e interroga o ternário para clarificar a relação que há
entre cada um dos registros, buscando destacar que se trata de três termos veiculadores de um
sentido.
Sucintamente, podemos aludir ao registro do Imaginário como a dimensão de imagens e dos
fenômenos ligados à construção do eu. A dimensão da linguagem (significantes) e das estruturas
sociais estão referidas ao registro do Simbólico. O registro do Real seria aquele que não deve ser
entendido como um horizonte de experiências concretas acessíveis à consciência imediata. Nos
dizeres de Lacan (1974-1975), o Real é o estritamente impensável. Por isso mesmo, o Real não
está ligado a um problema de descrição objetiva de estados de coisas. Ele diz respeito a um campo
de experiências subjetivas que não podem ser adequadamente simbolizadas ou colonizadas por
imagens. Isso nos explica por que o Real é sempre descrito de maneira negativa, como se fosse
necessário mostrar que há experiências que só se oferecem ao sujeito sob a forma de processos
disruptivos (SAFATLE, 2018).
O real é um termo empregado como substantivo por Lacan, extraído, simultaneamente, da
Filosofia e do conceito freudiano de realidade psíquica para designar uma realidade fenomênica que
é imanente à representação e impossível de ser simbolizada. Utilizado no contexto de uma tópica,
o conceito de real é inseparável dos outros dois componentes desta, o Imaginário e o Simbólico, e
forma com eles uma estrutura (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 644-645).
É possível localizar no ensino de Lacan diversas formas de referir-se ao real. Tomaremos
aquelas que são úteis para nossa elaboração acerca do caso clínico mencionado anteriormente,
141
41A
lembrando que a noção de real, como o resto impossível de simbolizar e como obstáculo ao
princípio do prazer, parece não se alterar em seu ensino.
Para as elaborações que esse trabalho contempla, gostaríamos de destacar uma aproximação
que Lacan estabelece no Seminário, livro 23: o Sinthoma (1975-1976). Lacan aproxima o real do
fogo. Ele diz: “O fogo é o real. O real põe fogo em tudo. Mas é um fogo frio. O fogo que queima é
uma máscara, se assim posso dizer, do real” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 117). Ao usar a metáfora
do fogo frio, ele fala do sentido enquanto excluído do real e afirma que “a pulsão de morte é o
real na medida em que ele só pode ser pensado como impossível” (p. 121). A morte surge, nessa
concepção lacaniana, como o impossível de ser pensado e como fundamento do real.
Retomando a vinheta clínica, percebemos, nesse caso, a manifestação de um sintoma que
queima como fogo. O fogo frio do real. Parece haver aí uma repetição, uma necessidade de manter
viva a chama do real que pôs fogo em tudo: carro, documentos, roupas, corpo. Articulando esse
“impossível de ser pensado” lacaniano às ideias de Freud em Além do princípio de prazer (1920),
apresentamos outra definição de real proposta por Lacan: “[…] o real em questão tem o valor do
que chamamos geralmente de um trauma” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 127). Essa indicação impõe
um efeito sobre esse trabalho, pois constatamos que o que está em jogo no trauma é sempre o real;
o traumático é o real que é capaz de conservar o sentido do sintoma.
Assim sendo, propomos a articulação entre o núcleo pulsional do sintoma – quando o
princípio do prazer não esgota toda a dinâmica do psiquismo e a energia pulsional é transferida para
o corpo –, o real traumático em Lacan e a inscrição do significante no corpo, marcando um modo
característico de gozo do sintoma, designando um acontecimento de corpo.
Retomando a demarcação da função da dor na obra freudiana, vale lembrar a concepção
masoquista dada à dor no texto As pulsões e suas vicissitudes (1915). Assim, Freud menciona:
[…] a dor é muito apropriada para uma finalidade masoquista
passiva, pois temos todos os motivos para acreditar que as
sensações de dor, assim como outras sensações desagradáveis,
beiram a excitação sexual e produzem uma condição agradável,
em nome da qual o sujeito, inclusive, experimentará de boa
vontade o desprazer da dor (FREUD, 1915/1980, p. 149).

Já não seria essa definição apresentada por Freud, cinco anos antes, o indicativo de um mais
além do princípio do prazer e que viria a possibilitar os desdobramentos lacanianos a respeito do
corpo e do gozo? Bem, essa é uma questão para outro momento, por ora, deixemos o sintoma no
que ele é: um acontecimento de corpo.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

143
43A
O DESAMPARO: DAS IMPOTÊNCIAS DO SUJEITO A UM LUGAR
DE POSSIBILIDADES

THE HELPLESSNESS: FROM THE SUBJECT’S IMPOTENCE TO A PLACE OF


POSSIBILITIES

Dúnia Ferreira Maia 1


Janilton Gabriel de Souza 2
Alessandro Messias Moreira 3
Roberto Lopes Mendonça

Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre as vivências de desamparo, visando identificar, a partir das experiências de
sofrimento, as frágeis amarras do sujeito pós-moderno frente às demandas do social. O trabalho, de cunho bibliográfico,
percorre a noção de desamparo em Freud, pela investigação rigorosa de seus escritos e seleção de alguns importantes
textos, perpassando também discussões teóricas formuladas sobre o tema. Parte-se da etimologia do termo desamparo
no alemão Hilflosigkeit, com elaborações sobre as vivências de satisfação, medo, perda do amor, culpa e mal-estar,
formuladas por Freud em sua obra. Demonstra-se que, apesar de persistirem na pós-modernidade arranjos discursivos
que sustentam um amparo imaginário, o desamparo, na qualidade de elemento constitutivo do sujeito, aponta para o
limite e a possibilidade de edificação do laço social, enquanto lugar possível de cuidado, num mundo onde não há, nem
nunca houve, quaisquer garantias.

Palavras-chave: Desamparo. Sofrimento. Mal-estar. Castração. Cuidado.

Abstract: This paper proposes a reflection on the helplessness’s experiences, aiming to identify, from the experiences of
suffering, the fragile ties of the post-modern subject in the face of social demands. The article has a bibliographical nature,
covering Freud’s helplessness notion through a rigorous investigation of his writings, a collection of some important texts,
and theoretical discussions formulated on the subject. It combines the etymology of the term helplessness in German
(Hilflosigkeit), with amplification on the experiences of satisfaction, fear, loss of love, guilt, and discomfort, expressed
by Freud in his work. It is shown that, despite the persistence of discursive arrangements in post-modernity that sustain
imaginary support, helplessness, as a constitutive element, points to the limit and the possibility of building the social bond,
as a possible place of care, in a world where there has never had any guarantees.

Keywords: Helplessness. Suffering. Malaise. Limit. Caution.

1 Graduanda de Psicologia (UNIS). Graduada em Direito (FADIVA). Atua profissionalmente como servidora pública do TJMG. Membro do Interfaces
em Psicanálise - Núcleo de Pesquisas e Estudos. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9607336444335263. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1469-3616.
E-mail: dunia.aia@alunos.unis.edu.br.

2 Graduado em Psicologia (UNIFENAS). Mestrado em Psicologia (UFSJ). Professor do Grupo Unis-MG e Coordenador da Pós em Psicanálise do Unis-
MG e do Interfaces em Psicanálise – Núcleo de Pesquisas e Estudos. Colabora no Instituto Internacional de Psicanálise (IIP). Lattes: http://lattes.
cnpq.br/1126366899756942. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3965-0564. E-mail: janilton.gabriel@unis.edu.br.

3 Graduado em Psicologia (UNIFENAS). Doutor em Educação (UNIMEP). Professor do Grupo Unis-MG no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Gestão e Desenvolvimento Regional. Lattes:  http://lattes.cnpq.br/5303526458310366. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8120-6219.
E-mail: alessandromoreira@unis.edu.br.

4 Graduado em Psicologia (UEMG) e em Filosofia (UFLA). Doutor em Psicologia (UFMG). Pós doutor em Psicologia Clínica (USP). Professor da Pós
em Psicanálise do Unis-MG e Psicanálise e Saúde Mental da Faculdade Pitágoras (Divinópolis). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9753508439908716.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6042-7546. E-mail: roberto.mendonca@professor.unis.edu.br.
Introdução

O presente artigo propõe uma reflexão sobre a vivência de desamparo, intrínseca à condição
humana, com a qual os indivíduos hão de se deparar em vários momentos da vida, experimentando,
muitas vezes, intenso sofrimento. Sofrimento este, que revela o mal-estar citado por Freud
(1930[1929]/2020), presente no convívio social como marca inevitável da existência.
Pensar a inevitabilidade do mal-estar decorrente da renúncia às pulsões, que permite a
inscrição no laço social, é fundamental para compreender a relação de codependência entre os
indivíduos numa dimensão mais ampliada, dimensão de desamparo, condição indelével do existir.
Assim, caberá percorrer parte da obra freudiana, em busca da construção da noção psicanalítica
de desamparo, como também trazer à tona as discussões teóricas e elaborações de alguns outros
autores sobre tão importante temática.
Além de um convite à reflexão, este estudo de revisão bibliográfica almeja analisar qual o lugar
do desamparo na vida humana, enquanto marco do limite e espaço de possibilidade, revelando-
se como motivação primordial para o enlaçamento entre os indivíduos e o estabelecimento das
relações sociais. Vale ressaltar, a construção do presente trabalho, elaborado durante a pandemia
de COVID-19, permitiu observar que o desamparo constitutivo do sujeito desponta de modo a
também exigir deslocamentos capazes de situá-lo frente a mais esta contingência.

O sofrimento em ‘tempos críticos’ de desamparo

As experiências de sofrimento, potencializadas em momentos críticos, convocam o sujeito a


perceber-se num lugar desconfortável, onde a insegurança e a ausência de previsibilidade balançam
sua estrutura, colocando em questão todas as amarrações que o sustentavam até ali (DUNKER,
2015).
É assim em grandes tragédias como as guerras, situações de desastres naturais, pandemias
e até mesmo em perdas individuais significativas, momentos nos quais os contornos traçados para
a vida revelam-se provisórios, quando não ilusórios. Experiências que podem provocar, em quem
as vivencia, um profundo afeto de angústia, enquanto resposta pela ausência de garantias (FREUD,
1930[1929]/2020).
Durante o período de pandemia do vírus Covid-19, foi possível observar como muitas
pessoas, num dado contexto e lugar, perceberam-se invadidas pelo sentimento de vulnerabilidade,

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trazendo à tona questões essenciais sobre as impotências do sujeito. Cada um tem experimentado
novamente, revivendo a seu modo, o sofrimento de seu desamparo constituidor, conforme bem
descrito por Freud em sua vasta obra, que será vista em parte, mais adiante.
Segundo Birman (2021), os efeitos desta pandemia equiparam-se às catástrofes promovidas
pelas duas grandes guerras mundiais, produzindo a desconstrução dos modos de vida sociais e
impactando de forma traumática as existências singulares dos sujeitos. Na lição do autor, tais efeitos
“implicaram a emergência histórica de um limite ostensivo e flagrante na onipotência humana de se
acreditar no Deus secularizado” (BIRMAN, 2021, p. 65). O ser humano, mais uma vez, foi deslocado
de sua pretensão de domínio absoluto do mundo e jogado, uma vez mais, em sua posição inicial de
desamparo frente ao desconhecido.
A vivência de desamparo, em toda e qualquer situação de sofrimento, sinaliza as bases
instáveis a partir das quais a experiência humana inicia-se. Através dela, adquire-se uma forma
de saber que só pelo sofrimento faz-se possível (ROCHA, 1999). Dunker (2015, p. 219) descreve
que “todo sofrimento contém uma demanda de reconhecimento”, nesse sentido, é preciso
reconhecer a fragilidade integrada à própria existência, a fim de que o sujeito não seja engolido
pelas experiências de sofrimento.
De um lado, o sofrimento parece decorrer de certa inadequação, em que o sujeito vê-se
deslocado dos modos de ser aos quais não consegue corresponder, sentindo-se frágil e impotente,
sem condições de fazer amarrações duradouras, decorrentes das demandas do social. É a
atualização do estado inicial em que se chega a esse mundo, sem quaisquer condições próprias
de sobrevivência, quando o ser é amparado por um outro, com os cuidados necessários em face à 145
45A
precariedade de sua estrutura física e psíquica (FREUD, 1950[1895]/1996).
Numa outra perspectiva, e já espelhando as vivências de um mundo pós-moderno,
sentido por muitos em sua experiência temporal como um mundo em crise, o sofrimento afigura-
se na própria fragilidade das instituições e do laço simbólico, que revelam ausência de solidez e
estabilidade (MINERBO, 2013). Embora as transformações sociais sejam inerentes ao passar do
tempo, por isso mesmo dotadas de historicidade, ao sujeito só é possível apreender as crises do
seu tempo.
A crise deste tempo apresenta-se na mudança de eixo das identidades, de vertical para
horizontal, conforme descreve Forbes (2012, p. 176), que se refere ao homem pós-moderno
como um ser “desbussolado’’. Diferente dos outros animais que nasceram com um determinismo
biológico capaz de orientar a espécie com segurança inquebrantável, o homem constitui-se,
enquanto ser inventivo, capaz de criar constantemente novos modos de vida, seja modificando
seu corpo ou mesmo o ambiente em que vive. O autor descreve a mudança operada no laço social,
que deixa de ser linear, rígido e verticalizado, passando a um molde flexível, criativo, múltiplo e em
forma de redes horizontalizadas, apontando como marco para essa mudança o surgimento da web,
na década de 90 (FORBES, 2019).
Logo, de onde poderia se esperar respostas prontas, o que se tem é liquidez (BAUMAN,
2001) e incerteza. A vantagem, neste caso, consiste na possibilidade de reinvenção de novos modos
de vida pelos sujeitos, de modo a contemplar a singularidade do desejo (MINERBO, 2013).
Ao que se nota, o sofrimento perpassa não só a experiência de renúncia às pulsões, mas
principalmente a percepção de que este mundo é instável, ou seja, um lugar sem quaisquer
garantias. Assim, nenhum esforço será suficiente para que o sujeito se sinta seguro e amparado,
pois o sofrimento atravessa a experiência humana enquanto jornada transitória e dinâmica.
Foi o reconhecimento dessa ausência de garantias que possivelmente motivou o homem a
edificar sua civilização, numa tentativa de lidar com as forças da natureza, com os enigmas da vida
e, sobretudo, com a própria morte, conforme assinalou Freud (1930[1929]/2020), em seu Mal-
estar na cultura. Tudo isso para constatar que sofrer mostra-se inevitável, em virtude da vida ser
permeável aos acontecimentos, motivo pelo qual há que edificar, senão uma civilização livre de
inseguranças e retrocessos, ao menos um lugar possível de cuidado. A fim de melhor elaborar a
temática, importa percorrer a noção de desamparo em Freud.

A noção de desamparo em Freud

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No alemão, o termo “desamparo” é expresso pela palavra Hilflosigkeit, uma palavra muito
significativa, nos dizeres de Rocha (1999), que elucida sua composição pelo substantivo Hilfe
(“auxílio, ajuda, proteção, amparo”), mais o sufixo adverbial modal losig (“carência, ausência, falta
de”), e ainda pela terminação keit (que indica substantivos do gênero feminino). Segundo ele, “a
palavra Hilflosigkeit significa, portanto, uma experiência na qual o sujeito se encontra sem ajuda -
hiflos - sem recursos, sem proteção, sem amparo” (p. 334). Assim, fez-se ressoar o sentido concreto
do termo alemão Hilflosigkeit, qual seja, “estar em uma condição sem ajuda possível” (SAFATLE,
2015, p. 52). Trata-se, pois, de formulações que revelam a precariedade do indivíduo ao nascer, sem
condição alguma de sobreviver por si mesmo, a não ser pelo cuidado de um outro.
A vivência do desamparo dá-se acompanhada do sentimento de angústia, constituindo-se
enquanto elemento estruturante da subjetividade e marca indelével da condição humana (ROCHA,
1999). Não há, portanto, como escapar ao desamparo fundamental que confronta o sujeito com a
incompletude, e mais à frente com sua própria castração, operações que o revelarão impotente e
barrado, situado em relações de codependência e limitação.
Nesse sentido, importa buscar nos achados de Freud, com o rigor que uma investigação
exige, a compreensão, ainda que parcial, do tema do desamparo, bem como o percurso trilhado
para edificação desta importante noção psicanalítica. No presente artigo, percorre-se os escritos
de Freud, especialmente a partir dos textos: Projeto para uma psicologia científica (1895), Inibição,
sintoma e medo (1926), O futuro de uma ilusão (1927) e O mal-estar na cultura (1929).
No texto Projeto para uma psicologia científica, redigido por Freud em 1895 e publicado
146
46A
apenas onze anos após sua morte, são apresentadas, de forma intrínseca, noções valiosas sobre
conceitos fundamentais da psicanálise, assim como ideias sobre o funcionamento do aparelho
psíquico, que integram investigações importantes na atualidade. Destacam-se, neste trabalho, os
esboços sobre a operacionalização da memória e o funcionamento neuronal, marcando a tentativa
freudiana de inserir a Psicologia na esfera das ciências naturais (RODRIGUES, 2009).
No Projeto, Freud (1950[1895]/1996, p. 348) fez referência aos “estímulos endógenos”, ou
seja, excitações provenientes do interior do corpo que desestabilizam o sistema psi, já apontando,
quanto a este aspecto, para a pulsão, localizada aqui como o “impulso que sustenta toda a atividade
psíquica” (p. 369).
Mais à frente, a pulsão será definida como um conceito-limite entre o somático e o psíquico,
ou seja, fronteiriço, conforme citado no texto Pulsões e destinos da Pulsão, no qual são retomadas
algumas ideias esboçadas no Projeto, a fim de esclarecer ainda mais sobre a relação entre pulsão e
estímulos (FREUD, 1915/2004).
Ao discorrer sobre as pulsões, Freud (1915/2004) observou que o excesso de estímulos
externos apresentados ao aparelho neuronal produzem mecanismos de fuga, a fim de que o
organismo livre-se daquilo que se mostra insuportável. Porém, tratando-se de estímulos internos,
endógenos, a fuga não é possível, o que coloca o aparelho psíquico a trabalho, “em consequência
de sua relação com o corpo”, sendo a pulsão o “representante psíquico dos estímulos que provêm
do interior do corpo e alcançam a psique” (p. 148).
Ao tecer articulações sobre a mola pulsional que movimenta os estímulos externos e
internos, Freud (1950[1895]/1996, p. 370) descreveu no Projeto, a vivência de satisfação e suas
consequências, através da qual o recém-nascido, ao sentir fome, chora e agita-se como forma
de descarregar seu desprazer, em busca daquela que o há de amparar em suas necessidades. Ao
oferecer o seio à criança, a mãe a alimenta e faz desaparecer o desprazer, encobrindo, por algum
tempo, a sensação de desamparo vivida pelo bebê.
A criança reproduz sua vivência de satisfação a cada vez que busca o seio materno pelo
choro, construindo assim um elo entre aquele que sente o desamparo e aquela que o encobre
e alivia, ainda que temporariamente. Em razão disso, Freud (1950[1895]/1996) afirmou que “o
desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais” (p. 370),
revelando uma das nuances da obrigação ética do cuidar, pois aquele que cuida assim o faz porque
um dia foi cuidado.
Neste texto introdutório, o desamparo ainda não se afigura um termo bem definido,
mas já se apresenta como elemento inerente à condição humana, iniciada com a impotência do

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recém-nascido humano, incapaz de “empreender uma ação coordenada e eficaz” em prol de sua
sobrevivência, conforme propuseram Laplanche e Pontalis (2001, p. 112), que traduziram o termo
alemão Hilflosigkeit como um “estado de desamparo”. Tal incapacidade inaugura a necessidade do
outro, que, por sua vez, pode promover o sustento e a proteção tão necessários nessa etapa inicial
da vida, aplacando a tensão interna experimentada pelo bebê em sua incompletude.
O desamparo do recém-nascido, incapaz de sobreviver sem alguém para assisti-lo, mostra-
se como a origem primordial das relações de cuidado desenvolvidas entre os humanos, que
ultrapassam a simples satisfação das necessidades biológicas, incluindo amarrações de afeto,
amparo e presença, imprescindíveis à constituição do próprio sujeito. Birman (1999, p. 19) elucida
tal aspecto como “a revelação de uma prematuridade do organismo humano, que viria ao mundo
incapacitado para a vida”, necessitando de um outro, “de maneira absoluta, como condição sine
qua non para sua sobrevivência enquanto organismo” (grifos do autor). Nesse sentido, é o outro
quem inscreve no recém-nascido o registro da vida, fixando na natureza humana a marca da
codependência, que permite o enlaçamento dos sujeitos durante sua existência.
É possível afirmar que os motivos morais constituem-se em respostas a uma demanda
que foi reconhecida. No caso do recém-nascido, a fragilidade e incapacidade de sobrevivência
sozinho somente ganham relevância para um outro, por se constituírem na sua primeira demanda,
enquanto ser humano que passou pela mesma experiência. Todo indivíduo nasce em condição de
desamparo, motivo pelo qual se torna capaz de reconhecer o desamparo no outro. Portanto, o que
move esse indivíduo, motivando-o primordialmente em direção a outros objetos, é o desamparo,
fonte dos motivos morais, segundo Freud (1950[1895]/1996, p. 370).
147
47A
Nesse contexto, o sujeito está sempre na dependência do outro, desde o seu nascimento,
sobretudo porque é esse outro que o constitui como humano, pelos investimentos e pela linguagem
(BIRMAN, 1999). Outro, que desde as figuras parentais primitivas, irá estender-se nas demais
relações sociais estabelecidas ao longo da vida (OLIVEIRA; RESSTEL; JUSTO, 2014), denotando a
importância da construção dos laços sociais como remediação para a condição fundamental de
desamparo.
Percorrido parte deste texto que marca a obra freudiana em seu início, o tema do desamparo
será delineado, mais à frente, em Inibição, sintoma e medo (1926), como motivador de uma angústia
primária, remetendo às noções do lugar infantil, herança da relação primeva de dependência e
satisfação entre mãe e bebê. Freud estabelece, assim, uma relação entre a angústia, o perigo e o
desamparo, afirmando que a angústia surge como uma reação a um estado de perigo, atrelada à
vivência de desamparo (FONSECA, 2009).
Importa, aqui, tecer um breve comentário sobre os impasses da tradução quanto a palavra
alemã Angst – ora transcrita como medo, ora como ansiedade, ou ainda como angústia – a fim
de que as dimensões do significado deste termo possam ser melhor compreendidas. Nenhuma
tradução dá-se sem perdas e sem interesses, como ressaltam Klein e Herzog (2017, p. 688), que
suscitam a hipótese de que Freud, “do ponto de vista nosográfico e terminológico, não distingue
angústia de medo” (p. 690), fazendo uso da palavra Angst num sentido fenomenológico.
De acordo com as referidas autoras (KLEIN; HERZOG, 2017, p. 688), fazendo referência a Luiz
Hanns (1996), “o termo Angst é dos mais capciosos no que concerne às possibilidades de tradução”,
as quais podem produzir equívocos e perdas de sentidos, de acordo com o contexto. Hanns (1996,
p. 62) opta pela palavra medo, por entender que abarca o sentido de temor, receio, pânico e pavor.
Já as traduções francesas e espanholas privilegiam a palavra angústia, e Strachey, na versão inglesa,
utiliza anxiety, traduzida para o português como ansiedade (KLEIN; HERZOG, 2017).
Ainda, segundo Hanns (1996, p. 63), o termo Angst deriva da raiz indo-europeia anĝh-, que
se refere a apertado, apertar, pressionar, amarrar, conferindo sentido de um afeto antecipatório,
um fenômeno de caráter intenso que produz sofrimento, como um pavor ou angústia, sensações
que podem ser traduzidas nesse contexto como medo, dada a situação de perigo que se afigura
enquanto cenário externo ou interno. O autor ressalta que não há bons equivalentes em alemão
para as palavras ansiedade ou angústia, sendo que estes termos, bem como a palavra medo,
ocasionalmente, são utilizados como termos correspondentes (HANNS, 1996).
Feita esta breve análise relativa a alguns impasses da tradução, observa-se que no texto
Inibição, sintoma e medo, Freud (1926/2019) cita a condição de desamparo, relacionando-a ao

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sentimento de angústia na situação de perigo, que denomina de situação traumática, em razão
do estado de impotência do sujeito frente a algum perigo real ou pulsional, que se configura
como evento psíquico com o qual não consegue lidar. Freud afirma ainda que “o medo se mostra
como produto do desamparo psíquico do lactente, o qual é a contraparte óbvia de seu desamparo
biológico” (p. 130).
Ao discorrer sobre o medo, que sinaliza a situação de perigo, Freud (1926/2019) lista o
nascimento, a perda do amor do objeto, a castração e a perda do amor do Supereu enquanto
situações potencialmente traumáticas. Tais situações apontam para a perda e separação do outro,
objeto primevo, fazendo transparecer o deslocamento da angústia infantil decorrente da ausência
materna (OLIVEIRA, 2014).
A situação de perigo, descrita por Freud (1926/2019, p. 175), possui um significado único
para o sujeito, o qual mede suas capacidades em relação ao evento que o angustia, esteja ele na
realidade material ou psíquica, o que faz considerando suas próprias experiências pretéritas. Aqui,
não é somente a dimensão exata da realidade que está em jogo, ou seja, se existe ou não um perigo
real, mas é a comparação do que o sujeito é capaz de dimensionar em relação aos recursos que
consegue reconhecer em si mesmo.
O que faz pensar no desamparo como gerador da angústia, medo ou ansiedade, vez que “a
situação de perigo é a situação de desamparo reconhecida, recordada, aguardada”, segundo Freud
(1926/2019, p. 176). Diante do poder das excitações com as quais não consegue lidar, o sujeito
retorna ao lugar infantil da contingência, quando não possuía recursos para executar uma ação
coordenada e eficaz (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Como nada pode fazer frente às exigências
148
48A
da vida, a criança deseja ser protegida, inclusive “da insatisfação, do aumento da tensão de
necessidade” (FREUD, 1926/2019, p. 128). Freud (1926/2019) esclarece que, no trauma, o medo
aparece enquanto reação primeira, provocada pelo desamparo, sendo reproduzida em situações
futuras nas quais o sujeito se depara com o perigo.
Como interpretado por Neto (2011), a situação primordial de perigo torna-se uma experiência
mítica no decorrer da existência, eis que o sujeito atualiza em suas experiências de impotência
a primeira constatação de que não se nasce pronto para a vida. Nesse sentido, o desamparo,
enquanto elemento constituidor na estruturação do psiquismo, afigura-se como marca originária
de uma falta radical não recoberta, impossível de ser solucionada ou dissolvida no decorrer da vida.
Na teoria formulada no texto de 1926, a angústia emerge não só como uma reação à perda,
mas também como um sinal iminente diante da situação de perigo, quando há expectativa de
um trauma ou a repetição deste, como atualização de uma vivência mais antiga, experiência de
desamparo.
Tão presente na experiência humana quanto o lugar do infantil, revela-se a falta de garantias
do sujeito impelido à renúncia pulsional, a fim de que o laço social possa ser construído e o mal-
estar decorrente do lugar de desamparo seja amenizado, como trabalhou Freud nos textos O futuro
de uma ilusão (1927) e O mal-estar na cultura (1929).
Em O futuro de uma ilusão, de 1927, Freud descreve como o trabalho civilizatório e de
humanização do sujeito resulta de seu desamparo primordial, que busca reconstituir no coletivo
preservador os cuidados obtidos em suas primeiras demandas de amparo. Nesta etapa teórica dos
escritos de Freud, já é possível reconhecer a formulação de uma noção mais precisa do tema do
desamparo, referida ao modo de funcionamento do psiquismo e condição sem a qual o sujeito não
pode existir, em razão de sua natureza estruturante.
Freud (1927/2020) destaca neste trabalho que a civilização constituiu-se enquanto tentativa
de escapar às cruéis e inexoráveis forças da natureza, que exercem sobre a vida humana um poder
superior. Afinal, foi pela edificação da cultura e da civilização que o homem pode se organizar em
comunidades, com objetivos superiores à própria satisfação, os quais apontam para a necessidade
de subsistência em condição de desamparo.
A fim de compreender a noção de desamparo apresentada em O futuro de uma ilusão, cabe
destacar o argumento de Freud (1927/2020), no sentido de que a religião é uma ilusão sustentada
pela necessidade de proteção, em função do desamparo que integra a existência.
O domínio da natureza, no âmbito interno e externo, demonstra a tentativa, inócua, no mais
das vezes, de controlar as contingências do destino, sendo que para aquilo que se mostra superior

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às próprias forças humanas, o sujeito tende a evocar as divinas. Não sem razão, Freud (1927/2020)
afirma que persistirá durante a vida o desamparo dos seres humanos e seu anseio pelos deuses.
E aqui cabe perguntar-se por quais razões as ideias religiosas adquirem força e importância na
vida humana, a despeito do reconhecimento de seu caráter ilusório, questão central trabalhada
por Freud no texto de 1927, em que as considera como “um novo problema psicológico” (FREUD,
1927/2020, p. 262). A religião, enquanto trabalho de cultura, mostra-se como uma criação humana
para fazer frente a um problema tão desconcertante, como é o estado de desamparo.
Assim, Freud (1927/2020), em O futuro de uma ilusão, demonstra que a força da ilusão
está no desejo infantil de proteção, afigurando-se como defesa contra o desamparo (OLIVEIRA;
CECCARELLI, 2019). As relações de cuidado, então estabelecidas com aqueles primeiros seres de
amparo na infância, em especial a mãe que alimenta e o pai que protege, serão deslocadas para
uma relação mais ampliada na vida adulta, com os deuses, aos quais se teme, mas também de quem
se espera amparo e proteção. Ao adulto já é possível compreender que seus pais encontram-se na
mesma condição de desamparo, tal qual é a sua, o que produz e reforça referido deslocamento para
instâncias mais poderosas do que as humanas.
A ilusão é construída com “material de lembranças relativas ao desamparo da própria
infância” (OLIVEIRA; CECCARELLI, 2019, p. 75), sendo a religião considerada por Freud (1927/2020)
como “a neurose obsessiva universal da humanidade; como a da criança, ela veio do complexo de
Édipo, da relação com o pai” (p. 279). A argumentação freudiana, nesse momento de sua obra,
aponta para o fato de que o desamparo infantil é a fonte das ideias religiosas, entendimento que
será ampliado mais à frente, no texto Moisés e o monoteísmo (1939), ocasião em que a religião se
149
49A
apresentará para Freud como estrutura de um sintoma, conforme ressaltam Moreira e Pinto (2012,
p. 396).
Ainda que se possa observar a crítica tecida por Freud ao apego às religiões, atitude que
decorre do lugar do infantil e das demandas de amparo, há que notar que ele mesmo põe à mostra
como a pulsão permeia a vida humana, muito antes e para além do que se possa considerar como
racional. É aqui que a dita civilização entra em colapso, já que toda construção humana decorre
e é impulsionada pelos afetos que atravessam o existir do sujeito no mundo. Não se trata, pois,
de simplesmente constatar uma ilusão para em seguida abandoná-la, uma vez que tal ilusão está
investida de libido e afeto, movimentando o desejo humano em busca de algo mais. Contexto no
qual o desamparo apresenta-se como fonte que impulsiona o homem para além de sua condição
de impotência, ainda que isso o leve até soluções provisórias, com contornos fictícios e improváveis.
Por fim, na sequência desta breve análise, cabe trazer à tona um dos textos mais importantes
e significativos da obra freudiana, qual seja, O Mal-Estar na Cultura, publicado em 1930, que retoma
a ideia das renúncias necessárias para se viver na dita cultura civilizada, quando o homem se priva
da satisfação pulsional, abrindo mão do prazer e da agressividade em prol do laço social que lhe
garante a subsistência.
A renúncia às pulsões mostra-se um esforço incomensurável feito sem quaisquer garantias,
pois o mal-estar retorna na busca ilimitada do objeto amado e perdido, que nunca é encontrado
por inteiro. O homem mergulha novamente na ilusão de uma civilização que tão somente faz a ele
a promessa de livrá-lo de seu desamparo constituidor.
Ao propor a reflexão de que é difícil, senão impraticável, reproduzir a vivência de satisfação
diante de incontáveis sacrifícios, especialmente daqueles que limitam a experiência da sexualidade
e a expressão da agressividade, Freud (1930[1929]/2020, p. 367) afirma que até mesmo “para
o homem pré-histórico as coisas eram, de fato, melhores nesse aspecto, pois ele não conhecia
nenhuma restrição à pulsão”. Enquanto ser de cultura, em busca de garantias para encobrir seu
desamparo constituidor, o sujeito troca possibilidades da felicidade por uma parcela de segurança
(FREUD, 1930[1929]/2020).
No texto de 1930, ao analisar o que acontece com o homem ao tornar sua agressividade
inoperante, Freud (1930[1929]/2020, p. 377) descreve como ela é introjetada, interiorizada e
“enviada de volta para o lugar de onde veio”, ou seja, retorna ao próprio Eu. Nesse momento, surge,
então, a instância moral, que buscará controlar o conteúdo recalcado, denominada por Freud de
Supereu, a consciência moral que instituirá a relação do homem com a culpa, a qual integrará os
motivos morais que o impulsionarão às relações de cuidado.

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O desamparo apresenta-se como razão para esta renúncia pulsional, já que, acaso perca o
amor do outro, de quem é dependente, o homem expõe-se a perigos diversos, sobretudo ao perigo
desse outro superpotente impor-se a ele através de punições (FREUD, 1930[1929]/2020). Assim, o
homem é capaz de renunciar ao prazer da agressão, uma vez que teme a perda do amor.
A agressividade é uma inclinação primária dos seres humanos (FREUD, 1930[1929]/2020),
motivo pelo qual, destaca Moreira (2005, p. 292), “o laço social é garantido através da culpa, ou
seja, da agressividade modificada a partir do encontro com a verdade do desamparo, que aponta
para o outro como fim em si, e não como meio”, possibilitando o reconhecimento da alteridade.
Apesar de toda mobilização humana, com seus recursos e métodos civilizatórios, todo o trabalho de
cultura, que contraria a natureza humana, revelou-se ineficaz (FREUD, 1930[1929]/2020).
Para Moreira (2005, p. 292), a questão da culpa suscitada por Freud no seu O Mal-Estar
na Cultura remete ao desamparo como dívida simbólica, essencial para produção do encontro
intersubjetivo. Nesse sentido, o sentimento de culpa também deve ser entendido como um fato
estruturante na civilização, já que se transforma em dívida simbólica e motivo moral que sustenta
as relações de cuidado (MOREIRA, 2005).
A fim de compreender e ampliar a noção de culpa, cabe retomar a construção freudiana
sobre o mito do pai primevo, segundo o qual a lei simbólica da proibição do assassinato e do incesto
foi instituída (FREUD, 1913[1912-1913]/1996). Essa construção revela que cada sujeito carrega um
sentimento de culpa, decorrente da dupla proibição, assassinato e incesto, vivência esta que se
opera de forma inconsciente, projetada no outro-alteritário (MOREIRA, 2005).
Freud assevera que o “estado de má consciência”, que funda o sentimento de culpa, “é
150
50A
claramente apenas medo da perda do amor, medo social” (FREUD, 1930[1929]/2020, p. 379).
Assim é que, inicialmente as crianças e, no mais tardar, em repetição, os adultos, “só se permitem,
regularmente, realizar o mal que lhes promete conveniências se estiverem seguros de que a
autoridade nada saiba sobre isso” (FREUD, 1930 [1929] / 2020, p. 379), eis que seu único medo é
o de serem descobertos. Para além da perda do amor, vê-se aqui o medo de se depararem com o
próprio desamparo, de se perceberem em uma condição sem ajuda.
Uma vez que o amor é o remédio para o desamparo e sua angústia consequente, o
desamparo afigura-se, sob essa ótica, como condição para o surgimento do amor. Ama-se porque
o desamparo é o que funda essa possibilidade. Assim como o amor, as demais formas de se fazer
laço social, presentes na civilização, buscam apaziguar o sofrimento inerente ao existir na condição
de desamparo.
A categoria do mal-estar inscreve-se sempre no campo da subjetividade, revelando-se como
matéria prima recorrente e atualizada na produção do sofrimento (BIRMAN, 2019), seja na esfera
individual ou coletiva. Para Birman (2019, p. 17), na leitura do texto de 1930, é possível extrair
a condição trágica do sujeito no mundo moderno, isso porque a antinomia insuperável entre os
pólos da pulsão e da civilização denotam a ausência de soluções consistentes para o impasse,
circunscrevendo o mal-estar como forma inafastável de ser e estar no mundo.

A experiência de desamparo enquanto limite e possibilidade

A experiência que nos remete a estas reflexões neste momento histórico, a vivência
da pandemia de Covid-19, é da ordem do trauma e daquilo que Lacan denominou como Real
(KAUFMANN, 1996, pp. 444-445). O perigo, situado num inimigo invisível e impalpável, pegou de
surpresa toda população mundial, ainda sem defesas imunológicas suficientes e sem protocolos
terapêuticos seguros (BIRMAN, 2021). Enquanto o terror da morte assolava a humanidade, foram
necessárias medidas imediatas de isolamento e distanciamento social, a fim de lidar minimamente
com a doença desconhecida.
Fato que indubitavelmente reativou, em muitos casos, o desamparo originário do sujeito,
que necessitou apelar às instâncias alteritárias, que poderiam lhe proteger da doença com potencial
mortífero (BIRMAN, 2021). Nos países em que a resposta das autoridades instituídas mostrou-se
unívoca e confiável, a angústia dos cidadãos pôde ser relativamente apaziguada e estancada por
contornos palpáveis e tangíveis (BIRMAN, 2021). Já na experiência brasileira, cujo desgoverno da

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gestão Jair Bolsonaro promoveu desinformação e dubiedade quanto às descobertas científicas
(RODRIGUES, 2022), o que se viu foi a inscrição nos sujeitos do desalento psíquico, transformado
em ato com posturas de desespero e desafio diante das medidas sanitárias de restrição (BIRMAN,
2021).
Na leitura de Birman (2021, p. 137), “seja pelo desamparo, seja pelo desalento ou ainda pelo
desafio, o que está em pauta para o sujeito nesses diferentes cenários psíquicos possíveis é o terror
da morte”. Contexto em que, somente pelo cuidado coletivo foi possível o enfrentamento do risco
de morte e de todas as incidências advindas da catástrofe pandêmica, cujo trauma ultrapassou a
esfera individual, gerando efeitos sociais significativos. Por certo, este acontecimento desnudou a
codependência dos indivíduos no laço social civilizatório, demonstrando que a saída para os dilemas
individuais não raramente dá-se através de medidas coletivas, que requerem a renúncia pulsional,
conforme se viu no atravessamento da pandemia de Covid-19.
A renúncia pulsional, que permite o convívio em sociedade, busca estabelecer condições
possíveis de existência, a despeito de todo mal-estar decorrente dela. Nesse sentido, a experiência
de desamparo instaura na vida do sujeito a necessidade de um outro, que ao mesmo tempo em
que limita a sua existência, possibilita-a.
É o outro quem marca no sujeito o princípio de realidade, limitador dos excedentes de
prazer aflorados nas primeiras vivências de satisfação, como registro de uma vida possível. A partir
das construções freudianas, infere-se o estado de desamparo como fato biológico originário,
fundante das relações de amor/ódio e codependência entre os indivíduos.
Segundo Birman (2019, p. 39), “o registro psíquico do desamparo é algo de ordem originária,
151
51A
marcando a subjetividade humana para todo o sempre, de maneira indelével e insofismável”. O
reconhecimento da experiência do desamparo é um problema moral com o qual cada sujeito
terá que lidar em sua trajetória existencial. E uma vez que o humano é sempre uma construção
transitória, as formas de enfrentamento dessa condição angustiante serão diversas ao longo do
tempo.
Enquanto dimensão essencial do funcionamento psíquico, “fonte de todos os motivos
morais” (FREUD, 1950[1895]/1996, p. 370), é a partir dessa noção mais ampla de desamparo, que
Freud toca fundo na ferida narcísica humana. A insignificância frente ao que não pode controlar,
dentro e fora de si mesmo, e a impotência, que instaura a dependência mútua, afiguram-se
enquanto feridas expostas e sangrentas (BIRMAN, 2019), que requerem contínuo cuidado.
Aqui, será de extrema utilidade a exortação de quem tão bem tratou dessa temática, em
especial no texto O futuro de uma ilusão (FREUD, 1927/2020, p. 285):
Com certeza o ser humano ficará então em uma situação
difícil: terá de admitir o seu completo desamparo, a sua
insignificância na engrenagem do mundo, não sendo mais o
centro da criação e não mais o objeto do terno cuidado de
uma Providência bondosa. Estará na mesma situação que a
criança que deixou a casa paterna, que lhe era tão calorosa e
confortável. Mas não é verdade que o destino do infantilismo
é ser superado? O ser humano não pode permanecer criança
eternamente, um dia ele tem de acabar saindo para a ‘vida
hostil’. Pode-se chamar isso de ‘educação para a realidade’; será
que eu ainda preciso revelar ao senhor que a única intenção
de meu escrito é chamar a atenção para a necessidade desse
avanço?

Avançar para o reconhecimento de uma possibilidade limitada, ou como leciona Birman


(2019, p. 85), pela inscrição em um mundo cheio de possibilidades. A cada passo, o sujeito
é confrontado com as impossibilidades que limitam a sua existência, com a sua condição de
desamparo, sua castração. Há que construir, senão inventar um lugar de cuidado para essa condição
de desamparo e, com isso, possibilitar as múltiplas e mútuas existências.
Lugar de cuidado, de si e do outro, que situa o sujeito em sua impotência constitutiva,
abrindo possibilidades para o enlaçamento nas relações de codependência, construídas para além
das demandas de amparo, numa dimensão mais ampliada, na partilha de contingências, experiência

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sem a qual não se pode edificar laços mais inventivos.

Considerações Finais

A noção de desamparo formulada na obra freudiana permite compreender com mais


amplitude e clareza os atravessamentos das experiências de sofrimento do sujeito, desde os
primórdios de sua existência. A leitura atenta dos textos selecionados desvela o desamparo como
fonte de todos os motivos morais, motivador das primeiras demandas de cuidado do recém-nascido,
o qual necessita de um outro, que nele possa inscrever o registro da vida (BIRMAN, 1999). Trata-se,
portanto, de demandas que hão de permanecer durante a vida do sujeito, na atualização de seus
possíveis e impossíveis, possibilitando o enlaçamento nas relações de codependência, como forma
de remediação do desamparo constituidor, conforme o que se vivenciou no atravessamento da
pandemia de Covid-19.
É a partir dessa perspectiva que Freud (1930[1929]/2020, p. 321) afirmou como o sofrimento
avilta a vida humana a partir de três perspectivas: a do corpo, que “destinado à decadência e à
dissolução, não pode nem mesmo prescindir da dor e do medo como sinais de alarme”; a do mundo
onde este corpo se situa, estando sujeito às “forças descomunais, implacáveis e destrutivas” que
podem se voltar contra ele; e, por fim, a “das relações com outros seres humanos”. Eis o mal-estar
na cultura.
Buscando melhor compreender os nomes do mal-estar, que atravessam as experiências de
152
52A
sofrimento, Dunker (2015) percebe as incompletudes na tradução da palavra alemã Unbehagen,
utilizada por Freud, a qual se traduz geralmente como mal-estar. Dunker (2015, p. 193) afirma
que “traduzir Unbehagen, quer pela série dos estados corporais (desconforto), quer pela
série das vicissitudes do destino (infortúnio), ou ainda pelas variedades morais do sofrimento
(descontentamento)” conduziria a parcialidades e perdas semânticas conceituais importantes.
Assim, sustenta que “o mal-estar não é apenas uma sensação desagradável ou um destino
circunstancial, mas o sentimento existencial de perda do lugar, a experiência real de estar fora
do lugar” (DUNKER, 2015, p. 196), situada por Freud como uma sensação intimamente ligada à
experiência do mundo, seja na esfera moral ou corpórea, englobando tanto o sofrimento quanto
o sintoma.
Cabe dizer que, se no início de seu percurso teórico, Freud vislumbrou uma harmonização
possível entre os registros do sujeito e do social, a segunda metade de sua obra foi marcada pela
problemática da condição de desamparo da subjetividade no novo espaço social, enquanto leitura
trágica da inserção do sujeito na modernidade (BIRMAN, 2019). A partir dessa modificação teórica,
Birman (2019, p. 140) conclui que seria necessária uma espécie de “gestão interminável e infinita”
do problema, já que o sujeito não pode se deslocar de sua posição originária de desamparo,
acrescentando que a irredutibilidade dessa posição não implica necessariamente que o sujeito deva
existir “com perturbações do espírito, sejam estas da ordem da neurose, psicose ou perversão” (p.
141), mas que precisa reconhecer a limitação de sua própria condição para construir um trabalho
possível.
Considerando também uma mudança teórica no conceito de sublimação, produzida na
segunda tópica freudiana, Birman (2019, p. 142) afirma que “o domínio, e não a cura, do desamparo
é o que possibilitaria que o sujeito constituísse destinos tanto eróticos quanto sublimatórios para a
pulsão”, o que foi denominado por ele de “gestão do desamparo”, que se materializaria na adoção
de uma posição ética e política sobre o conflito (BIRMAN, 2019, p. 143).
Como ressalta Safatle (2019), a condição de desamparo também implica no reconhecimento
de um estado de impotência, que se situa no agir do sujeito e na ordem simbólica em que ele se
inscreve e se referencia, em meio a contingências e experiências de indeterminação, a partir das
quais também produzem-se vínculos.
Nesse sentido, importa indagar se a maior contingência de todas a ser absorvida não será a
possibilidade de tecer laços decorrentes da mais legítima moralidade que ao humano foi imposta,
baseada no dever ético do cuidado, seja porque o sujeito constitui-se deslocado em um mundo sem
quaisquer garantias, seja porque esse enlaçamento é o que nele inscreve o registro da vida. Talvez

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a absorção dessa contingência, ainda mais em tempos pandêmicos, pudesse funcionar enquanto
vacina para os modos de vida narcísicos surgidos na pós-modernidade, os quais se revelam defesas
inócuas para a condição de desamparo geradora do mal-estar.
Tem-se, por fim, que a gestão do desamparo (BIRMAN, 2019), para além de uma mera
administração da condição de impotência, implica no cuidado ético e político do próprio conflito.
Frise-se, aqui, que a palavra gestão tem a mesma raiz lexical de gestar, gestação, e pode ser
compreendida de forma não restrita aos contextos da administração pública ou privada. Num
sentido psicanalítico, ousa-se afirmar que a gestão seria portar em (sobre) si mesmo um fazer.
Nobre fazer que se dá pelo reconhecimento de um limite criador de vínculos mais inventivos,
possibilitando ao sujeito encontrar um lugar no social, a despeito de todo mal-estar que o habita.
Lugar este que permitirá estabelecer relações mais autênticas, permeáveis aos conflitos inevitáveis
e dispostas, a mesmo assim, insistir na construção de um impossível que vai se mostrando, a cada
tentativa.

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55A
A COMPOSIÇÃO DA ESCUTA PELOS PROFISSIONAIS DA REDE
SOCIOASSISTENCIAL A CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
SEXUAL*
THE COMPOSITION OF LISTENING BY PROFESSIONALS OF THE SOCIAL
ASSISTANCE NETWORK TO CHILDREN IN SITUATIONS OF SEXUAL
VIOLENCE
Luciane De Conti 1
Débora de Bitencourt Fél 2
Marjorie Dariane da Silva Machado 3
Laura Mirapalhete Graña 4

Resumo: Trata-se de uma pesquisa-intervenção que se constituiu na aposta de interfaces fecundas entre a psicanálise e
as políticas públicas. O estudo teve como objetivo investigar os efeitos que a oferta da escuta a crianças em situação de
abuso sexual produz nos profissionais da rede socioassistencial. Para isso, participou da pesquisa a equipe de um serviço
de referência da política de Assistência Social. Como metodologia de trabalho, propusemos a construção do caso, em que
se realizava o relato das situações de violência e a discussão dos casos. Os resultados apontam vários pontos de tensão no
trabalho da equipe decorrentes do acompanhamento e do cuidado realizados junto a essas crianças e suas famílias. Como
conclusão, destaca-se a importância de se constituir grupos de discussão que tenham as práticas de trabalho como foco de
reflexão e a necessidade de qualificar o fluxo das informações entre os serviços da rede socioassistencial.

Palavras-chave: Psicanálise. Infância. Escuta. Abuso Sexual. Políticas Públicas.

Abstract: This is a research-intervention that was constituted in the betting of fruitful interfaces between psychoanalysis
and public policies. The study aimed to investigate the effects that the offer of listening to children in a situation of sexual
abuse produces in the professionals of the social assistance network.To this end, the staff of a reference service of the Social
Assistance policy participated in the research. As a work methodology we proposed the construction of the case, in which
the situations of violence were reported and the cases discussed.The results point to several points of tension in the staff’s
work arising from the monitoring and care provided to these children and their families. As a conclusion, we highlight the
importance of setting up discussion groups that have the work practices as a focus for reflection and the need to qualify
the flow of information between the services of the social assistance network.

Keywords: Psychoanalysis. Childhood. Listening. Sexual Abuse. Public policies.

* O presente artigo faz parte do projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq intitulado A
tessitura da escuta a crianças em situação de violência/abuso sexual pelos profissionais na rede de assistência (Edital MCTI-CNPq No. 14/2014
Processo nº456818/2014-6).

1 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela
UFRGS. Docente e pesquisadora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e
Cultura, Instituto de Psicologia, Serviço Social, Saúde e Comunicação Humana da UFRGS. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1172756538624937. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-6022-9259. E-mail: luciane.conti@ufrgs.br

2 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise:
Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, sob a orientação da primeira autora. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/5615353353205730. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3633-2931. E-mail: deborabfel@gmail.com

3 Graduada em Psicologia pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI e Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, sob a orientação da primeira autora. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/1572645042258768. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8574-904X. E-mail: marjorie.psique@gmail.com

4 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi bolsista de Iniciação Científica – PIbic/CNPq/UFRGS no projeto A
tessitura da escuta a crianças em situação de violência/abuso sexual pelos profissionais na rede de assistência (Edital MCTI-CNPq No. 14/2014
Processo nº456818/2014-6), sob a orientação da primeira autora. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7088376063993472. ORCID: https://orcid.
org/0009-0005-6138-9659. E-mail: lauramgrana@gmail.com
Introdução

A direção da pesquisa compartilhada neste artigo foi definida principalmente a partir da


práxis das autoras no acolhimento a crianças e adolescentes em situações sociais críticas (BROIDE,
2009). Na fala dos profissionais, bem como na dos estagiários em psicologia cujas práticas tivemos
o privilégio de acompanhar, ficavam nítidas as inquietações diante das possibilidades de escuta
a sujeitos cujas trajetórias de vida são marcadas por situações de extrema violência e pelo
desamparo social e discursivo (ROSA, 2002). Entre essas situações, destacamos as de violência
sexual, especificamente de abuso sexual.
Diante desse cenário, em 2000 foi organizado o Plano Nacional de Enfrentamento da
Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, retomado em 2010 e revisado em maio de 2013
(BRASIL, 2013). O Plano visa assegurar a proteção integral à criança e ao adolescente em situação
ou risco de violência sexual, conforme estipulado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente –
ECA (BRASIL, 1990). Nesse Plano, entende-se a violência sexual – abuso sexual e/ou exploração
sexual, como todo ato, de qualquer natureza, atentatório ao direito da criança e do adolescente ao
desenvolvimento sexual, praticado por agente em situação de poder e de desenvolvimento sexual
desigual em relação à criança e ao adolescente.
Um dos eixos estratégicos do Plano é garantir o atendimento especializado, e em rede, a essas
crianças e adolescentes e às suas famílias e/ou responsáveis. Para isso, o Plano prevê como ações
voltadas para essa população: a universalização do acesso às políticas públicas de atendimento de
forma integral e intersetorial, a garantia de acolhimento institucional e de atendimento psicossocial,
assegurando, quando necessário, o acompanhamento na saúde mental. Recentemente, em 2019,
o Plano Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, cuja última
versão era de 2002, foi revisitado a fim de que estivesse adaptado às necessidades de prevenir e de
proteger as crianças e os adolescentes gaúchos de situações de violência sexual, considerando as
especificidades da região (BRASIL, 2019).
Dada a singularidade dos sujeitos enquanto crianças e a complexidade envolvida nas
situações como as de violência sexual, essa política impõe a necessidade de constituição de uma rede
de assistência intersetorial. Nessa direção, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) coloca
como fundamental a formação de redes, tendo como diretrizes para a execução desse trabalho os
princípios da matricialidade sociofamiliar e da territorialização (BRASIL, 2004). A ideia subjacente
é de uma rede dinâmica que tem na intersetorialidade e na integralidade eixos estruturantes e
constituintes de práticas que produzem cuidado a partir da inter-relação das diversas políticas

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públicas existentes.
Na mesma linha de ação, o Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas
(CREPOP) organizou o documento “Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Rede de
Proteção às Crianças e Adolescentes em situação de violência sexual”. Nele, o Centro alerta para
a necessidade da articulação entre os serviços e as diferentes políticas sociais para que o objetivo
final do acompanhamento realizado a esses sujeitos seja cumprido, isto é, a interrupção dos ciclos
de violência (CFP, 2020). No documento é enfatizado o quão complexo é o trabalho nesse campo,
pois o psicólogo muitas vezes está na posição de possibilitar a revelação do ato de abuso; porém,
ao mesmo tempo, não deve ocupar o lugar pericial, de oitiva, mas sim de escuta. Trata-se de um
lugar de tensão, com impacto para quem está na função de escutar, ou seja, uma situação que tem
atrelado um sofrimento ao ato de escuta.
São exatamente situações como essas, de violência sexual, que os profissionais e estagiários
com quem tivemos contato em nossas práticas nomeiam como particularmente difíceis de serem
acolhidas e acompanhadas, especialmente nos casos em que há a suspeita de abuso e não a sua
evidência “explícita”. Aliás, a suspeição é um dos significantes que insistem em se manifestar
na fala dos profissionais que acolhem essas situações, gerando angústia e sofrimento psíquico
neles. Baseados nisso, podemos nos perguntar: que direção dar à escuta de acolhimento? Como
suportar a sensação de impotência diante dos impasses dos encaminhamentos e dos atendimentos
propostos? Como se pautar na ética do desejo e na escuta do singular diante das determinações
judiciais e das imposições da rede de assistência, tendo em vista que, como coloca Miranda (2016),
a prática da psicanálise se dá para além de um processo judicial, na direção da escuta do sujeito, 157
sustentado na transferência?
57A
Questões como essas são as que mobilizaram a proposta de pesquisa-intervenção
compartilhada neste artigo, cujo foco recaiu nos efeitos que a oferta da escuta a crianças/adolescentes
em situação de abuso sexual, e seus familiares e/ou responsáveis, produz nos profissionais da rede
de assistência encarregados pelo seu acompanhamento. Sabemos o quanto nossas questões são
desafiadoras e reconhecemos os limites do recorte de uma investigação. Como colocam Benevides
e Josephson (2001, p. 61), uma pesquisa sempre é parcial no sentido de que “[...] o olhar, a escuta,
a análise são sempre recortes do que foi vivido na situação de pesquisa”.
Assim, no trabalho que desenvolvemos, tomamos como ponto de partida o que nossos
estudos e de outros colegas (CAMPOS, 2005; COUTINHO, 2013; SUSIN; POLI, 2013; CAMPOS, 2012;
SCARPARO; POLI, 2008; ROSA, 2002) apontaram de forma recorrente: o quão difícil e até mesmo
intolerável é para os profissionais que trabalham em situações sociais críticas se deparar com essas
realidades marcadas por condições de existência tão impactantes. Evidencia-se, nesse ponto, a
relevância de um destino possível, pela via da palavra, a ser ofertado a esses profissionais que estão
na posição de escuta. Concebemos que a tessitura dessa escuta se dá no próprio ato de escutar, em
que seus elementos vão se configurando a partir das possibilidades e impossibilidades conscientes
e inconscientes dos atores nela envolvidos, situados em um determinado tempo e lugar.
Pautamos nosso trabalho na certeza de interfaces fecundas entre a psicanálise e as políticas
públicas (BIRMAN, 2006; ALBERTI; FIGUEIREDO, 2006; TEIXEIRA; NICOLAU, 2022). Com isso,
apostamos na escuta psicanalítica a partir de sua contribuição para a emergência de um sujeito
em que os laços sociais e afetivos, que foram rompidos por esses acontecimentos, possam ser
reconstruídos, ressignificados e, se possível, resgatados. Para além dessa perspectiva, isto é, fora
dela, corre-se o risco do apagamento do sujeito, que, fixado no lugar de vítima, não poderá emergir
como outra coisa (VORSATZ; SILVA, 2017; BRANDÃO JÚNIOR; RAMOS, 2010).

As (im)possibilidades de escuta em situações de violência

Rosa (2002, p. 12, grifo nosso) coloca que “[...] nas situações de extrema angústia e perda
de referenciais identificatórios prevalece a importância da oferta da escuta [...]”. Aliás, a ênfase na
escuta parece ser um dos aspectos privilegiados do profissional psi no contexto das políticas públicas,
seja na saúde ou na assistência social. Scarparo e Poli (2008), refletindo sobre as contribuições da
psicanálise no campo da assistência social, concluem que a possibilidade analítica de lidar com
situações-limite está no oferecimento de uma escuta que possibilite uma enunciação, tematização
e ressignificação de todos esses desamparos, até onde for possível tomar outra posição diante

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dessa realidade.
Para isso, como nos diz Campos (2012), é preciso combinar a objetividade da clínica,
materializada nas diretrizes e nos protocolos das políticas de saúde e de assistência social, com
a escuta da “história de vida” do usuário, a escuta dos discursos, visando à singularização do
atendimento. O que se espera nas entrelinhas dessa história é o aparecimento do sujeito, é a
surpresa, da qual não devemos recuar. É justamente na hiância do encadeamento dos significantes
que surge um sujeito (MIRANDA, 2016).
A oferta da escuta a esses sujeitos deve se constituir, como colocam Susin e Poli (2012),
por meio do compromisso ético de possibilitar lugar à palavra, propiciando que o trabalho não se
situe apenas na via de um reconhecimento a partir da identidade entre os sujeitos, mas busque
também o que o representa em sua diferença, esta não como ameaça, mas como possibilidades de
convivências. Porém, como alerta Rosa (2002), a complexidade da escuta de sujeitos em situações
sociais críticas, com suas urgências, precariedades e risco de vida, pode dificultar a relação
intersubjetiva necessária ao atendimento. Isso porque o profissional psi pode ficar exclusivamente
sob o peso da situação, tomando o não dito pelo dito ou vitimizar o sujeito de tal forma a não levar
em conta a possibilidade de ele construir suas próprias respostas.
Além disso, afirma Rosa (2002), a escuta desses sujeitos pode se tornar insuportável, pois
tomar esse outro como sujeito de desejo implica se deparar e levantar o recalque que promove a
distância social da qual o psicanalista – e aqui podemos ampliar para outros profissionais da rede
de assistência –, na maioria das vezes, usufrui. Como reiteram Susin e Poli (2012), a escuta das
158
58A
situações de sofrimento psíquico no campo da assistência social encontra alguns impasses que
podem fazer resistência ao trabalho, que dizem respeito ao impacto da diferença de realidades
sociais e culturais entre os sujeitos acolhidos e aqueles que se propõem a escutá-los.
Nessa direção, Campos (2005) coloca que os sintomas institucionais são produzidos pela
própria realidade do trabalho, pelo contato permanente com a dor e a morte e a dificuldade de
simbolização que situações de extrema violação dos direitos provocam, e aqui damos ênfase às
situações de abuso sexual. A autora destaca o grau de esgarçamento simbólico percebido nos
atendimentos de usuários que vivem nas periferias, que coloca em xeque todas as propostas
interpretativas dos profissionais responsáveis pelo acolhimento a esses sujeitos (CAMPOS, 2005).
Diante das situações acompanhadas em nossas práticas, deparamo-nos com o impacto
dessas histórias, marcadas por situações de violência sexual, nos pesquisadores e nos profissionais
dos serviços responsáveis pelo atendimento. O que dizer/fazer quando uma criança manifesta
querer retornar ao convívio familiar mesmo quando seu pai ou padrasto abusou sexualmente ou a
violentou fisicamente de outra forma? Como tornar narrável isso que seria da ordem do inenarrável,
do traumático e que, portanto, aciona a resistência de quem está no lugar de acolher/escutar essas
crianças? (BENJAMIN, 1987; MALDONADO; CARDOSO, 2009; GAGNEBIN, 1999).
Testemunhamos em nossos trabalhos o impacto que essas situações provocavam nos
profissionais responsáveis pelo cuidado e que tinham efeito, na maioria das vezes, na resistência em
escutar, o que remete ao que Lacan (1998a; 1998b) denominou “resistência do analista”. Porém,
também identificamos nesses estudos a importância de criar dispositivos que possibilitassem
a esses sujeitos nomear essas vivências, entendidas aqui como da ordem do traumático, e dar
sentido a elas. O traumático, como nos situam Freud (1976) e Lacan (2008), refere-se às vivências
do sujeito que, por sua força e intensidade, não são possíveis de serem nomeadas por ele ou cuja
significação dada se mantém como única, a ponto de não deslizar entre os significantes, repetindo-
se incessantemente.
Nessa direção, Rosa (2002), em um estudo com psicanalistas que acompanhavam meninos
em situação de rua, constatou, como também visualizamos em nossos trabalhos, uma resistência à
escuta desses sujeitos, que terminava por reproduzir a violência simbólica e por encobrir suas reais
possibilidades de elaboração simbólica. Nessas situações em que somos tomados pelo real e pelo
extremo da dimensão sociopolítica do sofrimento (ROSA, 2016), corremos o risco, como apontam
nossos estudos e os trabalhos anteriormente elencados, de ficarmos paralisados e resistirmos à
escuta. Seguindo nessa linha, adverte-se sobre os perigos de se designar de forma precoce o lugar
de cada um na cena do abuso. Compreende-se que essa abordagem pode levar ao silenciamento

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do sujeito, excluindo o sentido singular atribuído por ele à experiência vivida, também limitando as
possibilidades de escuta do profissional (DARRIBA; ALBUQUERQUE, 2018).
São situações muitas vezes impactantes para o profissional responsável pelo acolhimento
a esses sujeitos e que podem desencadear, como um dos efeitos na prática desses profissionais,
a resistência em escutá-los e, em contrapartida, uma impossibilidade desses sujeitos de nomear/
significar/narrar a sua prática. É exatamente nesses contextos que se constituem como da ordem do
traumático que se faz necessária a construção de dispositivos que permitam dar bordas simbólicas
àquilo que parece infinito, insuportável, intolerável, pois se inscreve na ordem do real. Falamos aqui
de dispositivos que permitam a construção de uma escuta ao discurso desses profissionais, que
possibilitem deslizar o discurso e, assim, produzir efeitos subjetivantes.
É nesse contexto que se inscreveu nossa proposta de pesquisa-intervenção junto à equipe
de um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Propusemos à equipe a
construção do caso como metodologia de trabalho, tal como formulada por Figueiredo (2004) no
campo da saúde mental, pois esse método permite recolher da experiência clínica seus elementos
de base para podermos reter, dessa experiência, algo transmissível e avaliável acerca de cada caso
(FIGUEIREDO et al., 2001).
A construção do caso, para Viganò (2010), é uma forma democrática na qual os sujeitos
envolvidos com o caso em questão – o próprio usuário, familiares, equipe, entre outros – fazem suas
contribuições de forma a encontrar “pontos cegos” ou “pontos comuns”, antes impossíveis de ver,
e que incluam a transferência. No contexto do trabalho multiprofissional e em rede, a construção
do caso clínico se apresenta como um arranjo daquilo que emerge do discurso da equipe, visando
159
59A
a uma conduta, com o objetivo de compartilhar elementos de cada caso em um trabalho conjunto,
atentando para a dimensão clínica, para a singularidade (FIGUEIREDO, 2004). Nesse ponto, coaduna-
se com o que há de mais especial na disposição do pesquisador em psicanálise que, ao se lançar a
campo, permite-se relativizar ao máximo seus pressupostos e deixar abalar suas certezas a partir do
encontro com a singularidade (VERZTMAN et al., 2007).

Percurso metodológico

Para atingir o objetivo do nosso estudo, foi necessário compor uma rede de produção de
dados que colocasse em cena os discursos produzidos pelos profissionais da rede de atendimento
nos (des)encontros realizados com crianças em situação de abuso sexual e seus familiares e/ou
responsáveis. A configuração dessa rede foi tecida pouco a pouco, pois, como aponta Figueiredo
(2004), era preciso construir uma transferência de trabalho entre o grupo de pesquisa e a equipe
profissional do serviço onde realizamos nosso percurso investigativo. Essa transferência, segundo
Figueiredo (2004), seria a condição de estabelecimento de um laço produtivo entre pares visando à
produção de um saber a partir do fazer clínico.
Nesse sentido, Figueiredo (2004) afirma que recolher os traços significantes como
indicadores do “sujeito” é fundamental para a instalação de uma clínica do sujeito no coletivo, a
qual irá se constituir a partir dos fragmentos cotidianamente recolhidos no trabalho da equipe. A
autora coloca ainda que a clínica do sujeito no coletivo se constrói para além do “saber” do técnico,
pois é fruto da experiência renovada com os dispositivos já existentes a partir dessa convocação do
sujeito ao fazer, mas também ao dizer, a tomar posição nas mínimas situações, por mais precárias
que sejam.
Dessa forma, a construção da rede de trabalho se deu de forma singular. Iniciamos nosso
percurso em agosto de 2014, entrando em contato com gestores e profissionais da Fundação de
Assistência Social e Cidadania (FASC) a fim de definirmos em conjunto o contexto em que seria
proposta a produção da nossa pesquisa. No município, a FASC é o órgão gestor e executor dessa
política, trabalhando na perspectiva do acesso da população à promoção e à garantia de direitos e
cidadania. No momento da pesquisa havia 9 CREAS e 22 Centros de Referência de Assistência Social
(CRAS) no município, além dos demais serviços de média e alta complexidade, como centros para
atendimento da população adulta em situação de rua, abrigos, repúblicas, casas-lares e albergues.
Cada um desses serviços encontrava-se em diferentes níveis de organização e qualificação, sendo
alguns deles dos próprios centros e outros conveniados com instituições não governamentais.

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Autorizada nossa pesquisa pela FASC, a instituição indicou um dos CREAS da cidade para o
desenvolvimento de nossa proposta1.
Autorizada a realização da pesquisa pela FASC e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa
(CEP) da universidade, em agosto de 2015 iniciamos nossa imersão no campo, fazendo os contatos
iniciais com a equipe do CREAS a fim de pactuarmos a realização do estudo. O primeiro contato foi
com a coordenação local e, posteriormente, participamos de uma reunião de equipe na qual foram
apresentados os objetivos da pesquisa e a proposta de trabalho. A equipe técnica do CREAS2 era
composta pela coordenadora do serviço, duas assistentes sociais, três psicólogas e uma pedagoga.
Em algumas reuniões houve também a participação da supervisora da equipe e duas educadoras.
Pactuamos a realização do estudo no serviço, tendo como combinado a participação da
primeira autora nas reuniões da equipe e a gravação das reuniões somente nos momentos em que
houvesse discussão de casos que envolvessem situações de violência sexual. As reuniões da equipe
ocorriam semanalmente, com duração de uma hora e meia.
Participamos de aproximadamente 30 reuniões, entre 22 de setembro de 2015 e 27
de setembro de 2016. Nessas reuniões, foram relatadas diversas situações de abuso sexual,
tendo como dispositivo inicial o relato do caso pelos profissionais da equipe, responsáveis pelo

1 Na sequência, em julho de 2015 apresentamos o projeto para análise ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da
Universidade, sob o número CAEE 47029915.6.1001.5334, cuja aprovação se deu em 09/08/2015.
2 Para manter a confidencialidade da identidade dos participantes da pesquisa, optamos por não identificar o
CREAS onde o estudo foi realizado.
160
60A
acompanhamento. Esse momento serviu como disparador da discussão dos casos para, a partir
disso, seguindo a inspiração dada por Figueiredo (2004), recolhermos os fragmentos de saber
produzidos no cotidiano dos atendimentos e fazer circular seus efeitos na equipe, pondo-a na direção
do trabalho compartilhado. Com isso, apostamos que seria possível tecer reflexões acerca das
intervenções ou ações da equipe nos atendimentos às crianças e seus familiares, perpassadas pelas
(im)possibilidades de escuta do discurso desses sujeitos pela equipe, sendo essas impossibilidades
descritas anteriormente. Conforme coloca Figueiredo (2004, p. 80),
As discussões realizadas em equipe sustentam o funcionamento
de nosso método e remetem mais a um trabalho de construção
do que de supervisão, ainda que no seu desenrolar tangenciem
a experiência de supervisão. No entanto, diferem tanto do
modelo do aprendiz/aluno quanto do praticante e, mesmo,
de uma supervisão em grupo (intercontrole), já que não se
trata de chegarmos à última palavra sobre qualquer conceito
ou fenômeno. Convém lembrar que, decidir absolutamente
sobre a verdade deste ou daquele caso estaria, por princípio,
em contradição com uma supervisão verdadeiramente
analítica. Porém, ao contrário da supervisão, a discussão não
se encerra ao término da sessão, ela continua e remete-se ao
pesquisador/analista que apresentou o caso. Num primeiro
tempo, ocorre um retorno sobre ele em sua condição de sujeito
(até aí não difere exatamente da supervisão). Num segundo
tempo, trata-se da reapropriação do saber pelo analista
na condição de pesquisador. Finalmente, este saber que é
depositado é um produto. Este produto é o ponto de basta
feito pelo pesquisador na condição de analista/praticante. O
entrelaçamento das funções de sujeito, pesquisador, analista
rompe qualquer fixidez de posição diante do saber. Portanto,
sustentamos a construção – e não a super-visão – manejando
os impasses que atravessam o cotidiano de nossa prática,
apostando na formalização possível de seus princípios.

Resultados

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A partir das narrativas configuradas pela equipe do CREAS em suas discussões acerca de
situações que envolviam abuso sexual, foi possível visualizar inicialmente que havia um fluxo na
circulação dos casos acompanhados pelo serviço. Aos poucos, a equipe pôde estabelecer o que
era considerado – dentro da rotina estabelecida pelo serviço – uma situação normativa e outra
não normativa. O critério para o estabelecimento da normatividade, dado pela própria equipe,
foi a constatação de que a maioria dos casos de violência sexual que chegavam no serviço era
encaminhada, via processo, pelo Ministério Público (MP). Portanto, o caso normativo chegava à
equipe por meio desse tipo de encaminhamento. O caso fora dos padrões do serviço foi delimitado
pela equipe como aquele cuja suspeita de violência sexual surgia ao longo do acompanhamento que
ela fazia à família ou ao indivíduo, acompanhamento este realizado por situações de vulnerabilidade
e violações de direitos.
Esse fluxo normativo, para a equipe desse CREAS, em geral inicia-se pelo Centro de
Referência Integrado (CRI) da capital do estado,3 referência no atendimento especializado a
crianças, adolescentes e suas famílias e/ou responsáveis em situação de violência sexual. Esse

3 A proposta do Centro de Referência Integrado, ou Centro de Atendimento Integrado, é justamente a integração


de diferentes serviços de proteção, atenção e responsabilização, em um único espaço. Essa parceria teria como
objetivo a não revitimização dos sujeitos – que anteriormente peregrinavam pela cidade e eram escutados
repetidamente em diferentes lugares – e a investigação com vistas à responsabilização criminal dos agressores.
(VILELLA, 2016; SANTOS; MAGALHÃES; GONÇALVES, 2017). Nesse serviço, em específico, geralmente é realizado
um atendimento seguido de encaminhamentos, caso necessário. É importante ressaltar que a pesquisa é datada
(2014-2015) e que mudanças vêm ocorrendo nas políticas, nas legislações e nos fluxos de trabalho.
161
61A
serviço notifica os casos ao MP, o qual, via processo, aciona os CRAS e CREAS das regiões, solicitando
maiores informações acerca dos casos, como podemos ver nas narrativas da equipe:

[o caso em questão] veio pelo judiciário, pelo ministério [...] não


foi pelo CRI, embora tenha na avaliação do encaminhamento,
que nunca chegou por eles, chegou pela outra via […] O CRI
faz dois encaminhamentos sempre, um pro MP e um pro
Conselho Tutelar (CT). E os outros encaminhamentos são
o que eles entendem que seria apropriado. Nesse caso, tem
encaminhamento pro CREAS [...].
Mas assim, nunca chegou pra nós um encaminhamento do
CRI. Mas o que eu digo que funciona, às vezes, de formas
diferentes é porque assim, eu, em pouquíssimas vezes, já recebi
do CRI. Uma vez recebi por e-mail um relato de uma situação,
solicitando atendimento. Outra vez o encaminhamento
chegou lá no CRAS [...] e aí eles colocaram CRAS/CREAS. Então
chegou assim, um encaminhamento meio indiferenciado, na
verdade, eles demandavam SASE, bolsa-família, então chegou
meio indiferenciado, como se fosse uma coisa... um ou outro,
enfim. E [...] a gente recebe mais pela defensoria, mesmo. Pela
promotoria. E daí quando vem por aí já se passou mais tempo,
né.
[...] segue chegando, nos últimos tempos, mais pela defensoria
pública, né. Ou então já aconteceu da família sair com o
encaminhamento pra procurar o CREAS e não procurar. E daí
depois, meses depois, vem o processo e através do processo
que a gente [...] ou se a gente não localiza a família, a gente
acessa o CT. Aí se o CT tem o registro, aí a gente também já
identificou que o CT também tinha encaminhado a família pra
nós só que assim, [...] só deu o encaminhamento na mão da
família.

Nesse percurso, um dos problemas identificados pela equipe diz respeito à configuração de
uma rede de acompanhamento a esses casos. Isso porque, na maioria das vezes, os encaminhamentos
para o CREAS são dados diretamente “na mão” das famílias, deixando a cargo delas essa procura

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pelo serviço. Nesse trajeto, muitas famílias não chegam até o CREAS ou, quando chegam, muito
tempo se passou. Nessa chegada, não há nenhum parecer mais detalhado do serviço especializado
acerca do caso, como podemos ver na narrativa seguinte:

[...] o que vem pra nós do CRI é um breve relato, nada mais
que isso... nem é um relato dirigido pro CREAS [...] É para o
Ministério [...] Tanto que não é nem um parecer, né. É um
comunicado de acolhida no CRI. E às vezes eles veem, a família
e a criança, uma única vez.

[...] porque os atendimentos eles se prosseguem, eles


continuam, os atendimentos, assistente social ou com psicólogo
e depois tem com a médica, o psiquiatra... Mas raramente
elas (CRI) marcam retorno pra elas mesmo. Derivam pros
atendimentos daí, por exemplo, a perícia psiquiátrica [...] que
a gente não tem acesso... Que a gente raramente tem acesso
[...]. Raramente um processo vem com, por exemplo, aqui, oh,
esse aqui é um que tem uma particularidade, que ele vem com
uma perícia física [...]. É, eu nunca tive muito mais do que isso,
assim [...].

162
62A
Nessas discussões de caso, notamos que as questões que movimentam a equipe em
relação às situações de violência sexual por ela trabalhadas apresentam aspectos comuns, os quais
denominamos “pontos de tensão”. O primeiro ponto de tensão aponta para certa morosidade que
tangencia a composição da rede de assistência (motivada por diferentes fatores). Essa morosidade
acaba por reproduzir a violência/exclusão que essas famílias em situação de vulnerabilidade
já vivenciam. O que se explicita com as narrativas é que essa forma de encaminhamento pelos
serviços da rede produz uma quebra no acompanhamento a esses sujeitos que, na maioria das
vezes, acabam chegando até o CREAS meses depois via judiciário, dado que outro encaminhamento
do CRI é a notificação ao MP. Porém, a equipe pondera que o número de atendimentos realizados
pelo CRI é grande, dado que o serviço é referência para situações de violência em todo o estado.
A equipe adverte, também, que as diversidades regionais nos fluxos de atendimento a essas
situações e as mudanças ocorridas de governo a governo em torno das políticas públicas – de
assistência social e também da saúde – acabaram produzindo rupturas nos processos que vinham
ocorrendo e, com isso, formas de intervenção que terminam, muitas vezes, tornando-se confusas.
Ou, no mínimo, uma questão muito confusa, qual era a
situação demandada ali. Também porque tem, não em Porto
Alegre, mas eu sei que tem alguns municípios que os CREAS
começaram como serviço especializado de atendimento em
abusos sexuais. Então teve alguns municípios que tinham
serviços, que o CREAS ficava com esse serviço especializado
de atendimento e tem, também na história, o Sentinela, que
foi um programa específico que foi criado num determinado
momento que se situava dentro do serviço de assistência,
mas era uma equipe contratada especificamente pra isso.
[...] E então teve diferentes momentos em diferentes lugares,
né, e isso é muito comum nos serviços: ora tu constrói um
determinado fluxo, aí daqui a pouco aquilo se perde de novo
[...] (Narrativa da equipe).

Enfim, o que podemos escutar nessas narrativas é que há um ponto de tensão inicial
no acompanhamento aos casos de violência sexual, motivado pelo próprio fluxo nos e entre os
serviços, pois, como aparece na narrativa da equipe, “[...] parece que cai na rede e meio que se
perde ali muito... assim, é a coisa da composição da rede que é... que tem muito êxito mas também
tem muitos percalços... Tem um furo às vezes muito grande, a malha da rede é muito grande [...]”.

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No ponto levantado pela equipe, no que diz respeito às constantes mudanças e rupturas
nos fluxos dos serviços, consideramos relevante ressaltar uma transformação importante, que foi
a promulgação da Lei nº 13.431/2017 e a publicação do Decreto nº 9.603/2018, que acarretam,
em toda rede, uma reorganização do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) no atendimento e
prevenção em situações suspeitas de violência contra crianças e adolescentes. Em nota, o Sistema
Conselhos de Psicologia (CFP, 2018) fez uma análise crítica, advertindo quanto à falta de debate
público em torno desse projeto e sua dissociação com o já existente SGD, o que impõe novamente
uma reorganização de uma rede que ainda estava em construção. De fato, a malha é muito grande
e imposições legais como essas demonstram o quanto a participação pública – de usuários,
profissionais, pesquisadores, organizações, movimentos sociais, entidades e demais segmentos – é
relevante para a construção e a manutenção dessas políticas.
Nesse sentido, sabemos que a composição dessa rede é viva, que depende em grande parte
dos profissionais nela envolvidos, porém cabe aos gestores das políticas públicas lapidar esses
fluxos, apostando na construção de dispositivos que garantam formas de acesso às informações
e de diálogos transversais entre os serviços. Dessa forma, talvez, uma das fontes de sofrimento
psíquico dos profissionais possa ser minimizada.
A partir da leitura-escuta das narrativas produzidas pela equipe acerca dos casos, destacamos
também um segundo ponto de tensão, que está articulado ao primeiro ponto de tensão; e, de
certa forma, podemos dizer que aquele é um dos efeitos deste. Esse segundo ponto de tensão é
relativo ao próprio trabalho de composição narrativa pela equipe acerca das situações de violência.
Essa composição inicial chamamos de “relato do caso”, marcada por enunciados “factuais” que
163
63A
procuram, diante de tantas informações desencontradas e até mesmo confusas, tecer uma
“história” coerente acerca dos eventos que compõem o caso.
Nesse trabalho de construção narrativa, a equipe se serve de fragmentos de diversos
registros (pareceres do acolhimento institucional, quando for o caso, do CRI, do CT e do CRAS da
região de origem dessas famílias) e de relatos da própria equipe a partir das visitas realizadas aos
sujeitos, bem como de entrevistas com familiares e/ou responsáveis por essas crianças. Trata-se de
registros e relatos configurados em momentos diferentes e que produzem na equipe uma sensação
de incerteza, de dúvidas quanto à cronologia dos eventos, quanto à veracidade de algumas
informações. É como se a forma pela qual os serviços estão organizados – primeiro ponto de
tensão – produzisse, na equipe, um efeito de violência institucional (como muitas vezes as famílias
acompanhadas pelo CREAS vivenciam), pois a equipe se sente, muitas vezes, alheia ao fluxo dos
acontecimentos.
Enfim, várias lacunas vão se apresentando ao longo do relato dos casos, o que gera, na equipe,
várias interrogações e angústias. Mas, nesse movimento de idas e vindas acerca do caso, a equipe
tenta montar o quebra-cabeça, configurando uma narrativa “coerente” acerca dos acontecimentos.
Em todas essas narrativas, repetem-se significantes que apontam para um mal-estar acerca
da dificuldade em entender o caso, das relações entre os eventos, dos motivos de alguns
acontecimentos. A angústia que a “confusão” e a “nebulosidade” acerca da “ordem das coisas”
gera na equipe é evidente, o que exige um longo trabalho de elaboração narrativa na tentativa
de compor uma versão possível para enredos aparentemente diversos, heterogêneos, não
entrelaçados. Apesar de todas as dificuldades da equipe em lidar com a incoerência na cronologia
e nas relações entre os eventos que dizem respeito ao caso, as narrativas construídas sobre o caso
são efeitos dessa tentativa de elaboração.
E isso, por si só, já possibilita à equipe certo deslocamento de uma posição centrada na
organização dos fatos para outra que interroga para além deles. Um dos questionamentos fala
dos encaminhamentos orquestrados pela rede de proteção à criança e ao adolescente: por que o
acolhimento e por que tão rápido? Por que dessa forma? Poderia ter sido de outro modo?
E mais uma vez essa falta de clareza nas informações e a inexistência de tempos de diálogos
transversais entre os serviços gera angústia e sofrimento para a equipe, pois exige-se, dessa mesma
equipe, uma intervenção rápida e efetiva em face de certo “caos” fenomênico. Diante desse caos,
o primeiro passo, como diz a própria equipe, é “costurar um pouco as coisas que são ditas”. E,
especificamente nesse caso, a maior parte das reuniões acabava sendo dedicada a essa costura.
Tessitura necessária para uma elaboração narrativa inicial a partir da qual a equipe pudesse se
desprender e interrogar outras coisas acerca do caso.

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Especificamente em relação à situação de abuso sexual, podemos dizer que a equipe faz um
trabalho de elaboração narrativa, procurando tecer os fios dos fragmentos advindos dos registros do
processo e dos relatos feitos pelas diferentes equipes que acompanharam as situações de violência
em serviços diversos. Podemos dizer que esse trabalho de composição narrativa – que indica nosso
segundo ponto de tensão –, também é fator de sofrimento para a equipe. Esse exercício de tessitura
dos fios, que chegam de formas diversas e anacrônicas, exige, por parte da equipe, um árduo
trabalho de composição, árduo não só pelo tempo cronológico despedido, mas, principalmente,
pela necessária busca de sentido em torno de relatos confusos, dispersos e intemporais.
Enfim, depois que a trama narrativa, relativa a uma primeira versão do relato do caso, é
configurada, podemos visualizar um deslocamento do trabalho psíquico realizado pela equipe, pois,
feito isso, a angústia da equipe parece centrar-se na direção do “tratamento”, gerando perguntas:
há demanda? De qual serviço? Qual o melhor encaminhamento para esse caso? Para onde ou por
onde seguir, então? Este se constitui como o terceiro ponto de tensão e vem a ser o foco da angústia
da equipe: é uma situação que deveria/precisaria seguir, sendo acompanhada pelo serviço CREAS?
Qual é o limite?
Como vemos, a angústia central da equipe, que se refere à direção do “tratamento”, coloca
em jogo vários questionamentos acerca do papel e do lugar do CREAS nesse atendimento: quais as
possibilidades de o serviço oferecer suporte caso a demanda de acompanhamento se configure?
Quais os limites desse acompanhamento de forma que este não se materialize em uma condição
de dependência “sem fim”?
164
64A
Podemos dizer que, embora siga “tudo nebuloso”, um dos efeitos do trabalho de construção
de uma narrativa possível para os acontecimentos foi permitir o deslocamento das questões
“factuais” e das relações causais entre os eventos, para indagar as implicações subjetivas, portanto,
singulares, que, de alguma forma, podem promover a configuração desses acontecimentos. Nessas
indagações, embora prossiga a angústia e o sofrimento decorrentes da sensação de nebulosidade
acerca do caso, a equipe pode agora se perguntar: qual é a direção do trabalho a ser seguida? É um
caso que a equipe deve seguir acompanhando, dado que as situações de violação de direitos e de
vulnerabilidade foram encaminhadas?
Ao longo dessa discussão, a angústia, colocada em palavras e em movimento discursivo na
reunião, desloca-se rumo a uma certa elaboração do sofrimento, movimento este necessário para
que algo da ordem do inenarrável, logo, do traumático, possa se fazer representar e, assim, ser
(res)significado. Porém, como a própria equipe afirma ao longo do processo de nossa pesquisa-
intervenção, esse movimento se viabilizou dada a presença da pesquisadora nas reuniões, pois a
pesquisa permitiu que certo lugar de escuta se configurasse – a transferência pelo trabalho, como
aponta Figueiredo (2004) –, possibilitando, assim, o endereçamento da mensagem e a construção
de uma alteridade, essencial para que o discurso se deslocasse e se reorganizasse.
Esse lugar de escuta propiciado pela pesquisadora se mostrou potente para o reordenamento
narrativo, pois, com isso, a equipe pôde se “olhar” de um outro lugar e se interrogar acerca de
suas intervenções e de suas escolhas de encaminhamento para as situações de violência sexual
experienciadas.

Considerações quase finais

Nomeamos esse tópico como considerações quase finais, visto que muitas interrogações
se abriram na direção do que podemos considerar acerca de uma clínica em situações sociais
críticas, de um trabalho de escuta voltado para os profissionais que acolhem sujeitos em situações
de violência sexual nas políticas de assistência social e das interrelações entre as políticas de
assistência, de saúde e o sistema judiciário.
A análise das vias de construção dos casos configurada pela equipe do CREAS e associada
à discussão dos resultados da pesquisa, que realizamos posteriormente com a equipe, permite-
nos enunciar que os casos que envolvem abuso sexual na infância/adolescência apresentam-
se, quase invariavelmente, como situações nebulosas. Neles, algo parece sempre “escapar” ao
“entendimento” do que “efetivamente” se passou, o que exige um longo e angustiante trabalho de

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elaboração por parte das equipes. No processo apresentado neste trabalho , a equipe busca tecer
uma narrativa juntando fragmentos de diferentes informações e relatos do caso, a fim de configurar
um fio condutor, tentando dar sentido ao que se apresenta como excesso.
A leitura-escuta das narrativas permite também destacar diferentes pontos de tensão
presentes no discurso da equipe do CREAS. Um dos pontos que imediatamente sobressai é o
sofrimento da equipe, decorrente da forma como o fluxo de trabalho entre os serviços se apresenta:
entrecortado, difuso, não compartilhado. Além disso, os encaminhamentos entre os serviços não
é ágil e depende quase que exclusivamente das “boas relações” construídas pelos profissionais
da rede de assistência, dado que o município não apresenta uma política de gestão eficaz que
promova a agilidade dos encaminhamentos e os encontros entre as equipes e os serviços.
O segundo ponto de tensão que percebemos é decorrente do encontro com cenários que se
apresentam em grande complexidade e nebulosidade, tornando-se confusos. Ambas as situações
exigem da equipe “costurar os fios” para, a partir disso, poder efetivamente realizar um trabalho de
escuta dessas famílias e desses indivíduos. Ou seja, as situações de violência sexual debatidas são
sempre contadas dentro de um emaranhado narrativo em que os fios precisam ser primeiramente
separados para, num segundo momento, serem tecidos a partir do preenchimento narrativo, por
parte das profissionais, das diversas lacunas existentes no relato dos casos.
Tecidos os fios, abrem-se brechas para a composição do terceiro ponto de tensão, que
se constitui como efeito da escuta às famílias e aos indivíduos: a angústia gerada pela constante
tensão entre a tutela e o cuidado com os usuários, configurada, de certa forma, pela interrogação
165
65A
que perpassa a direção do trabalho dos casos debatidos. Trata-se de uma situação que a equipe
deveria seguir acompanhando? Seria este um caso para ser atendido pelo serviço? Se sim, como
intervir? Se não, qual encaminhamento dar ao caso ou quando realizar tal encaminhamento? Como
intervir em direção à autonomia dos usuários sem fragilizar ainda mais os laços existentes entre a
criança ou o adolescente e seus familiares? Como intervir sem violência, dado que, muitas vezes, a
forma como intervimos pode produzir rupturas tão drásticas que venham a reforçar uma violência
já sofrida?
Os resultados da pesquisa apontam também para alguns aspectos relevantes a serem
compartilhados com os gestores e trabalhadores das políticas públicas a fim de qualificar o trabalho
que vem sendo desenvolvido pelas equipes. De forma sintética, podemos destacar:
a) a importância de oportunizar espaços para “supervisão”, matriciamento ou
constituição de grupos de discussão sobre os casos acompanhados com profissionais
externos ao serviço. Alguém com um “olhar de fora”, um olhar terceiro, de alteridade,
a fim de possibilitar a elaboração das situações vivenciadas e a reflexão crítica acerca
das intervenções realizadas ou a serem efetuadas pela equipe; pode ser muito bem-
vindo;
b) a necessidade de qualificar o fluxo das informações entre os serviços da rede
de assistência, possibilitando que pareceres e laudos emitidos, bem como os
encaminhamentos, cheguem até as equipes responsáveis pelo acompanhamento
de forma mais direta e efetiva, evitando, assim, informações desencontradas ou
equivocadas, que tomam grande parcela de tempo do trabalho realizado pelos
profissionais e geram intenso desgaste emocional;
c) a relevância de constituir dispositivos de escuta junto a crianças e adolescentes
em situações sociais críticas, de forma que se lhes ofereça possibilidades de
compor narrativas próprias sobre suas vivências para que, a partir delas, possam se
reposicionar diante de seu desejo;
d) a ênfase na experiência singular dos sujeitos para além da situação de violência
em si e o cuidado para não reforçar um discurso vitimista que possa resultar em um
processo de dessubjetivação.

Enfim, nosso trabalho acompanhando essa equipe por vários meses nos permite afirmar o
quão essencial é, para os profissionais que trabalham com situações tão extremas, compor espaços
de narração das vivências experimentadas em seus cotidianos de ação. Tal experiência mostrou-se

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um espaço possível para a nomeação da angústia e, quem sabe, desse modo, de elaboração do
sofrimento advindo dessas experiências, confusas, muitas vezes circulares, ressignificando-as. Isso
porque testemunhamos que espaços de circulação da palavra possibilitam encontros dialógicos,
criando possibilidades de produção, significação e reordenamentos significantes, permitindo que
cada um possa, em coprodução com outros, recuperar seu protagonismo, sair do silenciamento e
da invisibilidade que, por vezes, acaba se colocando.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04

169
69A
A CONVERSAÇÃO ATIVA COMO PROPOSTA DE ABORDAGEM
METODOLÓGICA EM PSICANÁLISE: UMA ESCRITA EM DOIS
TÓPICOS

ACTIVE CONVERSATION AS A PROPOSAL FOR A METHODOLOGICAL


APPROACH IN PSYCHOANALYSIS: A WRITING IN TWO TOPICS

Juliana Tassara Berni 1


Patricia da Silva Gomes 2
Nádia Laguárdia de Lima 3

Resumo: O presente artigo apresenta e discute o dispositivo da conversação ativa como método de pesquisa e intervenção
psicanalítica nas instituições. A discussão considera especialmente o uso desse dispositivo para tratar de uma questão que
nasce das demandas de educadores relativas a alguns usos da internet por adolescentes e aos impasses deles decorrentes,
como, por exemplo, a formação de sintomas e adoecimentos. Descreve a forma como as conversações são realizadas e
sugere uma chave de leitura que se baseia na teoria lacaniana dos discursos para analisar o material fruto dos encontros.

Palavras-chave: Psicanálise. Conversação. Metodologia. Adolescência. Internet.

Abstract: The article in question presents and discusses the device of active conversation as a method of research and
psychoanalytic intervention in institutions. The discussion especially considers the use of this device to deal with an issue
that arises from the demands of educators regarding some uses of the internet by adolescents and the resulting impasses,
such as the formation of symptoms and illnesses. It describes how the conversations are carried out and suggests a reading
key that is based on the Lacanian theory of discourses to analyze the material resulting from the meetings.

Keywords: Psychoanalysis. Conversation. Methodology. Adolescence. Internet.

1 Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorado e mestrado em psicologia pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Atua em pesquisas voltadas para a área de interlocução entre psicanálise e educação desde 2007. Atualmente é pesquisadora do
Laboratório de Psicologia e Educação do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais e do Laboratório de pesquisa Além
da Tela: psicanálise e cultura digital. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1372716622012772. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0557-169X.
E-mail: jutassara@hotmail.com

2 Doutoranda em Psicologia pela UFMG, Mestre em Psicologia - Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Psicóloga pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduada em Educação Especial Inclusiva pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia. Pesquisadora do Além da Tela Psicanálise e Cultura Digital. Atuação
como psicóloga/psicanalista no atendimento clínico a crianças, adolescentes e adultos. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7470-9907.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8009737890995945. E-mail: pgpsicologa@gmail.com

3 Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Doutorado e Mestrado em Educação pela UFMG, e Graduação em Psicologia pela UFMG.
É professora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Coordena o grupo de pesquisa: Além da Tela: psicanálise e cultura digital, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. É
autora do livro: A escrita virtual na adolescência: uma leitura psicanalítica (Editora UFMG), e co-organizadora de vários livros. Ênfase na produção
acadêmica e profissional junto aos temas: psicanálise e cultura digital, psicanálise e educação, clínica psicanalítica com crianças e adolescentes.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7949-0169. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9516537449598946. E-mail: nadia.laguardia@gmail.com
Introdução

Neste artigo, apresentamos algumas reflexões sobre a utilização da conversação ativa, um


dispositivo clínico de pesquisa e intervenção que permite ofertar uma escuta clínica em diferentes
espaços sociais e institucionais. Em seu pronunciamento no Quinto Congresso Psicanalítico
Internacional, em Budapeste, Freud manifesta preocupação com a evolução da técnica psicanalítica.
Para ele, seria necessário que o método pudesse ser adaptado para atingir “uma considerável
massa da população” (FREUD, 1918/1989, p. 210). Ele justifica sua posição dizendo que
Mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade
despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente
tanto direito a uma assistência à sua mente, quanto o tem,
agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses
ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose,
de que, como esta, também não podem ser deixadas aos
cuidados impotentes de membros individuais da comunidade.
(FREUD, 1918/1989, p. 210)

Freud acrescenta que cabe ao psicanalista a tarefa de adequar a técnica às novas condições.
Assim, ele se debruça sobre as vicissitudes da vida na pólis, considerando a indissociabilidade entre o
psíquico e o social e destacando o compromisso político do psicanalista. A orientação freudiana nos
serve de guia para a aposta em dispositivos que permitam operar o inconsciente na transferência,
nos diversos espaços sociais e institucionais.
É preciso considerar, ainda, a indissociabilidade entre pesquisa e clínica em psicanálise. Em
Dois Verbetes de Enciclopédia (1923), Freud enuncia que
Psicanálise é um nome de: (1) um procedimento para a
investigação de processos mentais que são quase inacessíveis
por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa
investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e
(3) um conjunto de informações psicológicas obtidas ao longo
dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova
disciplina científica. (FREUD, 1923, p. 287)

Assim, a psicanálise articula a investigação dos processos inconscientes, a metodologia


clínica e a produção de saber. Pinto (2001) salienta que a psicanálise é, ao mesmo tempo, teoria

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e método de investigação. Sua descrição já traria intrinsecamente uma maneira de produzir saber,
seja na clínica, na academia ou mesmo na cidade. Ele acrescenta, também, que a vocação científica
da psicanálise é aquela formalizada pelo discurso do analista, ou seja, a de produzir o significante
mestre a partir da instalação da causa do desejo como agente de um laço social.

Uma questão de pesquisa

A pesquisa em psicanálise diferencia-se das pesquisas oriundas das ciências sociais por
incluir a dimensão inconsciente. A técnica de investigação psicanalítica é, desde Freud, baseada
na escuta clínica, mais precisamente na escuta orientada pela associação livre. Freud (1912/1989)
afirma, inclusive, que a associação livre é, pelo menos para ele, a única técnica de investigação
psicanalítica viável. Vale acrescentar que ele inclui aí o inconsciente do próprio psicanalista, que,
a partir da atenção flutuante, “deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na
direção do inconsciente transmissor do paciente” (FREUD, 1912/1989, p. 154). Assim, a produção
de saber em psicanálise é determinada e regida pelo inconsciente. Para Mezan (1998), mesmo um
texto psicanalítico feito por encomenda1 não estaria isento das influências inconscientes do autor.

1 Mezan (1998) descreve os textos produzidos por encomenda como aqueles cujo propósito é atender a uma
demanda específica, como, por exemplo, discutir um determinado tema de um evento ou de uma publicação. Este
texto é fruto de duas pesquisas distintas de doutoramento.
171
71A
Para ele, tais influências não se furtam na escrita, ao contrário, habilmente escapam no conteúdo
do texto, ora pelos caminhos do tratamento da questão, ora por seus destaques ou omissões a
determinadas ideias. Vale ainda lembrar que, para a sua escrita, ou para a sua prática, cada
psicanalista carrega consigo a sua “teoria portátil”:
É essa teoria portátil que, ancorada nos e amalgamada
com os resultados da sua própria análise, irá funcionar
pré-conscientemente como instrumento de apreensão do
que lhe disseram seus pacientes, e como instrumento de
formulação para suas intervenções, bem como lhe permitirá
eventualmente retomar tais intervenções e submetê-las a
alguma forma de exame crítico. (MEZAN, 1998, p. 60)

Os determinantes inconscientes se evidenciam ainda mais quando se trata da escolha de


uma questão de pesquisa. No nosso caso, o tema de pesquisa se relaciona a uma inquietação que
nasce da escuta dos adolescentes e de suas reverberações. Tomamos aqui as palavras de Mezan
(1998, p. 103): “O desejo de escrever surge combinado com, ou impregnado por um sentimento
de urgência. Há algo que precisa ser formulado, colocado em palavras compreensíveis para mim e
para os outros”.
No nosso caso, esse “algo que precisa ser formulado”, que precisa ser pesquisado para
ser escrito, nasceu da prática realizada com adolescentes de escolas da região metropolitana de
Belo Horizonte. Nela, fomos interpeladas pela escuta de uma peculiar abordagem da sexualidade
feita pelos adolescentes. À primeira vista, ou melhor, nas primeiras escutas, ouvimos seus relatos
se apresentarem de forma crua, revelando práticas sexuais sem preocupação com a privacidade
ou mesmo qualquer inibição quanto aos conteúdos da conversação. As diversas pesquisas que
abordam os riscos dos usos da internet por crianças e adolescentes apontam, entre eles, a
exposição excessiva e inadequada a conteúdo sexual. Cerca de 15% de crianças e adolescentes
com idade entre 9 e 17 anos declaram que já viram imagens ou vídeos de conteúdo sexual e cerca
de 12% afirmam que já tiveram fotos ou vídeos em que pareciam nus requisitados por terceiros
(NIC.br, 2020). A exposição a esse tipo de conteúdo aparece nas conversações e suas consequências
ficam evidentes. Em um dos grupos de conversação ativa com adolescentes entre 13 e 15 anos,
por exemplo, os participantes se interrogam mutuamente sobre quem já tinha experiência com
“boquete”.
O consumo de conteúdo pornográfico por esses jovens também é tema das conversas;

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alguns enumeram a facilidade de acesso ao universo de sites reservados aos maiores de idade
e sua frequência constante neles. Em outra escola, um aluno de aproximadamente seis anos de
idade ensinava aos colegas mais velhos a estratégia de apagar o histórico de navegação, retirando
o registro de sua visitação de sites de conteúdo adulto. Esse relato aponta ainda a precocidade
de apresentação dos sujeitos contemporâneos a esses conteúdos presentes no universo virtual.
A sexualização precoce não é uma novidade, mas a exposição das crianças e adolescentes a esse
tipo de conteúdo na internet sem a supervisão e orientação dos pais, especialmente entre os mais
pobres, como também aponta a pesquisa do NIC.br (2020), amplifica esse problema.
A psicanálise ressalta a centralidade do sexual na vida humana, em especial no tempo
da adolescência. Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2016), apresenta
a puberdade como um túnel atravessado desde os dois lados por duas correntes, uma sensual
e uma afetiva. Nesse atravessamento, a convergência das duas correntes é o que asseguraria “a
normalidade da vida sexual” (FREUD, 1905/1989, p. 195); por outro lado, a falta de tal convergência
provocaria a necessidade de reordenamentos, os quais, por sua vez, poderiam resultar em
distúrbios. Nesse mesmo texto, Freud aborda ainda o excesso pulsional que incide sobre o corpo
invadido pelos hormônios puberais e suas possíveis implicações quanto a escolhas de objeto e
objetivo sexual (FREUD, 1905/2016).
Lacan, em seu Prefácio a O despertar da Primavera (1974/2003), considera a adolescência
como o tempo em que se dá o encontro do sujeito com o real. Isto quer dizer que é nesse tempo
que o jovem percebe que não há um saber sobre o sexo; que, ao contrário dos animais que se
172
72A
servem do instinto, ele precisa encontrar suas próprias respostas e saídas. O que o jovem sente
na pele, sem dispor de palavras que lhe permitam traduzir isso, é que há uma impossibilidade do
encontro simétrico, perfeito entre os sexos. Isso não é sem efeitos para os adolescentes. Muitas
vezes, tem-se um corpo pronto para o ato do ponto de vista biológico, mas em dissonância com um
sujeito que não sabe o que fazer com o que o invade do ponto de vista pulsional.
É esse sujeito “adolescendo” que encontra na internet um campo vasto para experimentações.
Jacques-Alain Miller, em seu texto Em direção à adolescência, afirma que o mundo virtual é um
mundo de “possíveis” (MILLER, 2015, p. 4). Talvez aqui haja um paradoxo: de um lado, o adolescente
se depara com impossibilidades; do outro, a internet acena para um mundo de possibilidades.
A sexualidade humana é atravessada pelo espírito do tempo. Miller (2015) nos lembra que
a psicanálise foi criada num tempo de forte repressão sexual e que em nossa época, ao contrário,
vivemos um tempo de espetacularização do sexo, que é acessível com um simples toque no celular.
Assim, a nossa sociedade, mesmo que não passe por saltos radicais, passou não só à permissão,
mas ao incitamento, a uma provocação em relação à sexualidade.    
As imagens pornográficas invadem as telas, mostrando o que nunca havia sido visto;
entretanto, ao tentar desvelar o mistério do sexo, elas fracassam, pois revelam somente a carne.
Conforme afirma Wajcman: “Na verdade, as imagens não se enfrentam com o proibido, nem com
o impossível, e sim com a relação sexual que não existe. Isto que elas mostram” (WAJCMAN, 2011,
p. 222).   
Nesse contexto, os jovens se veem diante de impasses para dar algum tratamento ao
real inominável da puberdade, se encontram com a impossibilidade da relação sexual. Essa
tentativa adolescente pode incluir a formação de sintomas, passagens ao ato, desvios de conduta
etc. (LACADÉE, 2011-2012), elementos estes que escutamos com frequência nas demandas
apresentadas pelos educadores.  
Desta forma, o mal-estar no campo da educação na atualidade aparece sob nova roupagem,
que envolve a cultura digital. É interessante destacar que as demandas com as quais o grupo trabalha
surgem de escolas públicas, cujos alunos possuem maiores dificuldades de acesso à internet e aos
dispositivos tecnológicos digitais. No entanto, mesmo que se trate de escolas situadas em contextos
de maior vulnerabilidade social, grande parte dos adolescentes faz uso da internet e das redes
sociais2. Os jovens não escondem seu uso intenso da internet. Uma garota de 13 anos diz: “Se ficar
sem meu celular, sem internet, eu morro…”. A observação informal e a escuta dos adolescentes
corroboram os últimos dados encontrados pelo IBGE.
As queixas das escolas normalmente incluem relações aditivas com a internet que distanciam

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os alunos do contexto de ensino e aprendizagem, manifestações de agressividade tanto na escola
quanto no ambiente virtual, compartilhamento de nudes ou de conteúdos que promovam a
segregação de adolescentes, comportamentos de risco que são estimulados por grupos nas
mídias sociais, entre outros. Podemos dizer que as questões que as escolas nos apresentam
estão relacionadas aos impasses do laço social, vivenciados pelos adolescentes no contexto
contemporâneo da cultura digital.
O antropólogo David Le Breton (2017) assinala que as tecnologias de informação e de
comunicação trouxeram mudanças radicais na relação com o espaço e com o tempo, bem como nas
relações entre os sujeitos e com a própria intimidade. Logo, o encontro marcado na adolescência
com o impossível e o conteúdo presente nas falas dos adolescentes fez surgir uma questão de
pesquisa: a imersão dos adolescentes na cultura digital, própria dos nossos dias, teria alguma
incidência no encontro do adolescente com os impasses da sexualidade?

2 Segundo dados divulgados pelo IBGE (16/09/2022), 51,4% das crianças e adolescentes de 10 a 13 anos de
idade contam com celular para uso pessoal no Brasil. As conclusões integram um módulo da Pnad Contínua
(Pesquisa Nacional por amostra de domicílios contínua). Segundo a pesquisa TIC Kids on-line Brasil, do Comitê
Gestor da Internet no Brasil, “93% das crianças e adolescentes do país entre 9 e 17 anos são usuárias de internet,
o que corresponde a cerca de 22,3 milhões de pessoas conectadas nessa faixa etária” (CRUZ, 2022, online). No
entanto, enquanto crianças e adolescentes das classes sociais privilegiadas acessam a internet por uma série de
dispositivos tecnológicos, mais de 50% das crianças e adolescentes das classes sociais mais baixas acessa a internet
exclusivamente pelo telefone celular.
173
73A
Uma proposta de abordagem metodológica

Apresentada a questão, qual seria o caminho metodológico para buscar respostas pertinentes
e ao mesmo tempo produzir efeitos éticos a partir da demanda? Aqui, cabe um esclarecimento
inicial: os relatos mencionados foram obtidos na prática de um projeto universitário de pesquisa
e extensão que responde com a oferta de escuta à demanda dos educadores sobre problemas
relativos ao uso inadequado e abusivo das redes sociais pelos adolescentes.
A oferta que o grupo faz à escola parte da recusa de oferecer um modelo vertical de
intervenção. Frequentemente, pede-se em auxílio que sejam ministrados cursos, palestras e
capacitações sobre o tema para os envolvidos. Todavia, seguindo uma ética de trabalho, o grupo
faz uma aposta: a criação de espaços de fala dialógicos como via de acesso aos jovens no âmbito
da instituição escolar.
Freud, ao abordar a posição do analista nas instituições, em  Linhas de progresso na
psicoterapia psicanalítica (1918/1989), destaca o valor da psicanálise aplicada a formas de
tratamento diferentes da clínica tradicional dos consultórios. O psicanalista ressalta a importância
de sua utilização em instituições como forma de não restringir o tratamento psicanalítico às classes
sociais mais favorecidas economicamente. Ele já adianta aí que o tratamento psicanalítico terá que
assumir novas formas, ainda desconhecidas, e que essas novas formas de aplicação da psicanálise
serão efetivas desde que seus ingredientes sejam “aqueles tomados à psicanálise estrita e não
tendenciosa” (FREUD, 1918/1989, p. 211).
Na mesma perspectiva, Lacan, em Proposição de 9 de outubro de 1967 (2003), retoma a
discussão sobre a aplicabilidade da psicanálise nas instituições ressaltando que ela não se desvincula
da psicanálise pura, didática ou em intensão. Nesse sentido, é possível ao psicanalista sustentar o
discurso psicanalítico em outros contextos que não o consultório. Como salienta Macêdo (2011),
a psicanálise é um tratamento do impossível, onde quer que operem seus dispositivos. Em suas
palavras:
Ao ofertarmos a psicanálise, ofertamos um discurso e,
também, um dispositivo. Ao convidarmos o sujeito a falar
o que lhe vem à mente, ao ofertarmos a associação livre,
estamos ofertando um dispositivo, e um dispositivo é um fato
instituído, instituinte, institucional! (MACÊDO, 2011, online).

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Ressaltamos, aqui, que as escolas nos convocam no lugar de psicólogos capazes de
solucionar os problemas que enfrentam, mas nos apresentamos à equipe enquanto pesquisadores
e psicanalistas. Em nossa experiência, essa posição de pesquisador tem favorecido o trabalho de
conversação tanto no âmbito da pesquisa quanto no da intervenção.
No momento inicial do trabalho, propomos uma conversação com os professores e, desta
forma, oferecemos um espaço de escuta para que eles possam falar dos impasses que localizam
em suas relações com os alunos. É importante esclarecer que o método proposto pelo grupo de
pesquisa foi nomeado como conversação ativa, considerando que esse termo leva em conta não
apenas nossa posição, que remete à escuta ativa, atenta às manifestações do inconsciente, mas
também à posição dos sujeitos, marcados pela atividade pulsional. Para a psicanálise o inconsciente
é pulsátil, pura potência (LACAN, 1964). A escuta dos adolescentes requer o acolhimento da intensa
atividade pulsional que se manifesta nos corpos cada vez menos dóceis aos aparatos disciplinares,
apostando na articulação entre palavra e corpo e nas proposições inventivas de cada um.
A noção de atividade está referida também a um efeito possível da conversação, que é o de
desobjetificação dos sujeitos. As instituições escolares muitas vezes propõem um modelo universal
unificado que não dá lugar às particularidades. Reguladas pelo discurso do universitário, podem
vir a tratar os alunos como objetos. A conversação visa dar lugar às singularidades, promovendo a
emergência dos sujeitos.
O número de encontros com o grupo de professores é definido junto à escola a partir da
disponibilidade dos professores e coordenadores, mas, muitas vezes, dadas as condições diversas,
há um único encontro desse tipo.
174
74A
No segundo momento, realizamos conversações com os adolescentes, que são apresentados
à nossa proposta e convidados a participar. A frequência e o número de encontros também é
previamente definido junto à coordenação. Em nossas experiências, pudemos constatar que um
número maior de encontros, de oito a doze, traz melhores resultados, mas esse número é variável
e adequado às possibilidades da escola. Nos apresentamos aos adolescentes dizendo que somos
pesquisadores-psicanalistas e que estamos interessados em conhecer os usos que eles fazem
da internet. Nesse primeiro momento, eles são convidados a falar livremente sobre os usos que
fazem dos jogos, das redes sociais, entre outros. Os ativadores de conversação são livres para levar
algo que possa precipitar a fala, como um poema, um vídeo curto, uma notícia ou uma atividade
artística, sempre de forma bem livre. No entanto, o que mais contribui para que falem é o nosso
desejo de escutá-los.
É importante esclarecer que o ativador da conversação, além de pesquisador, é um
psicanalista em formação, analisante e praticante da psicanálise, e é acompanhado, na conversação,
por um aluno de graduação ou pós-graduação. Assim, trabalhamos em duplas, de modo que,
enquanto um se dedica a ativar a conversação, no sentido de dar movimento, fazer a engrenagem
andar, o outro o acompanha, atento aos significantes que se repetem, ao que algum significante
específico desencadeia, nos movimentos e conversas que acontecem paralelamente ao assunto
principal (sempre tentando incluir esses movimentos), mas também apoiando o ativador de outras
formas.
Também gravamos e transcrevemos as conversações, com a autorização dos adolescentes.
O ato de gravar as conversas geralmente não inibe os participantes, pelo contrário, parece fazer
com que fiquem mais interessados em falar. Algumas vezes eles chamam a atenção para o fato de
o conteúdo que dizem estar sendo gravado: “Vê aí se tá gravando porque isso que eu vou falar é
muito importante”. Também brincam com o gravador, interagindo com ele, brincando de entrevistar
o colega etc.
A oferta de um espaço para a palavra aos adolescentes visa localizar um impasse que eles
vivenciam no laço social através do uso que fazem das tecnologias digitais. Se, num primeiro
momento, o mal-estar vem nomeado pela escola, através de uma demanda que não é deles,
quando são convidados a falar, cada um tem a chance de nomear, à sua maneira, o mal-estar. A
associação livre coletivizada permite a circulação da palavra que pode tomar qualquer destino: das
redes sociais ao racismo, à violência, à sexualidade, ao amor.

Metodologia de análise das conversações ativas

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Propomos abordar a conversação ativa através da teoria dos discursos de Lacan, que
se apresenta como chave de leitura interessante para a análise da conversação enquanto um
dispositivo tanto de pesquisa quanto de intervenção.
A conversação opera pela via discursiva. Segundo Lacan (1969-1970, p. 11), o discurso é “uma
estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra, sempre mais ou menos ocasional”. Ele
acrescenta que “O discurso molda a realidade, sem supor nenhum consenso do sujeito, dividindo-o,
de qualquer modo, entre o que ele enuncia e o fato de ele se colocar como aquele que o enuncia”
(LACAN, 1970, p. 408). Nessa perspectiva, a cultura está conectada ao discurso, que inclui o que
excede à somatória dos enunciados num determinado contexto. 
Lacan (1972-73) toma o discurso como laço social, considerando que “no fim das contas,
há apenas isso, o laço social. Eu o designo com o termo discurso” (p. 60); e que “cada realidade
se funda e se define por um discurso” (p. 37). Para o autor, não há realidade pré-discursiva. Os
discursos “constituem-se como uma repetida experiência de busca de gozo e seu fracasso” (LIMA,
2017, p. 140).
Os discursos, lidos como essa tessitura que se constitui sobre o impossível real, apontam
para o mal-estar que se manifesta em cada laço social (LIMA, 2013, p. 479). A escuta dos professores
permite localizar os discursos predominantes na instituição e o lugar destinado aos alunos nesses
discursos. A escuta dos adolescentes nos aponta para os efeitos dos discursos institucionais
sobre os sujeitos. Percebemos que os quatro discursos propostos por Lacan estão presentes nas
175
75A
conversações com professores e adolescentes, e se alternam ou se conjugam de acordo com as
aberturas ou encontros com o real.
Para Voltolini (2011), toda instituição sofre com os efeitos da mestria. O discurso do mestre
opera sobre o real numa tentativa de controlá-lo. Na tentativa de se apropriar do saber do Outro,
o mestre lança mão do discurso da ciência para regular o real. Dessa forma, a escola tenta calar o
sujeito. É a esse serviço que se oferecem os diversos diagnósticos, classificações e rótulos. Mas o
real sempre se interpõe, impedindo que o gozo seja submetido a qualquer parâmetro universal. O
que vemos nas conversações é o retorno desse real. O que há muito não se falava reaparece no
grupo e se impõe como questão a ser debatida. Quando temos o primeiro contato com os alunos,
já estamos diante desse contexto. Eles também! Isso tem efeitos, como, por exemplo, na fala de
uma adolescente no primeiro encontro: “Você não vai dar conta da gente, não. Pode desistir!”.
Quando nos apresentamos como pesquisadores aos adolescentes, isso parece ter um
efeito muito profícuo para a circulação da palavra. A escola tende a se estabelecer sob a égide do
discurso do mestre, muitas vezes normatizando os sujeitos através das nomeações diagnósticas ou
disciplinares. Quando nos dirigimos a eles como alguém que detém um saber, apresentamo-nos
num lugar de sujeito dividido.
Lacan, no Seminário 17, diz que “o que conduz ao saber não é o desejo de saber. O que
conduz ao saber é – se me permitirem justificar em um prazo mais ou menos longo – o discurso da
histérica” (LACAN, 1969-1970, p. 21). É nesse sentido que propomos pensar que a posição discursiva
em que nos apresentamos, pelo menos nesse primeiro momento, é a do discurso da histérica, um
discurso favorável à produção de saber.
É a partir do lugar de sujeito dividido que nos endereçamos ao outro, no caso, aos
adolescentes. Queremos saber sobre eles, aprender com eles. Nosso desejo é que falem para nós,
que nos contem sobre o que lhes interessa, o que os ativa e, também, o que os acomete nessa
relação com a cultura digital. Esses meninos e meninas que, diante da escola, frequentemente
ocupavam um lugar muitas vezes depreciado, eram nomeados como bagunceiros, agitados,
problemáticos ou, de outra forma, desalojados de um lugar singular para ocupar um lugar na lógica
normatizante, como o fazem, por exemplo, os diversos diagnósticos, agora são convidados a falar
de um outro lugar, um lugar de mestria.
Essa estrutura inicialmente proposta traz efeitos surpreendentes. Eles reconhecem e
apreciam a ideia de falar para alguém que quer aprender com eles, como fica evidente na fala de
um dos participantes:
No começo, quando eu comecei a conversar com ela, ela

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ficava toda hora perguntando ‘o que é isso, o que é isso?’. Eu
a achava meio burrinha, até me irritava – desculpa aí, tá? –
Depois, eu fui vendo que ela queria saber sobre o nosso mundo
de adolescente, sobre as nossas coisas. E, tipo, ela quer saber
mesmo, ela quer que a gente fale com ela. Nossa, eu gosto
demais dessas conversas, não sei nem explicar.

A oferta da escuta ao adolescente, tomando-o como sujeito do inconsciente, instaura o


discurso do analista: “a posição do analista” é feita “substancialmente do objeto a” (LACAN, 1969-
1970, p. 40). O psicanalista faz semblante de objeto, e é desse lugar que ele oferece a sua escuta.
Essa posição só é possível a partir da instalação da transferência. O que se espera de um analista
nessa posição é que “faça funcionar seu saber em termos de verdade”, essa é a razão pela qual
ele “se confina em um semi-dizer”. Ele opera com o saber da estrutura no lugar da verdade e o
faz desde a função do enigma que aí retorna ao sujeito no campo do Outro. O analista renuncia a
exercer a posição de um ser todo-saber, e que tem como efeito o furo no saber.
Na medida em que nossa escuta é orientada pela ética da psicanálise, os sujeitos percebem
a diferença de nossa posição em relação à escola e a importância da escuta: “Você, por exemplo,
quando você chegou e falou que a gente não podia jogar truco, eu pensei: ‘Nó, vai ser paia’, mas aí
não. Você conversa com a gente, escuta o que a gente fala. É mó legal”.
A conversação visa abrir brechas no discurso, oferecendo condições para a emergência
do equívoco, da surpresa naquilo que se diz, fazendo com que o sujeito se depare com a sua
176
76A
alteridade inconsciente. Assim, a conversação convoca e propicia condições para a emergência das
manifestações do sujeito do inconsciente.
Quando a escuta analítica se instala, a associação livre – aí coletivizada – opera fazendo
com que os sujeitos se escutem, escutem os colegas e produzam novos saberes. Os significantes
mestres caem e evocam novos significantes. Os adolescentes se surpreendem com a própria fala e
com o que produzem: “É porque a gente tem um papo, assim, que não é aquele papo na na na na
na na. É um papo que cada um dá sua opinião, tipo falar mesmo.” Ou: “Todo assunto que você fala,
quando vê, já virou outra coisa. Não sei como isso acontece, mas acontece”. Na medida em que eles
começam a trazer os seus impasses, eles passam a se interrogar.
Os discursos mostram a articulação entre a linguagem e o gozo. Os insultos, as agressões
verbais, cada vez mais comuns entre os jovens, mostram o laço entre significante e gozo. O corpo
goza a partir do fato de que o ser fala. As palavras afetam o corpo, as palavras têm peso, um peso
de gozo que marca o corpo (ORRADO, 2020). Os significantes permitem identificações, conferem
um lugar no campo do Outro, mas também têm efeitos de segregação. A conversação visa desfazer
identificações cristalizadas, abrindo novas possibilidades identificatórias. A partir das intervenções
provocadas por quem “ativa” a conversação, a circulação de palavras no espaço coletivo dá lugar às
diferenças, às diferentes leituras, interpretações e, também, aos modos singulares de organização
pulsional e de gozo. A conversação permite interrogar a dimensão pulsional como laço entre a
palavra e o corpo, tomados um a um.

Análise das conversações: a metodologia de conversação como


pesquisa

O segundo momento importante do trabalho de pesquisa se dá na supervisão. A supervisão,


em nossa prática, também se organiza como uma conversação. A dupla que ativa um determinado
grupo apresenta o impasse que vem encontrando na condução daquele grupo. Todos os participantes
são convidados a falar e a refletir sobre a questão trazida pela dupla. Esse é um momento em que,
com certo distanciamento, alguns aspectos do trabalho do grupo se destacam. Os significantes que
foram repetidos muitas vezes ou, contrariamente, que apareceram uma única vez ou mesmo foram
recalcados tomam outra densidade. O encadeamento que se dá na associação livre coletivizada
pode tornar-se evidente.
Freud já nos alertava que, também para fins científicos, a escuta deve ser livre e que a

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possibilidade de sucesso é tão maior quanto a liberdade com a qual se escuta:
Casos que são dedicados, desde o princípio, a propósitos
científicos, e assim tratados, sofrem em seu resultado;
enquanto os casos mais bem sucedidos são aqueles em que
se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em
que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova
reviravolta neles, e sempre se o enfrenta com liberalidade,
sem quaisquer pressuposições (FREUD, 1912/1987, p. 153).

Assim, buscamos promover uma comunidade de trabalho, a qual, através da articulação


significante, forja seus conceitos e faz avançar a clínica. Trata-se de uma forma de trabalho propícia
para criar ou manter a surpresa, o interesse, o desejo de saber mais. Uma forma de trabalho em
que o real do sintoma mantém seu valor de surpresa (DEWAMBRECHISE-LA SAGNA, 2020).
A conversação com a equipe de psicanalistas e pesquisadores permite decantar os
significantes mestres das falas dos adolescentes. “A atenção é colocada no significante, o fundamento
das conversações clínicas” (DEWAMBRECHISE-LA SAGNA, 2020, p. 19). Para compreender o que se
diz, é importante estar atento às contradições, às ressonâncias, às superposições significativas.
A metodologia de conversação ativa como pesquisa é orientada pelos significantes mestres
extraídos da conversação com os professores e os adolescentes. No trabalho na instituição
escolar, podemos tomar o discurso como uma fala coletiva, uma série de enunciados, estratégias
e dispositivos que também podem ser tomados pelos sujeitos individualmente. É através de seu
177
77A
próprio discurso, ou seja, através de suas ancoragens, seus desvios, suas insistências, em última
instância, a partir da repetição significante, que o sujeito se constitui.
A escuta analítica no trabalho de conversação pode abrir um canal para a enunciação. Na
supervisão, nos atentamos a esse processo no intuito de apreender o que emerge do sujeito do
inconsciente. Aquilo “que o inconsciente traz ao nosso exame, é a lei pela qual a enunciação nunca
se reduzirá ao enunciado de nenhum discurso” (LACAN, 1966, p. 892).
Dunker, Paulon e Milán-Ramos (2016) destacam que, numa “análise do discurso” orientada
pela psicanálise, deve-se estar atento às vertentes do enunciado e da enunciação. A vertente do
enunciado “remete ao percurso do sujeito que se constitui como sujeito por meio de seu próprio
discurso [...], ou seja, a partir da repetição significante, em sua versão semântica e sintática” (p.
143). A vertente da enunciação evidencia os limites do enunciado, pois “O momento em que o
sujeito cessa de poder testemunhar sobre aquilo que o torna cativo ou limitado, é precisamente ali
que emerge, de maneira evanescente, o sujeito do inconsciente” (Dunker; Paulon; Milán-Ramos,
2016, p. 144). Dessa forma, na supervisão, através dos relatos e registros das conversações, tanto
pontualmente, quanto num período estendido, buscamos localizar os seguintes pontos:
• Os significantes mestres da cultura atual: cada cultura se constitui a partir de certos
significantes que ordenam e organizam os laços sociais. É em torno desses significantes
mestres que a estrutura social se organiza. Nas conversações ficamos atentos a esses
significantes que se repetem, como cancelamento e zoeira, e nos interrogamos sobre
eles.
• Os impasses no laço social nomeados pelos sujeitos: os próprios sujeitos apontam e
nomeiam suas dificuldades em relação ao laço social. Adições virtuais, isolamento,
segregação e violência são exemplos.
• Os discursos institucionais e os seus efeitos sobre os sujeitos: a instituição escolar se
apoia no discurso universitário no sentido de nomear os sujeitos. Frequentemente,
quando chegamos nas escolas, os alunos já chegam nomeados como agitados,
hiperativos, hipersexualizados, loucos, deprimidos etc. Se essas nomeações não
aparecem explicitamente na fala da escola, ela aparece nas falas dos próprios sujeitos.
• As ficções coletivas: as ficções coletivas emergem nas conversações como sentidos
compartilhados coletivamente, como, por exemplo, sobre o que é ser mulher, o que é
ser homem, o que é feminismo, o que é um bom aluno, entre outros. Consideramos que
as ficções coletivas tocam o inconsciente de cada sujeito, que, por sua vez, se organiza
em termos do discurso.

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• As rupturas e lacunas introduzidas no processo de enunciação: essas rupturas podem
ocorrer na permutação dos discursos e, também, nas descontinuidades da cadeia
significante ao longo do discurso (lapsos, interjeições e/ou tropeços linguageiros, erros,
esquecimentos, mudanças de entonação). Essas rupturas aparecem nas conversações,
mas também numa divergência entre a fala da escola e a fala dos adolescentes. Muitas
vezes o que a escola aponta não aparece nas conversações e vice-versa.
• As alternâncias no discurso: as alternâncias no discurso que se produzem no âmbito da
conversação acontecem pela emergência do real. A emergência do real desarticula a
cadeia significante em que o sujeito se faz representar, lançando-o a uma nova forma
de laço social. A emergência do corte na conversação é que promove a alternância dos
discursos, por exemplo, do discurso da histérica para o discurso do analista. Esse corte
promove um certo despertar do inconsciente e, ainda que seja um pequeno despertar,
acreditamos ser valioso.

Como salienta Rosa (2018), o método psicanalítico vai do fenômeno ao conceito e constrói
uma metapsicologia não isolada, mas fruto da escuta psicanalítica, que não enfatiza ou prioriza a
interpretação, a teoria por si só, mas integra teoria, prática e pesquisa. O psicanalista não aplica
teorias, não é o especialista da interpretação, nem mesmo da fantasia, posto que não é só aí que
o inconsciente se manifesta; o psicanalista deve estar a serviço da questão que se apresenta. A
observação dos fenômenos está em interação com a teoria, produzindo o objeto da pesquisa, não
dado a priori, mas produzido na e pela transferência.
178
78A
Nesse esforço de produção de saber, estamos cientes da impossibilidade de qualquer
categoria simbólica recobrir o real, e de que todo esforço de classificação não dá conta dos desafios
da clínica. O saber é sempre não-todo. Não há uma solução universal para suportar a não relação
sexual que exila os seres falantes uns dos outros (DEWAMBRECHISE-LA SAGNA, 2020).

Conclusões para um início ou um princípio de uma conclusão

A proposta de escuta dos adolescentes parte de um não saber: o saber sobre a adolescência
está ao lado do adolescente. Para Mezan (1993), os ditos produzidos a partir da prática clínica
devem ser tratados de uma forma que se preocupe menos em dar uma interpretação adequada e
mais em traduzir em forma de conceito aquilo que se ouviu e o que se fez ouvir desta ou daquela
forma:
O dito pelo paciente é considerado como o elo final de um
processo, e a abordagem teórica consiste em determinar com
algum grau de probabilidade, o tipo de processos que podem
estar em jogo para produzir tal ou qual fenômeno (MEZAN,
1993, p. 58).

Esse argumento é de fundamental importância: se a proposta é a de investigar em que


medida a internet e as redes sociais influenciam o encontro do adolescente com os impasses da
sexualidade, é o dito que permitirá interrogar os saberes constituídos sobre o tema e, se for o
caso, considerar se há algo de novo, conforme a abordagem sugerida. Assim, o que se pretende é,
de forma indutiva, o deslocamento do singular da fala para buscar o universal a ser tomado como
fenômeno. Todavia, em se tratando de uma pesquisa que pretende versar sobre a hipótese de
um fenômeno contemporâneo, nos deparamos com um elemento desafiador que é tratar de um
conteúdo que aborda um tempo que, antes de tudo, é o nosso.
Freud (1927) destaca a dificuldade de se discutir o presente, tempo que carrega consigo uma
mobilidade e que somente transformado em passado poderia ser observado. Ainda assim, é este
novo transformado em texto que será lido à luz de uma teoria que pode ser concebida como “a
estrela polar para o navegante” (MEZAN, 1993, p. 58), se prestando como coordenada e não como
um destino inefável a alcançar.
Essa operação pode se beneficiar do diálogo com outras áreas do saber que têm se debruçado
sobre as características da sociedade em nossos dias. A sociologia, a antropologia e a filosofia têm

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demonstrado importantes contribuições para compreender diversos fenômenos decorrentes do
uso maciço da internet.Destacamos aqui os estudos sobre adolescência do antropólogo David
Le Breton, as contribuições de Gilles Lipovetsky e de Zygmunt Bauman sobre a sociedade e seus
sujeitos contemporâneos, dentre outros autores.
Garcia-Roza (1994) entende como uma possibilidade de trabalho o encontro com outros
saberes para promover o surgimento de questões, “encontro não no sentido de importar conceitos
e princípios para a psicanálise” (p. 30), mas no sentido de uma intertextualidade possível e fecunda.
Aqui se esboça uma possibilidade de trabalho com o estabelecimento de um diálogo entre os
achados das conversações e os autores de outros campos que têm se debruçado sobre o hodierno.
Essa empreitada teria como objetivo tecer uma rede de ideias que, a partir de linhas de pensamento
diferentes, mas não excludentes, talvez até complementares, possa ser capaz de formar um tecido
melhor estruturado de saber sobre o tema.
Para concluir, em defesa da conversação ativa como metodologia de pesquisa, mais uma
vez recorremos ao pai da psicanálise, que, sobre o método psicanalítico, disse: “Dessa maneira, um
só e mesmo procedimento servia simultaneamente aos propósitos de investigar o mal e livrar-se
dele, e essa conjunção fora do comum foi posteriormente conservada pela psicanálise” (FREUD,
1924/1989, p. 242). Assim, resgatamos o aspecto da intervenção intrínseco ao método e, tendo
em vista a demanda cada vez mais recorrente da instituição escolar, reiteramos os efeitos que tais
espaços de circulação da palavra têm proporcionado.
Nas conversações há um estranhamento recorrente que pode ser exemplificado pela fala de
179
79A
um adolescente: “Você tá interessado mesmo em escutar o que eu tenho pra dizer?”. Parece que
há, para esses sujeitos, um espaço inédito de fala que, engolido pela contemporaneidade, pode se
apresentar nas conversações. Esse mesmo jovem, a partir da percepção da importância da sua fala,
ou – dizendo de outra forma – da importância de seu saber, continua: “Então, liga esse gravador aí
que eu quero é falar!!!!”.
Apostar na conversação como dispositivo de pesquisa e de intervenção não seria pleitear
um espaço para o inconsciente? Essa proposta também não seria uma razão mais do que justa para
defender o uso das conversações como metodologia?
Está feito o convite: que, para esta discussão, cada um traga a sua contribuição, lembrando
que cada um opinará segundo o que carrega consigo, ou seja, que cada um opina de acordo com a
estrela polar da sua própria “teoria portátil” (MEZAN, 1998). Ter isso em mente é um exercício de
respeito à singularidade mais do que necessário em nossos dias.

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Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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182
82A
CARREIRA E PSICANÁLISE NA CONTEMPORANEIDADE

CAREER AND PSYCHOANALYSIS IN CONTEMPORANEITY

Fernando José Assi de Carvalho 1


Maria Auxiliadora Ávila 2
Ariovaldo Francisco da Silva 3

Resumo: Este artigo integra uma abordagem no desenvolvimento de uma pesquisa de mestrado e objetiva compreender
como os conceitos de carreira e psicanálise se relacionam na contemporaneidade. Reflete como o sujeito é afetado na
construção identitária e no direcionamento das pulsões ao trabalho. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, através de
uma revisão de literatura sobre o tema. A relevância dessa reflexão encontra-se na premissa de que relações de trabalho
ajudam compreender como configuram-se os sujeitos e suas relações sociais, assim como a psicanálise contribui nessa
compreensão e nas influências que o trabalho exerce no sujeito. Trabalhar constitui fonte de satisfação e gozo, é um dos
elementos da vida que prende os sujeitos à realidade e concede um lugar no mundo, mas pode ser fonte de sofrimento.
Concluiu-se que produtividade e performance são importantes na contemporaneidade, porém, trabalho não se limita a
isso, e que é necessário espaço para ressignificar esses conceitos.

Palavras-chave: Carreira. Contemporaneidade. Psicanálise. Trabalho.

Abstract: This article integrates an approach in the development of a master’s research and aims to understand how the
concepts of career and psychoanalysis are related in contemporary times. It reflects how the subject is affected in the
construction of identity and in the direction of impulses to work. It is bibliographic research through a literature review
on the subject. The relevance of this reflection lies in the premise that work relationships help to understand how subject
and their social relationships are configured, just as psychoanalysis contributes to this understanding and the influences
that work exerts on the subject. Working is a source of satisfaction and enjoyment, it is one of the elements of life that
holds individuals to reality and grants them a place in the world, but it can be a source of suffering. It was concluded that
productivity and performance in contemporary times are legitimate, but work is not limited to that and spaces for other
meanings are necessary.

Keywords: Career. Contemporaneity. Psychoanalysis. Work.

1 Mestrando em Gestão e Desenvolvimento Regional pelo Centro Universitário do Sul de Minas - UNIS, Psicanalista Clínico pela Associação Mineira
de Psicanálise Contemporânea, Especialista em Gestão Executiva de Negócios pela PUC-MG e Controladoria e Finanças pela Universidade Federal
de São João Del Rei, Bacharel em Administração pela Universidade Federal de São João Del Rei. Professor Visitante no Centro Universitário do Sul
de Minas - UNIS. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0967-6950. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6475981162099182. E-mail: fernando.carvalho@
alunos.unis.edu.br

2 Doutora em Educação: Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Docente/Pesquisadora no Mestrado em
Gestão e Desenvolvimento Regional do Centro Universitário do Sul de Minas – UNIS. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4670-4735. CV Lattes
http://lattes.cnpq.br/1121250347999409. E-mail: maria.avila@professor.unis.edu.br

3 Doutor em Educação pela Universidade São Francisco – USF, Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso - Universidade do Vale do
Rio Verde - UNINCOR – MG, Especialização Lato-Sensu Docência na Educação a Distância no Centro Universitário do Sul de Minas – UNIS/MG,
Licenciatura em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas/SP. Secretário Geral do Centro Universitário do Sul de Minas - UNIS-MG
e do Grupo Educacional UNIS. Docente nos cursos de graduação e no Mestrado em Gestão e Desenvolvimento Regional no Centro Universitário
do Sul de Minas –Unis/MG. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4582-1913. CV Lattes: https://lattes.cnpq.br/7632740026678426. E-mail: ari@
unis.edu.br
Introdução

A relação entre sujeito e trabalho é resultante da significação individual e das características


que esse campo assume em diferentes momentos na sociedade. Freud (1930–1936/2010) afirma
que o trabalho é um dos elementos da vida que prende, firmemente, os sujeitos à realidade e
os permite identificar seu pertencimento ao mundo e à sociedade. Portanto, segundo Concolatto,
Oltramari e Santos Filho (2016), é de fundamental importância compreender o homem em relação
à sua atividade profissional, os laços existentes entre os sujeitos nesse âmbito e os impactos da
contemporaneidade nesses espaços.
Para essa compreensão, não se buscou relacionar o arcabouço teórico psicanalítico aos
conceitos de carreira como forma de transformar a psicanálise em uma ferramenta de gestão, assim
como a não instrumentalização da individualidade e da subjetividade do sujeito, tampouco aliá-
la às formas de potencialização e produtividade no campo do trabalho. O que se pretendeu foi,
a partir da Teoria Psicanalítica, a contribuição de seus conceitos para a compreensão do sujeito,
constituído de desejos e pulsões, no campo profissional. Nesse sentido, Guimarães (2014) aponta
que é importante entender que a carreira está ligada, inicialmente, aos processos primários da
infância. Da mesma forma, a construção do sujeito é compreendida pela teoria psicanalítica, com
base nesses mesmos processos infantis.
Este artigo propõe, portanto, reflexão sobre o que a psicanálise pode contribuir para o
entendimento da carreira dos sujeitos na contemporaneidade. Qual o ponto de encontro entre
os conceitos de carreira e psicanálise? Qual o diálogo possível entre esses conceitos? Como a
teoria psicanalítica contribui para a compreensão da carreira no sujeito contemporâneo? Para
conseguir responder as questões desses objetivos propostos, desenvolveram-se os seguintes eixos
de análise: a) como se relacionam os conceitos de carreira profissional com os pressupostos da
teoria psicanalítica? b) Como o cenário contemporâneo tem afetado o sujeito pulsional em relação
à sua construção identitária e ao direcionamento de suas pulsões às relações de trabalho à luz da
psicanálise?
Conforme observa Guimarães (2014), a inserção da psicanálise nos estudos organizacionais,
ainda, é recente e enfrenta enormes desafios. Primeiramente, o estudo desse campo do saber
exige um longo processo de formação, que o pesquisador em organizações precisa somar ao que
já tem. Segundo a autora, a aproximação entre psicanálise, organizações e gestão costuma gerar
preconceitos por parte daqueles que acreditam não ser de interesse da área esse tipo de discussão.
Isso porque, na maioria das vezes, o potencial da psicanálise é desconhecido para a compreensão

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dos fenômenos sociais e para a transformação das atitudes das pessoas e dos grupos perante a
própria realidade.
A justificativa para esse encontro entre a psicanálise e o campo do trabalho e da carreira
está na premissa de que essas relações servem para contextualizar e apresentar como ocorrem
as configurações entre o sujeito e as relações humanas na atualidade, assim como o arcabouço
psicanalítico propõe fundamentos que auxiliam a compreensão do funcionamento psíquico e os
impactos que a atividade profissional impõe nesse campo.
A discussão apresentada neste artigo originou-se com base na revisão de literatura para
o desenvolvimento de uma dissertação de mestrado, a qual tem como escopo a compreensão
de como a alta liderança de organizações de médio e grande porte da região sul do estado de
Minas Gerais significam suas experiências de liderança nas narrativas de suas trajetórias de vida no
contexto da contemporaneidade.
A metodologia utilizada para a construção deste artigo foi a pesquisa bibliográfica, por meio
de uma revisão da literatura sobre o tema abordado. Utilizaram-se livros do acervo pessoal do
pesquisador e artigos, teses e dissertações acessados na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações, e no Portal de periódicos CAPES. Os descritores utilizados e interrelacionados para
consulta foram: psicanálise, carreira, trabalho, trajetória, contemporaneidade, neoliberalismo,
experiência, sujeito contemporâneo.

184
84A
Trabalho, carreira profissional e psicanálise
Para Bauman (2001), o vocábulo “trabalho” (labour), no sentido de um esforço físico
destinado a atender às necessidades materiais da sociedade, foi registrado, pela primeira vez, em
1776. Ao longo do tempo, devido ao desenvolvimento do sistema capitalista e às mudanças sociais
em curso, o conceito de trabalho passou a adquirir novas conotações e significados.
Ferreira e Dutra (2013) observam que, a partir da década de 1980 (assim como aconteceu
no início do século XX), houve um retorno das discussões sobre trajetória profissional e carreira,
causado por significativas mudanças estruturais nos campos: social, político, tecnológico e
econômico. Tais fatos demandaram dos sujeitos que desempenham suas atividades profissionais
uma nova forma de observar suas carreiras e a relação com as novas organizações.
Carreira, em uma perspectiva psicológica, segundo Bacelar, Campos e Cappelle (2021),
engloba as experiências vivenciadas pelos sujeitos a medida em que suas próprias trajetórias
são desenvolvidas, do surgimento de papéis sociais e do desenvolvimento pessoal. Os autores
afirmam, também, que a pesquisa sobre ocupações em estudos organizacionais tem se
concentrado mais nas ocupações como atributos estáticos e menos na dinâmica processual
do desenvolvimento da carreira. Compreender a carreira de um indivíduo com base em uma
perspectiva processual envolve compreender suas trajetórias e dinâmicas de trabalho que se
desenvolvem e afetam as dimensões individuais ao longo da vida.
Conforme Anjos (2019), a inserção no meio profissional, a escolha de uma carreira
(quando há de fato a possibilidade de uma escolha) e a realização de um ofício constituem formas
fundamentais de entrada e permanência na comunidade. O autor afirma que não trabalhar tende
a colocar o indivíduo em oposição aos demais membros da sociedade. Isso também se aplica, em
alguma medida, a indivíduos que escolhem formas de trabalho alternativas ao modelo capitalista
empresarial tradicional, muitas vezes sendo criticados. Enfim, não se trata, apenas, da inserção ou
não no mercado de trabalho, mas da maneira pela qual esse processo ocorre. E espera-se, ainda,
que o sujeito se posicione de forma competitiva.
Nesse sentido de pertencimento social, Freud (1920–1923/2013) expõe que o fato de o
sujeito abandonar sua peculiaridade em meio aos membros de uma sociedade implica que estes o
sugestionem, e que aquele age dessa maneira porque precisa estar de acordo e não em oposição
aos demais, talvez por amor a eles.
Freud (1930–1936/2010), afirma que a civilização quer unir também libidinalmente os
membros da comunidade. Favorece meios e caminhos para estabelecer identificações entre eles,

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fortalecendo os vínculos comunitários através de relações de amizade. Os sujeitos acham-se ligados
pelo trabalho e os interesses em comum. Sentimentos que auxiliam os sujeitos a formarem grupos
compostos de afetos. O campo do trabalho simboliza uma via importante para o desenvolvimento
desses grupos. Sabendo que o homem não possui uma quantidade infinita de energia
psíquica, ele deve realizar suas tarefas por meio de uma distribuição adequada da libido. Com
isso, apresenta a relação entre sujeito e trabalho designando ser um elemento que fixa o sujeito,
firmemente, à realidade e o insere de forma segura numa parte da realidade na sociedade.
Guimarães (2014) afirma que a carreira pode ser compreendida como uma possibilidade
de realização dos desejos do sujeito (conscientes e inconscientes). Nas análises de sua pesquisa
com executivos, por exemplo, foi possível perceber a ponte entre as histórias e as carreiras, e o
modo como esse caminho possibilitou que os executivos investissem suas libidos e construíssem
um sentido para suas escolhas.
O termo “libido” está intimamente relacionado ao conceito de pulsão. Laplanche (2016)
define pulsão como um dinâmico processo que compreende uma carga enérgica ou fator de
motricidade que um organismo tende em direção a um objetivo. É em objetos que a pulsão pode
atingir sua meta de suprimir o estado de tensão desejado (fonte de excitação). Nesse sentido,
Concolatto, Oltramari e Santos Filho (2016) pontuam que, por meio do trabalho (como objeto),
o sujeito pode identificar uma destinação sublimatória para as suas pulsões, transformando-o em
fonte de prazer pessoal e restrito, em uma força direcionada às atividades coletivas valorizadas
socialmente. Porém, para isso ser possível, é preciso que o sujeito tenha uma forte ligação com sua
atividade laboral, e que tenha um significado especial para ele.
185
85A
Laplanche (2016) aponta que não é possível apresentar uma completa definição de libido.
Com os diferentes momentos do desenvolvimento da Teoria das Pulsões, a Teoria da Libido evoluiu
e o conceito está longe de receber uma única definição. Porém, libidus em latim significa vontade,
desejo. Na psicanálise caracteriza-se como uma energia, deslocada a objetos em busca de satisfação
e excitação. Diante disso, é possível afirmar que a carreira, no cenário contemporâneo, é objeto de
deslocamento de libido pelo sujeito, em busca de gozo e satisfação.
Concolatto, Oltramari e Santos Filho (2016) compreendem o trabalho como um fator que lida
com a energia mental, que pode ser um propulsor para uma atividade mental bem elaborada
e significativa. Para os autores, quando isso ocorre, trabalhar contribui para o enriquecimento do
psiquismo. Por outro lado, pode ser fonte de sofrimento e de adoecimento. De qualquer forma,
enriquecendo ou adoecendo, a atividade profissional e as interrelações nesse ambiente impactam
a subjetividade do sujeito pulsional.
Ferreira e Dutra (2013) apontam que cada pessoa entende sucesso com base em sua definição
pessoal e isso pode estar associado à conjunção de três categorias: sucesso na carreira associado
à capacidade cognitiva; como um conjunto de aptidões e como resultado de uma combinação de
aptidões, gerando a diferenciação.
Anjos (2019), em seu estudo com atletas profissionais, aponta que não é raro, na cultura,
que um indivíduo inicie uma fala se apresentando para alguém nomeando sua profissão. O autor
observa que diversos sobrenomes em vários idiomas têm suas origens em profissões ou ofícios.
No âmbito esportivo, esporte, especificamente, essa tendência ocorre de forma acentuada, em
que o reconhecimento do atleta não se restringe à sua performance na prática esportiva, mas é
determinado pelo sucesso obtido na modalidade em que atua, bem como pela percepção de sua
dedicação.
Nesse sentido, lança-se a pergunta realizada por Roudinesco (2000) em uma de suas obras:
“por que a psicanálise?”. Segundo Laplanche (2016), a psicanálise pode ser definida como um
método investigativo que consiste, principalmente, em destacar o significado inconsciente
da fala, comportamento ou produtos imaginários de um sujeito. Sugere-se, então, outro
questionamento: por que não a psicanálise? Por que não referenciar os pressupostos psicanalíticos
para a compreensão do sujeito contemporâneo em sua trajetória profissional?
Conforme Roudinesco (2000), a psicanálise, ao enfatizar significantes como: sexualidade,
inconsciente e morte no cerne da psique humana, parece estar ainda mais vulnerável às críticas
atuais, uma vez que a abordagem é valorizada por sua singularidade em relação a outras experiências
subjetivas.

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A autora, também, assevera que a sociedade, inserida no movimento de uma economia
globalizada, que transforma os sujeitos em objetos, não quer mais ouvir expressões como: culpa,
sentido íntimo, consciência, desejo e inconsciente. Quanto mais reforça a lógica narcísica, mais
distante fica da ideia de subjetividade.
Segundo Gomez, Chatelard e Araújo (2021), a origem da psicanálise retoma o início do
século XX como uma disciplina, a qual deu um novo entendimento ao sofrimento e aos sintomas
dos sujeitos, trazendo sofrimento e sintoma como mensagens a ser decifradas. Porém, segundo as
autoras, mais do que isso, a psicanálise inaugurou um método para estudar a psique, e foi além de
suas próprias expectativas, tornando-se uma teoria que observa a cultura e uma forma de teorizar
aquilo que fornece fatores e elementos para pensar sobre as conexões sociais. As autoras afirmam
que as elaborações na psicanálise trazem especificidades sobre a infância que passam a
refletir no modo como os psicanalistas escutam os relatos dos pacientes.
Borges e Ribeiro (2013) refletem que as raízes da psicanálise, fundada por Freud, estão
na história do homem contemporâneo e no seu campo de ação. As autoras pontuam que
esse método de observação é fundamentado por uma ética relevante atualmente,
ao menos referente ao campo lacaniano, prática que sugere não fugir dos pressupostos
freudianos ao repensar seus conceitos à luz da experiência clínica.
De acordo, ainda, com Borges e Ribeiro (2013), diferentemente da psicologia, que
tem como objetivo a busca de pela cura da saúde e do bem-estar, baseando-se na escuta
e compreensão da consciência, a psicanálise desloca esse lugar de verdade do sujeito,
concentrando-se no inconsciente — o qual é caracterizado pelo desconhecimento e pela
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86A
ignorância e somente pode ser acessado por meio de suas manifestações, tais como sintomas,
chistes, atos falhos e sonhos. A perspectiva psicanalítica não concebe o sujeito de maneira autônoma
e autoconsciente, mas como um ser dividido e contraditório. A ética da psicanálise fundamenta-se,
nesse sentido, na ética do desejo, a qual faz parte de um campo inconsciente.
Guimarães (2014), em sua pesquisa com executivos organizacionais, observa que, em
todos os casos pesquisados, foi possível perceber um ponto importante nos percursos escolhidos
pelos executivos: da mesma forma que o trabalho é um veículo das possibilidades de investimento
libidinal, a organização, com base nas exigências intermináveis de alto desempenho, distancia a
possibilidade de realização completa. A partir dessa afirmação, é possível refletir sobre o campo do
desejo. Se tomado por referência, o conceito de montagem perversa, a organização constitui um
lugar para calá-lo. Segundo a pesquisadora, para que aconteça esse silenciamento, é necessário que
haja uma troca: enquanto a organização oferece um lugar para dar vazão às pulsões; ela, também,
exige que os executivos exerçam um papel na instrumentalidade, reprimindo, assim, o campo do
desejo.
“É fato que o indivíduo, quando é impelido pela organização a reprimir seus desejos, sofre”
(DUARTE, CASTRO e HASHIMOTO, 2006, p.6). Esse sofrimento também é causado por condições
precarizadas no campo do trabalho e pressão das estruturas organizacionais. Por outro lado,
para esses autores, o sofrimento nem sempre prejudica a saúde mental e física do sujeito em
sua atividade profissional. Também pode representar a maneira como o sujeito ressignifica seu
trabalho por meio da sublimação. Se o sujeito for levado a resolver problemas na organização,
ele tem a oportunidade de obter reconhecimento social pelo seu trabalho, podendo controlar sua
angústia e de alguma forma controlar seu sofrimento.
Sublimação, portanto, é outro termo que emerge para que seja possível a compreensão
do sujeito no trabalho. Laplanche (2016) define que sublimação, segundo preceitos freudianos,
consiste no processo que explica a atividade humana sem uma ligação óbvia com a sexualidade,
mas cujo elemento propulsor é a força do desejo sexual. É possível afirmar que a pulsão é sublimada
quando é direcionada para um outro objetivo não sexual e que estes sejam objetos socialmente
valorizados. Portanto, o trabalho insere-se nessa dinâmica como objeto receptor de energia libidinal
por parte do sujeito, com a finalidade de prazer e satisfação dos seus desejos pulsionais.
Segundo Nasio (1997), a sublimação é o conceito psicanalítico mais apropriado para explicar
a produção de obras realizadas pelos seres humanos, tais como realizações artísticas, científicas
e esportivas. Essas atividades são exemplos de como uma força sexual pode ser direcionada para
outras finalidades por meio do trabalho, sem necessariamente ter uma conexão direta com a

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sexualidade. O autor ainda destaca que as estruturas subjacentes ao processo de sublimação são
pulsionalmente sexuais e que, consequentemente, a produção resultante é não sexual, estando em
conformidade com os ideais mais prevalentes em uma determinada época.
Guimarães (2014, p.35) aponta que: “o prazer do sujeito no trabalho é resultado da descarga
de energia psíquica promovida pela satisfação”. Portanto, prazer e equilíbrio são resultados do
processo psicanalítico, em que ocorre essa descarga de energia. Contudo, em contrapartida, essa
energia pode ser acumulada, resultando em desprazer, fadiga e ansiedade caso haja repressão
desta ou caso não seja liberada de forma adequada.
Segundo Concolatto, Oltramari e Santos Filho (2016), pesquisadores e gestores da questão
humana em organizações focam no processo de trabalho, exigindo dos sujeitos uma adaptação
para evitar o sofrimento, pois a gestão é responsável por analisar o processo de trabalho e pode
estar mais interessada na otimização e racionalização de tal processo. Por isso, para aqueles que
desenvolvem atividades intimamente ligadas à subjetividade humana, é fundamental atenção às
ferramentas de pensamento para refletirem sobre as consequências, sentidos e efeitos do trabalho
na vida humana.
Dejours (2015) sugere intervir, não para eliminar o sofrimento, mas para criar condições para
que os sujeitos, no campo do trabalho, possam gerenciar seu sofrimento para sua própria saúde
e produtividade. Assim, o sujeito, sob o prisma psicanalítico, tem a liberdade e oportunidade de
voltar o olhar para si mesmo, para as suas necessidades físicas e psicológicas.

187
87A
A construção identitária do sujeito pulsional e a direção de suas
pulsões nas relações de trabalho contemporâneas
Para iniciar essa reflexão, é fundamental apresentar o conceito do termo “contemporâneo”.
Em sua significação literal, se refere ao momento atual; portanto, contextualizar tal reflexão à
contemporaneidade significa observar características e fatores sociais que influenciam, direta
e indiretamente, as significações que os sujeitos fazem de sua existência. Conforme Guimarães
(2014), não se tem intenção de levantar polêmica sobre o significado ontológico dos termos:
moderno, pós-moderno, hipermoderno ou modernidade tardia, especialmente porque o emprego
destes não encontra um consenso entre os próprios pensadores. Porém, contextualizar é observar
o ambiente, é buscar entender como as vidas dos sujeitos são afetadas pelo campo social, como as
relações de trabalho são afetadas por mudanças e pressões e que efeitos tem na vida do sujeito, na
sua subjetividade e na sua saúde mental.
Segundo Safatle, Silva Junior e Dunker (2019, p.7), “uma sociedade pode ser analisada
como um sistema de normas, valores e regras que estruturam formas de ação e julgamento em
suas aspirações de validade”. Bauman (2007) observa que a perfuração e a quebra de fronteiras
designadas como globalização permitiram maior abertura às sociedades, com poucas exceções.
Abertas nos sentidos intelectual e material. O sociólogo reforça que, se a ideia de “sociedade
aberta” era fundamentalmente alinhada com a ideia de uma sociedade livre que esperava essa
abertura, agora traz à mente dos sujeitos nela inseridos uma experiência “aterrorizante de uma
população heterônoma, infeliz e vulnerável, confrontada e possivelmente sobrepujada por forças
que não controla e nem entende totalmente” (p.13).
Segundo Bauman (1999), para abrir caminho nesse cenário denso e desregulamentado da
competitividade global e chegar ao centro da atenção pública, os bens e serviços devem despertar
desejo, portanto devem seduzir os consumidores e afastar seus competidores. O sociólogo
completa que, ao conseguirem, devem rapidamente abrir espaço para outros objetos de desejo.
Ou seja, observa-se, nessa sociedade contemporânea, uma forte obsolescência programada dos
bens e serviços, muitas vezes definindo as identidades dos sujeitos com base no que consomem e
no que acumulam.
Roudinesco (2000) observa que tal sociedade se interessa pelo sujeito para contabilizar
seus sucessos e objetiva classificar o sujeito sofredor como uma vítima. Concolatto, Oltramari e
Santos Filho (2016) afirmam que é esperado do trabalhador atual que seja produtivo e eficiente. O
trabalho requer tarefas e atividades, pois é o objetivo legítimo o alcance de resultados. No entanto,

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segundo os autores, há riscos em reduzir o trabalho a resultados e minimizar suas consequências
com questionamentos como: “o mundo está sempre mudando e nós nos moldamos”, sem poder
abrir espaços para reflexão. O que tal situação significa para o sujeito? Como isso afeta sua vida e
quais são as consequências?
Segundo Bauman (2001), condições econômicas e sociais incertas ensinam homens e
mulheres a ver o mundo como um recipiente cheio de itens descartáveis ​​para uso único, incluindo
outras pessoas. Segundo o sociólogo, em um mundo globalizado, em que o futuro é incerto,
sombrio e cheio de perigos e riscos, traçar objetivos de longo prazo e a abstenção do interesse
pessoal para aumentar o poder coletivo, sacrificando o presente pela felicidade futura, não são
propostas atrativas.
“Tem-se hoje, na sociedade contemporânea, um dito mandado à felicidade, um dever de ter
saúde e bom humor sempre” (BORGES e RIBEIRO, 2013, p.22). Todos devem permanecer sempre
felizes e de bom humor em relação à vida e ao trabalho e, principalmente, prontos para o consumo.
Segundo as autoras, alegria, prazer e satisfação não são vendidos em bens de consumo e gadgets,
mas em pílulas milagrosas da felicidade reguladoras da serotonina.
Segundo observa Roudinesco (2000), a psicofarmacologia inseriu o sujeito em uma nova
alienação, pretendendo curá-lo da natureza da condição humana. A autora, ainda, afirma que
quanto mais pílulas que podem interromper os sintomas, mudar a personalidade ou prometem
acabar com o sofrimento mental, mais o sujeito recorre a tratamentos físicos ou mágicos.
Borges e Ribeiro (2013) argumentam que o trabalho, tal como existe na sociedade atual,
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88A
é sem alma, sem sentido, valoriza a ação em detrimento do pensamento e é individualista em
detrimento do coletivo. Essas autoras também afirmam que o trabalho promove a alienação do
sujeito com uma falsa imagem de autorrealização, ganhos financeiros e sucesso. E que a gestão é
perversa quando privilegia uma visão de mundo em que as pessoas se tornam ativos patrimoniais
a serviço da empresa.
Segundo Concolatto, Oltramari e Santos Filho (2016), a constante tensão e conflito de
interesses entre o bem-estar dos trabalhadores e os lucros dos investidores faz parte do tecido
social das sociedades controladas pelo capital. Os sujeitos vivem todo o tempo conflitados por
essa tensão e, diante disso, corre-se o risco de adotar posicionamentos extremados. Segundo os
autores, uma delas é o pragmatismo adaptativo positivista que “reduz todas as possibilidades a
baixar a cabeça e trabalhar” (p.13), e, por outra perspectiva, aquele que se propõe a investigar o
“sentido do trabalho, corre sempre o risco de assumir uma posição romântica e quase ingênua,
como se tentasse resgatar algo que é da ordem da utopia, e que se resume ao discurso” (p.13).
Nesse contexto, os sujeitos experimentam um crescente sentimento de desamparo e
desconfiança em relação às organizações como locais seguros para canalizarem suas energias
pulsionais. Portanto, esses sujeitos não conseguem identificar locais que possam direcionar
sua libido e proporcionar satisfação. Apesar disso, ao mesmo tempo, buscam, ativamente,
performances que os colocam em um posicionamento de trabalhador eficaz e eficiente, que seja
capaz de manter seus empregos. A busca frenética pela produtividade torna-se o eixo central do
sujeito, aumentando a falta de fronteiras entre o espaço privado, sua individualidade, subjetividade
e o espaço de trabalho.
Assim, segundo Concolatto, Oltramari e Santos Filho (2016, p.12), “o que vale é o triunfo
individual. O ganhador não quer perder”. Desse modo, surgem novos caminhos de subjetivação,
caracterizados pelo autocentramento do sujeito, iniciando e encerrando sobre si mesmo. Nesse
sentido, os autores refletem que o sujeito perde parte do espaço coletivo e social, e das possibilidades
de fazer frente aos desafios que o trabalho gera, sendo, portanto, uma perda importante dos
recursos que apoiam a manutenção da saúde psíquica.
Nessa sociedade contemporânea, os deprimidos são considerados inconvenientes, que
não possuem um lugar de importância e relevância, portanto devem recolherem-se, calarem seus
discursos (a farmacologia se desenvolve cada vez mais nesse sentido). E não tentarem, com sua
frustração e apatia, buscar um posicionamento juntamente aos bem adaptados.
Dejours (2015) argumenta que os trabalhadores atuais não sofrem mais do que os das
gerações anteriores, ou seja, o trabalho como tal, sempre foi uma fonte de sofrimento na sociedade

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capitalista. Segundo o autor, a diferença reside no fato de que, contemporaneamente, trabalhadores
e trabalhadoras não possuem mais benefícios sociais do passado. Com o tempo, as estratégias de
defesa coletiva, que os ajudavam a carregar o fardo do trabalho, foram drasticamente reduzidas.
Um exemplo disso, apontado por Borges e Ribeiro (2013) é o enfraquecimento dos
sindicatos, associações, “além da própria cultura competitiva e individualista, que faz cada um correr
como louco atrás do próprio quinhão sem se preocupar com os demais” (p.5). Portanto, o sujeito
contemporâneo experimenta sensações de angústia laboral e de dor emocional, decorrentes de
sua exclusão e solidão.
Bauman (2001) observa que é característica do passado a busca de empregos seguros em
empresas seguras. Não há experiências e habilidades que garantam emprego estável. Ninguém pode
se sentir garantido diante da recorrente rodada de redução de tamanho, agilização e racionalização,
contra mudanças da demanda e pressão do mercado por produtividade.
Segundo Bauman (2001), “flexibilidade” é uma condição em evidência na contemporaneidade,
o que é resultado e consequência de empregos sem direitos, compromissos e segurança, em que
há demissão sem aviso prévio, contratos renováveis ou de prazos fixos, e quase nenhum direito à
compensação. Segundo o sociólogo, ninguém pode mais sentir-se insubstituível. Nesse sentido, a
satisfação instantânea parece ser uma estratégia razoável para o sujeito contemporâneo.
Safatle, Silva Junior e Dunker (2020) afirmam que o conceito de sujeito neoliberal contém
elementos de contradição, ambivalência e inflexão, e que é impossível seguir uma linha contínua de
desenvolvimento sem interrupções.
Segundo Borges e Ribeiro (2013), em uma sociedade cada vez mais centrada no significante
189
89A
trabalho, é irônico pensar que esse próprio sujeito está sofrendo. A relação dele com seu ofício é
sempre única, individual. As autoras defendem que o trabalho pode ocupar diferentes lugares na
vida desse sujeito: pode ser objeto de investimento libidinal e ser incluído como sintoma desse
sujeito. A depressão (quando relacionada ao trabalho) pode parecer uma espécie de negação
ideológica diante do discurso moderno e suas promessas de felicidade, por exemplo, no trabalho.
Por sua vez, para Ferreira e Dutra (2013), a carreira é moldada e interage com a dinâmica de
carreira da sociedade e/ou do mercado. Em outras palavras, a pessoa age como sujeito da ação e,
portanto, a carreira é condicionada por seus efeitos em um processo de relacionamento constante
e intenso.
Concolatto, Oltramari e Santos Filho (2016) refletem que não é considerada a subjetividade
do trabalhador quando as áreas organizacionais, especialmente a gestão de pessoas, atrelam
metas inatingíveis às avaliações de desempenho e retiram dos trabalhadores e trabalhadoras a
possibilidade de fazerem seus ofícios com base em sua inteligência, resultando em algo estritamente
funcionalista e um modelo gerencial que deve ser seguido.
Consoante Borges e Ribeiro (2013), a existência do grande número dos deprimidos na
sociedade constitui um reflexo importante sobre as características da contemporaneidade.
Observam que a falta de uma perspectiva mais igualitária da sociedade, o colapso dos ideais
revolucionários, o crescimento do desemprego, a competitividade acirrada do mercado de trabalho,
paralelamente às necessidades de prazer de nossa sociedade produtora de bugigangas (promessas
para satisfazer desejos), podem contribuir para o atual estado de depressão. O sujeito é distraído
de seus desejos e ideais.
Essa multiplicação dos deprimidos, principalmente daqueles que adoecem exercendo
seu ofício, também é um importante indicativo de que a indústria farmacêutica atua de forma
lucrativa e eficiente, e que, além de prometer um paliativo no auxílio da cura das dores anímicas,
também define os critérios de diagnóstico que os médicos devem seguir para identificar potenciais
pacientes deprimidos, o que, portanto, requer tratamento. Isso leva à reflexão sobre uma espécie de
patologização da vida subjetiva. Ou ao questionamento sobre se qualquer sentimento manifestado
por meio de dor ou tristeza se caracterizaria como adoecimento psíquico.
Conforme Gomez, Chatelard e Araújo (2021), as atuais configurações sociais, culturais,
políticas e econômicas contêm novos vínculos que obrigam o sujeito a se adaptar às tarefas e
demandas do trabalho, causando sofrimento patogênico. Por outro lado, segundo Concolatto,
Oltramari e Santos Filho (2016, p.2), “o trabalho ocupa lugar central na vida humana. Trabalhar
consolida a identidade, possibilita destino para as mais diversas e potentes demandas pulsionais”.

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Portanto, proporciona sentimentos de pertencimento e potencializa o desenvolvimento de relações
fraternas que sustentam a construção coletiva.

Considerações Finais
Buscou-se, neste artigo, refletir sobre as contribuições da psicanálise em relação à
compreensão da carreira e trajetória de vida dos sujeitos na contemporaneidade. Qual o ponto de
encontro entre os conceitos de carreira e psicanálise? Qual o diálogo possível entre esses conceitos?
Como a psicanálise pode contribuir para a compreensão da carreira do sujeito contemporâneo?
Para conseguir responder tais questões, desenvolveram-se os seguintes eixos de análise: a) como
se relacionam os conceitos de carreira profissional com os pressupostos da teoria psicanalítica? b)
Como o cenário contemporâneo tem afetado o sujeito pulsional em sua construção identitária e no
direcionamento de suas pulsões às relações de trabalho à luz da psicanálise?
Por que não referenciar os pressupostos psicanalíticos para a compreensão do sujeito
contemporâneo em sua trajetória profissional? A psicanálise, por colocar o inconsciente, a morte
e a sexualidade no cerne da psique humana, parece ser, ainda mais, atacada na atualidade por ter
conquistado o mundo pela singularidade de uma experiência subjetiva. A sociedade contemporânea,
inscrita no movimento de uma globalização econômica, que transforma os homens em objetos,
resiste em querer ouvir em culpa, sentido íntimo, consciência, desejo e inconsciente, o que reforça
ainda mais a lógica narcísica, mais distante posiciona-se da ideia de subjetividade.
Considera-se que os pressupostos psicanalíticos como inconsciente, desejo, pulsão, libido,
190
90A
sublimação, pertencimento e tantos outros são objetivamente fundamentais para se compreender
o sujeito na contemporaneidade. A aproximação entre psicanálise, organizações e gestão costuma
gerar preconceitos por parte daqueles que acreditam não ser de interesse da área esse tipo de
discussão. Isso ocorre porque, na maioria das vezes, o potencial da psicanálise é desconhecido para
a compreensão dos fenômenos sociais e para a transformação das atitudes das pessoas e dos grupos
perante a própria realidade. Para aqueles que desenvolvem atividades relacionadas à subjetividade
humana, é de fundamental importância que se atentem às ferramentas de pensamento para
refletirem sobre o sentido, e as influências do trabalho na vida humana.
Entre tantas atividades da vida, o trabalho constitui o locus onde o sujeito vivencia grande
parte de seu tempo. Isso constitui fonte de satisfação especial, de gozo, se for livremente escolhida,
por meio da sublimação. É, também, um dos elementos da vida que prende os sujeitos firmemente
à realidade e concede um lugar no mundo e na comunidade humana. A atividade profissional
desempenhada pelo sujeito produz efeitos na sociedade na qual está inserido. Da mesma maneira,
as condições sob as quais um determinado ofício é realizado impacta, direta ou indiretamente, na
vida de outras pessoas, sempre de modo significativo.
Ao mesmo tempo, esse campo pode ser fonte de angústia e sofrimento. Pressão por
produção, performance, alto desempenho, assédio, desemprego, relações precarizadas, incentivo
às práticas intensas que estimulam a competitividade, sem considerar a subjetividade dos sujeitos
envolvidos, corroem os laços fraternos, conduzindo, muitas vezes, à desumanização.
Ser produtivo, performar, gerar resultados é o que de mais importante se espera do
trabalhador. O trabalho requer que isso seja executado, é legítimo que se busque esse resultado.
Contudo, é necessário observar que ele não deve se esgotar nisso, e, na contemporaneidade, há
riscos em reduzi-lo ao alcance de resultados e à banalização das consequências disso, sem que seja
possível a abertura de espaços para pensar o que tal situação significa para o sujeito, como afeta
sua vida e suas consequências.
Como forma de intervenção no campo organizacional, não é objetificada a eliminação do
sofrimento, mas a implicação em proporcionar a elaboração de condições em que os trabalhadores
possam administrar seu próprio sofrimento em benefício de sua saúde e, portanto, de sua
produtividade. Assim, do ponto de vista psicanalítico, o sujeito tem a liberdade e a oportunidade de
olhar para si mesmo e para suas necessidades físicas e psicológicas.
Finalmente, ao refletir sobre a aproximação dos conceitos de carreira com os
pressupostos da psicanálise no presente artigo, ressalta-se a importância de serem desenvolvidos
estudos, aproximando, ainda mais, esses conceitos, com a finalidade de compreender o sujeito

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contemporâneo e suas relações na sociedade.

Referências

ANJOS, Fabio Menezes dos. Psicanálise e esporte: o mal-estar na carreira de atletas profissionais.
2019. 125p. Dissertação (mestrado em Psicologia Clínica) – Faculdade de Psicologia da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/47/47133/tde-27082019-152141/pt-br.php. Acesso em: 14 out. 2022.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.

193
93A Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04
CONTRIBUIÇÕES DA ÁREA PSI PARA O CONCEITO JURÍDICO DE
CAPACIDADE
CONTRIBUTIONS OF THE PSI AREA TO THE LEGAL CONCEPT OF
CAPACITY

Márcio Bessa Nunes 1


Alessandro Messias Moreira 2
Ernani de Souza Guimarães Júnior 3
Janilton Gabriel de Souza 4
Mardem Leandro Silva 5

Resumo: O artigo pretende conectar o Direito com as áreas Psi, assim consideradas a Psiquiatria, a Psicologia e a Psicanálise,
visando oferecer subsídios para uma melhor compreensão do conceito jurídico de capacidade. Com a mudança do Código
Civil (CC), operada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) em 2015, a capacidade passou a ser regra geral no
ordenamento legal brasileiro. A revisão bibliográfica de orientação psicanalítica dará a sustentação para os argumentos
apresentados no texto, levando a considerações de que o Direito, sozinho, não fornece elementos suficientes para a
compreensão do que é ser capaz ou incapaz, devendo colher, de outras ciências e saberes, meios que auxiliem o operador
jurídico a definir, no caso concreto, a extensão da vontade, do discernimento, da responsabilidade e da vulnerabilidade.

Palavras-chave: Capacidade. Deficiência. Direito. Psicanálise. Responsabilidade.

Abstract: The article intends to connect Law with the psi areas, thus considered Psychiatry, Psychology and Psychoanalysis,
aiming to provide subsides for a better understanding of the legal concept of capacity. With the change of the Civil Code
(CC), operated by the Statue of Persons with Disabilities (EPD), capacity became a general rule in the Brazilian legal
system. The psychoanalytically oriented bibliographic review will support the arguments presented in the text, leading to
considerations that the Law, alone, does not provide sufficient means for the understanding of what it is to be capable or
incapable, needing to acquire from other sciences, elements that help the legal operator to define, in the concrete case, the
extension of the will, of the discernment, responsibility and vulnerability.

Keywords: Capacity. Disability. Law. Psychoanalysis. Responsability.

1 Mestrando em Instituições Sociais, Direito e Democracia (FUMEC-MG). Especialista em Direito Constitucional (UNIFOR-CE). Especialista em Teoria,
Clínica e Articulações Psicanalíticas (UNIS-MG). Juiz de Direito em Minas Gerais. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6915342265671270. ORCID: https://
orcid.org/0009-0009-0775-487X. E-mail: bessa.marcio@hotmail.com

2 Doutor em Educação (UNIMEP). Graduado em Psicologia (UNIFENAS). Atualmente é professor do Grupo Unis-MG no Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Gestão e Desenvolvimento Regional. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5303526458310366. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
8120-6219. E-mail: alessandromoreira@unis.edu.br

3 Mestrado em Administração (UFLA). Graduação em Psicologia (UFSJ). Professor e coordenador do curso de Psicologia no Grupo Unis-MG. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6063005535270998 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4793-8648. E-mail: ernani.junior@unis.edu.br

4 Mestrado em Psicologia (UFSJ). Especialista em Teoria e Clínica Psicanalítica (UNIFENAS). Especialista em Teoria, Clínica e Articulações
Psicanalíticas (UNIS-MG). Graduação em Psicologia (UNIFENAS). Professor do Grupo Unis-MG e coordenador do Interfaces em Psicanálise.
Colaborador do Instituto Internacional de Psicanálise. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1126366899756942. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
3965-0564. E-mail: janilton.gabriel@unis.edu.br

5 Doutor em Psicologia pela UFMG. Pesquisador e coordenador do LaPSICC - Laboratório de Psicologia: Clínica, Ciência e Cultura. Professor e Chefe
do Departamento de Ciências Sociais e Humanidades da UEMG - Unidade Cláudio e professor no Centro Universitário de Formiga/MG - Unifor-
MG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5533451489175747. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7069-4608. E-mail: mardemls@yahoo.com.br
Introdução

Falar em deficiência é referir-se, etimologicamente, a uma falta, a um enfraquecimento


ou a um abandono. É bastante comum que, ao se mencionar esse termo, associado ao adjetivo
“mental” (deficiência mental), palavras como desrazão, loucura, incapacidade, perigo e até mesmo
aberração atravessem o raciocínio e a fala, produzindo, mais das vezes, estigmas e preconceitos que
turvam o pensamento, impedindo uma visão mais clara da afecção.
Esse tema, ainda que historicamente próprio da Medicina e da Psicologia, tem destacada
importância para o Direito, especialmente para o Código Civil (BRASIL, 2002), principal legislação
codificada que inicia suas disposições a partir da conceituação de capacidade, cujo oposto, que lhe
constitui, é, evidentemente, a incapacidade – ou seja, a deficiência, seja ela etária, física, mental ou
de qualquer outra ordem, remetendo à condição de incapacidade da pessoa.
Em outras palavras, falar quem é ou não capaz pressupõe, necessariamente, dizer quem
possui instrumentos intelectuais suficientes para entender o que é certo ou errado, bom ou mau,
possível ou impossível, legal ou ilegal, dentre outras dicotomias das quais as pessoas se valem para
organizar o pensamento através do que comumente se chama de “razão”. Coloca-se então, de um
lado, tal termo e, de outro, a não-razão como a incapacidade do uso da razão, que se associa com a
concepção de deficiência intelectual ou mental.
Mas o que é ser deficiente mental? O que é ser mentalmente capaz/incapaz, são/louco na
linguagem do senso comum? Há indivíduos totalmente sãos e outros, totalmente loucos? Ou há
graus e todas as pessoas encontram-se, em menor ou maior medida, loucas ou sãs? Tais questões
não são facilmente respondidas nem mesmo nas ciências que historicamente trabalham esses
conceitos há séculos.
A esse respeito, vale destacar que normalmente a Ciência Jurídica, sobretudo por meio das
leis das quais se vale para aplicar o Direito, toma suas definições como dadas, e não construídas –
como, por exemplo, o conceito de capacidade, cujos contornos e alcances não são encontrados em
nenhum texto legal. Assim, o problema parece ainda maior, haja vista que, sem definir capacidade/
incapacidade, dificilmente se pode falar em institutos jurídicos como autonomia, dependência,
responsabilidade e vulnerabilidade, que atravessam várias disciplinas jurídicas.
É nessa senda que o presente trabalho se conduz, inicialmente apresentando o contexto
no qual nasce a discussão sobre capacidade no Direito (pois é desse ponto de partida que é
estabelecida a diferenciação básica entre o capaz e o incapaz), chegando-se naturalmente ao exame
da deficiência, mormente a partir da inserção, no ordenamento jurídico brasileiro, da Convenção

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04


de Nova Iorque - Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu
Protocolo Facultativo - CPDP (ONU, 2007) e as subsequentes alterações do Código Civil de 2002 -
CC/2002 (BRASIL, 2002) por meio do Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD (BRASIL, 2015).
Em seguida, é traçado um panorama do que é a deficiência e quais as linhas mestras da
área “Psi” (psiquiatria, psicologia e psicanálise) sobre a deficiência mental, com o aprofundamento
devido, nos termos das limitações deste trabalho. Dá-se especial ênfase à Psicanálise, cuja visão é
mais específica no sentido de admitir a dialetização funcional do par normal/patológico, apelando
para a singularidade do caso na mesma medida em que incorpora ideias filosóficas, antropológicas,
sociológicas e históricas, para se repensar o modelo de homem ao qual se predica a capacidade
pelo recurso lacaniano de seu conceito de sujeito – expediente que nos permitirá conexionar a
noção de responsabilidade a qualquer que seja sua posição em assumir direitos e deveres no pacto
social.
"O presente trabalho quanto à abordagem trata-se de um estudo qualitativo, de natureza
básica, exploratório quanto aos objetivos e utilizando como instrumento metodológico a pesquisa
bibliográfica". (GERHARDT; SILVEIRA, 2009).
Com esse olhar mais expandido, espera-se contribuir para a construção de uma teoria
jurídica mais abrangente, com o concurso de outras ciências humanas.

195
95A
O Novo Conceito de (In)Capacidade no Direito Brasileiro
O conceito jurídico de capacidade não é desarvorado da história das ideias. Entre os gregos,
ele surge em meio às reflexões políticas a respeito da ação humana e suas aptidões, ou faculdades
(dynamis). Em grego, a noção de capacidade vem do verbo dýnamai: “posso, sou capaz” (Gobry,
2007, p. 47) e denota a capacidade do agente de passar à ação, se refere à potência de agir sobre o
outro (poieîn) ou ainda de sofrer sua ação (páskhein).
A capacidade passa a ser faculdade (facultas), capacidade que o sujeito dispõe de fazer aquilo
que ele pode fazer, e se correlaciona com o conceito de virtude (areté). Na República de Platão
(2006) essas faculdades da alma seriam em número de três: racional, concupiscível e irascível.
Aptidões que facultariam assumir os direitos e deveres em torno da res publica, da coisa pública.
Essas aptidões, em Aristóteles (2006), em seu De Anima, correspondem às partes vegetativa,
sensitiva e intelectiva da alma.
Já em Kant (2003), o conceito de faculdade (Vermmögen) pode ser interpretado como
recurso para se realizar algum fim. Kant faz a distinção entre faculdades da alma e do conhecimento,
e aqui o conceito de capacidade (Fähigkeiten) fica mais explícito, e traduz o modo como se ordena
nossa capacidade de representação do conhecer e do apetecer, da distinção e do conhecimento
necessário para o juízo e consentimento entre a boa e má ação.
No hodierno, do ponto de vista jurídico, a capacidade1 é atributo essencial para que se
adquiram direitos e se imponham deveres, tanto que a principal lei civil do país, o Código Civil de
2002 (BRASIL, 2002) inicia seu texto concedendo a “toda pessoa”, sem distinção (Art. 1º), tal como
fazia ainda em 1916, com o Código Civil de 1916 - CC/1916 (BRASIL, 1916). Ao fazê-lo, todavia,
refere-se à capacidade de obtenção (ou de direito), posto que a capacidade de exercício (ou de
fato), é tratada em seguida, nos Arts. 3º e 4º, sendo uma limitação à regra geral do Art. 1º.
Sobre a diferença entre os conceitos, não é demais lembrar, com Amari; Gediel (2020, p.
33), que a capacidade de fato “depende da ordem jurídica, e disciplina se o titular do direito pode
exercê-lo, autonomamente, sem que, para a validade de seus atos, requeira a representação ou a
assistência de outro sujeito dotado dessa capacidade”, dependendo de “gradações estabelecidas
em lei com base no grau de discernimento das pessoas”. Como se vê, gravitam, em torno do
conceito, as categorias autonomia e discernimento, noções extremamente fluidas, mormente
quando examinadas à luz da Psiquiatria, da Psicologia e da Psicanálise, conforme se verá adiante.
No entanto, a noção de capacidade de fato, então fixada pela redação original do CC/2002
(BRASIL, 2002), foi extensamente alterada. Realmente, por meio do Decreto do Poder Executivo n°

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6.949, de 25 de agosto de 2009 (BRASIL, 2009) assinado após o Congresso emitir Decreto Legislativo
no 186, de 9 de julho de 2008 (BRASIL, 2008), o Brasil cumpriu os requisitos constitucionais, tendo
em vista o que se estabelece no §3º do art. 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988) para que
passasse a valer, no ordenamento jurídico nacional, a Convenção Internacional sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York (EUA), em 30 de
março de 2007 - CPDP (ONU, 2007). A referida legislação apresenta em seu art. 1º, como objetivo
da convenção “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito
pela sua dignidade inerente” (BRASIL, 2007, p. 16).
Sete anos após a entrada em vigor da CPDP no ordenamento nacional, foi então aprovada a
Lei nº 13.146, de 06 de julho de 20152 (BRASIL, 2015), que recebeu o epíteto oficial de “Lei Brasileira
de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência)” (BRASIL, 2015), ou
EPD, e que faz menção expressa, no parágrafo único do art. 1º, à referida Convenção de Nova Iorque.
Além de propor um amplo programa de inclusão social e cidadania (art. 1º, in fine) para o
deficiente, através da definição de regras para promover igualdade, saúde, trabalho, moradia, entre
outros direitos, o EPD faz modificações em várias outras leis, sendo que, para os propósitos aqui
definidos, enfatizam-se as alterações nos Arts. 3º e 4º do CC/2002 – justamente aqueles que tratam
da capacidade de exercício ou de fato, acima referida.

1 A palavra “Capacidade”, em sua etimologia, vem do Latim CAPACITAS, “largura, amplidão, capacidade”, de
CAPAX, “o que pode abranger muito”, de CAPERE, “tomar, pegar” (HOUAISS, 2009).
2 BRASIL, 2015.
196
96A
Um quadro comparativo demonstra melhor a mudança:

Quadro 1. Quadro demonstrativo feito pelos autores


CC/2002: Redação original CC/2002: Redação após o EPD
Art. 3º São absolutamente incapazes Art. 3º São absolutamente incapazes de
de exercer pessoalmente os atos da vida civil: exercer pessoalmente os atos da vida civil os
I - os menores de dezesseis anos; menores de 16 (dezesseis) anos.
II - os que, por enfermidade ou I - (Revogado);
deficiência mental, não tiverem o necessário II - (Revogado);
discernimento para a prática desses atos; III - (Revogado).” (NR)
III - os que, mesmo por causa transitória,
não puderem exprimir sua vontade.

Art. 4º São incapazes, relativamente a Art. 4º São incapazes, relativamente a


certos atos ou à maneira de os exercer:  certos atos ou à maneira de os exercer:
I - os maiores de dezesseis e menores I - os maiores de dezesseis e menores de
de dezoito anos; dezoito anos;
II - os ébrios habituais, os viciados II - os ébrios habituais e os viciados em
em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tóxico;
tenham o discernimento reduzido; III - aqueles que, por causa transitória
III - os excepcionais, sem ou permanente, não puderem exprimir sua
desenvolvimento mental completo; vontade;
IV - os pródigos. IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos Parágrafo único.   A capacidade dos
índios será regulada por legislação especial. indígenas será regulada por legislação especial.
Fonte: Dos autores.

Observa-se que, com relação ao art. 3º, deixou de existir a categoria de “absolutamente
incapazes”, com exceção única dos menores de 16 anos – embora, mesmo para esses, sobretudo
a partir dos 12 anos, são garantidos diversos direitos, dentre os quais os de participar da decisão a
respeito de aspectos existenciais3.
Os antigos incisos II e III do art. 3º, que tratavam de “enfermidade ou deficiência mental”,
“discernimento” e expressão da “vontade” foram retirados dessa categoria dos “absolutamente

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incapazes” e colocados na dos “relativamente incapazes”, de que trata o art. 4º, em uma redação
mais abrangente e, por isso, mais fluida: “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não
puderem exprimir sua vontade” (novo inciso III, art. 4º).
No mais, com a nova redação dos incisos II e III do art. 4º, retiraram-se as expressões como
“deficiência mental” e “excepcionais”, bem como a gradação para o “discernimento” (“necessário”
e “reduzido”). Ainda restaram, porém, seis referências às palavras deficiência/deficiente em atos
muito específicos4.
Feitas as observações sobre a grafia, indaga-se sobre o significado dessas mudanças. Para
Amari e Gediel (2020, p. 32),
Desde janeiro de 2016, não mais se encontram referências às
pessoas com deficiência no rol de incapacidades do Código
Civil, fato que permite a interpretação de que, com base na
literalidade da lei, as pessoas com deficiência são consideradas
capazes para todos os atos da vida civil.

3 V.g. Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), art. 28, §2º, que exige o consentimento do/a
adolescente, em audiência judicial, a respeito da colocação em família substituta; e art. 45, §2º, da mesma forma,
quanto à adoção.
4 A saber: Art. 228, §2º (capacidade de testemunhar); Art. 1.550, §2º. (possibilidade de casamento); Art. 1.557,
III (erro essencial sobre o outro cônjuge); Art. 1.775-A (nomeação de curador); Art. 1783-A (tomada de decisão
apoiada) e Art. 1.963 (deserdação em caso de desemparo)
197
97A
A afirmação espanta, mas não é para menos: com o EPD (sobretudo pelo art. 84)5, a
capacidade de fato passa, assim como a de direito, a ser regra6, e não mais exceção, de tal maneira
que, em princípio e em geral, todos são capazes – inclusive aqueles que, outrora, eram tidos por
deficientes – mormente com relação aos aspectos existenciais (não patrimoniais).
Essa conclusão, ademais, é retirada do art. 85 do EPD que, embora trate de curatela, oferece
diretrizes aplicáveis a todas as leis e relações jurídicas em que o deficiente participe:

Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados


aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio
corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à
educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo
constar da sentença as razões e motivações de sua definição,
preservados os interesses do curatelado. (BRASIL, 2015)

Em outras palavras, a partir do EPD, a regra é que todos são capazes, inobstante deficientes
(mesmo mentais); a incapacidade somente é prevista para aspectos patrimoniais (e, ainda assim,
em caráter excepcional (§2º do art. 85), mas não para os existenciais (§1º).
Todavia, “com o objetivo de conceder autonomia às pessoas com deficiência, o Estatuto
gerou, também, problemas jurídicos”, surgindo a “necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio
entre proteção e autonomia” – quer dizer, “parece que o Estatuto desregulou a balança entre
autonomia e proteção, porque desconsidera os diversos graus de deficiência para escolher a via
única da capacidade” (Amari; Gediel, 2020, p. 60). A mesma perplexidade é compartilhada por
Gozzo e Monteiro (2019).
Um desses “problemas jurídicos” é, certamente, aquele relacionado às pessoas portadoras
de sofrimentos mentais graves (“deficientes mentais”), ou seja, aqueles que, fisicamente hígidos
ou não, possuem dificuldade, por desarranjos puramente psíquicos (ainda que decorrentes de
condições fisiológicas), de entender a objetividade do mundo, compreendendo, praticando e se
responsabilizando por seus atos civis, perante si mesmos e a outrem.
Doravante, debruça-se sobre o tema.

Conceitos de Deficiente e Deficiência

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Em 2001, a OMS (Organização Mundial da Saúde), agência especializada da Organização das
Nações Unidas (ONU)7, lançou, em complemento à CID (Classificação Internacional de Doenças), a
Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF)8. Oficialmente, portanto,
a deficiência é conceituada mundialmente como:
[...] resultado de um relacionamento complexo entre as
condições de saúde de um indivíduo e os fatores pessoais e
internos. É um conceito guarda-chuva para lesões, limitações
de atividades ou restrições de participações. Denota os
aspectos negativos da interação entre o indivíduo e os fatores
contextuais (DINIZ, 2012, p. 48).9

5 Art. 84: “A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade
de condições com as demais pessoas”.
6 Remanesce, no inciso III do art. 4º, somente a limitação decorrente de “causa transitória ou permanente”, que
venha a impedir a pessoa de “exprimir sua vontade”
7 Cf. https://www.who.int e https://www.un.org/en/about-us/un-system, acesso em 26/07/2022, às 13:09h.
8 Cf. https://www.who.int/standards/classifications/international-classification-of-functioning-disability-and-
health, acesso em 26/07/2022, às 13:10h.
9 A tradução é de Diniz (2012, p. 48), a partir de documentos obtidos junto ao site da OMS na internet. No original:
“ICF defines Disability: as functioning in multiple life area; Disability is seen as a result of an interaction between
a person (with a health condition) and that person’s contextual factors (environmental factors and personal
factors; Disability covers a spectrum of various levels of functioning at body level, person level and societal level.
198
98A
No Brasil, foi o EPD que trouxe, legalmente, o seguinte conceito:
Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou
mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva
na sociedade em igualdade de condições com as demais
pessoas (BRASIL, 2015, p. 8).

Não obstante o texto legal referir-se a “pessoa com deficiência”, o termo atualmente
mais usado pela academia é “deficiente”, e não mais “pessoa com deficiência” ou “pessoa com
necessidades especiais”, expressões utilizadas nos últimos anos: nesse sentido, Diniz (2012, p. 11),
para quem “o movimento crítico mais recente, no entanto, optou por “deficiente” como uma forma
de devolver os estudos da deficiência ao campo dos estudos culturais e de identidade” e, citando
Oliver e Barnes, diz que “a expressão ‘pessoa com deficiência’ sugere que a deficiência é propriedade
do indivíduo e não da sociedade, ao passo que ‘pessoa deficiente’ ou ‘deficiente’ demonstram que
a deficiência é parte constitutiva da identidade das pessoas, e não um detalhe” (Diniz, 2012, p. 21).
Historicamente, os estudos sobre a deficiência, sobretudo a mental, são disputados entre a
Medicina e as chamadas ciências da psiquê (por excelência, modernamente, a Psicologia), ainda que
os saberes possam conjugar-se para serem criadas outras vertentes (vg. Psiquiatria e Psicanálise).
Nas últimas décadas do século XX, também a Sociologia tem contribuído para a definição, em
especial através do “conceito social da deficiência” (DINIZ, 2012, p. 29) 10, tema a ser explorado em
outra oportunidade.
No âmbito do Direito, no entanto, tais discussões aparentemente não têm influenciado no
estabelecimento de categorias jurídicas como capacidade, discernimento, insanidade, culpabilidade,
deficiência, vulnerabilidade e responsabilidade, levando a um empobrecimento não só do debate
como da prática, uma vez que, sem o manejo adequado de certas categorias fornecidas por outras
ciências, dificilmente se chega a um consenso mínimo de significado, com o qual as decisões dos
tribunais (jurisprudência) possam se pautar.

A deficiência mental na área “psi”: histórico e perspectivas

O atual estado da arte dos estudos da deficiência mental decorre de um longo caminho
histórico, em que, como se verá, alternaram-se e amalgamaram-se duas principais visões sobre a

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etiologia de tais afecções: a psicogênese e a organogêse (AGUIAR, 2004). A primeira considera o
indivíduo em uma perspectiva além do corpo orgânico, levando em conta aspectos sociais e próprios
da história pessoal, passando pelo comportamento e pela ênfase, mais ou menos presente, na
autonomia do sujeito e na sua própria responsabilidade sobre seus destinos. A segunda trabalha
a mente como órgão do corpo, enxergando as disfunções psíquicas como desequilíbrios ou más-
formações puramente orgânicas, a serem resolvidas com auxílio de tratamentos que interfiram
diretamente no corpo, através de fármacos ou outros meios (vg. eletroconvulsoterapia).
Inspirando-se em Garcia-Roza (1985), pode-se dizer que a primeira visão (psicogênese) trata

Disability denotes all of the following: (a) impairments in body functions and structures (b) limitations in activity
(c) restriction in participation”. Cf. https://www.un.org/esa/socdev/enable/rights/ ahc8docs/ahc8whodis1.doc,
acesso em 26/07/2022, às 17:29h. Ainda: “The International Classification of Functioning, Disability and Health
defines disability as an umbrella term for impairments, activity limitations and participation restrictions. Disability
is the interaction between individuals with a health condition (e.g. cerebral palsy, Down syndrome and depression)
and personal and environmental factors (e.g. negative attitudes, inaccessible transportation and public buildings,
and limited social supports)” (Cf. www.emro.who.int/health-topics/disabilities/index.html, acesso em 26/07/2022,
às 17:36h)
10 Diniz (2012) traz os seguintes contornos: “1) a ênfase nas origens sociais das lesões; 2) o reconhecimento das
desvantagens sociais, econômicas, ambientais e psicológicas provocadas nas pessoas com lesões, bem como a
resistência a tais desvantagens; 3) o reconhecimento de que a origem social da lesão e as desvantagens sofridas
pelos deficientes são produtos históricos, e não resultado da natureza; 4) o reconhecimento do valor da vida dos
deficientes, mas também a crítica à produção social das lesões; 5) a adoção de uma perspectiva política capaz de
garantir justiça aos deficientes” (p. 29)
199
99A
a loucura como uma doença sem corpo (ainda que, sobre ele, recaiam consequências, ou dele
venham causas, como sons e sensações irreconhecíveis) – ou seja, uma doença eminentemente
mental; e, a segunda (organogênese), trata a loucura com um corpo doente que hospeda, em
consequência, uma mente disfuncional: uma doença eminentemente corporal11.
De uma forma bastante didática, mas já com parâmetros do século XXI, Feldman (2015, p.
456) resume esses olhares e suas vertentes, classificando-os através do nome de “perspectivas”.
Assim, de acordo com a “perspectiva médica”, “supõe que, quando um indivíduo apresenta
sintomas de comportamento anormal, a causa principal será encontrada em um exame físico do
indivíduo, o qual pode revelar um desequilíbrio hormonal, uma deficiência química ou uma lesão
cerebral”, ou seja, adota-se a mencionada visão biológica, fisiológica ou orgânica (o que leva, diga-
se de passagem, à excessiva “medicalização da vida”).
Na “perspectiva comportamental”, Feldman (2015, p. 456) encara “o comportamento
em si como o problema”, e não como um reflexo, tal qual se observa nas perspectivas médica e
psicanalítica; ou seja, “para explicar por que ocorre o comportamento anormal, precisamos analisar
como um indivíduo aprendeu-o e observar as circunstâncias nas quais ele é exibido”. Em seguida,
na “perspectiva cognitiva”, o mesmo autor afirma que “supõe que os pensamentos e as crenças das
pessoas são um componente central do comportamento anormal”, quer dizer, o tratamento visa
“ensinar formas novas e mais adaptativas de pensar” (FELDMAN, 2015, p. 457).
Por fim, na “perspectiva humanista”, é enfatizada “a responsabilidade que as pessoas têm
pelo próprio comportamento, mesmo quando esse comportamento é anormal”, uma vez que
“encara as pessoas como tendo consciência da vida e de si mesmas que as leva a procurar significado
e autovalorização” (FELDMAN, 2015, p. 457), enquanto que, na “perspectiva sociocultural”,
defende-se que “o comportamento das pessoas – tanto normal quanto anormal – é moldado pela
sociedade e pela cultura em que elas vivem”, tendo sido observado em pesquisas que “alguns tipos
de comportamento anormal são muito mais prevalentes entre certas classes sociais do que em
outras”, a exemplo da esquizofrenia, que se conecta com condições socioeconômicas precárias
(FELDMAN, 2015, p. 457-458).
Feldman (2015, p. 456) refere, ainda, à perspectiva psicanalítica, afirmando que “supõe
que o comportamento anormal provém de conflitos infantis com oposição a desejos referentes a
sexo e agressividade”. Por outro lado, cabe descrever que Freud, ao formular sua pesquisa, coloca
em cena uma rachadura que aponta para uma não naturalidade da sexualidade no sujeito, pois
este é afetado pela linguagem. Assim, a construção da sua teoria foi feita a partir de conceitos
desenvolvidos por seus contemporâneos, porém com subversão do sentido. Este movimento pode

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ser visto em diversos momentos de suas obras, como nos lembra Elia (1995). Contrapondo Feldman
(2015), Elia (1995) descreve que não se é possível dizer de uma teoria sobre o que seria “normal”,
afinal o patológico não seria um guia para delinear o normal a partir do anormal: “O patológico,
em Freud, é o próprio “normal” em outra configuração, a configuração do avesso do fragmento, da
evidenciação daquilo que a configuração dita “normal” tem precisamente por função esconder”.
(pp. 43-44).
Não obstante, a partir dessas ideias-chaves, expostas em cada uma das perspectivas
mencionadas, o exame da história das disciplinas envolvidas ficará mais inteligível.

Breve história da loucura

Feldman (2015, p. 455) explica que, “durante boa parte da história humana, as pessoas
vincularam o comportamento anormal a superstição e bruxaria. Os indivíduos que apresentavam
comportamento anormal eram acusados de estar possuídos pelo demônio ou por algum tipo de
entidade maligna”. De fato, o ser humano é uma Espécie fabuladora (Huston, 2010), que confere
valor a tudo o que vê e sente, sobretudo aquilo que, por não ter meios de elaborar uma explicação,
atiça seu imaginário, fazendo do real uma ficção e, esta, realidade.

11 A inspiração vem da p. 29, em capítulo que trata no interrogatório e da confissão como meio com que a
Psiquiatria, no início da Idade Moderna, tentava descobrir a origem do transtorno mental, ampliando o espectro
de análise até a família do indivíduo.
200
00A
Com Pessotti (1994), vê-se que, na Antiguidade, os desarranjos mentais foram inicialmente
retratados pela literatura de Homero, na “Ilíada”, em que predominam justificativas mitológicas
e teológicas, em especial porque a loucura é tida como castigo dos deuses a comportamentos
socialmente inadequados ou desafiadores. Homero nos faz considerar a base judiciária da noção de
loucura ao fundamentá-la na desmedida (hýbris), uma ação que deveria estar pautada pela justiça
(Dike), mas que não considera a alteridade do direito alheio, e recai em uma “violência desmedida
de quem, incapaz de pôr à sua ação um freio decorrente do respeito pelos direitos do outro” daquilo
que seria a “consciência do justo, da piedade; nas relações com o próximo, friamente ou com ira,
passa dos limites do que é reto, desembocando voluntariamente na injustiça” (REALE, 2014, p.
129). A hýbris evoca a vingança (Nemesis) dos deuses, que antes enviam a loucura (áte) a cegueira
da razão para punir toda desmedida, tal como se lê nas páginas da Ilíada.
Ainda na literatura grega, Eurípedes introduz um novo olhar, menos místico, “pouco apegado
a transcendências e a justificações religiosas ou mitológicas para os êxitos e desventuras humanas”
(PESSOTTI, 1994, p. 28), no qual os conflitos interiores, ainda meramente psicológicos, exercem um
papel preponderante: o bem e o mal, o certo e o errado, a paixão e a norma, a razão e o instinto.
Mas é com Hipócrates, no século V a.C. que, pela primeira vez, a loucura passa a ser vista
como “desarranjo da natureza orgânica, corporal do homem. E os processos de perda da razão
ou do controle emocional passam a constituir efeitos de tal desarranjo” (PESSOTTI, 1994, p. 47).
Relembre-se que Hipócrates ainda se utiliza de uma metafísica ao apoiar suas pesquisas e conclusões,
através de elementos essenciais (calor, frio, secura e humidade) e humores (sangue, pituíta, bílis).
Não obstante, o pai da Medicina inaugura uma nova forma, mais objetiva, de examinar os estados
mentais anormais, atribuindo-os a condições fisiológicas – o “organicismo”.
Essa teoria veio inclusive a influenciar Galeno, outra grande referência médica da Antiguidade,
cujas ideias, no entanto, “preparam o caminho para uma fisiologia menos mecânica; a formulação
do conceito de ‘pneuma’ psíquico institui a identidade de funções psíquicas”, semeando a existência
de um “aparelho psíquico” (PESSOTTI, 2014, p. 77) de que se valerão os cientistas nos séculos XIX e
XX, como será abordado mais à frente.
As visões de Hipócrates e Galeno perduraram por muitos séculos – até meados do século XIX,
obstando o desenvolvimento de uma psicologia mesmo arcaica que desse conta de aspectos que
fugiam ao “soma” (corpo). Tanto que, na Idade Média, em um certo retorno ao início da Antiguidade,
predomina a “doutrina demonista”, que associa ou identifica a loucura à possessão diabólica, ideias
aperfeiçoadas por séculos de dominação cristã, na voz de seus “doutores” (Agostinho de Hipona
e Tomás de Aquino). O cume dessa ideologia é a obra-base Malleus Maleficarum (“O martelo das

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bruxas”, Heinrich Kraemer e James Sprenger), em 1484, que
destina-se a instrumentalizar inquisidores e eclesiásticos em
geral com sólida doutrina demonológica, para capacitá-los a
identificar casos de possessão diabólica ou de comércio com
o demônio e a lidar eficazmente nesses casos. Principalmente
no que se refere às bruxas e magos em geral, agentes do plano
satânico de perdição dos homens [...] Malleus pretende, do
começo ao fim, difundir a crença na intervenção, onipresente,
dos demônios na vida dos homens. E um exemplo evidente
disso são os casos de loucura... (PESSOTTI, 1994, grifos do
autor, p. 93).

A Modernidade (Séculos XV ao XVIII) conhece um paulatino desprendimento da etiologia


diabólica para a loucura – até mesmo pelo retorno filosófico à Antiguidade clássica (o Renascimento)
– e pela inserção da razão, através da ciência, como mote para a vida, com o Iluminismo12. Não
obstante, experimenta-se também uma ampliação do olhar para além do meramente orgânico,
incluindo “atenção às condições sociais e físicas do ambiente capazes de produzir (ou desencadear)
a mania ou a melancolia ou a demência” (PESSOTTI, 1994, p. 141). Esse novo olhar, aprofundado
no organicismo, mas aberto para a psicoterapia (observação clínica sistemática, considerações

12 Garcia-Roza (1985), identifica o século XVII como “aquele que realizou a partilha entre a razão e a desrazão;
foi o momento de emergência da loucura, ou melhor, foi o momento em que a razão produziu a loucura” (p. 26).
201
01A
econômico-sociais, escuta da “história” do paciente), vai precipitar a grande revolução do século
XIX, com o surgimento da Psiquiatria e da Psicologia modernas, além da Psicanálise.
E o século XIX começa, então, com o “Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental”,
de Philippe Pinel, obra que é considerada inaugural para o surgimento da Psiquiatria como
especialidade médica. Do título já se destaca a mirada filosófica, que vai caracterizar a Psiquiatria
nascente que, embora centrada na organogênese, não perde a psicogênese dos problemas
mentais: em outras palavras, sem descartar as condições fisiológicas prévias ou concomitantes a tais
problemas, aposta sua origem e desenvolvimento em questões relacionadas ao comportamento
(sobretudo moral) do indivíduo, por excesso ou exageros. Daí porque o tratamento deveria passar
por pedagogia ou reeducação moral, ênfase nos “bons costumes” e no redirecionamento social da
vida da pessoa (PESSOTTI, 1994).

O século XX e a profusão de saberes

A partir da metade do século XIX, várias ciências humanas começaram a experimentar


grande desenvolvimento, propiciando uma multiplicidade de saberes no século XX – por exemplo, a
Sociologia estruturou-se sobretudo com Émile Durkheim, Max Weber e Talcott Parsons, a partir da
crítica dos trabalhos anteriores de Auguste Comte, Herbert Spencer e Karl Marx (Lakatos; Marconi,
1999); a Antropologia, por meio de Edward Tylor, James Frazer, Franz Boas e Marcel Mauss, dentre
outros (ROCHA; FRID, 2015).
Essa riqueza irradiou-se também no estudo das afecções mentais. De fato, no campo “Psi”,
o século XX traz o desenvolvimento da Psiquiatria clínica, o surgimento da Psicologia moderna e da
Psicanálise, que vieram trazer outros olhares, mais sofisticados, sobre a anormalidade – inicialmente
com ênfase a aspectos menos orgânicos e mais psíquicos, em que a atitude clínica (observação da
história, do discurso e do comportamento do paciente) ganha destaque; e, em seguida, depois de
1980, com um novo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM - Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders), elaborado pela APA (American Psychiatric Association)13,
de visão mais organicista.
Com efeito, nos albores do século passado, os protocolos da Psiquiatria seguiam um
modelo oriundo da Psicanálise, ao qual Aguiar (2004, p 22) denomina de “concepção processual do
adoecimento psíquico”, que se relacionava com a história do indivíduo (e não, como aconteceu a
partir de 1980, ao se que chama de “psiquiatria biológica”). De fato, a “psiquiatria psicodinâmica”

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estava
mais preocupada em desvendar o sentido dos sintomas e
sua relação com o desenvolvimento da história psicológica
dos pacientes do que manipular diretamente os sintomas
(com medicamentos ou sugestão)” [dando] “pouco valor aos
diagnósticos” [ou seja] “tomando a doença como processo,
em vez de considerá-la uma entidade universal, a psiquiatra se
afastava cada vez mais da nosologia, tornando praticamente
irrelevante para a prática clínica essa categoria típica do
modelo médico (AGUIAR, 2004, p. 33-34).

Porém, a partir da 3ª. edição do DSM (DSM-III), nos Estados Unidos, em 1980, veio a lume
a aludida psiquiatria biológica, em uma tentativa, bem-sucedida, de trazer contornos da ciência
clássica ao diagnóstico e tratamento dos desarranjos mentais, a partir de “padrão metodológico
dominante na medicina, onde só tem validade o que puder ser descrito e observado de maneira
objetiva, para ser testado empiricamente através de métodos estatísticos e quantitativos” (Aguiar,
2004, p. 23).
No que concerne à Psicologia, enquanto ciência, tem menos de 140 anos, uma vez que o
marco de seu surgimento é a instalação, por Wilhem Wundt, em 1879, do seu “Laboratório de
Psicologia Experimental”, em Leipzig, na Alemanha (Bock et al., 2008, p. 32). No entanto, como

13 cf. https://psychiatry.org/psychiatrists/ practice/dsm, acesso em 30/07/2022, às 10:00h


202
02A
já se mencionou na história da loucura, os gregos, além da literatura de Homero e Eurípedes,
contribuíram para a formação de um pensamento psicológico no campo da Filosofia, com Sócrates,
Platão e Aristóteles desenvolvendo ideias sobre a consciência, o papel da razão (pensamento) e a
psyché (alma), sendo que o escrito “De Anima”, de Aristóteles, “pode ser considerado o primeiro
tratado das ideias psicológicas” (ob. cit., p. 34).
Também na Idade Média, além de contribuírem para a doutrina demonista que justificaria
as afecções mentais (por meio do Malleus), Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino já faziam a
cisão entre alma e corpo e entre essência e existência. No Renascimento (início da Idade Moderna
– séculos XVI e XVII), Copérnico, Galileu e Descartes14 inauguram o atual pensamento científico,
aprofundado no Iluminismo (século XVIII), quando “o conhecimento tornou-se independente da fé
(...) os dogmas da Igreja foram questionados (...) e a racionalidade humana apareceu, então, como
a grande possibilidade de construção do conhecimento” (Bock et al., 2008, p. 37).
A partir dessas origens, o final da Idade Moderna assiste ao nascimento da Psicologia
científica, já que “os humanos passavam a ter necessidade de construir uma ciência que estudasse
e produzisse visibilidade para a experiência subjetiva”. Surge, assim, a Psicologia, que é “produto
das dúvidas do homem moderno, esse humano que se valorizou enquanto indivíduo e que se
constitui como sujeito capaz de se responsabilizar e escolher seu destino”. (Bock et al., 2008, p. 40)
Tal como a Psiquiatria, a Psicologia trabalha a partir de um conceito de normalidade,
comumente ligado ao de adaptação social: se o indivíduo corresponde ou não ao que se espera dele,
culturalmente, ainda que essa noção seja variável no tempo e no espaço. Havendo desadaptação
ou disfuncionalidade nas tarefas do dia a dia, que levem a pessoa a um sofrimento além do comum
do ser humano, provavelmente estar-se-á diante uma patologia psíquica.
Portanto,
A abordagem psicológica encara a doença mental e,
portanto, os sintomas, como desorganização do “mundo
interno”. A doença instala-se na subjetividade e leva a uma
alteração de sua estrutura ou a um desvio progressivo em
seu desenvolvimento. Dessa forma, as doenças mentais
definem-se a partir do grau de perturbação da “organização
psíquica”, isto é, do grau de desvio do que é considerado
“comportamento padrão”. (BOCK et al., 2008, p. 348)

Não obstante, a valorização do indivíduo moderno (“experiência subjetiva”)15, enquanto


objeto de estudo, também vai precipitar, no final do século XIX, o surgimento de outro campo de

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saber, a Psicanálise – que pode ser apresentada como “uma teoria e uma prática que rompe com
a psiquiatria, a neurologia e psicologia do século XIX” e como “efeito de uma série de articulações
entre saberes e práticas” (Garcia-Roza, 1985, p. 25). A Psicanálise parte de uma premissa incomum16
no campo Psi (o Inconsciente), influenciando sobremaneira a Psiquiatria do início do século XX –
embora perdendo espaço, assim como a Psicologia clássica, a partir do DSM-III, como se viu.
Como explica Roudinesco e Plon (1998), a Psicanálise é um
termo criado por Sigmund Freud, em 1896, para nomear um
método particular de psicoterapia (ou tratamento pela fala)
proveniente do processo catártico (catarse) de Josef Breuer
e pautado na exploração do inconsciente, com a ajuda da
associação livre, por parte do paciente, e da interpretação, por
parte do psicanalista. (Roudinesco e Plon, 1988, p. 603)

14 Para Cottingham (1999), “O nome de René Descartes é sinônimo de nascimento da Idade Moderna. Os “novos”
filósofos”, o nome pelo qual ele e seus seguidores eram chamados no século XVII, inauguraram um deslocamento
fundamental no pensamento científico... toda explicação científica, insiste Descartes, precisa ser expressa em
termos de quantidades precisas e matematicamente definidas” (p. 11)
15 Importante destacar que essa noção de “experiência subjetiva” vai influenciar sobremaneira a Ciência do
Direito, possibilitando o advento da noção de dignidade da pessoa, que por sua vez permite que se abram duas
vertentes, sendo a primeira, de caráter público e tradicionalmente ligada às relações da pessoa com o Estado, a qual
se denomina de “direitos fundamentais”; a segunda, de caráter privado e regente das relações entre particulares,
conhecida então como “direitos da personalidade”.
16 Embora não o seja para a Antropologia: Cf. Lévi-Strauss (2017)
203
03A
A colocação do Inconsciente no palco das investigações mentais promove uma grande
revolução na forma de abordagem e tratamento dos transtornos psíquicos. Realmente, de um
lado, inverte o olhar médico-terapeuta, pois são os próprios pacientes, como seu discurso e
sua história (em especial como discursam sobre sua própria história), que elaboram sua teoria
e seus diagnósticos “a respeito de seus sintomas e seu mal-estar” (Roudinesco e Plon, 1988, p.
604) – ainda que, nesse processo, contem com o inafastável concurso do terapeuta, através de
uma interação viva que se chama “transferência”17. De outro lado, faz decair a autoimagem do
sujeito da modernidade, fundada na razão e na consciência, que busca na “verdade”, que a ciência
supostamente traria, sua redenção.
De fato, ao valorizar o material inconsciente como verdadeiro motor da existência humana, a
Psicanálise “aponta a consciência não como um lugar da verdade, mas da mentira, do ocultamento,
da distorção e da ilusão” (Garcia-Roza, 1985, p. 21), fazendo cair o véu da perspectiva ideal de ser
humano moldada pelo racionalismo.
Assim...
Quando a psicanálise sublinha que o psiquismo não é só a
consciência; quando valoriza nossas produções psíquicas,
como sonhos e fantasias, tidas até então como bobagens,
promove uma reviravolta na abordagem do psiquismo, que
implica simultaneamente uma subversão na visão tradicional
da vida e do mundo [...] (Maurano, 2003, p. 25).

Percebe-se o alinhamento da Psicanálise com o momento do século XX, da Psiquiatria pré


1980, da Psicologia e também do Direito, que passa a trabalhar com a categoria de dignidade da
pessoa (com seus corolários direitos fundamentais e direitos da personalidade).

Especificamente a Psicanálise: a anormalidade, a neurose e a psicose

Em uma de suas primeiras obras, Psicopatologia da vida cotidiana, Freud (1905/2018) já


alertava que “a fronteira entre a norma e a anormalidade nervosas é fluida e de que todos nós
somos um pouco neuróticos” (Freud 1905/2018, p. 318) e, para ele, ainda ali no início, a diferença
entre o patológico e o não patológico está na localização dos sintomas. Realmente, se
[...] seu aparecimento [for] nas atividades individuais e sociais

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importantes, de modo a serem capazes de perturbar a ingestão
de alimentos e as relações sexuais, o trabalho profissional
e a sociabilidade, é própria dos casos graves de neurose e
os caracteriza melhor do que talvez a multiplicidade ou a
vivacidade das manifestações patológicas (Freud 1905/2018,
p. 319).

Muitas décadas depois, com o legado de Freud já consolidado, revisto e recriado, Joyce
McDougall, ao se questionar sobre o que é, enfim, normalidade, sai em defesa da “anormalidade”,
mesmo porque “a normalidade elevada ao plano de um ideal é uma psicose bem compensada”
e “a predominância exagerada do ego social, razoável e adaptado, seria tão indesejável quanto o
domínio absoluto por parte de forças pulsionais descontroladas” (Macdougall, 1983, p. 182)18.
Como se percebe, a Psicanálise trabalha, em princípio, com as categorias de neurose e

17 Jacques Lacan (1901-1981) coloca a transferência ao lado do inconsciente, da repetição e da pulsão como os
quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Conceitualmente, transferência é “um processo constitutivo do
tratamento psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando concernentes a objetos externos
passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses diversos
objetos” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 766-7)
18 Diz mais a mestra neozelandesa: “a normalidade [...], aproxima-se cada vez mais do “anormal”, na medida
em que essa qualidade do Ego, esse bom senso que sabe distinguir o exterior do interior e o desejo de sua
realização, distancia-se do mundo imaginário para orientar-se unicamente em direção à realidade externa, factual
e desafetada, podendo assim criar um obstáculo para a função simbólica e abrir a porta para a explosão do
imaginário do corpo no sujeito” (p. 181-182)
204
04A
psicose. Com a intenção de tentar explicar tais conceitos, é preciso lembrar, de início, que todos
nós – loucos e normais – transitamos entre um estado e outro ao longo da vida e, em nossas
vivências, saboreamos o enigmático universo da loucura19. De um modo geral, tem-se sucesso em
elaborar as vicissitudes, ainda quando elas fazem emergir o material recalcado do início; em outros
momentos e para outras pessoas, os “pensamentos impensáveis” invadem a psique de forma mais
aguda, desencadeando estados mentais incontroláveis temporária ou permanentemente. Crises
neuróticas e psicóticas se revelam20.
Observe-se que viver é uma constante negociação com a realidade, intermediada pelo corpo
e expressa, sempre de forma tentada e nunca exitosa, pela linguagem. De fato, os seres humanos,
em sua breve existência, lutam diariamente para encontrar uma forma de explicar e organizar aquilo
que apreendem e julgam ser importante reter, elaborar e utilizar – sendo que é por meio da busca
dessas respostas (o desejo) que o ser humano procura preencher seu vazio profundo e inexplicável.
Seguindo a visão de Winnicott (1896-1971), em um primeiro momento, ainda sem perceber-
se como ente dotado desse corpo – através do qual chegam sensações desconhecidas, que somente
depois poderão ser elaboradas, pela linguagem, mas nem sempre com o sucesso esperado – estamos
todos indivisos com o corpo da mãe. À medida que amadurecemos e descobrimos a separação,
psique (mente) e soma (corpo) procuram integrar-se em uma harmonização permanentemente
difícil, e o resultado dessa relação descortina nossos modos de ser.
É que, conforme Dias (2017, p. 80)), “no início do processo [de amadurecimento], contudo,
a “relação” tem um caráter sui generis, devido ao fato de o bebê não ser ainda uma unidade: a
unidade é a dupla mãe-bebê, sendo que a mãe é sentida pelo lactente como parte dele, ou seja,
como objeto subjetivo”. Segue-se, então, que o bebê, para constituir as bases fundamentais da
existência, ou seja, os alicerces da personalidade e da saúde psíquica, envolve-se em três tarefas: “a
integração no tempo e no espaço; o alojamento gradual da psique no corpo e o início das relações
objetais, ou seja, do contato com a realidade”.
O resultado comumente esperado é que consigamos controlar o fluxo entre os pensamentos
e as sensações corporais, fluxo esse de duas mãos. Conforme Dias (2017, p. 109):
O ponto importante da teoria é o seguinte: é somente a partir
da não-integração que as várias formas de integração podem
se produzir (...) Fosse a integração dada, e o ser humano
não seria tal qual é, uma vez que, tanto a saúde quanto as
dificuldades e os distúrbios que são próprios dos humanos
são estados relativos ao sucesso ou ao fracasso das tarefas

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integrativas dos estágios iniciais, enquanto conquistas do
amadurecimento

Atingido um relativo sucesso (que sempre será relativo)21, aprender-se-á a conhecer e dominar
as sensações do corpo e harmonizá-las com o pensamento, ainda que seja não propriamente para
dar-lhes (às sensações) liberdade; mas também, e talvez principalmente, recalcá-las. De tal possível
repressão também não se espere perene calmaria: de repente, por um estímulo qualquer, psíquico
ou somático, a sensação retorna de uma outra forma – o sintoma22. Eis a neurose, cujo núcleo é o

19 De fato, para Wilfred Bion (1897-1979), conforme lecionam Gerber & Figueiredo (2018), “há em todos os
psiquismos um núcleo psicótico e um núcleo neurótico, coexistentes. (...) Nesses momentos [psicóticos],
perdemos contato com a realidade, pois recorremos a fortes identificações projetivas – o modo predominante de
funcionamento do núcleo psicótico – que confundem nossa percepção com nossos desejos e grandes ansiedades,
e apagam as fronteiras nítidas entre nós, os objetos e o ambiente” (p. 78-79).
20 Gerber & Figueiredo (2018), baseando-se em lições de Bion, asseveram que “o sujeito, sobrecarregado de
pensamentos impensáveis, pode não tolerar a pressão e a angústia e os evacua sobre o mundo, sobre seu corpo,
sobre, inclusive, sua mente, destruindo-a em sua precária funcionalidade” (p. 83).
21 Ou seja, “numa apreensão global, o amadurecimento pode ser descrito como uma jornada (journey) que parte
da dependência absoluta, passa por um período de dependência relativa, chega às etapas que estão no rumo
da independência, até chegar à independência relativa, que é o estado em que o indivíduo saudável se mantém
regularmente ao longo da vida” (Dias, 2017, p. 80).
22 A palavra sintoma tem um sentido especial na Psicanálise: “expressão de um conflito inconsciente, geralmente
a de um desejo proibido sofrendo um recalcamento de uma instância repressora, que só permite a manifestação
indireta do desejo, camuflado e disfarçado sob a forma do sintoma, de forma análoga ao que se passa no fenômeno
do sonho” (Zimerman, 2001, p. 388).
205
05A
conflito com a norma.
Entretanto, nem sempre é assim. Por alguma deficiência ambiental, que pode ou não ser
associada a uma condição fisiológica, a integração psique-soma não se opera de forma harmoniosa
e a psique-mente passa a criar mecanismos de defesa primitivos que dominam essa relação23.
O resultado é a criação de estados paralelos (fictícios, embora “reais” para a pessoa), que não
correspondem às sensações do corpo ou, ainda, naqueles em que as sensações do corpo não são
adequadamente elaboradas pela psique. Num e noutro caso, experimenta-se a desintegração que
ora leva à criação, pela psique-mente, de sensações corporais não verificáveis fisicamente; ora
levam a uma interpretação errônea dessas sensações: assim, sentem-se dores, partes do corpo
parecem faltar, outras abundar, ouvem-se vozes – eis a psicose24, que desconhece a norma, pois
não a internalizou à medida que não aceitou a interdição (limites do corpo e da linguagem) que
decorreria da harmonia se tivesse sido realizada25.
Cabe ainda considerar as consequências da proposta lacaniana para o âmbito jurídico da
ação do sujeito, posto que é Lacan (1966/1998, p. 873) quem vai fazer avançar a perspectiva de
análise do ato e da ação do sujeito sob o fundamento lapidar de sua responsabilidade frente ao
real de seu próprio destino: “por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”. Segundo
Forbes (2012) em seu livro Inconsciente e responsabilidade, o que está em jogo é uma mudança de
paradigma frente ao ato, uma passagem da atribuição de sentido à atribuição de consequências.
Enquanto na psicanálise de matriz freudiana imperava o dístico: “Freud explica” – uma interpretação
que emprestaria sentido ao ato, na psicanálise de matriz lacaniana, por sua vez, prevalece a máxima:
“Lacan implica” – uma interpretação que emprestaria consequência ao ato. A passagem de uma
abordagem analítica, interpretativa e hermenêutica para uma abordagem analítica e responsiva,
sugere que a escuta analítica visa engajar seu sujeito nas consequências de seu sintoma, de seu
gozo, capacidade ou incapacidade, fazendo-o responsável pela dinâmica de seus desdobramentos,
posto que para Lacan (1966), o sujeito é responsável pelo seu próprio inconsciente, ou por seu
próprio desejo ou gozo. Em outras palavras, qualquer incapacidade, ou capacidade, ou habilidade,
será escutada à luz de uma respons(h)abilidade da parte de seu sujeito.

Considerações Finais
O redesenho do instituto da capacidade, operado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência,
seguindo os ditames da Convenção de Nova Iorque, trouxe uma perplexidade para o Direito: a
capacidade como regra quase absoluta, comportando poucas e fluidas exceções, sempre ligadas a

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04


aspectos patrimoniais. Para os aspectos existenciais, as restrições são ainda mais raras.
Essa realidade, aliada à construção, nas últimas décadas, de sólida doutrina jurídica acerca
da dignidade da pessoa (direitos fundamentais e direitos da personalidade), demanda uma
nova construção de conceitos jurídicos há muito tidos como realizados, mas que pouco ou nada
significam quando se está diante de casos concretos cada vez mais complexos e singulares, capazes
de refletir a complexidade da própria sociedade contemporânea (pós-moderna).

23 Nas palavras de Dias (2017): “A partir desse ponto, estando constituídos os alicerces, o indivíduo pode vir a
sofrer de distúrbios psíquicos, mas não padece mais do risco de tornar-se psicótico” (p. 81); porém, “sendo [os
estágios iniciais do bebê] anteriores à estruturação do eu como uma unidade, se houver um padrão de falhas no
ambiente, ainda há risco de psicose” (p. 201).
24 Donald W. Winnicott considera que são as psicoses, e não as neuroses, o paradigma do adoecer humano
(Dias, 2017 p. 3), pois, “é a experiência de lidar com essas tarefas do amadurecimento e o sucesso na resolução
delas que constitui os fundamentos da saúde psíquica. A psicose consiste exatamente no fracasso em realizá-las e,
neste caso, não haverá nem ao menos um indivíduo que, respondendo por um eu, possa enredar-se em conflitos
intrapsíquicos” (p. 274).
25 No mesmo sentido, na caracterização da psicose, é a posição de Bion: “o sujeito, sobrecarregado de pensamentos
impensáveis [aqueles que o aparelho de pensar não aprendeu a elaborar], pode não tolerar a pressão e a
angústia e os evacua sobre o mundo, sobre seu corpo, sobre, inclusive, sua mente, destruindo-a em sua precária
funcionalidade. É o uso excessivo da identificação projetiva – mecanismo assim nomeado e teorizado por Klein –
que está na base deste distúrbio de pensamento, característico do pensamento psicótico. Mas em boas condições,
em vez de evacuação de pensamentos intoleráveis e impensáveis, o sujeito os tolera e começa a desenvolver sua
capacidade de pensar pensamentos, organizá-los, significá-los, representá-los e usá-los”. (cf. Gerber & Figueiredo,
2018, p. 83)
206
06A
Conceitos como autonomia (patrimonial e extrapatrimonial), capacidade, responsabilidade
e vulnerabilidade (e, sobretudo, vontade e expressão da vontade, de que trata o inciso III do Art. 4º
do CC), que são colocados, na doutrina e na jurisprudência, como prontos e acabados, na verdade
estão calcados em posições caducas, resultando em imensas dificuldades em operar o direito na
diuturna multiplicidade de casos inéditos. Assim, é essencial que o Direito receba influxos de outras
ciências humanas, revisitando suas bases, ampliando seu alcance e criando paradigmas novos, com
o que se evita o mero manejo burocrático das normas jurídicas, pois a mera subsunção já não basta.
Nessa senda, observa-se que as ciências e os saberes da área Psi – Psiquiatria, Psicologia e
Psicanálise – podem contribuir sobremaneira nesse mister, posto que desenvolveram, ao longo de
seus respectivos percursos históricos, diversas ferramentas que auxiliam na compreensão do ser
humano em suas relações mais essenciais. No entanto, ainda que com todo avanço tecnológico
e desenvolvimento das ciências, ainda não é consensual uma visão do ser humano pelas ciências
Psi, haja vista as divergências dentro da própria psicologia expressa por suas diferentes concepções
teóricas ou abordagens. Assim, aspectos biológicos, mentais/psíquicos e sociais estão associados
aos diversos comportamentos (normais e anormais), não definindo uma origem única. Porém, a
falta desse consenso não desabona suas contribuições à compreensão do que seja a incapacidade.
Essa contribuição fica mais rica quando é estudada a loucura, ou a dicotomia normalidade-
anormalidade, possibilitando uma percepção mais abrangente sobre o que pode ser a velha
categoria jurídica de “capacidade de fato”: seus limites e possibilidades. É então que se percebe
como os profissionais do Direito precisam avançar no exame acurado da autotomia das pessoas, já
que, como bem canta o cancioneiro popular: de perto ninguém é normal.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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209
09A
MÉTODO APAC DE RECUPERAÇÃO DE CRIMINOSOS E SUA FACE
RELIGIOSA: O QUE FREUD TERIA A DIZER?

APAC CRIMINAL RECOVERY METHOD AND ITS RELIGIOUS FACE: WHAT


WOULD FREUD HAVE TO SAY?

Bianca Ferreira Rodrigues 1


Fuad Kyrillos Neto 2
Wilson Camilo Chaves 3

Resumo: Este artigo partiu de uma dissertação de mestrado com o objetivo de construir uma análise do método APAC, uma
metodologia de recuperação de criminosos baseada na religião cristã e aplicada em instituições prisionais endossadas e/
ou financiadas governamentalmente. Utilizou a perspectiva freudiana acerca da religião como chave de leitura a partir
de suas facetas psíquicas, políticas e institucionais. Como resultado, trouxe que a APAC apresenta um projeto político de
reafirmação do status quo ao mesmo tempo em que se encontra integrada à massa religiosa. Mas, enquanto instituição
prisional, busca influenciar sujeitos historicamente negligenciados e violentados pela sociedade num processo de
recuperação difícil e doloroso, mas que seria recompensado pela vida eterna.

Palavras-chave: Método APAC. Religião. Psicanálise Freudiana. Criminoso.

Abstract: This article started from a master’s thesis with the objective of constructing an analysis of the APAC method, a
methodology for the recovery of criminals based on the Christian religion and applied in prison institutions endorsed and/
or financed by the government. It used the Freudian perspective on religion as a key to reading it from its psychic, political
and institutional facets. As a result, it brought that APAC presents a political project of reaffirmation of the status quo at the
same time that it is integrated into the religious mass. But, as a prison institution, it seeks to influence subjects historically
neglected and abused by society in a difficult and painful recovery process, but which would be rewarded by eternal life.

Keywords: APAC Method. Religion. Freudian Psychoanalysis. Criminal.

1 Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/Minas). Integrante do Laboratório de Estudos e Pesquisa em
Psicanálise e Crítica Social (LAPCRIS) da PUC/Minas, Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7421041957782111. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-7877-6808. E-mail: biancaferreira025@gmail.com

2 Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com estágio pós-doutoral no Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra, Portugal (CES/UC). É Professor no departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ),
Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1417280605571645. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8071-0907.E-mail: fuadneto@ufsj.
edu.br

3 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É Professor no departamento de Psicologia da Universidade Federal de São
João del-Rei (UFSJ), Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1498920976592034. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2368-0080. E-mail:
camilo@ufsj.edu.br
Introdução

O presente artigo parte das análises realizadas numa dissertação de mestrado, que teve
por objetivo mapear os impasses e os pontos de tensão que se colocam a partir da tentativa de
recuperar criminosos por meio da terapêutica penal denominada método APAC – sigla cujo
significado atual é apresentado enquanto “Associação de Proteção e Assistência aos Condenados”,
mas que foi reconhecida inicialmente por “Amando ao Próximo Amarás a Cristo”, conforme
apontado pelo Centro Internacional de Estudos do Método APAC (CIEMA, 2020, s.p.). Tal mudança
de nomenclatura é emblemática, porque apresenta a dupla vocação da metodologia apaqueana,
espiritual e jurídica, presentes desde o seu surgimento pelas ações do cursilhista e advogado Mário
Ottoboni. Os Cursilhos da Cristandade, nesse sentido, se apresentam enquanto uma possível
inspiração para o método, uma vez que são movimentos da Igreja Católica, que estimulam um tipo
de religiosidade com funções terapêuticas, voltado predominantemente para uma análise interna
do homem, de sua ordem moral, psicológica, afetiva ou intelectual (DANA; GODOY, 2019).
Para aqueles que não o conhecem, faz-se importante uma breve introdução acerca do
método APAC e da história do seu desenvolvimento. Este surgiu enquanto um apostolado cristão
em 1972, após a participação de Ottoboni em um Cursilho da Cristandade, em 1969, quando ele
relatou ter surgido o desejo de se realizar como cristão atuando em favor daqueles mais necessitados
(OTTOBONI; MARQUES NETTO, 1976). Em seguida, foi evoluindo, com o passar dos anos, para uma
metodologia de recuperação de criminosos baseada na aplicação da doutrina e pressupostos da
religião cristã às instituições penais. Desde a criação de uma “escala de recuperação” (OTTOBONI,
1984a, p. 20) com um dos elementos correspondendo à “religião como fator básico da emenda”
(OTTOBONI, 1984b, p. 24), até a definição mais atual, que descreve a APAC como “um método
de valorização humana, portanto de evangelização” (OTTOBONI, 2006, p. 29), vemos o quanto a
religião é central à teoria e prática apaqueanas. Entretanto, como aponta seu próprio criador:
Diante das dificuldades que foram surgindo para o
desenvolvimento do trabalho de assistência aos presos, viu-se
forçado a transformar o trabalho, que era apenas de Pastoral
Penitenciária, em uma entidade civil de direito privado, com
finalidade definida, mantendo os objetivos. Essa providência
veio propiciar condições de defesa da própria equipe,
que passou a valer-se do remédio jurídico adequado para
defender-se e para que fossem respeitados os direitos dos

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presos (OTTOBONI, 2006, p. 31, grifo nosso).

Ou seja, percebemos como a questão jurídica também foi um elemento importante


no desenvolvimento da metodologia, já que esta foi se apropriando de oportunidades de
gerenciamento de instituições penais, a começar pela administração total da cadeia pública de São
José dos Campos em 1984, cidade onde Ottoboni residia (MASSOLA, 2005). Tal experiência acabou
por ser finalizada em 1999, mas rendeu frutos: a exportação do método para a cidade de Itaúna,
em Minas Gerais, culminando, em 1997, no funcionamento em prédio próprio, com administração
dos três regimes penais sem a presença da polícia (VARGAS, 2011).
No Estado mineiro, a metodologia encontrou solo fértil para se replicar, contando com
a aceitação popular e governamental. Em 2001, foi firmado o Projeto Novos Rumos na Execução
Penal, com o objetivo de orientar juridicamente e articular parcerias entre governo, instituições
privadas e outras entidades, a fim de incentivar a criação e ampliação das APAC no Estado, conforme
apontado por Joaquim Alves de Andrade (2009), juiz coordenador do projeto. Pouco depois, em
2004, já estava aprovada a realização de convênios estaduais com as APAC (e consequente repasse
de verbas) para a administração de unidades prisionais, como nos conta Durval Ângelo de Andrade
(2014), deputado estadual de Minas Gerais. Atualmente, segundo dados da Fraternidade Brasileira
de Assistência aos Condenados (FBAC, 2021), instituição orientadora e fiscalizadora das APAC,
existem 78 unidades em processo de implantação e 61 Centros de Recuperação próprios sem a
presença da polícia.
Diversos autores justificam a adoção desse método, especialmente a partir de seus
elementos jurídicos e dos resultados que vem alcançando. Entre os aspectos elogiados, estão o 211
11A
cumprimento da Lei de Execução Penal e das Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas
(ONU) para Tratamento do Preso (SÁ, 2012), a contemplação dos princípios da igualdade e da
dignidade humana (OLIVEIRA, 2010), o baixo custo de cada detento (CARVALHO; PIMENTA, 2014) e
a individualização da pena (SALUM, 2009). Como resultado, teríamos a construção de um caminho
mais eficaz rumo à concretização da verdadeira função da pena: preparar o condenado para seu
retorno à sociedade (BARROS, 2009). A estimativa apontada estabelece um índice de 90% de
reintegração diametralmente oposto ao que se observa no sistema penal convencional (ANDRADE,
2009). Por essas e outras características, o método APAC é classificado como brilhante (SÁ, 2012) e
como uma opção não só viável, mas necessária (OLIVEIRA, 2009; MATTOS, 2009).
No entanto, não podemos nos esquecer de que estamos às voltas com instituições penais,
endossadas e, muitas vezes, financiadas pela ação governamental, que são regidas por uma
metodologia eminentemente cristã, impressa em seus prédios, práticas e sujeitos sob sua tutela.
Diante disso, o objetivo do presente trabalho é construir uma análise da face religiosa do método
APAC a partir da perspectiva freudiana acerca da religião. A escolha pela perspectiva freudiana se
justifica pela abrangência desta, uma vez que se trata de uma análise que considera as propriedades
psíquicas, políticas e institucionais da religião, atributos que também estão presentes no método
APAC.
Com relação ao balizamento metodológico, elaborado a partir da psicanálise, podemos
afirmar que toda pesquisa ocorre sob transferência, pois esta ocupa a posição de epicentro da cura
e desvela a pregnância do próprio fenômeno da transferência nas relações entre sujeitos (BEIVIDAS,
1999).
O método de investigação proposto pela psicanálise aplicada é profícuo para nossa discussão,
uma vez que coloca o pesquisador no lugar de analisante e, dessa forma, o material estudado
será analisado como um conjunto de enunciados que posteriormente receberão a enunciação do
analisante a partir de algumas características propostas por Dunker (2013), que correspondem
às condições do método para a construção de evidências clínicas. Ele destaca três características
relevantes: recordação, implicação e transferência. A recordação diz respeito à história e
contingências que ela implica; a segunda requer a interrogação ética sobre o estranhamento com
o qual o pesquisador se depara; e a terceira pressupõe a suposição de saber. Essas características
reveladas na pesquisa pelos fragmentos do discurso do outro, diz-nos Dunker (2013, p. 71), “fazem,
da psicanálise aplicada e do discurso analisante a ela ligado, um método de invenção, um método
de descoberta”.
Essa modalidade de pesquisa aponta, definitivamente, o que poderíamos considerar como

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uma pesquisa em psicanálise, que, segundo, Tavares e Hashimoto (2013, p. 173), “pressupõe um
desenvolvimento teórico atravessado pelas experiências do pesquisador enquanto analista e/ou
paciente, mesmo naquelas de cunho e desenvolvimento essencialmente teóricos”.
Como posto anteriormente, o método APAC tem sido cada vez mais replicado e endossado
por estudiosos e instâncias governamentais. Nesse sentido, não desconsideramos seus avanços
em relação ao Sistema Prisional brasileiro. Entretanto, acreditamos ser de grande importância a
realização de uma análise que coloque em primeiro plano seu aspecto religioso e como este se
encontra na base de sua teoria, suas práticas e suas instituições. A crítica de Freud à religião pode
parecer, num primeiro momento, circunscrita em uma determinada temporalidade histórica e
social, mas fica claro, a partir da sua transposição às questões relativas ao método APAC, como
ainda se constitui enquanto uma ferramenta acurada de análise.
Diante disso, este artigo será desenvolvido a partir da apresentação do ponto de vista
freudiano acerca da religião e de sua aplicação na construção de uma análise dos aspectos religiosos
do método APAC. Todavia, as referências à religião ao longo da obra freudiana são muito frequentes,
perpassando por quase a totalidade de seus escritos. Serão privilegiadas, assim, as obras Totem e
Tabu (FREUD, 1912-1913/2012), Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 1921/2011) e O
futuro de uma ilusão (FREUD, 1927/2014) para dizer da metodologia apaqueana a partir de uma
perspectiva política, institucional e doutrinadora. Com isso, não se pretende esgotar o tema, mas
dar início a um debate que parece fulcral: o que entra em jogo no objetivo do método APAC de
“matar o criminoso e salvar o homem”? (OTTOBONI, 2006, p. 45).

212
12A
Desenvolvimento

O crime é um tabu? A culpa que leva ao seu lugar na civilização

Considerado pelo próprio Freud (1912-1913/2012) como o empreendimento, até então,


de maior ousadia de sua carreira, Totem e Tabu é apontada como a obra mais relevante e original
da interpretação freudiana do fenômeno religioso (ARAÚJO, 2014). A partir da zoofobia infantil,
observada no caso Hans, Freud (1912-1913/2012) se coloca a trabalho na construção de uma
narrativa mítica acerca do surgimento da civilização, utilizando-se de teorias de outros campos do
saber, como a da religião totêmica e a da formação de hordas em símios superiores, e demonstrando
seu paralelismo com a constituição psíquica dos sujeitos a partir do Complexo de Édipo. A chave
para essa correlação é a semelhança entre os dois principais mandamentos do totemismo, não
matar o totem, considerado um ancestral, e a exogamia, com os crimes do Édipo, matar o pai e
desposar a mãe, concluindo, assim, que “o sistema totêmico resultou das condições do complexo
de Édipo” (FREUD, 1912-1913/2012, p. 203).
Nesse sentido, pode-se observar uma concordância entre ontogênese e filogênese a partir
da dinâmica, que se inicia com a figura do pai enquanto possuidora de um poder de interdição, a
qual dá origem ao desejo de matar esse pai, mas que acaba por resultar em um sentimento de
culpa, uma vez que os afetos de amor e admiração com relação a ele retornam no a posteriori. O
Complexo de Édipo converte-se, dessa forma, numa categoria antropológica, fixando as estruturas,
as bases do acontecer humano e cultural (MORANO, 2014).
O totemismo, reivindicado por Freud (1912-1913/2012, p. 211) como o “primeiro ensaio
de uma religião”, teria surgido com o objetivo de mitigar o sentimento de culpa e de apaziguar o
pai ofendido mediante uma obediência nesse momento a posteriori. De fato, todas as religiões
subsequentes seriam consequência dessa mesma dinâmica assim como as organizações sociais e
as restrições morais. Nessa interpretação, não seria o medo de morrer que inicia a religião, mas o
medo de matar a quem se ama e odeia concomitantemente (COSTA, 1988). Para Freud (1939[1934-
1938]/1996), o cristianismo seria a religião que melhor manifestaria esse drama da morte do pai
e da consciência de culpa, pois introduz a noção de pecado original e sacrifica o filho como forma
de mitigação e expiação. Assim, a morte de Jesus promoveria o filho morto à condição de Deus,
suplantando a posição paterna e selando, novamente, a ambivalência de sentimentos ao fenômeno
religioso.

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Aqui, faz-se importante destacar o papel da culpa na constituição e manutenção do laço
social, pois, se é a culpa que faz os irmãos se arrependerem de matar o pai totêmico em prol
de assumirem seu lugar de poder, é ela que permite a instauração de uma lei, a qual irá regular
as relações na tentativa de impedir novas insurreições no futuro. Ou seja, está-se diante de um
“sentimento de culpa” (FREUD, 1912-1913/2012, p. 220), mas que é “sentido em comum” (FREUD,
1912-1913/2012, p. 219), e que, por isso, diz de como se situar no mundo e com os outros. Dessa
forma, trata-se de um conceito-chave para se pensar uma articulação política, já vez que “a culpa é
o que permite o viver em sociedade, mas é sentida enquanto algo privado, configurando-se como
um elemento do psiquismo que realiza uma ligação entre os homens” (RODRIGUES; MORGANTI;
SILVA, 2020, p. 596).
Nas palavras de Freud (1912-1913/2012, p. 223, grifos nossos),
A sociedade repousa então na culpa comum pelo
crime cometido; a religião na consciência de culpa e no
arrependimento por ele; e a moralidade, em parte nas
exigências dessa sociedade e em parte nas penitências
requeridas pela consciência de culpa.

Culpa, arrependimento e exigência de penitência serão alguns elementos-chave para se


pensar no uso da religião cristã em uma instituição penal, que se propõe a recuperar criminosos.
Mesmo tendo passado por certa abertura a outros credos no plano teórico, desde seu nascimento
como Pastoral Carcerária, Silva Júnior (2014) afirma que essa abertura não teve a repercussão
213
13A
prática necessária, mantendo a oferta de assistência religiosa quase que exclusivamente aos presos
cristãos – católicos e evangélicos. Religiões afro e espíritas, retratadas com preconceito nas obras
iniciais de Ottoboni, permanecem sendo estigmatizadas ainda que de forma velada.
Uma das passagens que ilustram esse tratamento às outras formas de religião refere-se à
conversão para o catolicismo de Benedito Barbosa, “macumbeiro convicto, impertinente e mal-
educado, através do testemunho de que, efetivamente, iniciou uma nova vida, correta e digna”
(OTTOBONI; MARQUES NETTO, 1976, p. 37). Ou seja, o que se observa na prática é que, para
além das possibilidades de resistência por parte dos sujeitos, está-se às voltas com uma cultura
organizacional, que está implicada na produção de modos normatizados de ser e se relacionar
(SILVA; SARAIVA, 2014).
O viés religioso é destacado também por Vargas (2011, p. 226), que chega a classificar a
APAC como uma “prisão religiosa”, assim como Camargo (1984, p. 86), que descreve um processo
no qual a APAC utilizaria sua posição de poder, como representante da lei, e de “mecanismos
institucionais totalitários”, para impor uma ideologia religiosa “a pessoas com condições mínimas
de uma opção livre” (CAMARGO, 1984, p. 87). A concepção cristã da prisão como espaço-tempo
de expiação, culpa e penitência é aderida pelo método, numa lógica de poder e controle, “que
estabelece, não somente no discurso, mas também na prática, um tipo particular de sujeito: o
modelo ideal de sujeito apaqueano” (VARGAS, 2011, p. 171).
Esse processo é denominado por Vargas (2011, p. 199) de reestigmatização, já que substitui
o estigma do criminoso por outro, baseado em um ideal impossível, o que dá origem a “presos
pela consciência”. Para se ter uma ideia, o padrão moral exigido pela metodologia é tão alto que
foi incapaz de ser cumprido até mesmo por Ottoboni, que afirma já ter violado a ética perante o
Judiciário (SILVA JÚNIOR, 2013). No caso dos criminosos, como apontado por frei Betto: “Exigir que
um homem preso seja exemplo de virtudes é, no mínimo, querer tirar o cisco do olho alheio sem
ver a trave no próprio” (CAMARGO, 1984, p. 12).
O resultado desta junção, entre Igreja e Judiciário, para Massola (2001), só pode ser uma
instituição ideológica. Camargo (1984) corrobora essa posição e classifica a religião presente no
método como burguesa por integrar elementos da ideologia da classe média. Nessa perspectiva,
o indivíduo é considerado como anterior à sociedade e o criminoso como um devedor, o que
reafirma a ordem social vigente e favorece suas formas de controle. A conversão, como forma de
transformação pessoal, é a resposta, já que a questão é individual. Não há reflexões sobre a pobreza
ou a desigualdade social, e a religião, por eles posta em prática, pode, assim, ser considerada como
“legitimadora do sistema normativo vigente” (SILVA JÚNIOR, 2013, p. 112).

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Como aponta Silvio Marques Netto, em prefácio de Ottoboni (1984a, p. 11, grifos do
autor): “A recuperação tem que visar o lado espiritual e não o material. Os egressos costumam
dizer sobre o que o Estado faz atualmente: - ‘entrei BANDIDO analfabeto e saí BANDIDO torneiro
mecânico’. O que alterou?”. E completa: “Não se trata de aplicar a discutida Teologia da Libertação,
tão preocupada com jugos e opressões materiais, mas de libertar o preso de sua prisão interior
através das verdades eternas do Evangelho” (OTTOBONI, 1984a, p. 12, grifo nosso).
A Teologia da Libertação busca introduzir as ideias de igualdade social e direitos humanos
no seio da Igreja, criticando o capitalismo e seus efeitos, principalmente nas camadas mais pobres
da população. O amor a Deus deve, então, ser demonstrado pelo serviço aos pobres, mas estando
em par de igualdade com eles, uma vez que são considerados sujeitos de sua própria libertação
(NORONHA, 2012). Ou seja, pode-se dizer que o método APAC não se constitui enquanto um
projeto de emancipação política ou de busca de melhores condições sociais para os egressos do
sistema penitenciário, mas de uma conversão religiosa, que resulte em obediência e reprodução
das normas sociais.
Nesse sentido, remete-se ao texto freudiano e à imbricada relação existente entre culpa,
laço social e religião, o que leva a questionar o quanto a APAC se serve dos preceitos religiosos para
trazer à tona, em sujeitos sob sua tutela, um sentimento de culpa capaz de reafirmar o status quo,
até mesmo para os que mais sofrem seus efeitos violentos de segregação e não reconhecimento.
Em outras palavras, pode-se dizer de um projeto político de obediência civil, que funciona a partir
da retirada do estigma de criminoso em prol de outra denominação: recuperando.

214
14A
A massa apaqueana: criminosos não, recuperandos

Ao adentrarem nas APAC, os apenados passam a ser denominados recuperandos, a fim de


reafirmar sempre o propósito do método de “preparar o preso para que aceite Deus, fonte de todo
poder e único meio de que o homem dispõe para recuperar-se” (OTTOBONI, 1984b, p. 139), uma
vez que, pela conversão, seria possível ao criminoso “mudar de mentalidade e de comportamento,
passar do egoísmo e do desamor para uma vida de amor e de doação” (OTTOBONI, 2006, p. 79). Isto
é, pode-se dizer que o método apresenta, primeiramente, o preso visto enquanto um criminoso,
mas, após adentrar suas instituições, ele passa a ser um recuperando, que, em caso de sucesso,
matará esse criminoso em prol do surgimento do homem, como posto pelo convite que Ottoboni
(2006) escolheu titular um de seus livros: Vamos matar o criminoso?
Nesse aspecto, vale ressaltar que o idealizador do método, Mário Ottoboni, assim como
a FBAC aconselham que este seja aplicado em sua integralidade em Centros de Recuperação,
instituições próprias e adaptadas a acolher os diferentes regimes de pena sem a presença da polícia
e a partir do que preconiza a metodologia. Porém, outras formas de aplicação também são validadas
por eles, como em estabelecimentos administrados pela polícia, em pavilhões de penitenciárias e
até em situações de liberdade condicional, penas alternativas e sursis (OTTOBONI, 2006).
Diante disso, pode-se questionar: qual o tipo de instituição resultante da junção de uma
igreja com uma prisão? Como apontado pelo frei Tiago M. Coccoline, na época diretor espiritual
de uma unidade apaqueana, “APAC é mini-igreja, comunidade de fé, de esperança e de amor,
onde Jesus no meio faz e realiza as maravilhas da sua graça vivificante, transformadora, salvadora”
(OTTOBONI, 1978, p. 35). Isso remete à definição de religião feita por Libânio (2002), na qual seu
campo semântico organiza, preserva e reproduz um sistema de crenças socialmente, a partir da
tradição e da comunidade que se agrupa em torno da crença, e adquire ali certa identidade.
Para Freud (1921/2011), a Igreja é um tipo de massa artificial, ou seja, um agrupamento
de pessoas, no qual é exercida certa coação, no intuito de que permaneça unido e com a mesma
estrutura. Em seu interior, cada sujeito será governado por processos subjetivos, porque “são
ligações libidinais que caracterizam a massa” (FREUD, 1921/2011, p. 56). Estas acontecem quando
a pulsão sexual se direciona aos objetos, unindo os afetos dos sujeitos aos elementos do mundo
exterior. Porém, entra em cena ainda uma outra forma de ligação afetiva, mais antiga no que diz
respeito ao desenvolvimento psíquico, a identificação, responsável por moldar o Eu a partir dos
modelos escolhidos ao longo da vida.
O arranjo entre ligação libidinal e identificação resultará na idealização do objeto, processo

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no qual o objeto é ascendido à posição de ideal do Eu, a fim de se obter de maneira indireta aquilo
que o sujeito aspirou para si próprio, mas não conseguiu alcançar de outra maneira. O ideal do Eu
se trata de uma instância psíquica desenvolvida a partir do narcisismo original, no qual o Eu infantil
bastava a si mesmo. Gradativamente, as influências do meio vão sendo acolhidas por essa instância
e as exigências que o Eu nem sempre é capaz de cumprir podem, pois, encontrar satisfação no ideal
do Eu, que se diferenciou do Eu (FREUD, 1921/2011). Em outras palavras, trata-se especificamente
de uma idealização, mas que satisfaz o narcisismo pela identificação de si com esse ideal. De acordo
com Freud, quando esse processo de idealização é realizado tendo o líder da massa como alvo, os
sujeitos o ascendem, então, ao ideal do Eu e se identificam entre si em seus Eus.
A massa cristã seria liderada pelo próprio Cristo, Jesus ressuscitado enquanto ideal,
transformando os sujeitos em irmãos e irmãs pelo amor que lhes dispensa. Segundo Freud
(1921/2011, p. 47), diante de Cristo, todos são iguais, pois partilham igualmente de seu amor e
“todas as exigências feitas aos indivíduos derivam desse amor de Cristo”. Nesse contexto, faz-se
ímpar destacar o quanto as figuras de Cristo e de seu amor estão presentes na metodologia APAC,
seja em seus escritos, seu cotidiano ou nas falas de Ottoboni, sendo transmitidos e replicados pelos
próprios recuperandos.
Em um trecho, Ottoboni (1984a, p. 67) afirma: “Nosso trabalho é sério. Está calcado em
Cristo. [...] Cristo quer que você saia dessa maldita vida de malandragem, onde você ainda se gaba
de ser bom”. Em outro momento, Silva Júnior (2013, p. 91) relata uma fala de Ottoboni, que teve
a oportunidade de presenciar durante o VII Congresso Nacional das APAC: “‘A APAC é cristã’ e
‘qualquer outra religião vai ter que se ajustar ao método’. Isso porque ‘nossa imaginação é o Cristo’ 215
15A
e, por isso, ‘ateu não entra na APAC’. Isto é, sempre que possível, é reafirmada a vocação cristã da
metodologia, que surgiu como uma forma de Pastoral de Carcerária e foi reconhecida oficialmente
como tal em 1997 no texto base da Campanha da Fraternidade daquele ano, organizada a partir
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (OTTOBONI, 2006). Entretanto, é nas falas
dos recuperandos que as figuras de Cristo enquanto líder espiritual e seu amor enquanto signo de
exigências se fazem mais claros.
Ottoboni relata um episódio no qual um preso foi levado ao local de seu julgamento sem
nenhum tipo de amarras ou escolta policial. Diante da surpresa dos que estavam presentes, o
próprio réu teria argumentado: “Eu estou algemado e escoltado. Escoltado por Cristo e algemado
pelo coração” (OTTOBONI; MARQUES NETTO, 1976, p. 54). Em outro momento, Ottoboni (1978)
reproduz algumas cartas que recebeu ao longo dos anos acerca do método APAC no livro que
chamou de Cristo sorrindo no cárcere. Neste, pode-se ver um recuperando dizendo que, “antes de
ser um detento, eu não conhecia o Cristo” (OTTOBONI, 1978, p. 113), enquanto uma irmã religiosa
afirma: “Devo à APAC minha maturidade cristã e religiosa” (OTTOBONI, 1978, p. 74).
Lugar sagrado que surge ainda em outro depoimento, no qual o recuperando parece se
dirigir a Ottoboni (1978, p. 97) buscando garantir o amor de Cristo ao reafirmar a veracidade de seu
posicionamento: “Sabendo que a APAC é uma obra divina, onde ressoa a voz de Deus, se mentir não
estaria enganando ao senhor, mas sim a Deus”. Isso remete, novamente, ao fenômeno da massa
religiosa, uma vez que a sua dissolução imaginária traz à tona impulsos hostis e implacáveis contra
as outras pessoas, impulsos que o amor comum a Cristo mantém inativos (FREUD, 1921/2011).
Diante disso, questiona-se: o que aconteceria com esse recuperando se ele realmente estivesse
mentindo?
Como aponta Freud (1921/2011, p. 53-54),
Uma religião, mesmo que se denomine a religião do amor,
tem de ser dura e sem amor para aqueles que não pertencem
a ela. No fundo, toda religião é uma religião de amor para
aqueles que a abraçam, e tende à crueldade e à intolerância
para com os não seguidores.

Em outras palavras, e retomando o percurso realizado até aqui, pode-se dizer que a APAC
integra a massa religiosa advinda do cristianismo e utiliza a figura de Cristo enquanto líder supremo,
que une e iguala os sujeitos sob seu comando a partir do amor que lhes dispensa. Ser recuperando
se torna, assim, fator de identificação e união grupal. A organização institucional se encarrega de
reforçar essa união, a exemplo do que ocorre na Igreja e que leva muitos a identificarem a APAC

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enquanto uma. Todavia, não se pode esquecer que a APAC é ainda uma instituição penal, que já
é autorizada a impedir a liberdade de ir e vir dos sujeitos, mas que não usa da força policial e dos
muros altos para isso. Na verdade, na sede da APAC de Itaúna, o que se lê num muro baixo é a
seguinte expressão: “do amor ninguém foge” (RODRIGUES, 2018).

O futuro da ressocialização? Presos na ilusão de vida eterna

Neste ponto, retoma-se brevemente o aspecto judiciário do método APAC, já que não
se pode esquecer dos seus elementos, que são considerados positivos em relação ao Sistema
Penitenciário Nacional, como: a descentralização dos presídios; a municipalização do cumprimento
de pena; o menor número de condenados juntos; as instalações adequadas; a manutenção da
ordem e a ausência de ociosidade; e a possibilidade de escolarização e capacitação profissional
(ANDRADE, 2014). De fato, um dos acontecimentos que projetou as APAC mineiras à visibilidade
nacional foi a visita da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) Carcerária, realizada entre 2007
e 2008. No relatório da CPI, elas figuraram em primeiro lugar no ranking das melhores unidades
prisionais do país, sendo apontadas como “a grande alternativa para a ressocialização de quem
pratica uma infração penal” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2009, p. 445).
No entanto, assim como Massola (2005), pode-se dizer que a metodologia APAC é dependente
dos estabelecimentos convencionais na medida em que justifica sua existência para os presos mais
216
16A
perigosos ou para aqueles que não se adaptarem às exigências morais e comportamentais que
realiza. Vargas (2011, p. 205), também, reflete acerca disso e aponta como, ainda que as APAC “se
apresentem como um outro dentro do sistema prisional hegemônico, fazem parte dele e nele se
referenciam”. Além disso, Soares (2011) utiliza uma experiência francesa de gestão carcerária, com
o objetivo de demonstrar que a metodologia apaqueana não é inovadora pela ausência de policiais,
armas de fogo e violência ou pelo fato de delegar aos presos as chaves das próprias celas. Para o
autor, o atrelamento à igreja católica seria o elemento inédito em questão, mas este seria não
somente dispensável, como uma contradição evidente ao estado democrático de direito.
De acordo com a Lei de Execução Penal – Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (BRASIL,
1984), a assistência religiosa, com liberdade de culto, é um direito dos presos e internados, que lhes
permite a participação em atividades de cunho espiritual organizadas no estabelecimento penal
assim como a posse de livros com teor religioso. Porém, “nenhum preso ou internado poderá ser
obrigado a participar de atividade religiosa” (BRASIL, 1984, s.p.). Exigência que não é percebida nas
instituições apaqueanas, como foi observado durante a pesquisa de Rodrigues (2018) e por Silva
Júnior (2013, p. 90), que teve a oportunidade de conversar com a presidente da APAC de Alfenas:
“Segundo essa presidente, as normas dessa APAC obrigam a que o preso participe da missa ou do
culto. Diante disso, um preso que se declarava ateu acabou ‘tendo que escolher’ um deles”.
Nesse sentido, questiona-se acerca dessa obrigatoriedade de se expressar uma religião,
ainda que seja possível notar que alguns recuperandos buscam saídas possíveis a ela, como
retratado ainda por Silva Júnior (2013, p. 88): “É certo que vários deles [...] apenas ‘mexiam a boca’
para, externamente, parecerem orar aos dirigentes. Outros sequer balbuciavam as palavras; antes,
se entreolhavam e riam nas orações”. Paralelamente, Rodrigues, Kyrillos Neto e Rosário (2019)
apontam que, ao proporcionar aos recuperandos um espaço de livre circulação da palavra, sem
interferência direta da instituição, surgia, muitas vezes, um discurso sobre a mulher, sobre as suas
diferentes versões: mãe, periguete, patricinha e certinha. Conforme os autores, a recorrência ao
tema da mulher nos encontros realizados demonstra como a tentativa de imposição de normas
e adaptação social a partir da moral religiosa esbarra no desejo, naquilo que nos constitui como
sujeitos.
Para Freud (1927/2014), em O futuro de uma ilusão, a insegurança com relação à vida faz
com que os homens se unam socialmente, a fim de proibir aos indivíduos o assassinato, reservando
esse direito à comunidade, que pode, então, punir os que desrespeitarem a proibição. Mas, essa
fundamentação racional não é compartilhada. Antes, afirma-se que Deus ditou essa proibição.
A figura de Deus assume, assim, um caráter paterno, que legisla, mas também protege

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do desamparo. O homem é uma das espécies mais frágeis ao nascer e, mesmo quando adulto,
não é capaz de se ver livre do desamparo diante das forças da natureza, do destino e dos outros
homens; ou seja, de tudo que pode advir das relações humanas. Passa, desse modo, a ser tarefa
divina “compensar os defeitos e prejuízos da civilização, atentar para os sofrimentos que os homens
infligem uns aos outros na vida em comum, zelar pelo cumprimento dos preceitos culturais a que os
homens obedecem tão mal” (FREUD, 1927/2014, p. 250-251). Diante disso, efetiva-se um acervo de
concepções, advindo da necessidade de fazer suportável a existência humana e construído tendo
como base as lembranças do sujeito, que via no próprio pai as respostas para suas intempéries
infantis.
Porém, Freud (1927/2014) atenta para o fato de que essas concepções se constituem
enquanto ilusões, uma forma de realização de desejos, como o sonho. O que não significa que as
ideias religiosas estejam totalmente desconectadas da realidade, mas, antes, que não é dos fatos
que ela deriva seu valor, e, sim, dos desejos, dos quais se origina. Um desses desejos é expresso na
promessa cristã de vida após a morte, explorada pelo método APAC com o objetivo de demonstrar
que seus esforços estão voltados para a salvação da alma, uma vez que o sofrimento terreno já seria
atenuado pela crença nesse Deus pai protetor e benevolente.
Segundo Ottoboni (1984a, p. 110), “está na moda ligar pobreza e miséria à violência
urbana. Esta conotação é aparente apenas. Os delinquentes existem entre ricos e pobres e são uma
minoria se comparados com os milhões de presos e marginalizados do Brasil”. Entretanto, segundo
dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional (2014, p. 6), “o perfil das pessoas presas
é majoritariamente de jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa renda”. O último relatório
217
17A
oficial, com dados de 2017, diz de 63,6% de presos pretos e pardos, 54% tinham até 29 anos de
idade e 51,3% possuíam o Ensino Fundamental Incompleto, não estando disponível a informação
sobre renda (DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL, 2019).
Isto é, está-se falando de um recorte específico da população, que privilegia aqueles
indivíduos mais marginalizados, que já sofrem diariamente devido à pobreza, ao racismo e à falta
de oportunidades. A APAC se dirige, pois, a essas pessoas a partir de uma romantização da pobreza
e de promessas de amor e acolhimento àqueles que se libertarem do mundo do crime:
Dinheiro manchado de sangue; dinheiro sujo que não lhe
pertence. Até o mar devolve o que não lhe pertence. Por que
você não faz o mesmo? ‘Eu quero a liberdade para ser homem
e quero a pobreza para ser livre’. [...] Não existe recuperação
sem dor. Sair do crime resulta em dor, sofrimento, lágrimas,
renúncias. O céu não custa barato! (OTTOBONI; FERREIRA,
2004, p. 106)

Diante disso, questiona-se: se o céu não custa barato, qual o preço a se pagar? Nesse
sentido, e retomando a visão freudiana da religião enquanto uma ilusão, derivada dos nossos
maiores desejos, percebe-se o quanto o método APAC parece se valer desses desejos, a fim de
influenciar sujeitos historicamente negligenciados e violentados pela sociedade. Um Deus paternal
tão difundido e bem aceito diz muito de um país que estima mais de 5 milhões de estudantes
sem o registro do pai nos documentos de identificação (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015).
Mas, essa existência terrena seria mesmo de dor, sofrimento e renúncias, tudo em prol de uma
ilusão de vida eterna no paraíso, quando, finalmente, estariam frente a frente com o pai amoroso e
benevolente.
Assim, a metodologia apaqueana, valendo-se de uma leitura do cristianismo, constrói um
ideal de homem: adaptado socialmente, moralmente orientado e temente a Deus. Por reconhecer
de antemão a existência de indivíduos que fogem a esse padrão, é inserida a figura do criminoso:
insolente, imoral, inescrupuloso e ignorante quanto às questões divinas. O criminoso se constitui,
então, como motor que impele o projeto, enquanto o condena a nunca alcançar o sucesso, porque
sempre haverá criminosos, sempre haverá trabalho a ser feito.
Mas, disso, o método já sabe. O que ele desconhece, ou tenta desconhecer, é a dimensão
assustadora, radicalmente desumana, presente em cada sujeito e conceituada por Freud
(1920/1996) como pulsão de morte; ou seja, o fato de que cada sujeito possui em si uma tendência
a buscar o retorno ao inorgânico, derivando daí a repetição de experiências dolorosas, réplicas

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do passado, assim como as tendências destrutivas e autodestrutivas. Como lembra Zizek (1992,
p. 194), tal negação só pode resultar em sua concretização brutal: “Os crimes mais assustadores,
desde o holocausto nazista até os expurgos stalinistas, foram cometidos justamente em nome da
Natureza Humana Harmoniosa”.

Considerações Finais

Diante do fenômeno das APAC e de sua metodologia, propôs-se, no presente trabalho,


construir uma análise de tal método, considerando especialmente seu caráter religioso derivado do
cristianismo. Para isso, foi escolhido utilizar a crítica freudiana à religião como chave privilegiada de
leitura por considerar que esta se constitui enquanto uma ferramenta ímpar na análise das facetas
psíquicas, políticas e institucionais da religião e, consequentemente, do método APAC.
Assim, começou-se discutindo a imbricada relação existente entre culpa, laço social
e religião, tendo como base o texto freudiano Totem e Tabu (FREUD, 1912-1913/2012), o que
levou a identificar uma espécie de projeto político apaqueano de reafirmação do status quo e de
substituição da denominação de criminoso por outra, de recuperando. Essa denominação nos
colocou no caminho da análise de grupos e de como a APAC está integrada à massa religiosa, tendo
como líder a figura de Cristo e no seu amor o signo de sua igualdade e união. Mas, a frase presente
no muro da APAC de Itaúna, do amor ninguém foge, remeteu novamente ao aspecto jurídico do
método, que se coloca como um outro dentro do sistema de justiça, mas depende dele para os
218
18A
presos que não se adaptarem às suas exigências. Presos que são, em sua maioria, jovens negros,
pobres e com baixa escolaridade; isto é, que já são historicamente negligenciados e violentados
pela sociedade. É para esses sujeitos que a APAC se dirige, buscando transformá-los e recuperá-los
do crime num processo difícil e doloroso, mas que seria recompensado pela vida eterna, numa
dinâmica muito próxima daquilo que Freud descreveu da religião enquanto uma ilusão e realização
dos maiores desejos da humanidade.
Partiu-se, então, de um método eminentemente cristão, endossado e, muitas vezes,
financiado pela ação governamental, que imprime, em seus prédios, práticas e sujeitos sob sua
tutela, o objetivo de matar o criminoso e salvar o homem. Finalizou-se este texto cientes dos
questionamentos que não foram totalmente respondidos, mas satisfeitos em pôr a trabalho a
interlocução numa época tão cheia de certezas. O olhar freudiano para a religião se constitui apenas
como uma das inúmeras possibilidades de análise do método APAC, um fenômeno multifacetado
e, por isso mesmo, impossível de esgotamento ou de rotulação a partir de um único ponto de
vista. Nesse sentido, não se endossa nem se apresenta contra o método APAC, mas considera-se
importante uma análise que tenha como central o ponto religioso e seus efeitos nos sujeitos. Uma
possível continuação deste trabalho seria, portanto, a utilização de outros autores para pensar o
mesmo fenômeno sem perder de vista o sujeito e como este se constitui.

Referências
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ANDRADE, J. A. APAC – Uma experiência feliz do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:
o Projeto Novos Rumos na Execução Penal. In: OLIVEIRA, T. D.; MATTOS, V. D. (Org.). Estudos de
Execução Criminal: Direito e Psicologia. Belo Horizonte: TMJ/CRP, 2009. p. 9-12.

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BARROS, V. A. Para que servem as prisões? In: OLIVEIRA, R. T. D.; MATTOS, V. D. (Org.). Estudos de
Execução Criminal: Direito e Psicologia. Belo Horizonte: JMG/CRP, 2009. p. 95-105.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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222
22A
MO(VI)MENTOS DE (RE)SIGNIFICAÇÃO DA POSIÇÃO DE
PROFESSOR

MO(VE)MENTS OF (RE)SIGNIFICATION OF THE TEACHING POSITION

Carla Nunes Vieira Tavares 1

Resumo: Este artigo apresenta alguns resultados de uma pesquisa de intervenção com orientação clínica em um curso de
Letras, licenciatura em Língua Inglesa. O objetivo é discutir os efeitos de ações formativas que apostaram na metodologia
da conversação, sob a perspectiva da relação psicanálise e educação. Foram propostos espaços de palavra em disciplinas
de caráter prático da licenciatura, visando mapear os pontos de identificação que delineavam a constituição identitária
dos professores em formação. Por meio de pontuações na conversação, foram feitas intervenções, de modo a ensejar a
desestabilização da ancoragem do sujeito à rede significante, bem como movimentos de investimento subjetivo de sua
ressignificação. Alguns dos efeitos da oferta da escuta e da circulação da palavra nos espaços mencionados são analisados
neste artigo, a fim de problematizar a implicação subjetiva na formação inicial desses professores de inglês.

Palavras-chave: Experiência Formativa. Conversação. Espaços de Palavra. Constituição Identitária. Formação de


Professores.

Abstract: This article presents some results of an intervention research based on clinical orientation in a Modern Languages
course, degree in English Language. The objective is to discuss the effects of formative actions which relies on the
methodology of conversation, according to the articulation between psychoanalysis and education. Speech spaces were
proposed in practical subjects, aiming to spot the identification points that outlined the identity constitution of teachers
in training. In these spaces, interventions were made in order to give rise to the destabilization of the subject’s anchorage
to the significant network, as well as movements towards its resignification due to subjective investment. Some of the
effects of heeding the subject and of the circulation of the word in the spaces mentioned are analyzed in this article, so as
to problematize these English teachers’ subjective implication in the initial training.

Keywords: Educational Experience. Speech Spaces. Identity Constitution. Teaching Education.

1 Doutora em Linguística Aplicada pela Unicamp e em Ciências da Linguagem pela Université de Franche-Comté, França. Professora na Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3374501725288665 . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5156-0150 .
E-mail: carlatav@ufu.br
Introdução

Ao longo das últimas décadas, artigos que abordam o tema do fracasso no ensino-
aprendizagem de línguas nos níveis fundamental e médio têm sido recorrentes, em especial
no âmbito do ensino público (CARMAGNANI, 2013; BRITO; GUILHERME, 2014). O conjunto de
trabalhos aponta para um imaginário sobre o processo prenhe de discursividades1 que cristalizam
a representação de que na escola, especialmente da rede pública, o ensino de línguas é ineficaz e a
aprendizagem não acontece.
Acreditando no radical caráter de engodo e de aprisionamento que esse imaginário produz
sobre os professores, em particular de língua inglesa daquele contexto, propusemos um projeto
de pesquisa de caráter intervencionista2 que promove uma dialeticidade entre a experiência de
formação inicial e continuada. As ações de pesquisa visavam ensejar a interrogação e, talvez, a
suspensão de discursividades cristalizadas que, muitas vezes, obstaculizam o laço social necessário
para a instauração de uma relação com o saber, fundamental no processo formativo e educativo. A
pesquisa investigou a (re)tomada da posição de professor de língua inglesa e os efeitos de processos
formativos sobre ela que se propunham não apenas do lugar do Mestre ou da Universidade, da
perspectiva da teoria dos discursos proposta por Lacan (1969-70/1992), mas a partir do saber
inconsciente.
Valemo-nos do jogo implícito no uso dos parênteses para problematizar o movimento
constante do sujeito na tomada de uma dada posição discursiva. Nesse sentido, tanto professores
em formação inicial pré-serviço quanto em formação continuada enunciam a partir de uma cadeia
de significantes que pode legitimá-los (ou não) na posição docente. Assim, ainda que a expressão
“professor em serviço” se refira a pessoas que exercem a docência no contexto educacional direta
ou indiretamente, alguns deles encontram-se destituídos ou se destituíram dessa posição e podem
se sentir convidados a retomarem-na diferentemente.
Os pressupostos norteadores preconizam que a chance de um professor empreender
alterações nos modos de ocupação da posição docente depende de que a rede significante que o
sustenta identitária (no campo social) e subjetivamente (no campo do sujeito) sofra fragmentação
e enseje uma ressignificação do que seja ser professor e do que seja ensinar-aprender. Ora, uma
condição fundamental para que isso ocorra reside no exercício da palavra, especialmente colocado
em ação pelas quatro lógicas discursivas (LACAN, 1969-70/1992). Propiciar deslocamentos da posição
discursiva em que se encontravam os professores participantes, por meio de desestabilizações nos
enquadres discursivos dos quais enunciavam, foi o objetivo da pesquisa, da qual recortamos alguns

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dos efeitos analisados neste artigo.
A pesquisa em tela foi conduzida entre 2019-20203, no escopo do projeto “Relações com
o saber no ensino-aprendizagens de línguas na contemporaneidade”. O foco recaiu na formação
docente de licenciandos em língua inglesa do curso de Letras de uma universidade federal e em
professores em serviço no ensino público, níveis fundamental e médio. A dialética entre professores
em formação inicial pré-serviço e em serviço seria operada pela palavra compartilhada, a partir
dessas posições discursivas e da experiência (BONDÍA, 2002; LARROSA, 2011) que dela pode derivar.
Em uma primeira etapa, os alunos do terceiro período do curso de Letras observaram
aulas de um professor de inglês em uma escola pública e, ao final, propuseram projetos de ensino
para as turmas observadas. Na segunda etapa, os alunos e o professor regente, em cooperação,
implementaram os projetos. Ao final de cada sessão de observação e de cada manhã de aulas, o
professor em serviço e os professores pré-serviço reuniam-se em espaços de palavra, nos quais ela
circulava o mais livremente possível, entremeada por pontuações da mediadora e supervisora do
projeto.
Seguindo uma orientação clínica na pesquisa de intervenção (PEREIRA, 2016), os espaços

1 Discursividade é entendida “como efeitos linguísticos materiais na história que reverberam no dizer” (PÊCHEUX,
1982/1994).
2 Intervenções são compreendidas, no escopo da psicanálise, como ações linguageiras com o potencial de
instaurar brechas nos discursos de impotência prevalentes nas situações discursivas.
3 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da Universidade à qual nos filiamos, sob
o n.º 22720319.1.0000.5152, mediante parecer n.º 4.224.516.
224
24A
de palavra visavam refletir sobre a relação teoria-prática e mapear os pontos de identificação que
delineavam a constituição identitária de professores. Sempre que possível, intervenções eram
feitas, de modo a ensejar desestabilizações na ancoragem do sujeito à rede significante, bem como
movimentos de investimento subjetivo na direção de, possivelmente, ressignificá-la. Assim, foi
possível discutir alguns dos efeitos da oferta da escuta e da circulação da palavra sobre a formação
de professores de línguas, de modo a problematizar a implicação subjetiva nesse processo.
A orientação clínica e intervencionista norteou metodologicamente a pesquisa, resultando
em uma análise interpretativa do corpus, constituído por notas do diário de campo das observações
e dos espaços de palavra, relatórios de observação elaborados pelos professores pré-serviço,
propostas pedagógicas de intervenção, relatórios finais e trocas de mensagens por WhatsApp.
A análise dessas intervenções é tecida por meio do que denominamos “relato de experiência”,
referindo à noção de experiência já aludida. Nele, empreendemos os gestos de análise sobre os
mo(vi)mentos subjetivos dos professores durante os espaços de palavra.
Este artigo recorta dos resultados da pesquisa a experiência formativa (BONDÍA, 2002), do
Professor Doss, codinome escolhido por aludir ao personagem principal do filme “Até o último
homem”4, que luta com o risco da própria vida para salvar o maior número possível de soldados
em uma batalha crucial em Okinawa, durante a II Guerra Mundial. O ponto em comum entre o
professor e o personagem reside na defesa de seu território subjetivo5, marcada pelo conflito
constante e a “insistência”6 de não abrir mão da posição docente. Antes do relato de experiência,
porém, os pressupostos teóricos balizadores da análise são apresentados.

Discurso e experiência formativa

Ocupar a posição de professor demanda fazer semblante de saber, a fim de ensejar um


enlace do aluno com o objeto de saber, por meio da transferência. Em uma relação pedagógica,
alguns traços de real se deixam flagrar por meio dos efeitos da transmissão, entendida como
resultante do investimento subjetivo para a-pre(e)nder7 para si algo do campo do conhecimento.
Produz-se, assim, um saber particular que consolida no mundo a posição subjetiva de alguém. Há,
portanto, uma distinção entre conhecimento e saber, na perspectiva aqui adotada. O primeiro
refere-se à sistematização e formalização de conteúdos e de informações sobre determinado objeto,
disponibilizados pela cultura para a aprendizagem e elaboração subjetiva. O conhecimento, assim,
é da ordem de uma objetividade e se apresenta como semblante de completude. Diferentemente,

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o saber é a resultante da elaboração que o sujeito empreende sobre o conhecimento. Comporta,
então, uma dupla dimensão: objetiva, porque pode ser enunciado e operacionalizado pela ação do
sujeito sobre o mundo e sobre si mesmo; e subjetiva, visto que a elaboração particular do saber se
sustenta no não-saber, no inconsciente, pois o saber é efeito do desejo sobre o universo simbólico
(DINIZ, 2006). Logo, o saber está em permanente elaboração. Sua apr(e)ensão é sempre marcada
pela particularidade dos modos como o sujeito o investe, bem como pelo enquadramento da
pulsão e consequente perda de gozo, resultante da efetivação do laço social sob a ação do discurso.
A relação com o saber, portanto, está indissociada da implicação subjetiva.
Considerando o discurso como como aparelho estruturante sem palavras, no qual elas
se alojam conforme lógicas enunciativas por ele determinadas, Lacan (1969-70/2922) discute as
diferentes possibilidades discursivas de aparelhamento do gozo pela via do saber. A articulação
4 ATÉ o último homem. Direção de Mel Gibson. Estados Unidos da América: Cross Creek Pictures; Demarest
Media; Argent Pictures; et al. 2016. 1 DVD (139 min.).
5 A noção de território subjetivo é sintetizada por Guattari: “O território pode ser relativo tanto a um espaço
vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’. O território é sinônimo de
apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai
desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços
sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 323).
6 As palavras entre aspas são recortadas das notas em meu diário de campo, que registraram alguns dizeres
impactantes dos professores que participaram dos espaços de palavra.
7 Valho-me, aqui, do jogo de palavras sugerido por Lacan (1972-73/1985, p. 130): “O estatuto do saber implica,
como tal, que já há saber e no Outro, e que ele é a prender, a ser tomado. É por isso que ele é feito de aprender.
[...] para tê-lo, é preciso empenhar a própria pele.”
225
25A
entre saber e gozo é o eixo em torno do qual abordamos a teoria dos discursos lacaniana. Na
medida em que o discurso aparelha o gozo com a linguagem, ele impõe ao sujeito a renúncia
pulsional necessária para inseri-lo no processo civilizatório. Nessa mesma operação, abre ao sujeito
a possibilidade de entrever relações com o saber e mediadas por ele. Nisso consiste o laço social
que se dá por meio do discurso.
Lacan (1969-70/1992) entreviu quatro enquadres discursivos a partir dos quais é possível
problematizar a relação com o saber e, consequentemente, a perda de gozo: os discursos do
Mestre, da Universidade, da Histérica e do Analista. Os quatro matemas do discurso funcionam
circularmente, permitindo o revezamento de quatro elementos (S1, S2, $, a) em quatro posições
discursivas (Agente, Outro, Verdade, Produção). Tais enquadres discursivos regem a tomada
da palavra, na promoção do laço social. O nome de cada elemento se refere a quatro dinâmicas
discursivas em jogo na produção de diferentes efeitos do significante na produção de saber.
Não cabe, neste trabalho, um aprofundamento extenso sobre cada um desses elementos,
mas é preciso caracterizá-los, a fim de recortar deles o que interessa quanto à relação com o saber
e a experiência que pode acontecer na formação de professores.

Fonte: Da autora
S1= significante mestre
S2 = rede de significantes já articulada como saber
$ = sujeito dividido
a = objeto mais de gozar

O discurso do Mestre promove um poder conferido ou prometido pelo saber. O resultado é


um discurso totalitário, que assujeita o sujeito ao significante mestre que primeiramente agencia
a cadeia significante. No campo educacional, pode-se dizer que o discurso do Mestre norteia
agremiações nas quais o saber assume um valor de verdade absoluta e se nivelaria a um saber-fazer
o outro fazer (PEREIRA, 2016). Exemplo do efeito dessa lógica discursiva é o discurso produzido pela

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Ciência, na contemporaneidade.
O discurso da Histérica, por sua vez, tem como agente o sujeito afetado por sua divisão
subjetiva e, portanto, sustentado na insatisfação quanto ao seu desejo (a). Qualquer resposta à
demanda da histérica não é suficiente, o que a coloca novamente a desejar e, consequentemente,
a interrogar. O saber aí produzido pode remeter à lamúria, à vitimização e à procrastinação, mas,
também, à geração de possibilidades para a solução de impasses, uma vez que o discurso da
histérica produz um saber sobre o desejar ser (PEREIRA, 2016). No campo da educação, exemplos
dos efeitos desse discurso no laço social são o discurso de vítima e de falta, recorrente no dizer de
pedagogos, mas, também, a geração de ideias a partir da proposição de um problema.
Na lógica discursiva da Universidade, o agente (S2) enuncia como porta-voz do saber (S1):
saber da ciência, dos grandes mestres, do conhecimento. Endereça-se ao Outro posicionando-o
como “astudado”, neologismo criado por Lacan (1969-70/1992) para convocar um jogo de palavras
entre estudante e objeto ‘a’. Identificado à posição de objeto vazio, ao Outro resta aderir ao saber
que agencia o discurso da Universidade, resultando em um assujeitamento a ele ($). No campo
educacional, Pereira (2016) refere-se a este saber como o saber-saber, ou seja, o saber teorizar de
forma a produzir o conhecimento.
Por fim, no discurso do Analista produz-se uma subversão nas demais lógicas, pois o agente
assume o semblante de objeto vazio, causa do desejo (a). No entanto, endereça-se ao Outro com
base em sua experiência da divisão subjetiva, um saber com valor de (meia) verdade (S2). Neste
movimento, interroga o Outro sobre seu desejo ($), a fim de que esse Outro, enquanto sujeito,
possa questionar-se sobre o que o causa. “O discurso analítico é a mola mestra da transferência”,
226
26A
afirma Lacan (1969-70/1992, p. 35). Ao se valer do equívoco e do non sens, o discurso do Analista
tem o potencial de desestabilizar a rede de significantes que sustenta o sujeito, a fim de que suas
identificações sejam desestabilizadas e um outro saber sobre si se produza (S1). Esse é o saber que,
nas relações pedagógicas, pode fragmentar o imaginário cristalizado do professor, um saber-faltar-
a-ser (PEREIRA, 2016).
A relação com o saber na formação de professores também está na dependência do laço
social. O sujeito, no exercício de sua singularidade, recusa uma parcela de gozo para investir
subjetivamente em um objeto de saber, e traça, assim, trajetórias subjetivas na experiência de
formação (TAVARES, 2020). As chances de se estabelecer uma relação com o saber, conforme aqui
entendido, reside na efetivação de uma demanda de saber suposta no Outro e alguém que faça
semblante de saber, acolhendo a demanda. Trata-se da transferência, que, conforme Lima et al.
(2016, p. 49), com base em Lacan (1969-70/1992), afirmam, “é o motor de acesso ao saber”.
A relação com o saber não é dada, nem garantida. Antes, depende de que a pulsão de saber,
motor subjetivo que move o sujeito a investir subjetivamente o objeto de saber, seja enquadrada
discursivamente, por meio da transferência, de modo a propiciar um enlace do sujeito com ele.
Investir subjetivamente (n)um objeto significa consagrar-lhe afeto, emprestar-lhe um sentido que
faça com que, a partir da relação com ele, algo ressoe no sujeito, ainda que na forma de resistência.
Quando a formação docente, em suas variadas modalidades, desencadeia uma relação
do sujeito com o saber, isso pode representar uma experiência formativa para o sujeito que a
ela se submete (BONDÍA, 2002; LARROSA, 2011). Longe de referir-se a um fenômeno empírico,
mensurável, produtor de resultados atestados, a experiência formativa é isso que passa o professor,
remetendo à proposição de Larrosa (2011, p. 5), que a propõe como “isso que me passa”8 (grifo
do autor). A experiência presentifica a relação de extimidade do saber com o sujeito, assinalando
ao primeiro o caráter de alteridade, para que o segundo nele invista e seja trans-formado pelos
efeitos dessa relação. Afinal, como já sinalizado, o saber “é a prender, a ser tomado. É por isso que
ele é feito de aprender. [...] para tê-lo, é preciso empenhar a própria pele” (LACAN, 1972-73/1985,
p. 130, grifo do autor). O enlace do sujeito com o saber, portanto, produz-se por meio de algo que
lhe convoca e interpela como desejante, desestabilizando a cadeia de significantes que o constitui,
assumindo o caráter de acontecimento, como postula Larrosa (2011):
Poderíamos dizer, portanto, que a experiência é um
movimento de ida e volta. Um movimento de ida porque a
experiência supõe um movimento de exteriorização, de saída
de mim mesmo, de saída para fora, um movimento que vai ao

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encontro com isso que passa, ao encontro do acontecimento.
E um movimento de volta porque a experiência supõe que o
acontecimento afeta a mim, que produz efeitos em mim, no
que eu sou, no que eu penso, no que eu sinto, no que eu sei,
no que eu quero, etc. (p. 6-7).

A injunção do acontecimento, na formação, se desencadeia sob a lógica discursiva do


analista, instaurando, como consequência, a possibilidade de outros modos de relação com o saber,
outros significantes aos quais o professor possa se identificar, a fim de exercer a docência. Como
fruto da experiência formativa, um professor pode transmitir algo de sua própria relação com o
saber, que diz de sua singularidade e do desejo que o anima.
A verdadeira potência do ato de formar professores, como qualquer outro processo
educativo, então, está na transmissão da falta (PEREIRA, 2016). O formador, que geralmente
também é professor, enquanto sujeito, sustentado na verdade (sempre pontual e incompleta) de
sua relação com o saber, pode transmitir algo dessa relação para aquele que a ele endereça uma
demanda de saber, o aluno. Ele pode agenciar essa relação por meio das quatro lógicas discursivas.
No processo de formação, portanto, mais importante do que o conhecimento em si, reside a relação
que pode ser estabelecida entre sujeito e saber, porque é condição da possibilidade de que algo de
um ensino seja transmitido e perdure como motor das futuras investidas dos alunos no saber.

8 Larrosa (2011) grafa o pronome demonstrativo indefinido “isso” em itálico para referenciar o real, registro do
inapreensível e não representável pela linguagem, que retorna atravessando o sujeito e sua relação com o mundo.
227
27A
Entretanto, frequentemente, em vez de fazerem-se semblantes de saber, os professores
ocupam essa posição de dois modos aparentemente contraditórios (PEREIRA, 2016). Por um lado,
investem-na com o narcisismo, insistindo em enunciar sob a lógica do Mestre e da Universidade.
A posição de professor carrega consigo vários ideais sedutores, que, muitas vezes, aprisionam o
professor em uma fantasiosa potência imagética. Nesta posição, o professor pode assumir uma
postura assertiva, iludir-se com a expectativa de um ensino completo e apr(e)endido termo a
termo, depender demasiadamente do outro como balizador de suas propostas, recusar encarar as
falhas e furos como constitutivas do processo de ensino-aprendizagem.
Ao mesmo tempo, porém, a docência encontra-se, atualmente, desvalorizada, tanto
socialmente quanto no imaginário docente. Observa-se nos professores uma deposição de si,
como provável consequência da impotência narcísica (PEREIRA, 2016)9. Eles aderem facilmente a
discursividades que os rebaixam, questionam sua autoridade e a eficácia do ensino na educação
(em especial, a pública); encouraçados sob o discurso da Histérica, mortificam-se com justificativas
que normalmente atribuem ao outro a causa de seu dissabor com a docência.
Embora aparentem apontar para direções opostas, esses modos de ocupação da posição
docente podem conduzir o professor a afogar-se no lago da impotência, tal como aconteceu com
Narciso, seduzido por si mesmo diante de inviabilidade de tantos ideais, da rigidez das auto-defesas
histéricas e consequente (auto)deslegitimação. Como instituir brechas no aprisionamento da
impotência docente, de modo a viabilizar ao professor caminhos para o exercício da mestria que se
valessem do impossível da educação?
A saída por meio dos espaços de palavra propôs fazer circular a palavra, prover-lhe uma
escuta e endereçá-la novamente ao sujeito sob a forma de uma interpelação, o que ensejaria a
lógica discursiva do analista, representando outros enlaces do sujeito ao saber. Assim, no tópico
seguinte, apresentamos como se deram os gestos de análise na escrita de relatos de experiência
(TAVARES, 2020), tecidos como uma narrativa, sob uma orientação clínica psicanalítica.
Diferentemente de uma concepção descritiva de práticas ou experimentos empíricos, o
relato de experiência, neste trabalho, é a materialização dos gestos de interpretação sobre o corpus
da pesquisa, uma escrita que busca incorporar os efeitos da divisão subjetiva do pesquisador e dos
participantes, ao bordejar o real por meio da imbricação do simbólico e do imaginário (TAVARES,
2020). A narrativa busca trilhar a experiência delineada na formação de alguns professores, bem
como os indícios de implicação subjetiva na ressignificação da posição docente como possíveis
efeitos das intervenções que tiveram lugar durante a pesquisa. As notas do diário de campo
dos espaços de palavra e das observações das aulas, os relatórios de observação, as propostas

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pedagógicas de intervenção, os relatórios finais e mensagens de WhatsApp forneceram o material
sobre o qual a narrativa deste relato de experiência foi tecida.

Doss e campo de batalha da sala de aula

Doss é um professor experiente, fluente na língua inglesa, com vivência no exterior, outra
graduação na área de saúde e um mestrado em uma terceira área diferente. Atua no Ensino
Fundamental II público há muito tempo. Ao ser convidado para participar como professor parceiro
do projeto de pesquisa descrito, Doss rapidamente concordou. Ressaltava que seria uma grande
oportunidade de aprendizagem e de troca de ideias. Repetia que precisava “sair de suas caixinhas”
e se reinventar como professor.
Três aspectos quanto aos modos de Doss ocupar a posição de professor foram mais
recorrentes nas observações e discutidos nos espaços de palavra, durante o primeiro semestre: os
professores em formação ressaltavam a qualidade de sua prática docente, a relevância das aulas e
o que foi denominado pelos professores em formação por “exclusão”.
Em relação aos dois primeiros aspectos, eles não são pouca coisa, considerando o imaginário
de ineficiência associado ao ensino-aprendizagem de inglês, especialmente na rede pública,

9 Pereira (2016) refere-se à ausência tácita de saberes referidos à sociedade contemporânea, educação moderna e
pós-moderna, às políticas públicas e educacionais, diversidade cultural e, em um âmbito mais circunscrito à esfera
de atuação dos docentes, o saber sobre a escola, infância, adolescência e as formas de subjetividade.
228
28A
conforme assinalado na Introdução. A participação dos alunos nas aulas e o conhecimento que
tinham de inglês indicava que as aulas de Doss eram planejadas, despertavam algum interesse
e promoviam a aprendizagem, o que foi observado com admiração por parte de professores em
formação: “Nossa, no meu tempo só tinha bagunça na aula de inglês”; “Eu não aprendi nada nas
aulas de inglês da escola além do verbo to be”; “Os meninos sabem muita coisa!”, exclamaram
três deles. Minha atenção foi capturada pelo funcionamento discursivo10 marcado pela comparação
entre o imaginário de aprendizagem dos professores em formação e a observação das aulas. Havia
duas imagens contraditórias delineadas por essas discursividades: a de um ensino fracassado e,
portanto, atravessado pela impotência, remetido à experiência de aprendizagem dos professores
em formação; e outra, de um ensino produtivo, que valia-se, em certa medida, do impossível da
educação para produzir um pouco de possível11.
A evidência do resultado de seu trabalho suscitou em Doss um reconhecimento disfarçado:
“Vocês acham mesmo? Nossa, eu acho que minhas aulas são tão chatas! Eu tenho sempre a
desconfiança de que eles não aprenderam nada”. Apesar da aparente surpresa e insegurança
diante dos elogios dos professores em formação, Doss dá sinais de uma certeza subjetiva dos
efeitos de sua docência. Além do reconhecimento de seus pares quanto à sua dedicação, ele falava
com entusiasmo das conquistas de alguns alunos, demonstrava compromisso com nosso projeto e
preocupação em “ensinar algo da língua” de um “jeito meu [dele]”. A constatação da aprendizagem
da língua e o interesse de grande parte dos alunos nas aulas validados pelos professores em
formação, bem como o compromisso de Doss com a docência assinalavam que um laço entre
sujeito e saber se configurava nas aulas.
Em relação ao terceiro aspecto, a “exclusão”, ela causou certo incômodo por parte dos
professores em formação. Referia-se à postura de Doss de “ignorar” os alunos classificados como
indisciplinados e com dificuldades de aprendizagem e focar seu ensino nos que participavam mais.
Tal como aconteceu com os elogios, Doss também se reconheceu na crítica, mas justificava sua
postura reivindicando a impossibilidade de atingir a todos e a responsabilidade que sentia com “os
que querem aprender”.
A captura do professor na imagem composta pelas discursividades vindas do campo do
Outro, materializada nos dizeres dos professores em formação durante os espaços de palavra,
realçou três pontos constitutivos da rede significante sobre a docência, a saber: a desapropriação
da posição de professor de língua inglesa, a busca por aprovação como indício de legitimação e uma
postura defensiva de sua posição.
Recorremos, então, a uma metáfora que remete ao codinome dado ao professor e

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à predominância de certo “jeito” Doss de ser: a docência como um campo de batalha no qual
ele defendia seu território subjetivo como professor e buscava “salvar” os alunos pela via da
aprendizagem.
Para tanto, Doss parece ter encontrado uma estratégia subjetiva para sustentar sua posição.
Se, por um lado, defendia seu território pela delimitação imaginária de suas ações aos alunos que
“queriam”, de algum modo, seu ensino e exercia uma autoridade com disciplina e compromisso;
por outro, estava determinado a provar para si mesmo e para os alunos que era possível ensinar e
aprender. Esse movimento parecia legitimar sua posição, sentida como constantemente ameaçada.
Isso mobilizava um enfrentamento constante entre ele, os alunos, os “excluídos” e o sistema escolar.
Se os livros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) não chegavam, ele já tinha elaborado
um apostilado com fábulas e contos de fada infantis com o qual podia ensinar.
Em seu dizer, havia uma recorrência de modais deônticos associada a “algo da língua” (eu
preciso, eu tenho de, vocês terão de...). O “algo da língua” circunscreve-se a recortes do campo
lexical e gramatical da língua (“nessa minha necessidade LOUCA que eu tenho de fazer os meninos
aprenderem o vocabulário, eu fico muito bitolado nisso”). As ponderações deônticas suscitam um
imaginário de que é possível haver uma transmissão literal de conhecimento, o que remete à lógica
discursiva da Universidade. Nas aulas, isso se materializa em um ensino marcado pela ênfase em

10 Por funcionamento discursivo entendo a articulação entre o linguístico, o sócio-histórico que atravessa as
práticas linguageiras e a subjetividade ali em jogo (PÊCHEUX, 1978/2009).
11 A respeito dos efeitos da elaboração do ideal imaginário de fracasso e de sucesso na formação de professores,
ver Tavares (2020).
229
29A
listas de vocabulário, explicações gramaticais, valorização da apresentação do conteúdo na lousa
e da postura do professor como detentor do conhecimento. Entretanto, em várias ocasiões esse
modo de ocupação da posição docente era amenizado em favor de contemplar o saber dos alunos,
por meio da valorização das participações deles.
Contudo, os vários modais deônticos também parecem indiciar um compromisso com a
finalidade última do mestre, que, segundo Lajonquière (2013), consiste em fazem semblante de
que sabe e de que algum dia seu saber será, também, do aprendiz, como o autor assinala:
Dessa forma, como todo mestre foi alguma vez aprendiz, ele
não passa de um devedor. Pois bem, por que o mestre ensina?
Aquilo que ensina é uma amostra de que e do que deve.
Em outras palavras, aquilo que o mestre mostra, para assim
educar o aprendiz de plantão, é a prova de seu dever. O mestre
ensina porque afinal de contas esse é seu dever. Ensinar é de
fato sua própria e justa sina (p. 461).

Talvez uma das razões de circunscrever seu ensino ao “vocabulário” e a algumas estruturas
gramaticais, dando a elas tanta ênfase e centralidade, seja a manutenção de uma ilusão tanto
da posse de um conhecimento sobre “algo da língua” quanto uma certa evidência de ensino-
aprendizagem.
O apego à estrutura da língua como signo de sua aprendizagem é uma representação comum
no imaginário docente e do alunado (TAVARES, 2004; 2005). O “algo” da língua acaba ganhando
contornos de todo, pretensamente único acesso dos alunos a ela. O professor, imaginariamente,
se coloca como detentor do caminho do saber, para me valer da metáfora que dava título a uma
cartilha muito popular de alfabetização nos anos 70. No lugar de fazer semblante de saber, portanto,
Doss, muitas vezes, se colocava como o portador do saber da língua, o caminho para ela, indiciando,
assim, o predomínio das lógicas discursivas do Mestre e da Universidade. Garantir essa posição
parece ser uma estratégia de legitimação subjetiva para nosso professor.
O terceiro aspecto flagrado nos espaços de palavra, a dita “exclusão”, elucida essa estratégia.
“Deixar de lado” os alunos indisciplinados ou com graves dificuldades de aprendizagem foi um
modo encontrado pelo professor de delimitar, de certo modo, o terreno no qual Doss investia: “Eu
vou atrás de quem me dá mais prazer de ensinar”.
Questionado diretamente por uma das professoras em formação quanto à exclusão, Doss
reagiu da posição do Mestre: “vocês precisam excluir”. A réplica não era uma desculpa para sua
postura quanto aos que ele ignorava; ao contrário, ela elucida uma das vias encontradas por Doss

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para manter-se professor. Fruto provável de sua experiência de docência, o dizer de Doss, neste
momento, ao mesmo tempo em que remete ao imperativo denegado de completude, característico
da pedagogia e da escola contemporâneas, indicia, também, um saber sobre a impossibilidade
da totalização dos efeitos de uma ação pedagógica e o insucesso dela constitutivo. A posição
docente de Doss se constitui por essa “normalização”12 disfarçada e silenciosa da segregação dos
indisciplinados e malsucedidos, derivada, entre outros fatores, do entodamento (LEBRUN, 2008) ao
qual a escola parece se aliar. Por esse termo, Lebrun (2008) qualifica “um modo de aderência a um
“todos” completo. [...] De agora em diante, só importa que os membros da comunidade funcionem
em uníssono, e é obrigação de cada um aderir ao conjunto que fará as vezes de reconhecimento”
(p. 39). Doss escancarava naquela crua admoestação a injunção da contingência da sala de aula,
expondo a falácia de uma inclusão total e da articulação aparentemente incondicional entre prazer
e aprendizagem. Configurava-se a imposição de um limite ao gozo – sempre haverá aqueles que
não se engancham ao que o professor propõe e jamais seu ensino coincidirá com o que o aluno
apre(e)nde.
À exceção da figuração do discurso de Mestre, por meio do imperativo implícito em
“submetam-se a mim”, Doss é um professor acessível aos alunos, planeja suas aulas, preocupa-
se com a escola e com os alunos faltosos, procura cotejar alguns dos pedidos dos alunos - como

12 Não há, no uso dessa palavra, alusão aos trabalhos foucaultianos sobre os processos de regulação da vida
dos indivíduos pela via da norma colocada em operação pelo poder disciplinar. Entretanto, na democratização da
escola, no objetivo de atingir a todos, já resida um efeito disciplinador e regulador em si mesmo.
230
30A
a promoção de karaokês em sala de aula -, além de ser respeitado e querido por seus colegas e
pela maior parte dos alunos. Em meio à suspensão das aulas durante a pandemia de covid-19, em
2020, por iniciativa própria alimentava o site da escola com atividades em inglês relacionadas ao
seu plano de ensino e outras por ele pesquisadas na internet, mesmo antes da regulamentação das
atividades remotas de ensino.
A defesa do território subjetivo como professor é marcada por um modo bastante
narcísico de exercer a docência, mas que, ainda assim, o sustenta nessa posição. O narcisismo
marca o exercício da docência, ainda mais na sociedade contemporânea, na qual busca-se a
correspondência, a todo o custo, com uma imagem idealmente perfeita (BIRMAN, 2012). A posição
narcísica, no ensino-aprendizagem, é, muitas vezes, ancorada em uma pretensão de onipotência
calcada na suposição de poder-tudo-saber. Ela alia-se à hierarquia autoritária advinda daí. Soma-se
a ela o ideal constitutivo da docência, que assinala ao professor uma missão impossível, carregada
de grande potência simbólica: a transmissão, idealmente sem perdas, do conhecimento legitimado,
referenciado nos grandes mestres, capaz de transformar indivíduos em cidadãos críticos, civilizados
e produtivos na sociedade13.
Entretanto, o narcisismo na docência está, também, na base da sedução pedagógica, que
consiste em buscar a aprovação do outro pelo prazer, a fim de promover o enlace do aprendiz com
o saber em jogo na relação pedagógica. A posição narcísica sustenta uma parcela dos investimentos
subjetivos de grande parte dos professores em seu ofício, pelas vias da pulsão escópica e invocante14.
Estar à frente de uma sala de aula repleta de alunos nos quais supõe-se uma demanda de saber
requer um modo de gozo orientado pelo prazer de ser olhado e escutado e, nesse movimento,
fazer-se desejar. Logo, nesse jogo entre sedução e autoridade, parecem incidir dialeticamente tanto
o discurso da Histérica como o do Mestre, por meio do saber-fazer-se-desejar e do saber-fazer o
outro fazer (PEREIRA, 2016), o que parece indiciado no exercício de docência de Doss.
A questão que se colocava nos espaços de palavra, entretanto, alertava que, sob a
égide excessiva do narcisismo, o professor pode passar por alto a castração, materizalizada na
impossibilidade constitutiva de sua prática (FREUD, 1937/1996) e restar aprisionado na impotência
de seus investimentos subjetivos em si mesmo. Porém, embora uma posição narcísica marcasse
em grande parte a docência de Doss, não acarretava a impotência, como em grande parte dos
professores que se demitem subjetivamente diante da incongruência entre o ideal da mestria e o
contingente de sua prática (PEREIRA, 2016). Doss parecia ser atravessado por uma razoável parcela
do princípio de realidade do qual Freud (1920/2010) trata, devido aos efeitos de seu trabalho, já
aqui elencados. Ora, o sintoma deve ser entendido tanto como “o que não vai bem” no sujeito,

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como o que “lhe cabe bem, já que garante a esse mesmo sujeito algum ganho secundário advindo
da satisfação narcísica e pulsional” (PEREIRA, 2016, p. 162). Arriscamos propor, então, que o modo
narcísico de Doss exercer a docência poderia configurar-se uma saída sintomática, seu modo
particular de manter-se professor. Esse “jeito” delimitava sua esfera de atuação e acarretava o
investimento em si que o sustentava naquela posição. Daí advenham, talvez, a circunscrição de
seu território como professor àqueles que assentiam ao seu comando; a fixação subjetiva em suas
“caixinhas” como escudos contra o não querer, a rebeldia ou a vontade de ignorância do outro; a
defesa vigorosa de seu espaço.
Observar os professores em formação em ação em sua sala de aula parece ter provido a Doss
uma outra perspectiva da qual enxergar a prática de professor de inglês, afrouxando, possivelmente,
o apego à rede identificatória que lhe provia uma imagem especular sobre si como professor. Nesse
sentido, a própria presença dos professores em formação inicial na escola, na sala de aula e a troca
que se dava com eles nos espaços de palavra consistiram uma intervenção com o potencial de
fragilizar as defesas de Doss e abri-lo para outros modos de ocupação da docência, como possível
resultado da lógica do Analista.
Alguns professores em formação, como Bella e Marcelo, insistiam em falar em inglês,
em explicar sem usar a tradução, estratégias de ensino muito valorizadas no audiolingualismo

13 Freud (1930/2010) problematiza em que medida a ciência e, consequentemente, o conhecimento por ela
produzido, se coloca como uma das muitas figuras imaginárias produtoras das condições da civilização.
14 As pulsões escópica e invocante são indiciadas no prazer derivado de olhar e ser olhado, e de chamar e se fazer
chamar, respectivamente.
231
31A
e comunicativismo15. Confessando sua aposta no insucesso de algumas dessas iniciativas no
seu território, o Prof. Doss expressou sua aposta no fracasso: “Eu encostei na parede e disse pra
mim mesmo: Quero ver no que isso vai dar”. Mas logo admitiu sua surpresa: “E deu! Ele [um dos
professores em formação inicial] fez adaptações, mas os alunos leram algo em inglês”. O grifo no
pronome indefinido chama a atenção para essa recorrência associada à língua no dizer do nosso
professor. Marcelo e Bella estavam, como Doss, ensinando esse algo da língua, outros “algos”, de
outros modos, apontando para a impossibilidade de um ensino abarcar o chamado “conteúdo”
completo sobre o objeto de saber e a viabilidade de outros caminhos pelos quais se pode ensinar
a língua inglesa.
Nesse mesmo dia, no espaço de palavra, Doss afirmou: “Vocês têm uma coisa que eu preciso
resgatar em mim: a insistência”. “Insistência?”, interrompi. A princípio, a insistência remetia em
trazer para a sala de aula as tais estratégias típicas de escolas de idiomas. Eram práticas creditadas
pelo professor como impossíveis de caber nas suas “caixinhas” (“Eu NUNCA faço isso!”), percebidas
como “inovadoras”, se comparadas ao que ele fazia na escola: listas de vocabulário, cópias no
caderno, exercícios gramaticais, tradução. Práticas enxergadas como “legais”, talvez, porque
ensejavam um saber da língua, possibilitador, mesmo que timidamente, de uma mínima mediação
da relação do sujeito com o mundo. Afinal, dificilmente alguém aprende uma língua para saber
sobre suas regras, caminho no qual Doss insistia. O desejo da língua outra convoca o sujeito a se
dizer por ela e a nela se inscrever, bordejar o enigma subjetivo de cada um de outra discursividade,
na qual o interdito da língua materna não se coloca do mesmo modo (REVUZ, 2001; TAVARES;
QUINTINO, 2019).
Entretanto, insistir poderia, também, remeter a não ceder do desejo de professor, que,
apesar de parecer animar Doss em alguma medida, ficava frequentemente elidido sob práticas
pedagógicas que não convenciam muito a ele próprio da relevância e do potencial motivador do que
propunha. Diante do espanto dos professores quanto à participação de um aluno com dificuldades
de aprendizagem, sempre apático nas aulas, perguntei ao grupo, durante o espaço de palavra: “O
que vocês acham que aconteceu, para ele participar?” Antes de eu terminar, Doss respondeu: “EU
SEI! Primeiro, que não sou eu! Vocês criam uma certa leveza na sala, vocês são mais acessíveis.
Como eu estou ali, a sala de aula é como uma zona de guerra mesmo, uma zona de confronto, os
meninos te veem como uma ameaça”. Esse dizer alude explicitamente à metáfora trilhada neste
relato: a sala de aula como campo de batalha. Na continuação, a comparação que ele estabelece
entre os modos como ele ensina e os de duas professoras em formação configura dois opostos. Os
resultados obtidos pela “leveza” e “frescor” da prática do outro são a razão atribuída à participação

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do aluno “excluído”.
Por mais que flertasse com esse modo “mais legal” de ser professor, ele “insistia” em uma
imagem de si pouco producente, resistindo em “resgatar” em si mesmo o “frescor” atribuído aos
professores em formação. Ele repetia que suas aulas eram “chatas, tediosas”. Contudo, ele contava
várias atividades que poderiam ser classificadas como “legais”: o karaokê, as entrevistas com alguns
alunos postadas no Facebook, por exemplo. Era como se Doss evitasse desapegar-se de um modo
de ver seu território subjetivo de professor, ocupado comodamente há tanto tempo.
Naquele espaço de palavra, em especial, o funcionamento discursivo marcado pela
comparação chamou a atenção. Recuperamos um dizer de Doss em sala de aula, na conversação.
Dirigindo-se a seus alunos, ele “insistia” “com os meninos” [referindo-se aos professores em
formação]: “Isso que vocês estão fazendo é muito gostoso, é prazeroso; mas comigo, tudo é
BEEEEEEM chato”. Perguntamos: “Por que com você as coisas têm de ser ‘bem chatas’?” “Eu quero
ter um motivo, um teste. Eu quero que alguém chegue pra mim e diga: ‘Não, mas não é chato. Eu
gosto de aprender desse jeito também!’”.
Indagado sobre o porquê, Doss relatou que aquela semana ele fora acusado por uma mãe
de que TODOS os alunos não gostavam do jeito que ele dava aula, porque ele brigaria o tempo
TODO com eles. O professor questionou: “Não é possível que são TODOS. Eu tenho alunos que
gostam de mim!”. Na generalização que promovia, a mãe imiscuía a particularidade, promovendo

15 Na medida em que as escolas de idiomas aparecem no imaginário social como os lugares legitimados social
e discursivamente para que se aprenda uma língua estrangeira, valer-se de estratégias de ensino comuns a esse
campo, supostamente, valida a prática de um professor na escola regular.
232
32A
um agrupamento classificatório no qual vigora uma recusa da incompletude e pouca incidência
da exceção e do furo da linguagem que causam o sujeito. Desse lugar, ela se queixava justamente
de momentos no processo educacional com o potencial de fazer a castração vigorar, a saber, o
desacordo, o desencontro, o confronto. Apesar de aparentemente estar em uma posição antagônica,
Doss também estava seduzido pela completude de uma imagem, a que tinha de si como professor.
O professor lamentou: “Nesse caso, eu precisava de defesa mesmo”.
Desvelam-se, aqui, outros aspectos do jeito Doss quanto à apropriação e à defesa que faz de
sua posição de professor. Primeiro, uma posição histérica que consiste em ofertar-se insistentemente
ao Outro como objeto recusado, para dele obter seu amor. O Outro, aqui, funciona como um mestre
do qual o professor se vale para ser dele objeto de gozo (LACAN, 1969-70/1992). Khel (2015, p.
211) enfatiza que na posição histérica o sujeito visa ser “resgatado pelo Outro como objeto de um
amor inquestionável, que vale mais que a própria vida”. Passar pelo “teste” da aprovação do Outro
poderia representar esse sinal do amor que, por vezes, atravessa uma relação pedagógica, bem
como ratificar sua posição. Segundo, o risco dessa posição, sustentada na sedução como estratégia
pedagógica. Conforme Cifali (1994, p. 198, 199), o professor fantasia a possibilidade de viver em
uma harmonia perene e se esquece que a sedução é inseparável da confrontação com a castração:
“Prefere-se viver na estética de uma sedução mútua, não ser jamais o mau que constrange, que
marca os limites16”. O terceiro aspecto refere-se a uma tendência de negação da castração. É
impossível ser tudo para o Outro, promessa insustentável na qual algumas estratégias de sedução
pedagógica se baseiam. Semelhantemente, não há relação com o saber que possa derivar de um
ensino-aprendizagem norteado unicamente pelo prazer e aprovação. Se a sedução na relação
pedagógica insiste nessa direção, o Outro se torna um álibi do narcisismo do professor e passa a ser
a “razão” de sua docência, como Cifali parafraseia, tornando sua a voz de um professor (1994, p.
195): “Necessidade de seu olhar que me confirme em meu poder; necessidade de seu apego para
me sentir a salvo da morte; necessidade de uma garantia constante, inesgotável que se servirá dele
para mim mesmo17”.

As intervenções e seus possíveis efeitos

Algumas pontuações nos espaços de palavra parecem ter assumido a função de intervenção,
além daquela configurada pela via especular analisada inicialmente, e que assumem o valor de uma
pontual conclusão.

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Quanto à leveza atribuída às aulas dos professores em formação comparadas à “zona de
guerra” que reconhecia em suas aulas e à “ameaça” que Doss representava, questionamo-lo:
“Será que nessa ‘zona de guerra’ não é preciso erguer bandeiras brancas, às vezes?” Ao que ele
rapidamente respondeu: “Às vezes? Não, sempre! Quando a gente está desgastado e nada serve
mais, o olhar da inexperiência, o frescor de vocês mostra que é possível. Essa aula pode ter sido um
divisor de águas na vida dele [do aluno “excluído”]. E depois de uma pausa longa: “...e na minha
também”. Percebe-se que na elaboração que Doss faz da metáfora implícita na pontuação, ele
atribui a um não saber, o da “inexperiência”, a função de desestabilizador de suas “caixinhas”. Talvez
residisse aí, no esvaziamento de um saber pretensamente todo, que um ensino mobilizando o não-
saber teria chances de erguer “bandeiras brancas” pelas quais uma relação mais pautada no desejo
pudesse ser instaurada.
A segunda intervenção se deu enquanto Doss narrava a situação de queixa da mãe da aluna
e da falta de apoio da coordenação. Em meio ao seu ressentimento quanto à deslegitimação de sua
posição, pontuamos a “insistência” do professor em comparar-se com outros colegas, valorizando
as aulas do outro em detrimento das suas: “Por que as aulas dos outros são ‘legais’ e as suas
precisam ser ‘chatas’?” Após um momento de hesitação e um riso envergonhado, replicou: “Porque
eu me vejo como chato”. A intervenção visava que ele se responsabilizasse por sua posição histérica

16 Tradução livre do original: “On préfère vivre dans l’esthétisme d’une séduction mutuelle, n’être jamais le
mauvais qui contraint, qui marque les limites”.
17 Tradução livre do original: “Besoin de son regard qui me confirme em mon pouvoir; besoin de son attachment
pour me sentir preservé de la mort; necessité d’une réassurance constante, inépuisable, qui usera de lui pour moi.”
233
33A
e, quem sabe, dela se deslocasse. Recortar da fala de Doss o adjetivo “chata” e devolvê-lo a ele, de
modo a interrogá-lo sobre o que desse significante realmente concernia-lhe, parece ter permitido
que o professor percebesse o quanto se identificava aos modos como exercia sua docência.
No decorrer dos espaços de palavra, o dizer de Doss indiciou os efeitos desses momentos
em sua movimentação na direção de investir subjetivamente a docência de outros modos,
nem melhores, nem piores, apenas diferentes, ainda que minimamente. Destacamos algumas
formulações que podem sugerir essa direção. No último espaço de palavra, a conversa assumiu o
efeito de uma avaliação sobre as ações. Seu território tinha sido desestabilizado: “Quando vocês
tiverem na sala de aula de vocês e alguém chegar e disser assim: olha, esses meninos aqui [os
alunos], eles não são mais seus. Gente, é uma perda! Não é porque é doloroso, mas é porque você
é professor. Eu sou extremamente egocêntrico: eu, eu, eu, presta atenção em mim, faz isso. E aí
nos seus relatórios vocês falam que eu preciso mudar, que eu preciso ser mais gentil. Eu preciso me
esvaziar e me fazer de novo! A gente cresce se espetando. É doloroso ouvir isso, mas é necessário”.
Destaco, dessa espécie de confissão, os efeitos subjetivantes das intervenções quanto à
percepção do professor de si mesmo, de seu narcisismo, dos limites de seu território, do alcance
de sua atuação e do reconhecimento da dor de ter suspenso o engodo de uma imagem à qual se
encontrava identificado. Daí em diante, o sujeito teria de responder ao caráter interrogativo do
confronto com os significantes aos quais se encontrava submetido.
De certa forma, Doss respondeu. No semestre seguinte ao término da pesquisa na escola,
durante a pandemia de covid-19, ele foi chamado a gravar uma videoaula como parte da ação
contingencial da Prefeitura quanto à retomada das aulas no município. Pelo WhatsApp, ele me
enviou a videoaula. Cumprimentando os alunos em inglês, em vários momentos praticou a
pronúncia em inglês das palavras do vocabulário, deu explicações sobre algumas particularidades,
dicas de estratégias de aprendizagem e valeu-se de recursos visuais associados a um aplicativo que
ele recomendou aos alunos. Parece que havia recuperado a insistência, desta vez, trazendo um
pouco do frescor do outro para sua docência.
A investigação dos efeitos de processos formativos de professores de línguas que se
proponham abertos à escuta e à circulação da palavra do sujeito para além de simplesmente
circunscreverem-se à esfera da aprendizagem e reprodução de conhecimentos sobre a docência
permitiu confrontar o imaginário cristalizado sobre o ensino-aprendizagem na escola pública e
apontar saídas subjetivas para viabilizá-lo. A proposta de intervir na formação inicial e continuada de
professores de língua inglesa por meio da dialeticidade da construção de um saber compartilhado
sobre essas posições e da circulação da palavra sobre essa experiência possibilitou circunscrever as

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discursividades que constituem os professores e interrogá-las. Dentre essas discursividades, retomo
as seguintes: a (im)possibilidade do ensino da língua inglesa, a rigidez como modo de legitimação
e viabilização do ensino, a demanda de aprovação como modo de manter-se na posição docente.
Quanto à primeira, a incursão dos professores em formação inicial na escola e a parceria
colaborativa com o professor em serviço já consistiram, por si mesmas, uma primeira intervenção.
A surpresa com os frutos da aprendizagem da língua promovida na prática do Prof. Doss descortinou
vias possíveis de exercer a docência, destoantes do imaginário compacto e cristalizado de ineficiência
do ensino dessa língua na educação pública. A intervenção se deu implicitamente, possibilitada por
um preparo anterior, convidando os professores em formação inicial a observarem as aulas a partir
do que lhes chamasse a atenção. Assim, cada um seria fisgado por aquilo que talvez remetesse a uma
questão própria em relação à docência, e não pré-estabelecida por roteiros já institucionalizados.
Tentamos possibilitar que, ao irem para a sala de aula do lugar de observadores, eles deixassem de
lado o saber prévio que tinham sobre ela a partir da posição de aluno e se abrissem para um outro
saber. Percebe-se aí os efeitos de um laço transferencial agenciado na lógica discursiva do analista
que convidou os professores pré-serviço a se abrirem para o novo. Nesse mesmo movimento, o
professor em serviço foi afetado, pois recebeu do outro a ratificação de sua posição: aquele que
consegue enunciar da posição de mestria (LAJONQUIÈRE, 2013).
Enunciar dessa posição não é o mesmo que agenciar o discurso do Mestre. Para além
da docência exercida em nome de um conhecimento epistêmico e identificada a significantes-
mestres, no cerne do exercício da mestria encontra-se o desejo de “transmitir aquilo que Freud
diz ser o mais caro na relação do aluno com a escola e com o professor: a transmissão do ‘desejo
234
34A
de viver’” (GURSKI, 2016, p. 14). Para tanto, a docência precisa guardar em seu exercício algo da
paixão da ignorância, como a denomina Lacan (1972-73/1985), ou seja, erigir-se sobre a asserção
da impossibilidade da completude. Diante da certeza de que “algo” de efetivo em seu ensino
repercutia na aprendizagem dos alunos, Doss se abriu para as intervenções nos espaços de palavra,
que apontaram para a possibilidade de inserir mais “bandeiras brancas” em sua docência e, assim,
arejar um pouco mais a sua prática.
Contribuiu para isso o exercício da docência em parceria com os professores em formação
inicial, que indicaram para o professor em exercício pontos de seu “território” que podiam ser
reconfigurados, de modo a tornar seu ensino mais significativo e contemplar mais questões e
habilidades que interessavam aos alunos. Nesse sentido, os modos como os professores em
formação inicial ocupavam a docência se erigiram como verdadeiras instâncias de alteridade para
Doss, que, embora se sentisse ameaçado, superou o medo e abriu-se para o desconhecido.
Quanto aos espaços de palavra, momentos nos quais sua circulação foi privilegiada, o relato
de experiência evidencia que eles possibilitaram uma relação de trabalho para além do discurso
comum, no qual a palavra só se reproduz. As lógicas discursivas instauradas promoveram um laço
social no qual o sujeito foi causado como efeito de um saber: da histérica, por meio das interrogações
que visavam suspender as certezas; e do analista, por meio da anuência à suposição de saber a nós
endereçada, seguida de seu esvaziamento, materializado nas interrogações em forma de citação
do dizer do Doss. A citação consiste em ressaltar algo recortado do enunciado do dizer do outro,
na posição de analisando (LACAN, 1969-70/1992). Agenciando a lógica discursiva do analista, em
alguns momentos, devolvemos uma citação do dizer de Doss a ele, apostando que ali poderia
residir “um saber com uma verdade latente” (p. 35). O recorte de um enunciado colhido na trama
do dizer do sujeito tem o potencial de se tornar enigma, evidenciando algo que vai além do dito. O
motor desse engajamento discursivo foi a transferência, indiciada pela natureza das intervenções e
seus efeitos de fragmentação da cadeia significante.
Esses momentos instauraram movimentos de (re)conhecimento de alguns significantes
aos quais Doss se submetia e, portanto, um saber sobre si. Por si só, essa produção de saber
representava o risco de consolidar seu assujeitamento a ele. Porém, na esteira desse flagrante de
si, os movimentos também produziram a demanda de responsabilização pelos efeitos que eles
causavam nos modos como Doss ocupava a posição de professor. Isso foi possível pela incidência da
histericização do dizer, materializada nos questionamentos a ele endereçados sobre os porquês de
determinados enunciados. Assim, o narcisismo e a sedução pedagógica, que tanto caracterizavam
sua docência, poderiam ganhar outros contornos e sua autoridade poderia repousar na insondável

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leveza de uma certeza subjetiva: seu desejo de mestria.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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37A
“NÃO QUERO SAIR DA RUA”: PSICANÁLISE EM SERVIÇOS DE
ATENDIMENTO A PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

“I DON’T WANT TO LEAVE THE STREET”: PSYCHOANALYSIS IN SERVICES


FOR HOMELESS PEOPLE

Mayara Squeff Janovik 1


Sandra Djambolakdjian Torossian 2

Resumo: O presente artigo apresenta a pesquisa sobre a escuta do não de quem diz não querer sair da situação de rua
a partir da clínica psicanalítica na política de assistência social. O método utilizado é o estudo clínico (RODULFO, 2004),
com análise a partir do Traço do Caso (DUMÉZIL, 1989), tomando o não como traço que atravessa diferentes casos. Foram
levantados dois planos de análise: plano de quem enuncia “Não quero sair da rua” e plano de quem escuta essa negação.
A psicanálise possibilita a subversão do não, que é ser acolhido e escutado em sua potência como denegação ao carregar
a dubiedade: negação e afirmação. Essa clínica aponta para a construção de formas de transitar na política pública pelo
acolhimento à singularidade. Conclui-se que é necessário um acompanhamento que acolha diferentes formas de existir no
social, escutando o sujeito que enuncia o não.

Palavras-chave: Denegação. Caso Clínico. Psicanálise. População de Rua. Assistência Social.

Abstract: This article aims to present the research carried out on listening to the no of those who say they do not want to
leave the street situation from the psychoanalytic clinic in the Social Assistance policy. The clinical study method was used
(RODULFO, 2004), and the analysis was carried out based on the Case Trace (DUMÉZIL, 1989), taking the no as a trace that
crosses different cases. Two levels of analysis were raised: the level of those who say “I don’t want to leave the street” and
the level of those who hear this denial. Psychoanalysis makes possible the subversion of the no, which is to be welcomed
and heard in its power as denial when carrying dubiousness: denial and affirmation. This clinic points to the construction
of ways to move in public policy from the reception of singularity. It is concluded that an accompaniment that welcomes
different ways of existing in the social is necessary, listening to the subject who enunciates the no.

Keywords: Denial. Clinical Case. Psychoanalysis. Street Population. Social Assistance.

1 Mestra em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS), Especialista em Saúde Mental Coletiva (UFRGS), Graduada em Psicologia (UFRGS).
Atualmente é professora do curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Gravataí, RS, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/1486106510063962. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1254-0875. E-mail: mayara.janovik@gmail.com

2 Doutora em Psicologia (UFRGS), Professora Associada do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Programa de Pós-graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2022735757785516. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9189-6994. E-mail: djambo.sandra@gmail.com
Introdução

O presente artigo é fruto de uma dissertação de mestrado que abordou a escuta psicanalítica
de pessoas em situação de rua no contexto de atendimento em serviços do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS). A investigação se deu a partir da inserção profissional de uma das autoras
em dois equipamentos: Centro de Referência Especializado em População em Situação de Rua
(Centro Pop) e Acolhimento Institucional para Adultos (também conhecido como albergue).
De acordo com o Decreto 7.053/2009, considera-se população em situação de rua aqueles
que possuem as seguintes características: pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou
fragilizados e inexistência de moradia convencional regular, utilizando áreas públicas e degradadas
como espaço de moradia e sustento, seja de forma temporária, seja de forma permanente.
A condição de habitar a rua traz diversos riscos à integridade física e mental dessas pessoas,
levando-nos à possibilidade de questionar os motivos de algumas delas optarem por permanecer
nessa condição e negarem-se a sair da rua. Tal compreensão se faz necessária para que se possa
produzir uma escuta sensível, acolhedora e transformadora do ponto de vista clínico nos serviços
que atendem a esse recorte populacional.
Escutar o não de quem diz não querer sair da situação de rua extrapola o entendimento
do conteúdo enunciado, desde que este não seja tomado em sua concretude de negação. Para
que essa escuta possa contemplar as diferentes dimensões da negação, parte-se do entendimento
de que os sintomas ganham novos contornos nos contextos sociais marcados pela exclusão, de
maneira que essas pessoas, que não aderem à lógica do consumo, podem ser escutadas como
objetores ao discurso hegemônico (BROIDE, 2014). Há, portanto, um indicativo de que aquele que
está em situação de rua possa cumprir uma função de furo em uma lógica que se quer padronizada
e hegemônica.
Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo apresentar a pesquisa realizada sobre
a escuta do não de quem diz não querer sair da situação de rua. Busca-se também refletir sobre as
balizas que fazem o contorno da clínica psicanalítica na política de assistência social ao debater o
lugar do psicanalista nas instituições que atendem a essa população.

Metodologia: Não é um Traço

A pesquisa foi conduzida de maneira concomitante ao trabalho clínico desenvolvido por uma

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das autoras com pessoas em situação de rua em um Centro Pop e um Acolhimento Institucional
para adultos e teve o estudo clínico (RODULFO, 2004) como orientação metodológica. A análise foi
realizada a partir da proposta do “Traço do Caso” (DUMÉZIL, 1989). Nessa perspectiva, no presente
artigo, apresenta-se o caso do Desenhista, nome fictício para uma pessoa em situação de rua que
foi escutada em atendimentos individuais ao longo de cerca de três anos, com encontros quase
sempre semanais, realizados no Acolhimento Institucional.
O estudo clínico se configura como uma maneira de contar e de pensar congruente com o
decurso particular do tratamento psicanalítico. Implica trabalhar um material, compreendendo-o
como produtor de interrogações ao analista-pesquisador que não busca ilustrar a teoria, mas
colocar problemas para se pensar a clínica. A pesquisa se dá ao longo do processo de escuta, de
forma que teoria e clínica em ato possam produzir questões uma à outra (RODULFO, 2004).
O Traço do Caso (DUMÉZIL, 1989) pode ser uma palavra ou expressão dita pelo analisando
ou pelo analista, ou até mesmo um acting out, que incide como uma reviravolta no caso escutado,
abrindo uma lacuna na resistência – tanto do lado do analisante como do analista.
Brémond, em texto integrante da obra de Dumézil (1989), apresenta o Traço do Caso como
uma marca que diz tanto do analisante como do analista, entendendo que a transferência, da
mesma forma, é compartilhada. Assim, o traço emerge do caso clínico nesse efeito de transferência,
surgindo a partir da união que ocorre entre as palavras do paciente e as de seu analista. Portanto, é
a partir dos recortes que sinalizam o Traço do Caso que se torna possível a análise do material, não
apenas para efeitos de construção de determinado caso clínico, mas para a transmissão de uma
clínica possível, que é sempre autoral e inaugural. 239
39A
Para Barth (2008), o Traço do Caso aponta para uma escrita composta por determinados
momentos de um tratamento ou até mesmo entre vários tratamentos, possibilitando que apareça
o traço que atravessa essa escuta clínica. Dessa forma, o Traço do Caso é utilizado como uma
ferramenta metodológica que permite pesquisar não apenas um caso clínico, mas os fragmentos
que insistem em se destacar em diversos casos escutados.
O Traço do Caso, como metodologia de análise, permite que pontos clínicos sejam postos
em circulação, tensionando a articulação entre o singular, o categorial e o geral, de maneira que
sejam realizadas conexões entre um caso e outro, tomando a diferença como ponto indispensável
(SIQUEIRA & QUEIROZ, 2014). Assim, o Traço do Caso torna-se um operador que busca o fragmento
do caso clínico, produzindo o efeito de questionamento no pesquisador. Essa interrogação seria o
motor da interlocução de um caso com outro, podendo vir a transformar-se em teoria.
Para fins desta pesquisa, alicerçada nas contribuições de Dumézil (1989), o não de quem
diz não querer sair da situação de rua foi tomado como o Traço do Caso, como aquilo que decanta
do caso clínico e conduz sua análise. Foi a partir do trabalho cotidiano de escuta de pessoas em
situação de rua que o caso do Desenhista ganhou destaque por apresentar o não repetidamente
em seu discurso. Quando o não pôde ser escutado como denegação, desenrolou-se um trabalho
na direção de produção de singularidade com o sujeito escutado. Assim, a escuta do não veio a
ter importante função no trabalho com o Desenhista, tornando-se um ponto nodal de análise
ao produzir questões sobre a função do não e o que isso dizia do sujeito e de sua condição de
situação de rua. Vale ressaltar que o caso do Desenhista aponta tanto para pontos da singularidade
desse sujeito como para questões da nossa cultura, uma vez que o não é enunciado por diferentes
pessoas em situação de rua.
Portanto, sustentamos com Barth (2008) que o Traço do Caso aponta não apenas à marca
em determinado caso, mas evidencia o traço que atravessa diversos casos clínicos, tornando-se o
Traço dos Casos de sujeitos que enunciam o não para a saída da situação de rua.

Não é uma clínica tradicional: a psicanálise nas políticas públicas

O psicanalista, ao se deparar com os contextos de exclusão social, encontra os pilares para


a escuta clínica nos pressupostos básicos freudianos. Vale enfatizar que a clínica psicanalítica
sempre esteve imbricada com as questões sociais, de maneira que até mesmo Freud sustentava a
importância de uma “clínica pública” (DANTO, 2019).

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Freud (1919/2006a) entende que o acesso à escuta psicanalítica não deveria ser limitado
àqueles que possuem condições financeiras, por isso propõe que o trabalho do psicanalista se
estenda para além do espaço do consultório privado. Assim, Freud lança aos psicanalistas o desafio
da construção de uma clínica imbricada com o contexto social.
O sofrimento da parcela da população que não acessa os recursos institucionais básicos
demanda um reposicionamento da escuta clínica. Trata-se de não desconsiderar a situação social
daquele que é escutado nem de tomar-se pelo horror das histórias a ponto de ignorar a imbricação
do sujeito com aquilo que ele fala e produz (ROSA, 2002).
O trabalho do psicanalista na política de assistência social consiste na construção de uma
escuta clínica que considere as especificidades das pessoas atendidas e das situações postas em
cena, entendendo que o desamparo social produz efeitos subjetivos e intersubjetivos. Assim, a
escuta clínica é uma forma de supor no sujeito a capacidade de interrogar-se sobre sua história e
de possibilitar a construção de novos traços identificatórios. O analista pode facilmente tomar a via
imaginária e ficar paralisado diante das cenas de horror vividas e escutadas na clínica no contexto
da assistência social. No entanto, a partir da relação transferencial, é possível fazer circular a palavra,
de maneira que as situações traumáticas podem vir a ser nomeadas. Esse trabalho de escuta pode
assumir uma posição ativa, tendo em vista que a iniciativa pode se dar primeiramente do lado do
analista, até que o sujeito possa demandar e sustentar o seu espaço de escuta (SOARES, SUSIN E
WARPECHOWSKI, 2013).
O trabalho clínico consiste no reconhecimento subjetivo e social, na medida em que implica
uma postura de acolhimento do psicanalista ao mesmo tempo em que dá um lugar institucional ao
240
40A
sujeito. A palavra do sujeito atendido deve ser garantida, mas isso muitas vezes não corresponde aos
ideais da instituição. Logo, há um impasse que se coloca no que tange à possibilidade de escuta da
singularidade na política pública, evidenciando-se desencontros entre o sistema formal das políticas
públicas e as maneiras que as pessoas encontram para viver (SOARES, SUSIN & WARPECHOWSKI,
2013). Conforme Broide (2014), as políticas públicas apresentam um paradoxo: legislar e garantir
direitos a grupos sociais, prescrevendo o que seria o melhor para esses indivíduos, ao mesmo
tempo em que determinam modos de inserção no laço social, ignorando a dimensão do singular.
Broide e Broide (2015, p. 20) trazem o entendimento de que a política pública “[...] deve ser
capaz de se instituir como condição-suporte de singularização do sujeito, promovendo uma torção
do resto à causa”. Para isso, propõem as ancoragens como metodologia de trabalho em situações
sociais críticas, em que “[...] é necessário operar na urgência social dominada pelo desamparo, pela
violência, pelo caos e, muitas vezes, pela morte iminente” (BROIDE; BROIDE, 2015, p. 30). Constitui-
se, dessa forma, um trabalho na direção de buscar, através da escuta clínica, os fios que amarram
o sujeito à vida.
A população em situação de rua não se adapta aos protocolos clínicos tradicionais, o que
implica a criação de estratégias diferenciadas de atendimento (CORREIA, 2014). Cabe ao trabalhador
tornar-se um articulador entre a política pública e as diferentes formas de habitar a rua, tendo em
vista que a política está construída para a saída da situação de rua.
Considerando a situação de rua como violação de direitos, encontra-se, na política de
assistência social, a orientação de superação dessa condição. No entanto, encontramos um impasse
quando percebemos que há pessoas que dizem não às saídas propostas por trabalhadores e
serviços que compõem a política pública.

Não é denegação

Freud (1925/2006b) entende que a denegação é um mecanismo utilizado para que o


conteúdo recalcado possa vir à tona, sem que necessariamente seja aceito: se um conteúdo foi
negado, é porque ele precisou ser negado para poder ser enunciado. Nessas situações, propõe
que, para além da negação, deve-se tomar o tema geral da associação que foi feita pelo paciente.
Não se trata de negar ou afirmar o conteúdo levantado, mas de escutar que o analisante produziu
uma associação e a trouxe à tona, mesmo que pela sua forma negativa. Portanto, o não supõe uma
relação com a afirmação, já que é a partir da suspensão do recalque que o conteúdo do inconsciente

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pode emergir, mesmo que pela sua forma negativa.
Hyppolite (1954/1998, p. 895) destaca a diferença entre o não da denegação e o não como
negação lógica. A negação lógica é a negação de uma afirmação. Já a denegação é um “[...]modo
de apresentar o que se é à maneira do não ser”. A denegação é o símbolo do não por meio de uma
enunciação, sendo que essa enunciação, ao ser desmentida, é acolhida.
Esse entendimento nos abre a possibilidade de escutar o não para além de uma palavra, mas
como uma expressão que diz do laço que o sujeito constrói com o social. Dessa forma, propomos
que o não seja escutado como expressão do sujeito de afirmação na condição de protagonista de
sua história, responsável pela sustentação de sua posição desejante.
Lacan, a partir dos comentários de Hyppolite, desenvolve o não do recalque como uma
forma em que “[...] a verdade pode sempre ser comunicada, nesse caso, nas entrelinhas” (LACAN,
1954/1998a, p. 373); ou seja, o não pode ser uma forma de censura ao conteúdo para que este
possa ser enunciado.
A partir das considerações acima, para além de tomar o não como negativa, escutamos o
não como um modo de enunciação. Apostamos que a escuta clínica pode ser subversiva ao não
tomar o dito na sua concretude, mas ao buscar deslocamentos possíveis que digam da construção
de narrativas singulares com aqueles que são escutados (LACAN, 1954/1998b). Vale enfatizar que
essa escuta da produção singular do não precisa considerar a realidade social em que o sujeito está
inserido, entendendo que a negação em sair da situação de rua diz tanto do sujeito que enuncia
quanto do tecido social.

241
41A
Não é um caso de sucesso?

O Desenhista é um homem negro, de meia idade, que dizia não querer sair da situação de
rua.
Possuía familiares, mas não queria se aproximar deles. Tinha trajetória importante de
trabalho, mas não demonstrava firmeza quanto ao seu interesse em voltar a trabalhar. Passou
tempos dormindo em determinado local na rua da cidade, supondo estar seguro onde ficava. Além
disso, tinha companheiros com quem fazia uso de álcool nesse local.
Esse uso era considerado problemático pela equipe. Sobre isso, o Desenhista dizia que
queria se divertir enquanto não possuía nenhum compromisso sério. Aos poucos, fomos tendo
notícias de que o motivo de seu desemprego estava relacionado ao uso de álcool, assim como o
afastamento da família.
No início, os atendimentos semanais pareciam não fazer sentido ao Desenhista. Ele buscava
o acolhimento institucional para pernoitar, sendo chamado para o atendimento individual – o que
consistia em uma oferta ativa do espaço de escuta. Por certo tempo, era como se o desejo de que o
Desenhista não dormisse ao relento fosse mais de quem o atendia do que dele.
Para que os atendimentos acontecessem, era necessário buscar o Desenhista, convidá-lo à
fala, ofertar persistentemente o espaço de escuta, num trabalho de “busca ativa”. Há quem diga
que isso pode implicar uma problemática inversão de demanda. No entanto, sustentamos que
a demanda de análise só pode se produzir se for antecedida pela oferta do analista, sendo uma
condição primordial (SOLER, 2013). Logo, a oferta vem como um convite ao sujeito de que possa
falar livremente, sem censura.
Após algum tempo de atendimento, ele começou a demonstrar interesse em trabalhar no
mercado formal, mas não conseguia sequer procurar por emprego. Vale enfatizar que o Desenhista,
assim como grande parte das pessoas que estão em situação de rua, trabalhava com catação de
materiais para reciclagem. Com a renda obtida, alimentava-se e sustentava seu uso de álcool.
Quando um familiar começou a buscar aproximação com o Desenhista, incentivamos
o contato, pois a família parecia fazer despertar um outro Desenhista: pai de família cuidadoso,
filho querido, primo atencioso. Em decorrência do uso de álcool, foram realizados diversos
encaminhamentos ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mas o Desenhista nunca cumpria com
o que combinávamos.
Dessa forma, chegou um momento em que os argumentos nos atendimentos individuais
para a redução do uso de álcool se esgotaram. Nenhum encaminhamento realizado se consolidava,

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assim como nenhuma combinação feita em atendimento se efetivava. No entanto, o Desenhista se
mantinha disposto a falar. Foi somente a partir desse momento em que ele passou a ser escutado
a partir do que lhe era possível narrar. O foco dos atendimentos deixou de ser a saída da situação
de rua e o uso de álcool para passar a ser aquilo sobre o que tivesse interesse em falar. Assim, foi
retomando a regra fundamental da técnica psicanalítica – a associação livre (FREUD, 1913/2006c)
– que o trabalho pôde se desenrolar.
A partir desse ponto, passa a se construir uma posição de escuta e acolhimento do não
produzido pelo Desenhista. A negação em cumprir com alguns dos protocolos tradicionalmente
utilizados pelos serviços da política de assistência social passa a ser escutado de outra maneira: para
além de um não, essa postura de negação dizia algo sobre o Desenhista.
A partir dos atendimentos, surgiam diversas histórias da vida do Desenhista. Quando dizia
que não queria fazer contato com a família, podia falar sobre a família; quando dizia que não queria
parar de usar álcool, falava sobre o embriagar-se; quando dizia não querer sair da situação de rua,
contava sobre sua experiência de habitar a rua. Aos poucos, foi possível perceber que esses nãos
abriam espaço para se falar sobre determinados assuntos, ao mesmo tempo em que colocavam em
cena uma postura crítica desse senhor que só executava as atividades que lhe faziam sentido. Dessa
maneira, a negação em seguir os protocolos revelou-se em uma afirmação de si: o Desenhista fazia
questão de escolher os caminhos que queria trilhar em sua vida.
Com o movimento ativo de escuta, foi possível o estabelecimento de uma relação
transferencial de cuidado, em que o Desenhista passou a perceber que alguém (a analista que o
atendia) tinha interesse pelo que ele podia falar e se importava com seu bem-estar. Da mesma 242
42A
forma, ele também passou a fazer demonstrações de cuidado com o outro e, posteriormente,
consigo.
Vale destacar três episódios que produziram mudanças nesse acompanhamento.
Em determinada data, o Desenhista não pôde pernoitar no Acolhimento Institucional por
estar excessivamente alcoolizado. Nesse momento, percebeu que não estava mais acostumado a
dormir na rua. Disse que estava tudo da mesma maneira, mas ele já não via mais tantos atrativos.
Assim, procurar um trabalho para ter seu próprio lugar e “não depender de albergue” começou a
parecer-lhe interessante. No entanto, dizia que não encontrava oportunidades de emprego.
Certa vez, ofereceram-lhe uma vaga de trabalho, mas estava alcoolizado e não pôde
comparecer ao local. Mesmo assim, entendia que o uso de álcool não lhe atrapalhava. Após
mais algum tempo de escuta, essa situação veio a fazer outro efeito: no a posteriori, quando os
acontecimentos adquiriram nova significação para o sujeito num tempo histórico e subjetivo
posterior (ROUDINESCO & PLON, 1998), o Desenhista percebeu que havia perdido uma boa
oportunidade de trabalho em decorrência de seu uso de álcool. Assim, foi possível questionar:
quantas outras oportunidades ele já teria perdido, porém nem percebera? Quantas ainda iria
perder por causa do uso de álcool? Com isso, foi possível compreender que, para além da escassez
das oportunidades de trabalho, o Desenhista não estava sustentando uma disponibilidade em
trabalhar. Logo, torna-se central na escuta a reflexão sobre os caminhos que queria seguir em sua
vida.
Em outra data, o Desenhista teve um conflito com uma pessoa da equipe e resolveu não
pernoitar no Acolhimento Institucional. Nesse período, havia suspendido o uso de álcool. No dia
seguinte, contou que ficou demasiado irritado com o impasse e que foi logo ficar debaixo de uma
marquise com outras pessoas em situação de rua. No local, ofereceram-lhe álcool, mas recusou.
Disse supor que a pessoa que o atendia poderia ir atrás dele e o veria alcoolizado – algo que não
desejava. Desse modo, percebe-se que a relação transferencial produz efeitos no sujeito de modo
a fazê-lo repensar em sua posição a partir do que supõe que seja esperado dele. Em seu espaço de
escuta, foi possível refletir acerca das mudanças por que vinha passando.
A partir de oficinas realizadas no Centro Pop, percebemos que aquele senhor crítico que
bebia e não queria sair da rua gostava de desenhar. Assim, foi viabilizado o encaminhamento para
uma Oficina de Desenhos, oferecida pela Secretaria de Cultura. A Oficina de Desenhos proporcionava
diferentes experiências sobre as quais ele se punha a falar.
Desenhista é a maneira como as autoras do presente artigo escolheram nomear essa pessoa
que descobre, a partir do interesse por desenhar, possibilidades de viver. O próprio Desenhista

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foi percebendo que seu lugar não era mais na rua, e disse surpreender-se com essa descoberta.
Começou a querer encontrar pessoas com quem pudesse aprender e dialogar, como fazia na Oficina
de Desenhos. Dizia ele que não conseguia mais conversar com as pessoas em situação de rua, uma
vez que havia muitas brigas e muitas discussões envolvendo o uso de drogas. O Desenhista passou
a querer fazer o papel de mediador nessas situações, colocando palavras no lugar das agressões
físicas que via tão presentes em seu cotidiano.
No decorrer do acompanhamento, passou a perceber a sua escolaridade como uma
dificuldade que enfrentava na busca por emprego. Assim, incentivado a voltar a estudar, tornou-
se um aluno exemplar, ganhando destaque na escola por dedicar-se a realizar todas as atividades
propostas pelos professores. Em um ano, concluiu duas etapas, estando próximo de concluir o
Ensino Fundamental.
O Desenhista passou a estudar e questionar sobre esse novo mundo que descobria,
utilizando a internet do Acolhimento Institucional para acesso a informações e comunicação com
familiares através das redes sociais. Com o tempo, conseguiu um local para morar, retornando ao
Acolhimento Institucional apenas para alguns atendimentos.
Na condução do caso do Desenhista, foi realizada uma aposta em sua autoria, colocando o
desenho como uma saída à condição de mero personagem de sua história, de maneira que pudesse
escrever/desenhar à sua própria maneira. Dessa forma, o desenho o levou à escola, que lhe colocou
em contato com conhecimentos aos quais antes não tinha acesso. Assim, passou ele próprio a
demonstrar interesse por determinados assuntos, construindo novas aspirações, como possuir um
espaço seu, onde pudesse organizar suas coisas da maneira que bem entendesse.
243
43A
Nas férias de sua analista, o Desenhista teve uma importante mudança em sua vida e
voltou a fazer uso de álcool – nomeou esse período como se estivesse “fora do desenho”. Com a
retomada do acompanhamento, após as férias, lembrou que a analista havia lhe encomendado um
trabalho, que consistia em desenhos que viriam a compor a dissertação de Mestrado, com a devida
autorização do Desenhista, que não quis assinar sua produção, seguindo anônimo. O Desenhista riu
ao dizer que sua analista lhe dava “trabalho”. Tinha um compromisso com sua analista durante esse
período e, ao se deparar com o fato de não ter cumprido com o combinado, começou a pensar se
poderia voltar à forma de viver em que não mantinha acordos com ninguém. Quando perguntado
sobre o que vinha pensando sobre isso, disse não saber como proceder. Logo, foi-lhe assinalado:
era para isto que estava ali sendo escutado, para pensar no que queria. Nesse momento, lembrou
de sua família, dizendo que não gostava de falar deles, mas que se sentia esquecido pelo fato de
fazer cerca de dois meses que não o procuravam. O Desenhista não buscava pelos familiares, mas
esperava que viessem atrás dele, de maneira análoga ao que fizera no início do estabelecimento
de seu espaço de escuta, quando esperava que sua analista o chamasse para conversar. Há uma
atualização – na transferência – das relações que estabelecera em seu núcleo familiar. O Desenhista
precisava de alguém que se interessasse por ele, desejasse o seu bem-estar, demandasse dele
“trabalho”. Dar-lhe trabalho correspondia a convocar-lhe a sair do lugar de negação e retomar um
laço com o social. Assim, a partir do cuidado do outro, o Desenhista pôde construir formas de cuidar
de si.

Não é (só) não

Casos semelhantes ao do Desenhista aparecem com alguma frequência: dizem não querer
sair da situação de rua, mas buscam o Acolhimento Institucional para pernoite eventualmente.
Essas são situações que questionam o funcionamento da instituição. Portanto, escutando o não
como Traço dos Casos, as considerações realizadas a seguir a respeito do Desenhista podem ser
colocadas também para outras situações.
A escuta do não na presente pesquisa conduziu a análise sustentada em dois planos: o plano
de quem enuncia e o plano de quem escuta. A respeito do plano de quem enuncia, é levantada a
dubiedade do não: uma negação (o não é não) e uma afirmação (o não é mais do que não). Quanto
ao plano de quem escuta, é explorado o lugar do psicanalista na instituição.

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“Não quero sair da rua”
O Desenhista não correspondia às expectativas do serviço de acolhimento institucional: não
fazia tratamento no CAPS, não parava de beber e não trabalhava. O não se repetia na sua fala
e na sua posição de recusa a seguir os protocolos tradicionais, fazendo-se presente na cena do
atendimento até ser acolhido e escutado a partir de sua fala, da sua posição de sujeito, e não dos
preceitos institucionais. Com a mudança da posição de escuta, ocorreu também uma mudança da
posição do sujeito diante do seu desejo: o não tornou-se uma forma de se poder falar sobre alguns
assuntos e de afirmação do sujeito como autor de sua história. Para o Desenhista, negar-se a seguir
o que esperavam dele era afirmar a possibilidade de criar seus próprios caminhos.
A escuta implicou o acolhimento do sujeito, considerando a condição social a que estava
submetido. A esse trabalho clínico que se ocupa da escuta do sujeito em contextos de exclusão
e violência, Rosa (2016) nomeia de intervenções psicanalíticas clínico-políticas. Propõe-se que o
sujeito escutado deve ter considerado o seu lugar na estrutura social, de maneira que a dimensão
sociopolítica do sofrimento é incluída na escuta. O não de pessoas que dizem não querer sair da
situação de rua deve ser escutado não apenas como uma opção de dormir ou não na rua, mas como
um disparador para que a escuta do sujeito se torne possível. No caso do Desenhista, o acolhimento
do não trouxe à tona os significantes “rua”, “álcool” e “família”.
Assim, podemos tomar o não como potência. Segundo Agamben (2008), a potência não
existe apenas no ato que a realiza, de fazer ou de ser alguma coisa. A potência só é tomada como
tal se também for uma potência do não: potência de ser e de não ser, de fazer e de não fazer.
244
44A
A potência de um vir a ser só pode ser concebida na relação com a potência do não vir a ser. A
partir dessa concepção de potência, podemos escutar o não de pessoas que dizem não querer sair
da situação de rua como uma recusa a seguir um mandato social de produzir, trabalhar, ter uma
família, ter uma casa. Há uma afirmação, um posicionamento do sujeito em relação ao Outro que se
dá a partir do não, que está endereçado a quem não reconhece sua escolha de vida como legítima.
A rua pode se constituir em lugar de moradia em um sentido que vá para além do pernoitar,
como uma forma de laço social em que, ao mesmo tempo em que diz de uma exclusão social,
também diz de uma forma de oposição a uma normativa que está posta. Negar-se a seguir um
roteiro do qual não se é autor é uma forma de afirmar-se como sujeito desejante.
A partir da escuta clínica, pode-se tomar o não como um sim. Na escuta do Desenhista, em
um primeiro momento, percebemos o não como uma resignação, uma aceitação de sua condição
de vida, sem que se produzissem questionamentos por parte do sujeito acerca de sua situação. Em
um segundo momento, podemos perceber que o Desenhista passa a descobrir novos interesses,
num movimento desejante em que uma novidade dispara o interesse por outra. Dessa forma,
podemos entender esse segundo momento como um sim do sujeito à vida.
Tomados pelos protocolos tradicionais da política pública, podemos querer imprimir nas
pessoas que atendemos essa figura imaginária do que seria um bom, saudável e útil cidadão. Talvez
esse seja o motivo pelo qual ficamos, às vezes, transferencialmente tão incomodados quando
escutamos alguém que diz não querer sair da situação de rua. Essa pessoa está quebrando com
uma lógica com a qual nos vemos ensejados a operar a partir da normativa da política pública, com
um ideal social. O não pode ser escutado como um não àquilo que é proposto pelo outro, mas um
sim a uma invenção singular do sujeito de formas de existir.
Assim, torna-se pertinente questionar qual a direção do acompanhamento na assistência
social, uma vez que esta pode estar a serviço do cumprimento de fazer caber todos em uma mesma
lógica. A psicanálise, dessa forma, pode fazer uma torção no discurso hegemônico, tornando-se
“[...] uma possível potência para a Assistência Social, no sentido de produzir alguma desordem, ao
incluir o sujeito do inconsciente como ênfase ante a malha de dominação e possibilitar novas saídas
singulares e sociais” (BALDISSERA, 2019, p. 43). Dizer não às proposições tradicionais da política
pública aponta para o que há de invenção e único no sujeito.
O Desenhista encontra uma forma bastante emblemática para nomear o seu espaço de
escuta: desenho. Para ele, voltar para “dentro do desenho” era retornar ao seu espaço de cuidado,
entendendo-o para além do espaço de atendimento e escuta individual, mas como uma retomada
da relação transferencial que atualiza no sujeito a questão: “o que quer de mim?” Supor que aquela

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que o escuta espera algo dele o faz voltar para “dentro do desenho”, um lugar onde precisa trabalhar
para dar conta de suas questões e decifrar os enigmas que encontra nesse processo. Era um lugar
onde podia falar livremente, recebendo indagações que o colocavam a refletir sobre sua história
e suas escolhas. E pensar, como ele mesmo pôde entender, dava muito trabalho – um trabalho
psíquico que era necessário para a sustentação de sua posição de sujeito diante do Outro.
O Desenhista não precisava que desenhassem por ele, ou que desejassem por ele, ou que lhe
dissessem o que fazer – a tudo isso, ele dizia não. Precisava que sua negação fosse desmembrada
para se abrir à possibilidade que desenhassem com ele, dando-lhe trabalho, desejando sua presença
e sua produção.
O sujeito, ao dizer não querer sair da situação de rua, abre espaço para falar sobre sua
condição de estar na rua. Com efeito, torna-se possível a produção de uma narrativa do sujeito
acerca de sua história: de onde veio, que males o acometeram, que alegrias pôde experienciar.
Passam a ser colocadas palavras em uma história que, muitas vezes, vem sendo silenciada pela sua
condição traumática e de violência.
Podemos tomar o não como um significante da singularidade do sujeito que não se contenta
em seguir protocolos, mas que possui em si uma potência para a produção de novos modos de ser
e estar no social.

O lugar do psicanalista na instituição


Além da escuta singular do Desenhista, fez-se necessária a sustentação da analista perante 245
45A
os colegas acerca da importância de darmos seguimento ao atendimento desse usuário que se
negava a sair da rua, realizando dois movimentos: um de escuta do sujeito e outro de sustentação
institucional da possibilidade da sua permanência nos atendimentos.
Quanto à escuta, vale partir de uma situação que ocorreu no acompanhamento do
Desenhista. Assim como ocorre em diversas situações, a autorização para seu pernoite passou a
ser questionada pela equipe ao não perceber nele nenhum movimento para a saída da situação
de rua. No entanto, ao trabalhar essa questão com os colegas, o acompanhamento pôde seguir,
considerando que o Desenhista vinha falando e produzindo mudanças de posição de sujeito em
relação ao Outro.
Essa posição de sustentação institucional faz-se necessária com alguma frequência em
determinados casos, em especial quando são pessoas que dizem não querer sair da situação de
rua e cujos movimentos subjetivos demandam disponibilidade de escuta para serem percebidos.
Um trabalho de diálogo, debate e reflexão precisa ocorrer no âmbito da equipe técnica para que
algumas direções de acompanhamento possam se efetivar.
Para a escuta do Desenhista, fez-se necessária a suspensão das demandas dos protocolos
tradicionais associados à normativa da política pública voltada à população em situação de rua,
para que se produzisse um desenho com os traços, cores e borrões que o espaço de escuta nos
permitiu desenhar juntos. Em relação à escuta, vale considerar a proposição de Barthes (1990, p.
217): “Ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar é um ato psicológico”. Assim, a escuta não pode
estar desvinculada de sua intencionalidade e situa-se para além do que é dito ou emitido.
Não raro, encontramos pessoas em situação de rua que dizem em atendimento aquilo que
supõem que devem falar ao profissional da assistência social: que querem trabalhar, que querem
possuir moradia fixa, etc. Da mesma forma que o não sair da situação de rua deve ser escutado para
além do emitido, a afirmação também não está de antemão dada. Tal fato evidencia-se quando os
processos de acompanhamento de alguns usuários dos serviços não resultam em modificações da
situação inicial, gerando insatisfação nas equipes de trabalho. Vale interrogar, nesses casos, se está
sendo possível escutar – e não apenas ouvir – aquilo que o sujeito está comunicando. Escutar o
sujeito, em última instância, implica compreender que as pessoas atendidas não devem responder
àquilo que desejamos. É necessário o deslocamento da equipe em seu desejo de curar para
uma posição de escuta que busca localizar junto aos sujeitos o que se repete, o sem sentido e as
amarrações possíveis para cada caso (SILVEIRA, 2019).
Acerca das pessoas em situação de rua, “[...] em uma sociedade que as torna invisíveis,
talvez sejamos poucos os que podemos dar sustentação para que esses sujeitos venham a desejar,

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e esse é um caminho que são eles mesmo quem dão, desde que sejam escutados” (BALDISSERA,
2019, p. 53). O trabalho analítico nesses contextos implica dar lugar ao sofrimento das pessoas
atendidas. Ainda conforme o autor, “[...] sabemos que estar na rua é fruto de inúmeras rupturas
(afetivas e econômicas), mas, se antecipamos isso, o que o sujeito tem a nos dizer sobre estar nessa
condição?” (BALDISSERA, 2019, p. 84).
Um dos temas bastante recorrentes na população em situação de rua é o uso de álcool e
outras drogas. Assim como o Desenhista, são diversas as pessoas que se encontram de tal forma
engatadas no uso de substâncias psicoativas que outras esferas da vida parecem perder seu valor
e sentido. Não cabe ao psicanalista tentar barrar o acesso a drogas ou intervir apenas pela via da
abstinência, considerando que o uso de drogas é uma forma de gozar encontrada pelo sujeito
(SHIMOGUIRI; COSTA; BENELLI; COSTA-ROSA, 2019). A contribuição da psicanálise, nessas situações,
estaria na oferta da oportunidade ao sujeito de falar sobre a droga e de diversificar a demanda, de
maneira que o sujeito possa produzir sentidos para seus conflitos.
No caso do Desenhista, o enredo de sua história girava, em um primeiro momento, em torno
do álcool. No entanto, ele não percebia isso como um problema. Foi a partir do momento em que
o uso de álcool deixou de ser escutado como tema central no atendimento que se tornou possível
escutar o sujeito e o seu uso de álcool passou a ser uma questão para ele.
O Desenhista apresenta uma mudança em sua posição de sujeito que pode ser percebida
apenas a partir de uma mudança na posição de quem o escuta. O não querer sair da situação
de rua é subvertido quando o não passa a ser escutado como enunciação de um sujeito que se
nega a seguir mandatos e protocolos dos quais não é autor: um sim ao desejo. Vale destacar duas
246
46A
ferramentas na escuta clínica durante o atendimento do Desenhista que fizeram com que essa
torção do não para um sim ocorresse: a sustentação do espaço de escuta e a posição transferencial.
É comum que a escuta de pessoas em situação de rua seja baseada unicamente no campo
do utilitarismo, respondendo às queixas do sujeito que procura por atendimento: se precisa de um
documento, que lhe seja realizado o encaminhamento. Ao mesmo tempo em que é importante
que certas necessidades da ordem utilitarista sejam satisfeitas no atendimento, a escuta clínica
abre espaço para o surgimento do inusitado – se o sujeito fala livremente, não se sabe o que poderá
vir para a cena do atendimento (BALDISSERA, 2019).
Tal possibilidade de escuta se vê alicerçada no estabelecimento de uma relação
transferencial. Lacan (1951/1998c) analisa os momentos transferenciais na escuta clínica, apontando
desenvolvimentos da verdade e suas respectivas inversões dialéticas, que colocam o tratamento
analítico em movimento. A inversão dialética equivale à “[...] escansão das estruturas em que, para
o sujeito, a verdade se transmuta, e que não tocam apenas em sua compreensão das coisas, mas
em sua própria posição como sujeito da qual seus ‘objetos’ são função” (LACAN, 1951/1998c, p.
217). A verdade é transmutada, de maneira que a sua posição como sujeito também é modificada.
A direção do tratamento corresponde à sustentação de um percurso dialético, de maneira
a buscar a superação dos momentos de estagnação (COUTO, 2004). No processo de escuta do
Desenhista, há um momento de certa estagnação, correspondente ao período em que se buscava
construir a saída da situação de rua atrelada à redução ou suspensão do uso de álcool. Se em um
primeiro momento a escuta consistia em uma posição propositiva de coisas ao Desenhista, buscando
diferentes caminhos para se chegar sempre a um mesmo destino ideal, no segundo momento, a
posição de escuta se torna a de acolhimento. Assim, é possível afirmar que a mudança na posição
de escuta no atendimento do Desenhista provocou uma mudança na posição transferencial, de
maneira que os atendimentos pudessem seguir.
No que tange à escuta do Desenhista, o primeiro momento da escuta envolveu sua condição
de negação à saída da situação de rua. A inversão dialética nesse momento do tratamento
correspondeu à interrupção de oferta de propostas a se fazer, convocando o sujeito a um lugar
de autoria na construção de tais propostas. Desse modo, produziu-se um segundo momento da
escuta, em que ele se torna o Desenhista, interessado por desenhar e conhecer. A segunda inversão
dialética constituiu-se na apresentação de outras fontes de conhecimento: a escola. Disso decorre
um terceiro momento da escuta, em que o Desenhista experimenta uma vida “dentro do desenho”
e outra “fora do desenho” e questiona qual dessas vidas deveria seguir. A terceira inversão dialética
baseou-se na sustentação do enigma levantado pelo sujeito, colocando-o na posição de produção

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de lembranças e de novas respostas.
A partir do trabalho de desenhar em dupla, que só pode ser concebido se for em uma
relação transferencial, é que a torção do não em sim pôde ocorrer. No caso do Desenhista, poder
escutar seu não como potência, como resistência de seguir um protocolo do qual não se percebia
autor, permitiu que o trabalho analítico tivesse seguimento. Para além disso, reconhecê-lo como
um desenhista é escutá-lo desde sua condição de produção de singularidade, em que ele é
transformado em autor de sua história. A escuta, sustentada pela ética da psicanálise, possibilita o
reconhecimento do desejo do sujeito que está em situação de rua, que é convocado a ocupar uma
posição ativa diante daquilo que lhe é demandado pelo Outro, mesmo que a ação seja a de fazer-se
paralisado, como uma forma de resistência ao sistema que lhe é imposto, como um contrafluxo na
lógica de produzir e consumir proposta pelo capitalismo.
Em relação ao lugar do psicanalista na instituição, é importante considerar a tensão entre
a política pública e o lugar do sujeito. Se entendemos que há um desencontro entre o sistema
formal das políticas públicas e as maneiras que as pessoas encontram para viver (SCARPARO;
POLI, 2013), podemos propor que o lugar do psicanalista seja o de tensionar a relação entre o
singular e o coletivo, buscando formas de atuação na política pública em que a singularidade não
seja anulada. É necessário operar no trânsito entre o sujeito atendido e a instituição, construindo
formas diferenciadas de escuta conforme as condições de cada um. Aí se sustenta a relevância
da construção do caso clínico em equipe, levando a palavra do sujeito a espaços de produção de
alternativas de atendimento.
Na condução do caso do Desenhista, foi necessária a sustentação institucional da
247
47A
manutenção do espaço de escuta e da possibilidade de singularização do desejo. O tensionamento
entre o sistema formal da política pública de assistência social e a condição de produção do sujeito
foi permanente nas reuniões de equipe, de maneira que foi possível construir caminhos de um
acompanhamento singular que buscou respeitar o desejo do sujeito.
No entanto, é importante ressaltar que o lugar do psicanalista, de sustentação do espaço
de escuta e da singularização do desejo, não se dá apenas em cada instituição, mas no fato de que
há um desafio macropolítico. O trabalho com políticas públicas em contextos de vulnerabilidade
e exclusão social implica uma descolonização da escuta (TOROSSIAN, 2019), ou seja, uma clínica
em rede que deve movimentar sua posição de escuta e estar em diálogo com quem se ocupa de
pensar os processos sociais e a desigualdade. Para além de construção de consensos na condução
dos casos, há uma aposta na multiplicidade de discursos que podem ser produzidos nos diferentes
pontos da rede de cuidados, considerando que os trabalhadores dessa rede devem se ocupar tanto
das questões da clínica como da política, tendo em vista que a política também se constitui em
campo de intervenção.

Considerações Finais

O caso do Desenhista traz importantes questões à clínica com pessoas em situação de rua.
Em especial, destaca-se o não presente em seu discurso e no de tantos outros que dizem não querer
sair da situação de rua.
Propomos que, a partir de uma escuta singularizada e contextualizada no caso a caso, esse
não possa ser escutado como denegação, ou seja, tomado como negação e afirmação ao mesmo
tempo. Portanto, envolve tomar a associação produzida que só pôde ser expressa pela sua via
negativa, assim como reconhecer a potência do não como uma afirmação de sujeito que se nega a
seguir um roteiro do qual não se percebe autor.
Assim, nos serviços da assistência social, é imprescindível uma posição de escuta que inclua o
acolhimento do sujeito, considerando a situação social. A sustentação da possibilidade de invenções
singulares de viver ganha relevância nesse contexto, de maneira que as pessoas atendidas pela
política pública de não devem se submeter a protocolos padronizados de formas ideais de viver em
decorrência de sua condição social. O lugar da psicanálise, nesses contextos, é o de sustentação do
espaço de escuta, no qual a singularização do desejo torna-se central na clínica.
Quanto ao Desenhista, a escola tornou-se uma referência organizadora, um importante lugar

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para conhecer outras pessoas e até mesmo se conhecer em outro lugar. O Desenhista concluiu o
Ensino Fundamental, cursa o Ensino Médio e segue com outras aspirações. Saiu da situação de rua
e retornou algumas vezes, voltou a fazer uso de álcool e parou tantas outras. O caso do Desenhista
não é um caso de sucesso, do ponto de vista de uma saída linear da situação de rua. No entanto, há
muitos avanços que se percebem na postura de um sujeito que se responsabiliza pelos caminhos
por que escolhe percorrer. O que permanece sobre esse acompanhamento é algo que ele mesmo
disse: “A gente foi conversando, conversando, e nem sei como, mas cheguei até aqui”.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

250
50A
CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O RACISMO
BRASILEIRO: UMA HISTÓRIA FEITA POR MULHERES NEGRAS

PSYCHOANALYTICAL CONTRIBUTIONS ON BRAZILIAN RACISM: A


HISTORY MADE BY BLACK WOMEN

Fábio Santos Bispo 1


Mariana Mollica da Costa Ribeiro Araujo 2
Beatriz Oliveira da Silva 3

Resumo: Este artigo se propõe a discutir as principais contribuições psicanalíticas para os estudos sobre o racismo no Brasil,
demonstrando que se trata de uma história construída sobretudo por mulheres negras. Destaca o trabalho de Virgínia
Bicudo como antecessora dessas contribuições, que se desdobram posteriormente em três tempos: o primeiro tempo é
representado pela obra de Neusa Souza, que destaca as incidências coloniais e subjetivas do racismo no inconsciente; o
segundo tempo é situado a partir de Lélia Gonzalez, que estabelece um contraponto teórico, focando nas figuras da mãe-
preta e seu papel na transmissão da lalíngua amefricana, uma dimensão da negritude que resiste à dominação colonial.
O terceiro tempo é remetido ao atual momento de retomada dos estudos raciais pela psicanálise brasileira, como um
tempo de coletivização da produção e de compromisso político com o resgate das perspectivas de crítica do racismo e de
afirmação da negritude.

Palavras-chave: Psicanalistas Negras. Psicanálise Brasileira. Racismo. Negritude.

Abstract: This article proposes to discuss the principal psychoanalytical contributions to the studies on racism in Brazil,
demonstrating that it is a history built mainly by black women. It highlights the work of Virgínia Bicudo as the predecessor
of these contributions, which later unfold into three periods: the first period is represented by the work of Neusa Souza,
that calls attention to the colonial and subjective incidences of racism in the unconscious; the second half is based on
Lélia Gonzalez, who establishes a theoretical counterpoint, focusing on the figures of the black mammy and its role in the
transmission of Amefrican lalangue, a dimension of blackness that resists colonial domination. The third period refers to
the current moment of resumption of racial studies by brazilian psychoanalysis, in a time of collectivization of production
and political commitment to the rescue of the perspectives on criticism of racism and the affirmation of blackness.

Keywords: Black Psychoanalysts. Brazilian Psychoanalysis. Racism. Blackness.

1 Doutor em Psicologia e Pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor
Adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7078731129867747. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0488-6163.E-mail: fabio.bispo@ufes.br

2 Pós-doutoranda Sênior da FAPERJ pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2046000937874008. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3106-9321.
E-mail: marianamollica@gmail.com

3 Mestre em Psicologia Institucional pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4189874092423894. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3106-9321. E-mail: biaoliveira.md@gmail.com
Introdução

Este artigo se propõe a resgatar as principais contribuições psicanalíticas para os estudos


sobre o racismo no Brasil. Não por acaso, veremos que esta é uma história construída sobretudo
por mulheres, intelectuais negras cujas produções se tornaram fundamentais para uma abordagem
clínica sobre as relações étnico-raciais. Nosso recorte em torno da psicanálise advém de nossa
trajetória de vida, de clínica e de pesquisa, mas também se relaciona com a própria história da
Psicologia, que encontra na psicanálise um suporte e um impulso para, em diálogo com as
abordagens sociológicas e antropológicas, empreender uma contribuição própria ao campo da
saúde mental.
Essa parte da história do pensamento psicanalítico sobre o racismo não foi apagada apenas
da psicologia, mas da própria psicanálise. O debate não foi devidamente acolhido pelo campo
psicanalítico, de modo que as contribuições das autoras negras foram de certa forma foracluídas,
ou seja, tratadas como se não existissem. Em nossa própria formação na psicologia e na psicanálise,
o encontro com esse debate não ocorreu senão tardiamente, por uma demanda externa ao campo,
advinda dos movimentos sociais e dos coletivos de estudantes.
Embora seja desconfortável evocar esse apagamento, a reversão desse processo não
se realizará sem que nos debrucemos sobre seus determinantes. Isso porque, em parte, eles
constituem os próprios critérios colonialistas de legitimação dos saberes acadêmicos. Ainda que as
contribuições aqui evocadas não tenham sido feitas totalmente fora da universidade, estes debates
não tiveram no meio acadêmico seu principal campo de fomento, tampouco tiveram a devida
inserção das escolas de psicanálise. Pela trajetória das autoras, veremos que permaneceram como
saberes à margem tanto da Psicologia quanto da Psicanálise.
Propomos uma retomada dessa história em um esquema mais lógico que cronológico.
Resgatamos três tempos, precedidos por um tempo que não se coloca propriamente como uma
condição de possibilidade. É antes um tempo de precedência que aponta caminhos de abordagem
conectados com as particularidades da realidade social no Brasil.
• Antecedente – O trabalho da psicanalista Virgínia Bicudo (BICUDO, 1945/2010) é
pioneiro em muitos sentidos no Brasil. Além de ter sido a autora da primeira dissertação
de mestrado sobre as relações étnico-raciais, foi uma das primeiras pacientes da
psicanálise e a primeira psicanalista não médica no Brasil.
• O primeiro tempo – Pode ser situado com o trabalho da psicanalista Neusa Santos Souza
(1983/2021), que retoma as teses de Fanon (1952/2020a) para demarcar os impactos

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da violência racista na subjetividade de pessoas negras. O que está em jogo, tanto na
obra de Fanon quanto no livro Tornar-se negro, é a circunscrição da alienação do negro
ao Ideal do Outro branco, determinada pelo colonialismo.
• O segundo tempo – Embora seja contemporânea, a contribuição de Lélia Gonzalez
(1983/2020a) pode ser evocada como um contraponto no debate acerca da relação dos
negros com o racismo, na medida em que acentua aquilo que, do povo negro, insiste em
se transmitir, a despeito de todas as políticas de denegação e apagamento.
• O terceiro tempo – Este é um tempo de coletivização da produção, que se inicia com a
tese de Isildinha Baptista (NOGUEIRA, 1998/2021), passa pelo trabalho de Maria Lúcia da
Silva (KON; SILVA; ABUD, 2017) e chega aos nossos dias com a constituição de coletivos
de trabalho que assumem o compromisso político de resgatar do esquecimento essas
produções e fazê-las avançar a partir da presença expressiva de psicanalistas negras e
negros.

Apesar do risco de certa arbitrariedade na escolha desses marcos e até do esquecimento de


contribuições importantes, sobretudo dentre as mais atuais, o que sublinhamos como destaque não
é por acaso. Essas foram contribuições que condensaram movimentos políticos e intelectuais que
precisaram acontecer de fora para dentro: da universidade, da psicologia e da própria psicanálise.
Promoveram fissuras cuja retomada histórica pode potencializar mudanças mais pujantes no campo
psicanalítico atualmente, revitalizando sua prática e ampliando os horizontes de sua formação.
252
52A
Virgínia Bicudo – de um campo que se abre

O pioneirismo de Virgínia Bicudo, em um campo ainda inexistente no Brasil, faz dela uma
antecessora. A psicanálise mal existia no país, e um estudo psicanalítico acerca do racismo era
impensável. Ela opta, então, por abordar o tema a partir da sociologia, recorrendo a produções
que, na época, abriam uma linha possível de investigação acerca das relações raciais. “Queria o
curso de sociologia porque, se o problema era esse preconceito [de cor]”, declara a própria autora
em depoimento, “eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado
ao nível sociocultural” (BICUDO, 1994 apud MAIO, 2010, p. 23).
Podemos supor que essa via sociológica não se deu somente pela ausência de possibilidades
a partir da psicologia e da psicanálise. Seu depoimento demarca uma hipótese acerca daquilo que
Fanon (1952/2020a) chamará mais tarde de sociogenia, dimensão que ele buscará articular com
a psicanálise, ao lado da ontogenia1. Se ele buscou, em um ensaio que se anuncia psicológico e
clínico, circunscrever o fator social da colonização, podemos dizer que a dissertação de Virgínia
Bicudo, sendo um trabalho sociológico, não perde a sensibilidade para a experiência subjetiva. De
acordo com Maio (2010), a pesquisa foi bastante influenciada pela experiência como visitadora
psiquiátrica, que expôs a autora a tensões, preconceitos e violências que atingiam crianças de
camadas populares. Ele relata que a autora combina análise sociológica com psicologia social,
valendo-se também de seus estudos e experiências no campo da psicanálise.
A pesquisa foi realizada entre 1941 e 1944, no período da Segunda Guerra Mundial. Foi,
portanto, anterior a três movimentos importantes que impactaram a psicanálise e revitalizaram seu
vigor crítico e subversivo: os movimentos críticos e políticos advindos do pós-guerra, culminando
no Maio de 68; a releitura de Freud empreendida por Jacques Lacan, que nas décadas de 50 e 60
formulou, em diálogo com o estruturalismo e movimentos pós-estruturalistas, esquemas lógicos de
leitura do impacto das estruturas discursivas no inconsciente e no corpo falante; e, principalmente,
a produção de Frantz Fanon, que convoca a psicanálise – ao lado do existencialismo e do marxismo
(FAUSTINO, 2015) – para se debruçar sobre as especificidades da experiência vivida pelo negro e o
lugar da violência colonial na concepção clínica e epistemológica da psicopatologia.
Virgínia Bicudo descreve de forma precisa o caráter precursor de seu trabalho, logo no
primeiro parágrafo: “um estudo preliminar que visa ilustrar a aplicação de um método e uma técnica
na coleta de dados e abrir caminho para pesquisas posteriores” (BICUDO, 1945/2010, p. 63). Se a
dimensão metodológica e técnica guarda ainda a influência da sociologia americana, e se a própria
referência da psicologia social, sustentada na noção de “atitudes”, ainda participa de uma psicologia

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pouco vigorosa em relação às críticas sociais, o desejo de abrir caminhos para a posteridade parece-
nos uma afirmação digna do lugar que a produção intelectual da autora pôde sustentar.
Do ponto de vista fenomenológico, a descrição das relações raciais que Bicudo encontra na
cidade de São Paulo não destoa do quadro exposto por Fanon (1952/2020a) alguns anos depois.
O parágrafo abaixo sintetiza diversas categorias que serão retomadas posteriormente a partir da
psicanálise:
Os indivíduos não só procuram o convívio íntimo com o branco,
situação única para lhes dar autoafirmação, como se isolam do
preto. Lutam conscientemente para conseguir a aceitação do
grupo dominante. A luta é diretamente conduzida no sentido
de eliminar o sentimento de inferioridade proveniente da
concepção de si próprio, concepção esta que resulta da
introjeção da atitude do branco. Empenha-se, então, em
conseguir status ocupacional das classes sociais intermediárias,
conquistando diploma de cursos secundário e superior ou
habilidades profissionais. Mas, apesar do esforço para valorizar
o capital humano pela instrução, o preto continua sentindo-se

1 Sociogenia é um conceito evocado por Fanon para destacar a importância da dimensão social na gênese da
psicopatologia e outros fenômenos subjetivos. Para o autor, a psicanálise teria substituído a filogenética – que
remete a transmissões biológicas ou genéticas vinculadas à espécie – pela perspectiva ontogenética, que prioriza a
história do indivíduo. “Além da filogenia e da ontogenia, existe a sociogenia” (FANON, 1952/2020a, p. 25).
253
53A
rejeitado em certas esferas sociais, rejeição que o traumatiza e
desenvolve a consciência de cor (BICUDO, 1945/2010, p. 158).

Na parte final, onde a autora propõe um resumo e “hipóteses para pesquisa posterior”
(p. 157), é possível encontrar uma referência sucinta e descritiva a problemáticas que serão
posteriormente aprofundadas e abordadas em conexão com a psicanálise, tais como: a constituição
de um Ideal do Eu branco, retomada também com a noção de branquitude (BENTO, 2022);
a construção do mito negro (SOUZA, 1983/2021), ou da razão negra (MBEMBE, 2018a) como a
constituição de uma categoria da qual todos buscam se afastar; o paradoxo da ascensão social, que
descortina o mito da democracia racial e da meritocracia, forçando uma “consciência de cor” que
funciona como um imperativo compensatório de uma suposta inferioridade (BICUDO, 1945/2010);
dentre outros elementos. A estratégia da autora de pesquisar um movimento coletivo da negritude
também permite antecipar uma linha de investigação que buscará os movimentos de resistência e
enfrentamento político.
A “Associação de Negros Brasileiros”, segundo Bicudo (1945/2010), representou uma
tentativa de pretos conscientes para lutar contra as restrições do branco, despertando a consciência
de grupo, desenvolvendo um programa definido de reivindicações referentes aos aspectos
econômico, social e político. As dificuldades para conseguir reuni-los e a indiferença de pretos e
mulatos das classes sociais intermediárias revelam a intensidade com que os ideais e conceitos do
branco foram incorporados.
Neusa Souza (1983/2021) posteriormente destacou, em suas conclusões, a militância
como saída para a superação do sofrimento psíquico advindo do racismo. Da mesma forma, Lélia
Gonzalez (1983/2020a) e a historiadora Beatriz Nascimento (1985/2021) se debruçaram sobre o
papel das lutas e invenções do povo negro para a reversão do impacto das violências, ponto de
ênfase também retomado pelas psicanalistas negras contemporâneas. Virgínia Bicudo também
já apontava as limitações e riscos que a luta coletiva comporta, na medida em que pode ser
atravessada pela lógica colonial, se não se considera o trabalho subjetivo de cada um.

Neusa Souza: clínica antimanicomial e anticolonial da subjetividade


e das instituições

O pensamento de Neusa Santos Souza é o que melhor retoma as teses de Frantz Fanon para
formular uma construção psicanalítica sobre os modos de subjetivação da violência colonial. Apesar

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disso, pouco se extraiu até hoje de suas elaborações para o campo da saúde mental, dos estudos
psicanalíticos sobre o racismo e do ensino de psicologia nas universidades. Esse esquecimento não
advém somente das instituições de formação. Todo um espaço de militância e politização próprios
à reforma psiquiátrica brasileira também se manteve alheio à questão racial, que só veio a ser
retomada mais recentemente. Nesse sentido, resgatamos brevemente as referências pertinentes
de Fanon e algumas notas sobre a atuação clínica e a transmissão teórica de Neusa Souza no campo
da saúde mental.
Além das relações que podem ser destacadas entre a objetificação dos negros no processo
colonial e a objetificação dos loucos nos hospícios, vale dizer que grande parte das mulheres e
homens internados nos hospitais psiquiátricos no Brasil eram e são pretas e pretos. Para Fanon
(2020b), a Psiquiatria é um braço do sistema colonial. Nos escritos psiquiátricos, ele sublinha que as
diferenças culturais determinavam a existência do mundo branco antinegro, impondo distúrbios à
população negra em estado de colonização. Pensando em termos de psicopatologia, Fanon (2020b)
afirma: “a colonização, mais que um envenenamento político, é, sobretudo, uma intoxicação
psíquica” (p. 127). Contra o caráter brutalmente tóxico da colonização racista, ele levanta a voz
e defende uma libertação política efetiva dos povos de África, que precisam lutar com todas as
armas para produzir uma descolonização do território, dos corpos e das mentes. Sua análise
psicopatológica, inaugurada a partir da experiência como psiquiatra nos manicômios da Argélia, é
bem atenta ao atravessamento do racismo no tratamento dos pacientes, calcado nas estruturas da
colonização. O adoecimento psíquico deve ser pensado levando-se em conta o papel das instituições
254
54A
colonizadoras no processo. As instituições médicas e a epistemologia que fundamentam as práticas
de tratamento operam como agentes de patologização, docilização e resignação. A internação
reproduz a “dialética sumária do senhor e do escravo, do prisioneiro e do algoz” (FANON, 2020b, p.
87), em que o louco é transformado em paciente. O manicômio se constituiu como um instrumento
privilegiado de encarceramento colonial dos negros e, como tal, uma mortífera arma branca para
dominar e controlar o povo negro. Por que, então, a dimensão racial envolvida no silenciamento
dos loucos não foi fonte de questionamento pelos ideais da Reforma brasileira, tão combativa e
politizada?
Nem todos sabem, mas Neusa Santos Souza hoje batiza um CAPS que se localiza na Zona
Oeste do Município do Rio de Janeiro, num dos lugares mais distantes do centro. A Área Programática
5.0, onde se localiza o serviço, é uma das regiões com menor investimento do governo na rede de
Saúde Mental carioca, mas, apesar disso, tem uma potência transformadora ímpar no território.
Quem conheceu Neusa não se surpreende com esse efeito simbólico de seu legado na periferia,
fazendo avançar a reforma psiquiátrica pós-virada do milênio e colocando a questão racial como
elemento central. É lá também que frutificam os efeitos reais da intervenção clínica que mobiliza
o inconsciente, em uma das regiões de maior domínio da milícia e, portanto, onde a necropolítica2
encontra caminhos mais abertos e com menos controle das instituições jurídicas e legais.
Muito além de ser conhecida por seu Tornar-se negro, a psicanalista é reconhecida por seu
livro sobre as psicoses (SOUZA, 1991), que consagra sua habilidade clínica e rigor teórico no manejo
com a transferência em quadros graves de psicose. Além de ter tido a experiência de tê-la como
supervisora de casos clínicos, uma das autoras teve a honra de aprender com sua experiência no
grupo de ouvidores de vozes na Casa Verde, em uma oficina criada por ela na década de 90. Ali ela
transmitia a todos a importância de estar atento ao conteúdo de uma espécie de ruído, pedaços
de palavras ou às tais vozes que os usuários relatavam. Neusa transmitia com firmeza a ideia de
que tais alucinações não eram da ordem da percepção auditiva e não tinham uma materialidade
sensorial. Demonstrava que havia uma espécie de interpretação do sujeito acerca daqueles
pedaços de língua, daquela cadeia congelada, “letrificada” – chumbo na malha do discurso, como
diz Lacan (1955-56/2008) – a tal ponto de nos ensinar que o ouvidor de voz não era tão passivo
frente ao caráter invasivo da experiência. Cada um dos ouvidores de vozes ia ensinando para os
demais como enfrentava aquela experiência que, embora fosse terrificante, orientava acerca das
possibilidades de laço social através do trabalho em grupo. Embora singulares, as vozes e outras
sensações poderiam ser o índice de uma produção coletiva: ideia para uma pintura, inspiração de
uma escultura ou poesia, mote para a escrita de uma matéria ou crônica na oficina de jornal e, até

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mesmo, uma proposta inédita de atividade a ser realizada pela própria instituição. Neusa, portanto,
nos indicava não apenas o lugar do psicanalista na instituição, mas também no coletivo.
Também nos seus seminários quinzenais, trazia fragmentos dessa clínica para articular com
o ensino de Lacan. Mostrava como cada elemento clínico na psicose nos ensinava sobre o real.
Dava dignidade ao ato, à passagem ao ato3, desconstruindo a ideia de periculosidade e apontando
a crise como intervalo do sujeito para sua transformação e reorganização psíquica, a depender do
lugar que o clínico ocupasse. A autora aponta seu caminho ético: “Costumamos saber de cor a lição
dos livros, e ignorar, em ato, o saber sabido... E nada como a fala, a resposta, de nosso paciente
para ajustar ou retificar nossa posição e ampliar nossa possibilidade de ouvir e aprender” (SOUZA,
2021, p. 142). A iniciativa de dizer, ela nos mostra, não deve vir de quem escuta. Como lhe ensina
sua paciente, o verdadeiro fator de turbulência seria a própria imposição forçada de um cuidado
baseado num saber que pressiona, oprime e coloniza, comportando um grave risco de ruptura do

2 A noção de necropolítica é utilizada por Achille Mbembe (2018b) para discutir as formas contemporâneas em
que o poder político “faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto” (p. 6).
3 Essa expressão é usada para designar o ponto em que o sujeito é atravessado por seu ato. Ela se conecta com a
noção de acting out ou atuação, que se refere a situações em que o paciente age em vez de recordar e expressar
em palavras suas associações e elaborações durante a análise. De acordo com Freud: “Um grupo de pacientes não
se lembra de nada do que esqueceu e reprimiu, mas o expressa por meio de ações, ou seja, age em vez de lembrar.
Eles repetem o passado não como uma lembrança, mas como uma ação; eles o reproduzem sem saber que estão
repetindo” (FREUD, 1914/1996a, p. 165). Com a noção de passagem ao ato, Lacan acentua uma modalidade de
ato que rompe com o endereçamento ao outro e a conexão com um sentido inconsciente, muito comum em casos
de psicose.
255
55A
trabalho analítico. Ela nos ensina o que aprende com o manejo da transferência com psicóticos e
nos adverte para não reforçar a posição de objeto que fixa o sujeito na psicose. Além disso, aponta
para a construção de um caminho a partir de uma escolha, de responsabilidade do sujeito.
Apesar de nunca ter se filiado a nenhuma escola ou sociedade de formação psicanalítica,
Neusa foi muito reconhecida em todas elas. Era incontestável sua respeitabilidade nos espaços
políticos da Saúde Mental, sendo escutada tanto pelos teóricos principais da reforma psiquiátrica
brasileira quanto pelos profissionais que implementaram cada planejamento estratégico público de
desinstitucionalização. Apesar disso, seu primeiro livro, Tornar-se negro, não obteve a repercussão
merecida no âmbito da saúde mental. Talvez pelo mesmo motivo que fez com que Franco Basaglia
tenha sido uma das maiores inspirações para a reforma psiquiátrica brasileira e Fanon, que era
lido por ele, não era sequer conhecido no Brasil4. Embora sua construção sobre o negro em
ascensão social não fosse lida na psicologia, Neusa foi muito conhecida e lida pelos movimentos
sociais, principalmente pelos movimentos negros, desde a década de 80. Não apenas porque teve
importância significativa nesses movimentos populares, mas porque sua retomada da psicanálise
lacaniana para a leitura do racismo era legível e acessível para o público em geral.
Neusa Souza parte da tese de Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas (1952/2020) de
que para o negro ser considerado humano, no horizonte imposto pela colonização, só haveria uma
saída: assemelhar-se ao branco. A ideologia que ignora a cor, proclamando a ideia de universalidade
e igualdade, está a serviço do racismo, pois a exigência de ser indiferente à cor significa dar suporte
a uma cor específica: a branca. Fanon insiste em uma crítica incisiva à negação do racismo contra o
negro na França e em grande parte do mundo moderno. Mesmo não sendo psicanalista, era leitor
de Freud, o que o fez perseguir uma questão sobre as consequências psíquicas dessa lógica colonial
imposta aos colonizados. Isso não se deu somente por meio de imposições econômicas e políticas,
mas através da promessa de reconhecimento submetida ao domínio do idioma do colonizador,
da negação da própria língua e assumindo, também, a identidade cultural e a aparência física dos
senhores. Fanon chega a explorar a ideia de um racismo do negro contra o negro como efeito dessa
perversa artimanha psicológica colonial; uma forma de narcisismo na qual o negro busca, como
ilusão dos espelhos oferecidos pelo dominador, uma máscara branca: um espelho branco no qual
deve estar refletido. Neusa Souza extrai este ponto para desenvolver sua teoria sobre a tentativa
dos negros brasileiros de conquistarem seu estatuto de gente, de humano. Isso se dá através da
ascensão social: por meio da identificação a um Ideal do Eu branco.
A autora sustenta sua hipótese através do Ideal do Eu como referência e aglutinador das
massas em Freud (1921/1996), retomado por Lacan a partir da noção de ordem simbólica. Ela

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evidencia que, para o Eu se constituir, é preciso um modelo ideal, que recupere um narcisismo
perdido original em decorrência daquilo que os próprios pais e seus ideais sociais se assentam; a
saber, no Ideal do Eu. Para Lacan, o Ideal do Eu é uma instância normativa, ou seja, um registro que
tece a ordem simbólica, funcionando como a lei que incide sobre o sujeito5. Nas palavras da autora,
é “a estrutura mediante a qual se produz a conexão da normatividade libidinal com a cultural”
(SOUZA, 1983/2021, p. 64). Há sempre defasagem, como nos mostra Freud (1914/1996), entre o
eu ideal almejado e o eu atual, e cabe ao Ideal do Eu cobrir esse fosso, ou seja, fazer assemelhar o
Eu com os ideais do Outro.
Neusa Souza (1983/2021) refere-se então ao negro cujo Ideal do Eu é branco (p. 65). Ela
mostra, através das pessoas que entrevistou, que o sujeito muitas vezes se aproxima dos valores
da elite – ser bem-sucedido, nobre, rico – atribuindo tais qualidades às pessoas brancas. Para

4 A primeira tradução brasileira de Fanon foi realizada no início da década de 80, por um psicanalista baiano, Jairo
Gerbase, que afirma: “Ao descobrir Fanon eu descubro o racismo e assim como Neusa Santos Souza começo a me
interessar pelo assunto. Aí eu me descubro negro”. Apesar de ter sido estagiária na Casa de Saúde Ana Nery, em
Salvador, onde Gerbase era supervisor, o livro de Neusa Souza foi uma produção independente dessa edição de
Fanon (GERBASE; AIRES, 2021).
5 Neusa Souza explora a ênfase que Lacan (1955-56/2008) dá aos atravessamentos sociais implicados na
noção de Ideal do Eu, por ele denominado Ideal do Outro. Com a notação I(A), Lacan propunha que o Outro é
o fundamento principal dos ideais que oprimem o Eu, retomando a importância da sociogenia reivindicada por
Fanon. Lembrando que a noção de Outro com maiúscula é utilizada em diversas acepções, sempre para marcar
uma instância normativa que vincula o sujeito ao laço social: é o lugar do saber, o lugar da autoridade, mas também
o lugar da estruturação inconsciente propiciada pela linguagem.
256
56A
conseguir ser bem-sucedido, é preciso negar a valorização de sua história, de seus antepassados,
produzindo a inferiorização de suas heranças culturais e transmitindo essa operação a filhos, netos,
bisnetos. Trata-se de assumir o discurso racista: “casar com um francês para clarear a família” (p.
67). O contexto familiar é o lugar primeiro, as vigas mestras, em que se dá a ação constituinte
do Ideal do Eu, que se expande e transfere para a rua, a escola, o trabalho, os espaços de lazer, a
eficácia e o significado produzido a partir do ideal branco.
A autora destaca um tripé que sustenta essa operação psíquica como imperativa para o
negro: 1) o mito negro, que se estabelece como a ausência do Branco, como essa instância
normativa marcada pela cor como referência: o branco e o negro seriam dois extremos que
marcam uma relação simbólica de oposição, de presença e ausência de humanidade; 2) a ideologia
do embranquecimento, que impõe à pessoa negra uma negação de seu grupo social, sua aparência
e até de seu próprio corpo para que, individualmente, possa ser reconhecido; 3) por fim, o mito da
democracia racial, que esconde as condições de desigualdade e localiza na falácia do esforço e do
mérito as condições de ascensão social.
Segundo Fanon, para o negro se libertar não apenas do julgo moral, econômico e epistêmico,
mas principalmente subjetivo, é preciso que ele se transforme em um “ser de ação”, para superar a
barreira à liberdade em ambientes racistas e coloniais. Neusa Souza especifica essa proposta através
de sua experiência clínica como psicanalista. É preciso que o sujeito se liberte das identificações
aos traços culturais da branquitude para advir como sujeito e “tornar-se negro”. Ela afirma que,
para adquirir autonomia, é preciso possuir um discurso sobre si mesmo, discurso ancorado no
conhecimento concreto da realidade. A tarefa de ser negro, subvertendo a demanda do Outro, é
tarefa eminentemente política, que só ganha efetividade e consequência se for atravessada pela
ética de uma clínica do inconsciente.
Em seu livro, Neusa Souza sinaliza que não há saída que não inclua uma militância política,
na medida em que todas as vias individuais esbarram nos muros da violência colonial. Toda a sua
atuação clínica, porém, é testemunha de que o trabalho subjetivo singular é fundamental para que
a luta política não se torne adoecedora. Essa luta precisa romper com o paradigma colonialista para
reunir as possibilidades de o negro “possuir um discurso sobre si próprio” (p. 45). Há toda uma
dimensão de sentimento inconsciente de culpa - imposto pelo supereu que se acirra e dificulta a
destituição desses ideais - que pode ser enfrentada na análise. No nível social, esse enfrentamento
depende da possibilidade de ruptura de um silenciamento, e que a voz dos negros, a partir de seu
processo de subjetivação, seja afirmada no laço social. Esta não é uma transformação que se possa
fazer somente no plano individual. Neusa Souza transmite ao leitor de seu livro que o inconsciente

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é transindividual e que uma mudança subjetiva como essa provoca consequências coletivas, sociais
e históricas.

Lélia Gonzalez: A amefricana que falava pretuguês

Lélia Gonzalez é sem dúvida um dos maiores expoentes do movimento feminista negro no
Brasil. Além de uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, foi uma eminente pensadora
da condição do negro brasileiro e da realidade da mulher preta. Sua influência se expande para a
América Latina e Estados Unidos, tendo sido descoberta pelo feminismo europeu, especialmente na
França. Angela Davis (2019) afirma que aprendeu mais com Lélia Gonzalez do que nós poderíamos
aprender com a filósofa americana.
Gonzalez traz contribuições fundamentais nas perspectivas decolonial e interseccional.
Abriu um importante canal de crítica às ciências sociais a partir da Psicanálise, questionando o
modo como o negro é sempre representado no quadro de uma leitura sociológica. Embora não
fosse psicanalista, a autora foi uma estudiosa de Lacan, tendo traduzido alguns de seus textos para
o português e participado da fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Com seu humor e
astúcia característicos, extrai “um olhar novo e criativo no enfoque da formação histórico-cultural
do Brasil” (GONZALEZ, 1988/2020b, p. 127). Podemos situá-la como um contraponto à ênfase dada
por Fanon e Neusa Souza à dominação colonial branca do inconsciente negro. Ela sustenta a ideia
de que as formações do inconsciente no Brasil não são exclusivamente europeias e brancas. Dá
257
57A
ênfase, pois, à negritude que se transmite à revelia da estrutura colonial que nos governa. Lélia
Gonzalez propõe que somos uma América Africana, mas pela negligência da valorização de nossa
latinidade, adota uma proposta de M. D. Magno e Betty Milan de troca entre as letras T e D para
batizar nossa terra de Améfrica Ladina (GONZALEZ, 1988/2020b).
Lélia Gonzalez enfatiza fortemente sua condição de mulher negra. Ela recorre à psicanálise e
à experiência do inconsciente para nos transmitir seu processo de Tornar-se negra, que é ao mesmo
tempo político e subjetivo, retomando questões levantadas por Virgínia Bicudo (1945/2010) e Neusa
Souza (1983/2021). Para fazê-lo, ela nos mostra que é preciso subverter a língua. Do mesmo modo
que propõe trocar uma letra por outra, intervindo na língua para destacar uma verdade, de forma
tanto irreverente quanto poética e chistosa, desenvolve neologismos como a categoria político-
cultural da amefricanidade, para resgatar dimensões da negritude que têm sido historicamente
negadas pela neurose cultural brasileira.
A autora nos mostra que os afetados pela colonização e pela tentativa de apagamento das
consequências da escravização não são somente os negros. Somos todos ladino-amefricanos;
pretos, vermelhos, pardos e brancos. Gonzalez (1983/2020a) recorre ao conceito de denegação
para definir o racismo à brasileira, considerando que o “não”, ao ser colocado de forma muito
enfática frente a algum conteúdo psíquico, denota paradoxalmente sua afirmação. Segundo Freud
(1914/1996b;1925/1996e), a constituição do eu se dá a partir de uma expulsão [Austossung]. A
segregação de tudo aquilo que o eu rejeita para passar do eu real inicial ao eu da realidade final
é algo que o processo judicativo considera como mau e, portanto, expulsa. Esse “não” se erige
dialeticamente e em concomitância com o processo de bejahung, afirmação simbólica fundamental,
do que é repelido. Trata-se de uma marca no plano simbólico que determina ao mesmo tempo a
assunção do sujeito e sua separação do Outro. A expulsão constitutiva nunca é completamente
bem-sucedida, ela retorna, assim como o recalcado, através do que é negado.
O que é segregado não desaparece, mas o sujeito nega como se estivesse fora. Freud
(1925/1996e) ilustra com um sonho relatado por um paciente, que afirma não se lembrar de quem
aparecia no sonho: não sei com quem sonhei, afirma categórico o paciente, só sei que “não é minha
mãe!” (p. 265). Freud nos mostra que essa tentativa de negar aqui é na verdade uma resistência das
forças recalcadoras impedindo que o recalcado advenha. Indica que podemos dispensar a negativa
e admitir o tema geral como afirmação. “Um juízo negativo é o substituto intelectual do recalque”
(FREUD, 1925/1996e, p. 266). Ou seja, a denegação revela o que deve ser escutado pelo psicanalista.
Lélia Gonzalez forja um jogo de palavras, da negativa para “A nega ativa” (1983/2020a, p.
79), trazendo justamente o lugar da mulher negra com sua força de desejo sobrepujando o domínio

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colonial, branco e heteropatriarcal, como uma dimensão real do inconsciente não capturada
pelas estruturas simbólicas de dominação. Para tal, ela se serve de uma condensação da palavra
mucama, que vem do quimbundo mu’kama “amásia escrava” (p. 81). Seria a escrava negra, moça
de estimação escolhida para auxiliar nos serviços caseiros, e por vezes ama de leite. Esse nome
africano ficou na inscrição do dicionário, embora tenha se esvaziado no uso português do termo,
neutralizando seu significado original. Algo que precisava ser esquecido ou encoberto, entretanto,
permanece presente. Mucama, além da ama de leite, condensa o lugar da mulata, deusa do samba
nesse mito ou rito tão valorizado na Marquês de Sapucaí. Esse endeusamento carnavalesco, objeto
fetiche dos homens, no cotidiano, se transfigura em doméstica. Desvela-se então a dimensão de
culpabilidade através da carga de agressividade dirigida à doméstica ou presente “quando xingam
a gente de negra suja” (p. 87). A autora é bastante irônica e enfática ao criticar a perspectiva
sociológica que nega esse lugar de desejo ao discutir o “amor da senzala”, recalcando o lugar da
mulher preta.
Lélia Gonzalez, assim como Neusa Souza, destaca um papel para o mito da democracia racial,
como importante fator de manutenção desse encobrimento na cultura. A ideia da multiplicidade
étnica, multicultural e o culto à miscigenação revela uma falácia no centro da identidade brasileira,
já que nunca houve uma aceitação verdadeira da subjetividade afro-ameríndia, mas sim uma
tentativa, felizmente malograda, de exterminá-la. A miscigenação era um projeto higienista de
embranquecimento da raça e não uma cordialidade cultural em nome da harmonia entre os povos
e superação das relações coloniais violentas.
A psicanalista portuguesa, artista e feminista negra Grada Kilomba (2019) traça como marca
258
58A
real do projeto colonial a máscara utilizada na boca dos escravos e tem a escrava Anastácia como
símbolo. O silenciamento dos sujeitos escravizados aponta o traço mais forte do objeto voz, que
como Lacan (1972-1973/1982) nos mostra, é o resto que cai sem sentido da cadeia significante. Na
elevação da escrava Anastácia à categoria de símbolo, a máscara do silêncio aparece como ícone do
processo de dessubjetivação racial empreendido pelas relações de colonialidade. Nessa referência,
o enigma grego da cegueira edípica frente aos tabus do incesto e do parricídio é deslocado para
a sevícia inaudível da escrava, que tem sua língua ceifada, seu saber animalizado e seu corpo
fetichizado pelo senhor branco heteropatriarcal. Nesse sentido, o que se repete incessantemente
na estrutura colonial, sempre com novas tecnologias de morte, é o desvelamento do objeto voz
frente aos corpos negros e indígenas, que permanece como real que resiste ao recalque. A grande
poeta e escritora brasileira Conceição Evaristo, na trilha de Lélia Gonzalez, aponta o surgimento nas
redes de solidariedade do feminismo negro de algo que permite uma superação do silenciamento.
Uma afirmação sua parece sublinhar esse aspecto: “nossa fala estilhaça a máscara do silêncio, penso
nos feminismos negros como sendo esse estilhaçar, romper, desestabilizar, falar pelos orifícios da
máscara” (EVARISTO, 2017 apud RIBEIRO, 2017, p. 19).
Gonzalez circunscreve tal premissa a partir da psicanálise, tomando a língua falada pelos
brasileiros, aquela que transmite a sua origem cultural linguageira e sua identidade, através da
mãe preta. É ela que institui o “pretuguês” e o transmite. Embora os lugares fixados pela mulher
preta no Brasil sejam o de Mucama, que condensa mulata e doméstica, o que ficaria recalcado em
relação ao seu locus político e subjetivo nessa sociedade desigual e heteropatriarcal branca é sua
referência como mãe preta, que transmite não apenas para seus filhos, mas também para os filhos
dos senhores a lalíngua materna brasileira.
Lalíngua6 é um conceito tardio de Lacan (1972-73/1982), introduzido no seminário 20, para
situar um gozo presente na repetição daquilo que, do fonema, não está propriamente articulado à
cadeia significante. Pode ser evidenciado tanto pelo balbucio infantil, quanto pela satisfação obtida
no livre uso da linguagem pelos adultos, sem vinculação ao sentido da língua (a exemplo da poesia,
da música e do dito espirituoso). Lalíngua encontra-se presente no princípio de prazer freudiano,
definido como “o que se satisfaz com o blá-blá-blá” (p. 77). Para Lacan, o “inconsciente é feito de
lalíngua” (p. 188), mais precisamente, “um saber-fazer com lalíngua” (p. 190). Ela não serve para a
comunicação, para Miller (1999), lalíngua é feita dos “aluviões que se acumulam a partir dos mal-
entendidos e das criações linguageiras de cada um” (p. 151). Ou seja, feita de restos deixados por
outros falantes, transmitida através de equívocos na comunicação e do modo como cada um os
acolhe. Trata-se, pois, de algo que vai do coletivo ao singular ao longo do que se transmite de uma

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geração para outra, através da linguagem e sua dimensão de equivocação.
Gonzalez (1983/2020a) retoma o texto freudiano através da abordagem de lalíngua,
afirmando que a psicanálise encontra seus bens nas latas de lixo da lógica e “desencadeia o que
a lógica domestica” (p. 77). Através da psicanálise, destacamos essas memórias, resíduos de
histórias não escritas da negritude, aquilo que vem à tona e “fala através das mancadas do discurso
da consciência” (p. 79). Se o negro é o que a lógica da dominação tenta domesticar, “o risco que
assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações” (p. 77). Na perspectiva de Lélia
Gonzalez, a negritude é retomada a partir dos elementos que escapam à violência racista. Ela inverte
a perspectiva e propõe um outro inconsciente, transmitido pela mãe preta através da lalíngua
amefricana. É o inconsciente da Nega-ativa, que também remete ao atrevimento da mulher negra
de dizer não! Capacidade de negar a coisificação do Outro inconsciente, abordado por Neusa Souza.
A negritude dá uma rasteira no racismo e subverte a relação de dominação: “A branca, a chamada
legítima esposa”, acentua a autora “é justamente a outra, que, por impossível que pareça só serve
pra parir os filhos do senhor. Não exerce a função materna. Esta é efetuada pela negra. Por isso a
‘mãe preta’ é a mãe” (p. 88). Se é ela que nomeia o pai, abre-se a perspectiva de outros nomes do
pai, outras relações resistentes à colonização patriarcal.

6 O neologismo lalangue, forjado em francês pela repetição do fonema propositalmente, juntando o artigo “la”
com o termo “langue”, outrora traduzido para o português por alíngua, foi atualizado nos textos recentes para
lalíngua, por sugestão de Haroldo de Campos, para preservar a repetição fonética e destacar sua relação com a
lalação infantil e a musicalidade que lhe é própria (QUINET, 2016).
259
59A
Contribuições atuais: invenções políticas e coletivas na psicanálise

O terceiro tempo é um tempo que permanece em aberto, na medida em que se refere


ao nosso próprio tempo. Acaba de ser lançado, no ocaso de 2021, o livro A cor do inconsciente:
significações do corpo negro. Trata-se da tese de doutorado da psicanalista Isildinha Baptista
Nogueira, defendida no fim da década de 90. Também em 2021, foi lançada, com um atraso de
décadas, uma nova edição de Tornar-se negro. Veio na sequência de uma retomada de Fanon
(2020a), com uma nova edição de Pele negra, máscaras brancas, e de Lélia Gonzalez (2020),
numa coletânea que reuniu em um só volume toda a produção escrita da autora. Sem esquecer
dos livros do pensador camaronês Achille Mbembe, traduzidos para o português e publicados no
Brasil recentemente: Crítica da Razão Negra (2018a) e Necropolítica (2018b) – que dialogam com a
psicanálise para discutir como a estrutura colonial atravessa os corpos no neoliberalismo. Também
foi lançado Memórias da Plantação, de Grada Kilomba (2019), que se debruça sobre o racismo
cotidiano. Por que agora?
Aventamos a hipótese – que é também nossa aposta e desejo – de que vivemos a marca de
um novo tempo na relação da psicanálise com o racismo e com a negritude. Temos hoje várias redes
de psicanalistas negras e negros, muitas vezes no encontro com pessoas brancas, que trabalham
e militam em torno da retificação do lugar reservado aos estudos raciais e às autoras negras, tão
negligenciados ao longo da história da Psicologia, da Psicanálise e da Saúde Mental no Brasil.
Se situamos este como um tempo fecundo, porém, é preciso reconhecer que isso não se deu
sem um trabalho duro e decidido de diversas intelectuais que foram insistentes no enfrentamento,
muitas vezes solitário, de toda resistência à tomada do racismo e da negritude como questões
relevantes para a psicologia brasileira. Não é sem razão que destacamos o trabalho de Isildinha
Baptista, que operou uma retomada dos estudos sobre a constituição do corpo negro ainda na
década de 90. A autora confessa que pretendia atribuir o título “A cor do Inconsciente”, mas sentiu
que seria algo demasiado polêmico para a academia na época (NOGUEIRA, 2021, p. 11). Hoje,
porém, ela acredita poder sustentar essa provocação. Com isso, mostra que a alegação teórica ainda
vigente de que o inconsciente não tem cor funciona como uma defesa contra o reconhecimento
dos atravessamentos coloniais que constituem as relações raciais no Brasil.
É impossível, no âmbito deste artigo, destrinchar as produções psicanalíticas citadas acima
e outras que se realizam nas universidades e fora delas. Escolhemos então, além de Isildinha, o
nome da psicanalista Maria Lúcia da Silva. Além de participar, em 2012, da organização do evento,
na Universidade de São Paulo (USP), que resultou na publicação da coletânea O racismo e o negro

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no Brasil: questões da psicanálise (KON; SILVA e ABUD, 2017) – que consideramos um marco para
a retomada pela psicanálise dos estudos raciais – ela lidera, desde a década de 90, um movimento
de constituição política da negritude no interior do campo da psicologia e da psicanálise. O Instituto
AMMA Psique e Negritude foi fundado em 1995 por um grupo de psicólogas e ativistas, com o
intuito de elaborar estratégias de “cura política e psíquica” para o enfrentamento do racismo. Já em
2010, surgiu a Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) (ANPSINEP),
que se propôs a reafirmar o racismo como pauta urgente e necessária para a compreensão dos
processos de exploração e dominação na sociedade brasileira. Esse movimento foi fundamental
não apenas para provocar o próprio campo da psicologia a superar os mecanismos de denegação
do racismo, como fomentou alianças políticas e movimentos coletivos, unindo forças que, isoladas,
não eram suficientes para fazer reverberar o debate.
Poderíamos citar diversas outras iniciativas que vêm forçando a psicanálise a implicar-se
politicamente numa perspectiva decolonial e antirracista. O movimento hegemônico ainda insiste
nos velhos argumentos de que o analista não tem cor, o inconsciente não tem cor, ou que a psicanálise
precisa opor-se a movimentos identitários. Esses argumentos não apenas limitam o potencial
subversivo da psicanálise, como a mantêm vinculada à conservação das antigas estruturas coloniais
de dominação. No entanto, os movimentos em sentido contrário já não podem ser ignorados.
Tanto movimentos coletivos de psicanalistas negras(os), como o Ocupação Psicanalítica7, vinculado

7 O coletivo Ocupação Psicanalítica tem conduzido uma pesquisa que dialoga com diversas iniciativas brasileiras de
psicanálise de borda, que se propõem a realizar intervenções em situações de vulnerabilidade, como psicanálise de
260
60A
a grupos de pesquisa de várias universidades (UFMG, UFES, UFRJ e UFRB), quanto organizações
constituídas pela reunião de psicanalistas de várias instituições, universidades e escolas de formação
psicanalítica, como o Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD), vêm trabalhando no sentido de
sensibilizar a comunidade analítica frente às questões raciais. No final do ano de 2021 a Sociedade
Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro anunciou a primeira iniciativa de ações afirmativas
vinculada à formação do analista. Em seguida os Fóruns do Campo Lacaniano também anunciaram
sua decisão nesse sentido. Nos últimos anos, alguns Programas de Pós-graduação em Psicanálise
e Psicologia implementaram política de cotas raciais. Grupos de pesquisa que reúnem professores
de várias universidades, como o Núcleo de Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (PSILACS-
UFMG), o Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL-USP), e o Núcleo de Estudos em
Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC-UFRJ) têm também direcionado esforços para
o estudo do racismo, com uma perspectiva decolonial da psicanálise (GUERRA; LIMA, 2021).

Considerações Finais

Avaliar o valor histórico de uma produção é sempre uma tarefa complexa, que expõe ao risco
de parcialidade, ou de menosprezo ou supervalorização de algumas contribuições. A imparcialidade
é justamente o semblante que sustenta versões oficiais da história que apagam a negritude e
denegam o racismo. Nossa perspectiva se reconhece parcial, na medida em que a totalidade é
um delírio colonial. É, porém, implicada no compromisso de resgate de uma história que já não
pode ser contida pelas máscaras do silenciamento. Essa retomada é possível porque são as próprias
psicanalistas negras que, já não mais de forma isolada, estão subvertendo a história. Evocamos aqui
uma tomada de responsabilidade que depende de engajamentos singulares e formações coletivas,
aprendidas pelas organizações quilombolas e seus efeitos nos movimentos sociais populares nas
favelas e periferias. Podemos entender que houve um período de latência entre as duas rupturas
democráticas recentes: o período do regime militar pós 64, quando Neusa Santos Souza (1983/2021)
retoma Fanon para sua leitura clínica e faz repercutir no movimento negro as causas inconscientes
das questões outrora levantadas por Virgínia Bicudo; e o golpe jurídico parlamentar sofrido pela
presidenta Dilma em 2016, com a ocorrência de uma série de eventos que nos forçaram a retomar
os debates acerca do caráter frágil de nossos avanços democráticos. Apesar de apostar em um
tempo novo, Isildinha Baptista nos adverte para o risco da resistência ao avanço do enfrentamento
ao racismo: “A ação política pode vir a fracassar, por exemplo, pela sobrevivência, inconsciente, do

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mito da brancura nas próprias formas em que ela, a ação política, se expressa” (NOGUEIRA, 2021,
p. 175). Estejamos advertidos.

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sobre a formação dos quilombos e sua estrutura coletiva diversa da mente grupal, conforme Freud (1921/1996d)
havia proposto como matriz lógica para investigação do inconsciente nos grupos, serve de baliza teórica, clínica e
metodológica seja para operar com as clínicas de borda, seja para trabalhar com os próprios coletivos de Psicólogos,
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261
61A
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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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263
63A
ADOLESCENTES CONECTADOS: EXTRAVIOS OU POSSÍVEIS
CAMINHOS?

CONNECTED ADOLESCENTS: DEVIATIONS OR POSSIBLE PATHS?

Cláudia Ferreira Melo Rodrigues 1


Raquel Cabral de Mesquita 2
Lorena dos Reis Gonçalves 3
Milene Carla Santos de Azevedo 4
Resumo: A temática da adolescência tem cada vez mais interessado à psicanálise, por se tratar de uma travessia que convoca
a um potente trabalho psíquico frente à sexualidade e às novas formas de subjetivação no contemporâneo. Neste sentido,
este trabalho busca pensar o ciberespaço como um dos lugares onde são representadas as respostas dos adolescentes
diante da irrupção do real na puberdade, bem como destacar os enlaces, suas amarrações e os desmantelamentos na
rede. As saídas cada vez mais passam pelo ciberespaço, que pode ser um lugar que reforça a desorientação, mas também
que colabora para a transição adolescente, o que dependerá dos usos singulares e das contingências encontradas pelos
sujeitos. A psicanálise, reserva um espaço da escuta dessas invenções ancoradas nas vivências virtuais, onde ele possa
endereçar seus impasses, ensaiar possibilidades e construir um saber inédito.

Palavras-chave: Adolescentes. Psicanálise. Contemporaneidade.Ciberespaço.

Abstract: The theme of adolescence has been of increasing interest to psychoanalysis, as it is a crossing that calls for a
powerful psychic work in the face of sexuality and the new forms of subjectivation in the contemporary world. In this sense,
this work seeks to think of cyberspace as one of the places where adolescents’ responses to the irruption of reality at puberty
are represented, as well as highlighting the links, their ties and the dismantling of the network. The exits increasingly pass
through cyberspace, which can be a place that reinforces disorientation, but also that collaborates with the adolescent
transition, which will depend on the singular uses and contingencies encountered by the subjects. Psychoanalysis reserves
a space for listening to these inventions anchored in virtual experiences, where it can address its impasses, test possibilities
and build unprecedented knowledge.

Keywords: Teenagers. Psychoanalysis. Contemporaneity. Cyberspace.

1 Doutora em Ciências da Saúde pela UFSJ, com ênfase em Saúde Coletiva. Docente na Faculdade Pitágoras – Divinópolis. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/0456861753750346. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-7111-9648. Email: melo.claudia@hotmail.com

2 Psicóloga. Psicanalista. Doutora em Educação pela UFMG. Professora da Faculdade Pitágoras Divinópolis e FANS (Faculdade de Nova Serrana).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8835053603540057. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-7487-0270. Email: raquelcmesquita@hotmail.com

3 Graduada em Psicologia pela Faculdade de Divinópolis (FACED). Pós-graduada em Psicanálise e Saúde Mental. Atua em atendimentos a
adolescentes e adultos no consultório particular. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1631460100276032. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7389-
7953 Email: lorenadivi04@gmail.com

4 Graduada em Psicologia pela Funedi/UEMG. Pós-graduada em Psicanálise: clínica com crianças e adolescentes pela PUC Minas. Atua em
consultório particular, atendendo crianças, adolescentes e adultos. Lattes: https://lattes.cnpq.br/9066727826393671. ORCID: https://orcid.
org/0009-0008-7411-420X. Email: milenecarlasantos@hotmail.com
Introdução

Embora a juventude sempre tenha existido, o conceito de adolescência é recente – ele


aparece na cultura do Ocidente no século XX (LE BRETON, 2013, 2017). A adolescência é evidenciada
como um tempo de transição, que envolve a saída da infância e a entrada no mundo adulto. Os
ritos e marcos que determinavam a vida adulta, como o casamento, ou a castidade, estão cada vez
mais escassos e produzem efeitos de desorientação da ordem simbólica. Viola (2016), ao abordar o
enfraquecimento dos ritos, descreve como consequência a perda da referência simbólica suficiente
para organizar e orientar a vida. Segundo a autora, um dos efeitos é a representação de uma
adolescência padronizada de acordo com as tendências sociais que mudam a partir dos modismos.
Os ritos, como marcos coletivos, em outros tempos, balizavam a iniciação do adolescente
no espaço adulto por uma referência paterna que o conduziria a uma solução através de uma
inscrição. Na atualidade, nos deparamos com o desfavorecimento da via simbólica para a saída
da adolescência e inscrição no mundo adulto, no qual “o reinado do gozo substituiu o reinado do
pai e da transmissão” (CAPANEMA; VORCARO, 2012, p. 155). Assim, não podendo se valer das
referências paternas, quais são os caminhos possíveis para um jovem concluir essa trajetória?
A temática da adolescência tem interessado, cada vez mais, a psicanálise, por se tratar de uma
travessia que convoca a um potente trabalho psíquico frente à sexualidade e às novas formas de
subjetivação no contemporâneo.
Desde seu surgimento, o ciberespaço vem ganhando amplitude e força como um lugar
capaz de conectar as pessoas aos seus interesses, contribuindo para o avanço da sociedade
e também, por outro lado, como reforçador do capitalismo na nossa época. O ciberespaço é
nomeado como “espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e
das memórias dos computadores” (LÉVY, 1999, p. 92). Através da ótica da psicanálise, é preciso
analisar como o ciberespaço afeta nossas relações e nos convoca a responder sob suas insígnias.
Aos adolescentes, não é diferente: o ciberespaço é reconhecido como o território dos mais jovens,
que navegam pela internet se deparando com a maior diversidade de questões que a orientação
atual não tem conseguido abarcar. Porém, os usos e percursos são singulares, tanto na adolescência
quanto no ciberespaço, implicando um estudo apurado daquilo que se apresenta na clínica na
contemporaneidade.
Este trabalho busca pensar no ciberespaço e no digital, onde são representadas as respostas
e saídas dos adolescentes diante da irrupção do real na puberdade, bem como destacar os enlaces,
suas amarrações e seus desmantelamentos na rede. Seria o ciberespaço um lugar possível de

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invenção e solução sintomática? Quais são os atravessamentos das virtualidades nos novos modos
de subjetivação?

A psicanálise e sua ótica sobre adolescência

Freud (1905/2016) menciona o termo puberdade, descrevendo transformações corporais


próprias deste período. No texto, ele refere-se à puberdade como o segundo tempo da sexualidade,
no qual há um retorno da pulsão. A sexualidade consiste em dois tempos lógicos: o primeiro, o pré-
genital, e o segundo, o primado das zonas genitais, nomeado como puberdade. Entre estes dois
tempos, há o período de latência, no qual a sexualidade permanece recalcada (FREUD, 1905/2016).
Na puberdade, o que até então se encontrava latente retorna, convocando o adolescente à entrada
no sexual.
Freud (1905/2016, p. 196) nos diz que o tempo da puberdade é “como a perfuração de um
túnel a partir dos dois lados”, em que de um lado é necessário ultrapassar a autoridade das figuras
parentais e do outro está a travessia convocada pela reconfiguração do corpo e dos interesses da
infância. A puberdade chama o corpo a um ordenamento duplo, que consiste na eleição pelo sujeito
de um objeto de investimento sexual e, ao mesmo tempo, como objeto de investimento do outro.
Este movimento acarreta um excedente pulsional, exigindo do adolescente um encaminhamento a
isto que excede e se manifesta em transformações angustiantes, envolvendo a separação dos pais
e o enfrentamento da sexualidade. 265
65A
Este momento também equivale a uma reedição do complexo de Édipo, pois convida
o adolescente a atualizar o encontro com o objeto ao qual precisou abdicar no final do Édipo,
provocando a retificação de fantasias infantis e uma reconstrução da própria imagem corporal.
Para Rassial (1999), a criança aceitou a interdição por ser acompanhada por uma promessa de
uma satisfação que viria mais tarde. Neste sentido, a adolescência marcaria este momento, em que
“a promessa do Édipo se mostra enganadora” (RASSIAL, 1999, p. 47). A partir daí, há uma busca
por novos objetivos de identificação, que causam um curto-circuito na relação com o Outro, e a
operação adolescente dependerá de novos significantes.
Sabemos, desde Freud, que o despertar da segunda onda pulsional é um momento crucial
para o sujeito e também para o progresso da sociedade.
Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o
que constitui um dos mais necessários, ainda que dolorosos,
resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal liberação
é primordial e presume-se que todos os que atingiram a
normalidade lograram-na pelo menos em parte. Na verdade,
todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre
gerações sucessivas (FREUD, 1908-1909/1996, p. 219).

A puberdade implica, em certa medida, a queda dos semblantes e das escoras narcísicas,
provocando o desligamento da autoridade parental ao mesmo tempo em que torna possível
ocupar um lugar entre muitos. Segundo Stevens (2004), a adolescência pode ser pensada como um
sintoma da puberdade. Neste período de impasses e confronto com o real do sexo, o adolescente
busca construir saídas.
Lacan (1974/2003), em seu ensino ao retomar a peça O despertar da primavera, de
Wedekind, analisa o desenrolar da história associando o despertar da sexualidade a partir da
emergência da puberdade a alguns pontos importantes que correspondem a uma versão particular
do pai, como o semblante. Na peça em questão, três adolescentes vivenciam o despertar e a
iniciação da sexualidade. É possível ver como cada um dos personagens experiencia este momento
de uma forma única, ou seja, como o real do sexo se inscreve para cada sujeito. Ao final da peça, o
autor lança mão do “homem mascarado”, ao que Lacan analisa como semblante capaz de orientar
o jovem personagem que se encontrava tragicamente afetado.
O homem mascarado assegura e permite um bom uso dos
semblantes para orientar a vida. Trazendo uma saída possível

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entre aqueles que o denunciam cinicamente e os que fazem
uso canalhesco. É o que possibilita a invenção singular do
sujeito, atando o amor, o desejo e o gozo. Se situa como
uma ferramenta a qual se serve frente ao buraco no real que
implica o sexo (GODOY; SCHEJTMAN, 2011, p. 59).

O encontro com o sexual causa um impacto na vida dos sujeitos, produzindo alterações
na organização psíquica frente à sexualidade e inaugurando um novo percurso no qual cada um
deverá encontrar uma resposta singular para aquilo que o afeta. Na contemporaneidade, temos
notícias das mais diversas saídas inventadas pelos adolescentes para tentar suportar o novo que se
apresenta e avançar em direção à vida adulta.
De acordo com Deluz (1999), os ritos de passagem colaboram para que os adolescentes
assumam um outro lugar, o lugar social. Nas sociedades tradicionais, os ritos de passagem eram
relacionados a sacrifícios corporais, que inseriam o sujeito no campo do outro. O corpo era marcado,
por vezes acompanhado por dor e sofrimento. No entanto, o valor simbólico estava presente, e o
jovem era reconhecido como adulto pela sociedade. Esses ritos de passagem em direção à vida
adulta ocorriam de acordo com cada cultura e eram passados de geração para geração, oferecendo
balizas simbólicas capazes de nortear os jovens nesta travessia marcada pela tradição. Atualmente,
os rituais estão cada vez mais precários, o que dificulta o acolhimento dos adolescentes no laço
social e os lançam em direção ao pior, pois, sem orientação simbólica que seja suficiente, como nos
diz Lacadée (2011), as tentativas de ritualizar o acesso à idade adulta e de se localizar no mundo,
para muitos adolescentes, realizam-se através das condutas de risco.
266
66A
A adolescência contemporânea apresenta-se marcada pelo enfraquecimento das saídas
simbólicas para o excedente pulsional da puberdade. Não se pode esperar isso do universal dos
ritos e da “figura de peso” freudiana, nem dos significantes mestres ou do nome do pai sugeridos
por Lacan. Deste modo, o adolescente percebe-se diante de um tempo em que
[...] os semblantes estão confusos, as balizas simbólicas já
não dão tanta sustentação à transmissão vertical: o Nome do
Pai, o Ideal do eu, as insígnias do Outro. Isso leva os jovens na
contemporaneidade a construir respostas com seus próprios
recursos, usando a transmissão horizontal, a identificação com
os pares, os modismos, as “comunidades de gozo”. Essa falta
de referência estimula a experimentação. Cada um procura,
pela própria experiência, o que é melhor para ele, o que lhe dá
mais satisfação (FERREIRA, 2016, p. 4, grifo do autor).

Na dinâmica do mundo contemporâneo, destacamos o declínio da figura paterna


(representante da lei e organizador das normas) e as transformações superegóicas (ligadas ao gozo
do consumo da ordem capitalista) como aspectos que dificultam a experiência de subjetivação da
adolescência, uma vez que possibilitam, como resposta à puberdade, o oferecimento do corpo em
detrimento de um ideal. Os ideais, em outros tempos, ajudavam a modular ou cercear o gozo,
mas, na atualidade, quando se dá ênfase ao corpo, esse gozo se mostra exacerbado nos sintomas
contemporâneos (OLIVEIRA; HANKE, 2017). Portanto, é considerando esse contexto que analisamos
novos modos de subjetivação utilizados pela adolescência na contemporaneidade.

Contemporaneidade, novos modos de subjetivação e virtualidade

Na atualidade, o virtual aparece como uma janela de experiências para os adolescentes e


jovens. Com as inúmeras transformações na cultura, presenciamos novas formas de laço social. Na
cultura digital, o ciberespaço ocupa, para muitos, um lugar social, um propulsor das mais diversas
expressões e de endereçamentos: “o real e o virtual entrelaçam-se no curso de suas existências,
expandindo o espaço psíquico para o universo digital por eles frequentado” (LE BRETON, 2017, p.
15). A ausência de ritos de passagem, a reorganização da imagem corporal de criança e as alterações
da relação com as figuras de referência, a procura por novas identificações e a busca pelas respostas
possíveis diante do encontro com o impossível, associadas às exigências do nosso tempo em que o

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gozo tem importância considerável, são causa de muito embaraço para os jovens. Algumas saídas
inovadoras contam com o ciberespaço como campo no qual se tornam possíveis, mas há também
aquelas em que o sujeito se encontra em risco iminente.
Moreira, Rodrigues e Pereira (2021) localizam na contemporaneidade o empobrecimento
do laço social, o declínio das relações políticas e a indiferenciação geracional frutos da tendência
a coisificar, virtualizar e superficializar a vida, que conduzem importantes mudanças subjetivas.
Assim, os novos modos de subjetivação marcam a clínica do excesso, e os sintomas com predomínio
de gozo denunciam o mal-estar dos sujeitos adolescentes. Cosenza (2021) afirma que o excesso,
que nomeia as manifestações patológicas observadas atualmente, se constitui como uma solução
genérica que o sujeito utiliza para se proteger contra o pior.
Estas soluções se convertem em formas de gozo constantes
e repetitivas, caracterizadas por um sistema de práticas
organizadas na vida cotidiana. Este real não se dá tanto no
sentido de um gozo parcial, sempre perdido, e sim na forma
de uma plenitude excessiva, um gozo massivo que eclipsa o
sujeito que o experimenta. É uma experiência que deixa o
sujeito à deriva, mais além do princípio do prazer, em direção
a um prazer no qual está presente um risco de morte e
devastação (COSENZA, 2021, p. 77).

267
67A
A falta de amparo da função paterna na adolescência, que implica o sujeito a inventar suas
próprias articulações, reforçada pela contemporaneidade, que concentra esforços para anulação
da falta e exigência de satisfação, coloca em cena a ausência dos suportes simbólicos. A satisfação
pulsional passa a ser buscada em objetos gadgets, e deparamos-nos com anorexia, depressão e
fenômenos de acting outs e passagens ao ato. Também os sintomas de adicção, como exemplo as
toxicomanias, denunciam o excesso de gozo e tentativa de apaziguamento da angústia. Cosenza
(2021) afirma que estes modos de gozo se caracterizam pela ausência do Outro e se organizam em
torno de um circuito fechado, mas que, se por um lado cumprem uma função estabilizadora para o
sujeito, de evitação da ansiedade e angústia, por outro, reforçam o surgimento das práticas de gozo.
Muito se ouve falar sobre a influência do ciberespaço nas patologias contemporâneas,
bem como nos fenômenos de actings outs, que têm se apresentado na atualidade. Sabe-se que
o excesso de exposição às imagens, especialmente nas redes sociais, veicula modos de gozo e que
os objetos de consumo estão cada vez mais presentes, numa tentativa desenfreada de satisfação e
tamponamento da falta.
Vianna, Jesus e Freitas (2017, p. 81), sobre as adicções, nos dizem:
[...] tentativa de o sujeito se anestesiar diante do mal-estar
que advém da dificuldade de responder às demandas da
cultura, que exigem a sustentação de um lugar no social, na
estrutura familiar, vida profissional ou afetiva. Não é por acaso
que muitos casos de dependência química começam durante
a adolescência e início da idade adulta, quando é exigido
que o sujeito faça escolhas significativas, como a escolha de
uma carreira, e quando os relacionamentos afetivos e sexuais
começam a dominar o universo do adolescente.

Ocupar e sustentar um lugar no social pode se tornar uma grande exigência para os
adolescentes, levando-os a diversas soluções. Diante da multiplicidade de arranjos e respostas das
adolescências, o ciberespaço aparece como lugar de endereçamento e construções fantasiosas. O
adolescente à deriva, atravessado pela queda dos ideais e sem uma orientação que lhe dê suporte
simbólico, busca no virtual encontrar balizas, direcionando demandas à máquina e encenando
identificações horizontais, a partir de inúmeras referências. Miller (2016) diz que, hoje, há uma
autoerótica do saber; o saber já não é mais extraído do campo do outro. Por essa lógica, cada
vez mais pais e instituições se queixam do uso exacerbado dos meios virtuais e da dificuldade em
acessar os adolescentes atualmente.

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Adeptos da técnica e autodidatas, eles desembocam numa
espécie de culto do objeto-saber. Navegando na internet,
circulam em uma rede de informações sem autoria. O saber
se apresenta em posição de objeto a ser assimilado, a ser
devorado, consumido. Um saber por sua própria conta, sem
valor de herança e que pretende dar provas de economia
de um pai. Como uma das figuras da errância adolescente,
o internauta é o flaneur virtual. Retira-se das ruas e vagueia
sem rumo pela tela. Acessar sítios sem, no entanto, demarcar
seu lugar. Acede a saberes sem, no entanto, construir filiações
(LIMA, 2009a, p. 118, grifo da autora).

Na carência de um saber capaz de orientar e amparar o embaraço promovido pelos


atravessamentos deste tempo, cada adolescente precisará arquitetar o seu, tecendo o caminho
para reconfiguração do seu lugar no laço social. Não se deve negligenciar os riscos que o uso do
digital pode acarretar, mas é fundamental que pensemos nas possibilidades e nas saídas que estes
espaços podem representar para os adolescentes e jovens contemporâneos.

Ciberespaço: um lugar possível de invenção?


O ciberespaço como um campo amplo oferece múltiplas formas de conexão. Assim, as
268
68A
formas de atuação do adolescente nesse espaço também são múltiplas e singulares. Uma vez que
as novas tecnologias estão cada vez mais presentes, o que se trata, aqui, é de pensar no virtual
como um espaço que apresenta inúmeras possibilidades aos jovens e, portanto, para além dos
impasses, pode ser vislumbrado enquanto campo no qual também se faz laço.
O movimento característico da adolescência, inaugurado pelo rearranjo da imagem corporal
e da exigência de ocupar um novo lugar no social e a constatação da inexistência do Outro, encontra
boas saídas quando é demarcado pela busca de um semblante que possa construir um sentido para
o impossível. Ocupar um lugar entre muitos através de uma solução singular é uma tarefa difícil em
nossa contemporaneidade, mas pode ser realizada através do ciberespaço. LIMA, LISITA E KELLES
(2022), destacam a internet como um lugar onde os adolescentes passam muitas horas navegando,
tornando-se um dispositivo que propicia a inauguração de formas inventivas como, por exemplo,
novas modalidades identificatórias.
Os adolescentes e jovens buscam novas experiências no espaço virtual. Além disso, é ali que
muitos deles irão (re)construir fantasias. Freud (1908/1996), em “Escritores criativos e devaneios”,
diz que os primeiros traços do fantasiar já se encontram na infância e, por meio do brincar, criam
um mundo próprio. Essas fantasias são um retorno das recordações com os pais, ou seja, elas
conservam, de certo modo, a onipotência dos pais. Na adolescência, as construções de fantasias no
virtual aparecem como possibilidades de apoio na elaboração do luto das figuras dos pais, não mais
onipotentes, e do corpo infantil.
A fantasia é como o sujeito se apresenta na realidade psíquica
diante do que lhe falta, um possível meio de lidar com as
questões conflituosas e as exigências pulsionais. O ciberespaço
propicia vivências fantasiosas, uma vez que a tela suspende
a realidade, abrindo janelas para o campo das fantasias
(GONÇALVES, 2022, p. 75).

Neste sentido, a virtualidade se relaciona ao conceito de fantasia e nos leva a refletir sobre
as saídas encontradas pelos adolescentes durante a reconstrução da fantasia. A identificação dos
adolescentes com a ficção, personagens de filmes, jogos, amores impossíveis, entre outros, pode
representar os modos como cada um particularmente lida com este período.
Em muitos casos, circular no espaço virtual proporciona estar em contato com figuras
que sustentam o saber, como professores e mestres que promovem orientação, com outros
adolescentes aos quais podem se identificar, firmando esse lugar possível em que o adolescente
pode construir sua resposta ao real que irrompe. As produções no virtual, como a escrita dos blogs

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e livros, os encontros através dos jogos on-line, as criações de inovações tecnológicas e os vídeos
sobre estudos e temas direcionados à vivência adolescente, propiciam a alguns adolescentes fazer
laços.
Freud, em “Psicologia das massas e análise do eu”, coloca a identificação como “a mais remota
expressão de um laço emocional com outra pessoa” (FREUD, 1921/1974, p. 133). Na adolescência,
há a busca por outras referências de identificação, para além das figuras dos pais, assim, o cenário
do ciberespaço se apresenta propício para a promoção da identificação, especialmente entre os
pares.
No advento da pandemia causada pela Covid-19, os adolescentes nomeados como “a geração
do quarto” se sentiram desamparados, sozinhos sem seus quartos. Afastados dos ambientes sociais
e da escola como instituição organizadora, tiveram de se haver com as transformações corporais,
psíquicas e sociais longe das referências dos professores e dos pares, inseridos em uma vida sem
compartimentos com as figuras parentais, uma vez que as novas identificações são essenciais.
Como operar o desligamento das figuras parentais e a busca por novas referências estando isolados
em suas casas com a presença dos pais? O acesso ao mundo externo estava a um clique de distância
e, para muitos, essa foi a saída possível capaz de sustentar esse movimento próprio do adolescer.
Com o declínio da função do pai na contemporaneidade e a insuficiência do Nome-do-
Pai para dar conta de sustentar um sentido para a não relação neste momento, o adolescente é
impulsionado a reorganizar seu posicionamento no mundo e sua articulação com o gozo. Capanema
(2015) elabora a ideia de que, na adolescência, ao mesmo tempo em que o nó que alicerça a
269
69A
condição psíquica se desfaz, também se articula um tempo que coloca o sujeito em condição de
servir-se do Nome-do-Pai para construir sua própria versão paterna. Lacan, em seu ensino, aponta
para a pluralidade do Pai alicerçando sua manifestação como semblante. Assim, o autor descreve
que “O Pai tem tantos e tantos que não há Um que lhe convenha, a não ser o Nome do Nome do
Nome. Não há Nome que seja seu Nome-Próprio, a não ser o Nome como ex-sistência. Ou seja, a
aparência (semblant) por excelência” (LACAN, 1974/2003, p. 559, grifo do autor).
Será necessário que cada adolescente construa um semblante, uma pai-versão que promova
o enlace dos registros psíquicos, ou seja, uma versão do pai como sintoma. Em Seminário, livro 23:
o sinthoma, Lacan (1975-1976/2007) faz referência às versões em direção ao pai, localizando sua
função de sintoma que amarra imaginário, simbólico e real. Neste sentido, a escuta das invenções
adolescentes, especialmente no ciberespaço, nos indicará a direção de sua construção e possibilitará
acolher e intervir em sua passagem.
É nessa medida que as atuações no virtual podem se constituir como soluções sintomáticas,
ou seja, como rearranjos possíveis diante do encontro com o inesperado. Lima (2009b), ao abordar
a escrita de alguns blogs por adolescentes como solução sintomática para o irrompimento do real,
relaciona a escrita à construção de um romance familiar capaz de tecer um véu fálico, que confere
sentido para o vazio. A autora também destaca que “o endereçamento de uma fala a um outro
leva à transformação de um vivido em história, que pode ser transmitida” (LIMA, 2009b, p. 359) e,
assim, dessa construção própria, a partir de um novo, se faz possível o laço social.

O que pode a psicanálise?

Freud (1937/2021), no texto “Construções em análise”, associa o trabalho do analista ao de


uma construção, na qual o paciente é levado a recordar sua história pregressa, possibilitando, assim,
uma nova elaboração a partir das construções do analista. A disposição em receber adolescentes
em análise coloca o analista em posição de considerar este movimento iniciado pelo real do sexo
na vida desses sujeitos. A construção será feita a partir do trabalho pela via da palavra, iniciando
pela retomada dos afetos infantis, a fim de que o setting se constitua como um suporte a mais para
serem reatualizados ou reconstruídos.
Lacan (1955-1956/1998) nos indica uma posição, “que antes renuncie a isso, portanto, quem
não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” (LACAN, 1955-1956/1998,
p. 322). O que podemos extrair desta afirmação de Lacan vai ao encontro da proposta de considerar

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o ciberespaço como um local de movimento adolescente, pois é, atualmente, o espaço onde o
jovem circula por excelência, realizando conexões e amarrações.
Como vimos anteriormente, os adolescentes chegam à clínica psicanalítica contemporânea
com sintomas com predomínio de gozo, primazia de respostas em atos e as mais diversas
manifestações físicas e psíquicas. Frente ao indizível que os atravessa, eles buscam significantes
que sejam capazes de nomear.
Esses sintomas que aparecem no momento em que o
adolescente deseja ser visto e reconhecido de um jeito novo
evidenciam uma clínica do objeto olhar e do ideal do eu, onde
o que se mostra é também o que deseja ser ouvido, a fim de
encontrar uma resposta (LACADÉE, 2011/2012, p. 264).

O analista que convida o adolescente a falar sobre suas conexões virtuais aposta em uma
conexão com o adolescente no setting, localizando a lógica discursiva daquele sujeito e a função do
virtual em sua história. A partir disso, inauguram-se possíveis vias do novo em seu dizer. “É diante
da presença do analista que o adolescente pode construir ou elaborar uma posição subjetiva,
sabendo que de onde ele fala o analista estará ali, na escuta, a sustentar e a suportar o seu desejo.”
(ANDRADE; LANG, 2020, p.308) Com a oferta da palavra, o adolescente pode renunciar um pouco
do gozo em excesso e, através do laço transferencial, compartilhar suas experiências virtuais em
presença, possibilitando produções simbólicas e construções de narrativas ‘’...a palavra, este
atributo da ordem simbólica, mostra-se capaz de enlaçar real e imaginário possibilitando certo
270
70A
tratamento do real do gozo.’’ (BERNI;NOBRE;LIMA, 2021,p.39388)

Um Outro encarnado na figura do analista e que possa autenticar as produções e invenções


dos adolescentes conectados permite criar condições para que o adolescente produza um saber
sobre seu próprio sintoma, sendo possível inventar e “encontrar o lugar e a fórmula” (RIMBAUD,
1991, p. 349). Neste sentido, a clínica psicanalítica com adolescentes irá operar com questões que
afetam diretamente essa travessia, no um a um e caso a caso, auxiliando-os na produção de novos
significantes que irão norteá-los ao novo. “A psicanálise, por sustentar a maturação, deve oferecer o
lugar e o laço da associação livre como tradução possível” (LACADÉE, 2011/2012, p. 265). A análise
sustentada pela transferência abre acesso ao desejo e novos enlaces com o objeto a, além do
“ponto de onde”, do ideal do eu (LACADÉE, 2008). Uma saída inventiva frente à tarefa de ocupar
um lugar no laço social.

Considerações Finais

Como nos transmite o ensino de Freud a Lacan, a puberdade mobiliza intensa reorganização
psíquica e tem efeito em todas as esferas da vida, tanto dos jovens quanto de seus cuidadores. O
trabalho empreendido neste tempo considera um real insurgente e impossível de significação que
desestabiliza a relação do sujeito com o laço social e impõe certa reorganização que convoca a uma
saída sintomática, denominada adolescência.
A contemporaneidade, marcada pelo imperativo capitalista e o enfraquecimento das
tradições que antes delimitavam na cultura a passagem adolescente, faz deste contexto um tempo
em que se torna mais difícil encontrar ancoragem para a travessia. Neste sentido, cada adolescente
precisa inventar uma solução diante do impasse instaurado pelo impossível. A observação e a escuta
nos mostram que as saídas cada vez mais passam pelo ciberespaço, que tanto pode ser um lugar
que reforça a desorientação, mas também um espaço que colabora para a transição adolescente, o
que dependerá dos usos singulares e das contingências encontradas pelos sujeitos.
O ponto fundamental que procuramos trabalhar neste artigo incide sobre a relação dos
adolescentes com as virtualidades no contemporâneo, em tentativas particulares para apoio
durante este período. Foi possível elencar o ciberespaço como um lugar possível de fazer laço e de
inventar e se organizar diante dos embaraços da adolescência. As vivências e as relações no virtual
podem contribuir com a construção de um saber fazer diante dos sintomas na adolescência, não

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sem um Outro de carne e osso que autentique estas construções e convide o adolescente a nomear
e traduzir o indizível que o atravessa.
A psicanálise, atenta às transformações de seu tempo, reserva o espaço da escuta das
invenções adolescentes ancorada nas vivências virtuais e possibilita um lugar onde eles possam
endereçar seus impasses, ensaiar possibilidades e construir um saber inédito para a saída do túnel.
É através do manejo e das intervenções do analista que se faz possível ressoar outra coisa.
Além do sentido, faz surgir a emergência do sujeito como efeito do significante através da palavra.
Tudo isso é possível, no caso a caso e na escuta no um a um, uma vez que não podemos nos
abster de dizer sobre os impasses, os desafios e as condutas de risco que o adolescente pode
vivenciar se desamparado na rede. Neste sentido, a clínica psicanalítica com adolescentes opera
sob transferência a fim de implicá-los enquanto sujeitos desejantes e protagonistas de suas próprias
histórias, auxiliando-os na produção de novos significantes, capazes de orientá-los durante o
trabalho psíquico existente nesta travessia.

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ufmg.br/handle/1843/BUBD-A9GLDZ. Acesso em: 23 nov. 2022.

Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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274
74A
DIAGNÓSTICAS SOCIAIS DA BRANQUITUDE

SOCIAL DIAGNOSES OF WHITENESS

Pedro Ambra 1

Resumo: o artigo apresenta algumas consequências da escolha de categorias diagnósticas para a reflexão sobre
a branquitude no Brasil. O recurso feito à psicanálise no debate das relações étnico-raciais parte da hipótese de uma
convergência entre constituição subjetiva e estrutura social e é problematizado à luz da ética da escuta e de uma postura
epistemologicamente não colonizatória em relação a outros saberes. Em seguida apresentam-se os antecedentes históricos
e conceituais da noção de branquitude e as especificidades do chamado “pacto narcísico”, proposto por Cida Bento. Ao
diferenciá-lo do racismo pensado como “neurose cultural brasileira” em Lélia Gonzalez, buscamos extrair consequências
políticas do paralelo entre os horizontes de tratamento clínico e de transformação social. Defende-se que a emergência de
uma verdade histórica quilombola pela reconquista do passado é uma das condições do devir antirracista.

Palavras-chave: Racismo. Branquitude. Psicanálise. Psicologia Social.

Abstract: This paper presents some consequences of choosing diagnostic categories for reflecting on whiteness in Brazil.
The use of psychoanalysis in the debate on ethnic-racial relations postulates a convergence between subjective constitution
and social structure, and it is problematized considering the ethics of listening and an epistemologically non-colonizing
position towards other knowledge systems. Historical and conceptual antecedents of the notion of whiteness and the
specificities of the so-called “narcissistic pact,” proposed by Cida Bento, are presented. By differentiating it from racism
conceived as the “Brazilian cultural neurosis” in Lélia Gonzalez, we seek to draw political implications from the parallel
between clinical treatment and social transformation horizons. It is argued that the emergence of a quilombola historical
truth through the reconquest of the past is one of the conditions for an anti-racist future.

Keywords: Racism. Whiteness. Psychoanalysis. Social Psychology.

1 Doutor em Psicologia Social (USP) e em Psicanálise e Psicopatologia (Université Paris Cité). É professor da PUC-SP e da USP e coordenador da
Escola Tamuya de Formação Popular. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9168299684488495. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5917-3895.
Email: pedro.ambra@gmail.com
Introdução

As maneiras pelas quais a psicanálise relaciona-se com o social são polimorfas e, no limite,
perversas: face à correta cópula entre clínica e metapsicologia, ungida pela abstinência da escuta,
a política insiste em apontar impasses. A noção de gênero, os saberes sobre o sexual aportados
pela teoria queer e as novas gestões do erótico e das relações não-monogâmicas, por exemplo,
parecem colocar em xeque a certeza que muitas/es/os tinham de que a pulsão freudiana e a
ênfase lacaniana no discurso seriam a palavra final sobre a sexualidade. Da mesma feita, a maior
ventilação de autorias e questões ligadas às relações étnico-raciais, tanto no interior da psicologia e
das ciências humanas quanto na opinião pública, convida (às vezes de maneira enfática) a algumas
assunções de posição por parte de psicanalistas.
Explicita ou implicitamente enunciada, a ideia de que o “inconsciente não tem cor”
pressuporia que não há um correlato verdadeiramente psíquico dos marcadores sociais da
diferença. Raça, gênero, classe, entre outros, teriam uma influência apenas na espessura imaginária
do Eu, ainda que, paradoxalmente, não se negue que o racismo no Brasil é estrutural. Para muitas/
es/os aceita-se haver um conjunto de relações socialmente organizadoras, mas sem impactos
fundamentais na estrutura psíquica. Mas seria isso metapsicologicamente possível, eticamente
sustentável ou politicamente desejável?
O artigo tem por objetivo circunscrever os recursos teóricos e políticos feitos por pensadoras
das relações étnico-raciais às noções de “narcisismo” e “neurose” e suas consequências para a
transformação social. Para tanto, iniciaremos por apresentar uma aposta ética sobre o lugar da
psicanálise frente aos saberes e demandas politicamente implicadas para justificar a elevação
da inseparabilidade entre sujeito e sociedade ao estatuto de método. Em outras palavras,
radicalizamos a eleição de categorias oriundas da clínica psicanalítica considerando seu correlato
transformativo último, o tratamento. Em seguida serão apresentadas diferentes conceituações da
categoria de branquitude, os debates envolvendo sua suposta invisibilidade e quais contradições
se expressam no uso psicossocial da noção de pacto narcísico. Tal expediente será contrastado
com a espessura relacional do racismo tomado como neurose, sendo a branquitude um efeito
secundário do silenciamento de uma verdade histórica. Tal distinção conduzirá a uma reformulação
do que se entende como direção do tratamento do sujeito, enquanto transindividual, por meio
da reintrodução de fragmentos apagados da história, inconscientemente colonial. Concluiremos
defendendo a pertinência da noção de narcisismo enquanto diagnóstica tática, o racismo como
neurose enquanto intermediação estratégia e a revolução enquanto destituição do sujeito suposto

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saber como política.

Psicanálise e branquitude: premissas éticas e metodológicas

Este artigo poderia ter tido como mote “o que a psicanálise tem a dizer sobre o racismo”.
Porém, nos veríamos aí defrontados com um primeiro problema. Não que ela não tenha o que
dizer sobre este e outros campos, pelo contrário. Mas justamente esse excesso em dizer sobre
deveria causar estranhamento num campo fundado primordialmente pela escuta. Defendo que a
presença da psicanálise na cultura deve aparentar-se a sua postura clínica no que tange uma ética
da não sobreposição do dito interpretativo face à enunciação do dizer. Em outras palavras: se na
clínica a escuta é soberana em relação à interpretação, por que haveria de ser diferente em debates
conceituais ou públicos?1

1 Tal inquietação, bem entendido, não é apenas conceitual, mas igualmente íntima e pessoal, pois me vejo sempre
numa tensão entre o quanto, onde, com quem e quando falar versus o escutar, escrever versus ler. No Brasil, os
processos sociais de subjetivação me localizam enquanto alguém cuja fala é reconhecida e, portanto, a validade
de seu conteúdo valeria per se, o que tem como resultado, para mim e para a estrutura social, quase sempre o
apagamento da própria posição enunciativa. Deveria, assim, em nome de uma reparação histórica, silenciar-me
individualmente sobre algumas temáticas na esperança de contribuir pontualmente para uma inversão nas lógicas
de lugares de fala? O que é e quais as funções do silêncio do homem branco? Nesse campo, é possível haver, para
além da leitura, uma escrita verdadeiramente ética?
276
76A
Sustentar a função analista para a fala do outro não implica, porém, num silenciamento
total, seja neutro ou implicado. Ao contrário, como sabemos, a escuta — e, mais precisamente,
a escrita, para o lacanismo tardio — é uma práxis árdua que implica em hipóteses, ensaios e,
sobretudo, na consideração dinâmica da transferência. Ou seja, localizar-se face à fala do outro
é um dos fundamentos de qualquer escuta que se arrogue inscrita no legado freudiano. Nesse
sentido, antes de sermos acometidos pelas interpretoses de plantão, cumpriria mapear os recursos
feitos à psicanálise, por exemplo, pelas teorias sociais e como seus conceitos e mecanismos são
utilizados e, eventualmente, por elas transformados. Talvez assim, ao investigar como a psicanálise
é utilizada por campos críticos que pensam problemas que extrapolam o sentido estrito da clínica,
será possível descobrir novos limites de suas próprias potencialidades, algo que a proximidade das
reflexões internalistas não nos deixa ver.
Para nossos propósitos, pouco profícua parece ser a postura de fiscais de pureza da
psicanálise: este é um trabalho não apenas crítico no sentido estrito do termo, mas politicamente
engajado com uma mudança social efetiva que, evidentemente, se dará para além da universidade
e dos consultórios. Escrevo, assim, como cidadão que considera inaceitável a exploração da classe
trabalhadora no Brasil e sua estrutura racializada; como pessoa branca que deseja responsabilizar-
se intelectual e politicamente pela constatação de que sua experiência de laço social não é universal
ou universalizável; (mais) como psicólogo social (do que como analista) que se questiona por que
diabos valorosas reflexões sobre as relações étnico-raciais valem-se da psicanálise e não de outros
saberes psi no interior de seus projetos conceituais e quais as consequências dessas escolhas.
Tomaremos a problemática da branquitude como objeto desse exercício de apresentação de
alguns usos de noções oriundas da psicanálise, com vistas a construir uma justificativa metodológica
para horizontes de transformação de nossa estrutura racial e, por consequência, social. Mas em
que medida seria lícito utilizar tal marcador social? É bem verdade que a psicanálise figura no rol
dos saberes que, de alguma maneira, questionam a identidade do sujeito para consigo próprio,
pois o inconsciente é uma emergência que fissura o eu. Porém, não se depreende daí que ela seja
intrepidamente anti-identitária, subalternizando os traços socialmente constituintes do Eu, como
algumas análises conservadoras parecem querer demonstrar.
É necessário, contudo, partir de alguns pressupostos para desdobrar tais problemas. O
primeiro deles apoia-se na máxima freudiana segundo a qual a psicologia individual é, desde o
início, psicologia social, sendo sua separação meramente metodológica, e não conceitual ou
epistemológica. Em Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 2010, p. 14), vemos não apenas
a utilização de conceitos da psicanálise na reflexão de fenômenos sociais, mas uma franca expansão

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da teoria do sujeito (notadamente na noção de identificação), a partir da consideração de que este
é um efeito de dadas configurações sociais.
Assim, ainda que a psicanálise tenha no nascimento de sua práxis um cenário burguês
aparentado da medicina, a racionalidade que a preside é pautada por um descentramento do
indivíduo como morada última da verdade. Do caráter disruptivo do sexual à constituição externa da
personalidade por meio de identificações, o pensamento de Freud permitiu avanços inclusive para
além de sua alçada proximal: as discussões sobre ideologia, racionalidade burguesa e neoliberal2,
gênero e sexualidade3 e sobre as relações étnico-raciais4, que nos interessarão de maneira mais
detida aqui, são alguns de seus exemplos.
Jacques Lacan tem o mérito de radicalizar a espessura alteritária que marca a constituição
subjetiva. Desde sua tese de doutoramento em 1932 e da influência materialista herdada da crítica
de Politzer à psicologia e à psicanálise (SILVEIRA, 2022), Lacan se fiava a uma hipótese francamente
anti-essencialista de sujeito. É desse período que datam, inclusive, reflexões que imputam a
constituição subjetiva diretamente à influência social (LACAN, 2003, p. 29) e, talvez não por outra
razão, Lacan é citado por Frantz Fanon tanto em seu clássico Pele negra, máscaras brancas quanto
em sua “Tese de Exercício” em psiquiatria, onde lemos

2 Ver trabalhos de Slavoj Žižek, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Christian Dunker, Vladimir
Safatle e Nelson da Silva Jr.
3 Ver trabalhos de Gayle Rubin, Judith Butler, Jéssica Benjamin, Paulo Ceccarelli, Felipe Lattanzio, Patrícia Porchat,
Patrícia Gherovich, Javier Saéz, Pedro Ambra e Rafael Cossi.
4 Ver trabalhos de Frantz Fanon, Roger Bastide, Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Neusa Santos Souza.
277
77A
Falamos há pouco da ênfase considerável que Lacan dava ao
ponto de vista social. [...] Na base de sua doutrina, Lacan situa
um postulado: o determinismo psicogenético. Esse postulado
possibilita a ciência da personalidade, que tem por objeto o
estudo genético das funções intencionais em que se integram
as relações humanas de ordem social (FANON, 2020a, p. 371,
negritos nossos)

Assim, se em Pele negra a diagnóstica anunciada ao longo de suas páginas seria aquela de
uma sociogenia (Fanon, 2020b, p. 25) em sua tese Fanon parece recorrer a Lacan para demonstrar
que a própria psicogênese é em si já uma sociogênese. A partir daqui, pensar a constituição psíquica
é pensar o laço social. Mas seria o oposto verdadeiro?
É bem verdade, porém, que a concepção de um determinismo social culturalista é modificada
por Lacan a partir do encontro com o estruturalismo. Sai de cena a sociologia como campo
conceitual solidário e a centralidade da imago como conceito forte se inverterá, secundarizando-a
como um efeito alienante subjugado ao simbólico (SILVEIRA, 2022). De toda forma, a ideia de uma
alteridade que constitui o sujeito desde fora se mantém, não mais como uma cultura concreta, mas
como uma estrutura da linguagem e da espessura universal das proibições ligadas ao parentesco
como regulagens mestras das relações sociais. Na mesma esteira, a interpretação psicanalítica da
ideia hegel-kojèveana de desejo como desejo do Outro fornece um sujeito incontornavelmente
excêntrico e cujo processo de constituição é não apenas centrífugo, mas também centrípeto. Mas
de qual centro e de qual Outro se trata nas discussões sobre relações étnico-raciais no Brasil hoje?
Propomos uma analogia entre os processos de constituição subjetiva e aqueles que
instauram e mantém relações sociais ligadas à racialização. Neste sentido, narcisismo e neurose
não seriam mais noções exclusivamente psicológicas assim como branqueamento e racismo não
estariam exclusivamente no campo das teorias sociais: a estrutura moebiana vale não apenas
para a relação do sujeito com o Outro, mas para a própria constituição do saber psicanalítico e das
reflexões sociais que consideram a dimensão psíquica.
Decorreria daí um passo suplementar às diferentes diagnósticas sociais5 que se valem da
psicanálise: utilizar quadros clínicos e mecanismos psicanalíticos para analisar as relações raciais
implica que as estratégias de tratamento clínicas podem, guardadas as devidas proporções,
servir como guias para processos de transformação política. Apresentarei dois exemplos deste
uso, narcisismo e neurose, para melhor embasar algumas reflexões sobre sua pertinência na luta
antirracista no Brasil.

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Na esteira de trabalhos anteriores sobre a temática, buscaremos circunscrever e particularizar
categorias hegemônicas intuitivamente tomadas como universais: assim como a masculinidade
(AMBRA, 2021) e a cisheteronormatividade (AMBRA, 2022), cumpre nos debruçarmos aqui sobre
a noção de branquitude enquanto uma categoria francamente psicossocial. Trata-se de pensar a
especificidade dos mecanismos que perpetuam o racismo por meio não da análise do “psiquismo
do branco”, mas da espessura inconscientemente estruturante da malha discursiva e ideológica que,
no Brasil, se corporifica por um processo de epidermização silenciosa, invisibilizando processos de
violência contra a população negra e indígena por meio de uma universalização de particularidades
identitárias que, por fim, perpetuam violências.

Tensões conceituais acerca da branquitude no Brasil: o caso do


narcisismo
Conforme resgata Lourenço Cardoso (2011), a primeira ocorrência do termo branquitude

5 Inúmeros e plurais são os exemplos de usos de categorias diagnósticas para se pensar questões sociais. Para
ficarmos apenas nos exemplos que o fazem a partir da perspectiva de raça no Brasil, trata-se de uma tradição
que se inicia, no mínimo, desde Arthur de Gobineau, passando por Silvio Romero e culminando nos trabalhos de
Raimundo Nina Rodrigues. Esta perspectiva de trânsito entre reflexão racial e diagnóstica compõe, igualmente,
o quadro crítico e antirracista do pensamento nacional, com nomes como Dante Moreira Leite, Guerreiro
Ramos, Neuza Santos Souza, Lélia Gonzalez e Maria Aparecida Bento, que aqui discutiremos de maneira mais
pormenorizada.
278
78A
no Brasil é reputada à Gilberto Freyre, em 1962, tomando-a negativamente como a contrapartida
da negritude, ambas – para o autor – estrangeiras à mestiçagem que constituiria o fulcro de nossa
democracia racial. Guerreiro Ramos, contudo, teria sido quem levou essa problemática mais longe
com seu A patologia social do “branco” brasileiro (1982)6, no qual demonstrou que a dominação
racial no Brasil não se valia apenas de expedientes de violência, mas, igualmente, de gestões
de estereótipos que exaltariam a branquitude e rejeitariam (mais ou menos explicitamente) a
negritude. Há aqui uma exaltação positiva de uma identidade racial numericamente minoritária, mas
ideologicamente hegemônica. Décadas mais tarde tal hipótese, consoante com algumas indicações
de Frantz Fanon (2020b), será resgatada, reelaborada e verificada em termos psicanalíticos por
Neuza Santos Souza (2021) ao propor um cruzamento entre branquitude e a noção de Ideal do eu
em pessoas negras em ascensão social no Brasil.
Ao mesmo tempo, a branquitude possuiria outra característica aparentemente contrária,
mas intimamente articulada à primeira: sua invisibilidade estratégica. Para Edith Piza, inspirada
pelos trabalhos de Ruth Frankenberg, “o branco não ‘enxergaria’ sua identidade racial, por isso ela
seria ‘invisível’. Aliás, para Edith Piza, quando o branco defronta-se com sua própria branquitude,
causa-lhe um grande impacto, semelhante a uma pessoa desavisada que se choca com uma porta
de vidro” (CARDOSO, 2011, p. 84).
Há aqui um importante debate sobre os desdobramentos éticos desta semiologia: sendo a
branquitude invisível, como reconhecer privilégios e responsabilizar-se por sua condição de pessoa
branca? Em outro trabalho, Cardoso (2010) defenderá que a identidade racial branca não é uma
entidade homogênea e que — a despeito de ocupar uma posição de privilégio numa sociedade
racializada — pode, ser dividida entre crítica (aquela que publicamente condena o racismo) e
acrítica (abertamente supremacista). Tal divisão foca-se em traços de indivíduos ou grupos que têm
na expressão pública ou consciente suas marcas de distinção. Em outras palavras, o autor defende
que, a despeito das diferenças nas experiências de branquitude, há uma positividade consciente
desta identidade.
Motivo pelo qual nomeará o percurso de Cida Bento como contraditório, na medida em
que sua proposta de pacto narcísico da branquitude ao mesmo tempo que negrita a manutenção
positiva de poder entre brancos, trata esta identidade como invisível:
Na concepção de branquitude de Bento encontra-se também
a ideia de invisibilidade racial, semelhante ao significado
empregado por Edith Piza [...] Se o pacto narcísico ocorre
também pelo interesse dos brancos em preservarem seus

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privilégios étnico-raciais, obviamente podemos considerar
que o branco ao se compactuar se enxerga enquanto pessoa
e grupo racializado. Para concluir, diria que ao empregar
o conceito “pacto narcísico”, Maria Aparecida Bento irá se
contradizer sempre que reiterar a ideia de invisibilidade racial.
(CARDOSO, 2011, p. 89)

A tensão entre uma vivência identitária consciente ou não de sua unidade remete-nos à
raiz conceitual utilizada por Bento, a saber, o narcisismo. Por que e como valer-se de uma categoria
oriunda da psicanálise freudiana para refletir sobre o laço social racializado no Brasil? Quais os
efeitos de tal escolha na luta antirracista?
Cida Bento tem o mérito de ter escrito a primeira tese de doutorado que tem como foco
central a branquitude no Brasil.7 Partindo de entrevistas com gestores de recursos humanos, Bento
tomou a identidade e a dinâmica de manutenção de privilégios brancos como problema central a
6 Guerreiro Ramos utilizará a grafia brancura para se referir ao que se consolidou nomear como branquitude.
Se aquela, contemporaneamente, designa sobretudo características físicas, esta inclui traços fenotípicos, mas vai
além pois inclui dimensões culturais, psíquicas, ideológicas e históricas. Tal distinção é corroborada também por Lia
Schucman em seu célebre Entre o encardido, o branco e o branquíssimo:  raça, hierarquia e poder na construção
da branquitude paulistana. (2012).
7 Passados mais de vinte anos de sua defesa, os trabalhos sobre a temática se avolumaram, ainda que sejam
tímidos os números de teses e dissertações sobre o tema quando comparados a outros em psicologia social. A
atualidade do tema pode ser atestada ao se considerar que mais da metade das teses sobre branquitude foram
redigidas nos últimos três anos, conforme dados do Banco Brasileiro de Teses e Dissertações.
279
79A
partir da defesa da hipótese da existência um pacto narcísico da branquitude, conceito que tornou
sua obra conhecida e é uma das principais matrizes para se pensar branquitude hoje no Brasil.
Em linhas gerais a autora argumenta que a manutenção de privilégios no Brasil conta com um
expediente de acordo entre pessoas que se identificam como brancas e que tem como resultado a
perpetuação do racismo no Brasil. As violações contra os direitos de pessoas negras são tratadas,
pelas/os entrevistadas/os, como algo ora inexistente, ora alheio (BENTO, 2002, p. 155). Ainda que
as alusões ao narcisismo tenham suas raízes e usos em Sigmund Freud e, consequentemente, René
Kaës, Theodor Adorno e Max Horkheimer, elas servem primordialmente a Bento para propor uma
reciprocidade identificatória na qual o grupo de iguais reproduz estratégias de manutenção do
status quo.8 Bento promove, assim, um uso metodologicamente psicossocial de uma categoria da
metapsicologia e da diagnóstica psicanalíticas. Ainda — ou principalmente pelo fato de — que seu
trabalho não possa ser considerado um trabalho de psicanálise, esse expediente parece apoiar-se
em uma homologia, analogia ou, no mínimo, uma continuidade da categoria de sujeito e de grupo
e, no limite, de sociedade.
Desta feita, um dos pontos altos de sua articulação é pensar o narcisismo como de partida
já atrelado a processos sociais. Na esteira da divisão proposta por Sílvio Almeida (2019), nota-se
que o expediente de Bento, apesar de valer-se de uma noção oriunda de uma teoria psicológica,
não reduz o racismo a sua espessura individualista, mas denuncia sua dimensão institucional e
estrutural. Em outras palavras, escapando de uma moralização, psicologização ou patologização das
relações raciais, a autora utiliza um conceito advindo do campo clínico e da constituição subjetiva
para refletir sobre uma dinâmica de grupo, donde seu recurso a Kaës e à teoria crítica. O narcisismo
é, assim, pensado como um amor a si mesmo e aos semelhantes9 e, pela via da projeção, um ódio
em relação àquelas/es tomados como diferentes (BENTO, 2002, p. 42).
Arriscaríamos caminhar por zonas de imprecisões ao supor que, por tratar-se de um conceito
psicanalítico, o narcisismo aportaria necessariamente à discussão uma perspectiva individualista.
Bem entendido, o narcisismo e a identificação são, desde Freud, também utilizados para refletir
sobre processos sociais, notadamente em Psicologia das massas e análise do eu e Mal-estar na
civilização condensado, entre outras, na hipótese do “narcisismo das pequenas diferenças” para
se pensar a relação entre grupos. Ainda que, por outro lado, ao analisar a realidade de extrema
violência e assimetria racial no Brasil, a agressividade não deva ser localizada na lógica de uma
“pequena” diferença oriunda exclusivamente de um cálculo psíquico ficcional da constituição
de grupos supostamente fraternos. E é daí, provavelmente, que a ideia de pacto tira sua força e
importância.

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A noção de pacto, menos carregada conceitualmente do que a de narcisismo, é tomada
pela autora como sinônimo de aliança ou contrato inconsciente. A partir de Kaës, tem-se que “Esse
acordo inconsciente ordena que não se dará atenção a um certo número de coisas: elas devem ser
recalcadas, rejeitadas, abolidas, depositadas ou apagadas. Principalmente se o reconhecimento de
determinadas dimensões da realidade põe em risco os interesses do grupo.” (BENTO, 2002, p. 57)
Notamos aqui um desdobramento importante da lógica ocidental de pacto como pensada
a partir, por exemplo, do contrato social, presente também em Totem e Tabu e na releitura
estruturalista de Lacan sobre o simbólico. Se na narrativa europeia há um suposto pacto coletivo
totalizante de renúncia pulsional individual para garantir uma universalidade e igualdade entre
“todos” — e, não por acaso, esta é a base do que Lacan denomina “homem” em suas fórmulas da
sexuação —, o que se esconde é que este pacto é fundado não pela ilusão de uma violência fundante
que teria ficado para trás10, mas por sua gestão patriarcal e colonial. Portanto, ainda que de maneira

8 Foge aos propósitos deste artigo apresentar de maneira pormenorizada tanto a noção de pacto narcísico tal
como apresentada por Kaës quanto sua origem junto o conceito de narcisismo em psicanálise. Cumpre notar,
pontualmente, que este se refere (1) a um momento de estruturação do Eu que se sucede ao autoerotismo e
antecede a relação objetal, (2) a uma dinâmica de desinvestimento de libido no objeto, tanto no sofrimento quanto
na esfera amorosa (FREUD, 2010) e (3) uma categoria de diagnóstica. (FREUD, 2011a). Retomaremos mais à frente
alguns destes pontos ao analisar os efeitos da escolha desta noção para se conceber a branquitude.
9 A autora assume, de partida, um foco de unidade e semelhança entre pessoas brancas, ao contrário do que
propõe Cardoso.
10 A reconquista de um suposto ideal viril perdido no passado é, muitas vezes, o motor de certos discursos
misóginos na contemporaneidade, como o “masculinismo”, o “movimento red pill” e os “incels”. Para uma
280
80A
implícita, no expediente de Bento o pacto é elaborado não a partir de uma universalidade que
aboliria as diferenças, mas como um pacto da própria manutenção das diferenças, sendo sobretudo
grupal e identitário e não universal.
Esquematicamente podemos propor que para a autora o narcisismo é a tópica basilar do
reconhecimento entre brancos que garante, seja a individualidade, seja uma pertença grupal: trata-
se da instauração da zona eu-outro, nós-eles. Aquilo que Cardoso (2011) compreenderá como
contraditório em Bento, o fato da branquitude ser ao mesmo tempo reconhecida e invisível, pode
ser interpretada como uma certa fidelidade conceitual à noção de narcisismo: se por um lado é ele
que garante a constituição egóica, o sentimento de si e, no limite, o próprio corpo, por outro trata-
se de uma alienação que exclui tanto nossas próprias zonas abjetas quanto o fato da constituição
psíquica ser efeito de uma alteridade, conforme defende Lacan em seu Estádio do Espelho.
Regendo o narcisismo a lógica da identificação, temos que o pacto é a dinâmica de
reprodução e manutenção dos lugares. Diferentemente de um pacto que assinala um marco
temporal circunscrito que funda um antes e um depois da “cultura”, aqui ele se aproxima de uma
reiteração performativa atualizada a cada ato que reinsere os sujeitos nos lugares designados por
nossa dinâmica racial. Captado e sustentado pelo discurso, o pacto se desvela na própria construção
da narrativa que (re)cria lugares: “A escolha do pacto narcísico como linha mestra de análise do
material, deve-se a maneira como surgem (ou são omitidos) no discurso dos entrevistados, os dois
principais atores: brancos (as) e negros (as)” (BENTO, 2002, p. 155).
Há ainda um último elemento fundamental para a compreensão do recurso metapsicológico
feito por Bento em sua leitura sobre a branquitude. Trata-se de uma economia da presença no
pacto. Ao contrário de uma discriminação direta e positiva, seja física ou verbal, a liga aqui
é dada pela subtração: “A invisibilidade e o silêncio parecem ser condição sine qua non para a
manutenção do pacto narcísico. Todos sabem qual é o espaço do ‘nosso’ grupo. Esse espaço não
pode ser invadido.” (BENTO, 2002, p. 109) Ou seja, a perpetuação do pacto se dá por meio de uma
invisibilização da assimetria que tem como base um acordo reiterativo baseado numa identidade
grupal narcisicamente constituída.
Vejamos como tal movimento repetitivo da negação se expressa na análise de Bento sobre
a fala de Mariana, uma de suas entrevistadas: “Não acho que existe assim, a nível de discriminação
‘fulana que é branca, fulana que é preta’ não, isso eu nunca peguei na Prefeitura, nunca senti isso ...
nunca senti. Não sei se é porque eu sou branca, talvez ... não me pega diretamente, sabe ... não me
toca diretamente.” (BENTO, 2002, p. 100, negritos nossos) Em numa nota de rodapé, dirá a autora:
Poderia se incluir aqui o fato de que talvez não ouça, ou não

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se digam coisas assim diante dela; isto é, ela “nunca pegou”
isso dito explicitamente diante dela. O silêncio sobre a
discriminação explicita o silêncio diante da autoridade (ou da
hierarquia). Nem brancos, nem negros reproduzem o que é
dito em outras situações e na presença de chefias. O branco por
vergonha ou medo de ser reconhecido como discriminador,
o negro por vergonha ou medo de ser reconhecido como
discriminado (BENTO, 2002, p. 101).

Podemos assim qualificar melhor a contradição apontada por Cardoso: o pacto é a dinâmica
que conecta, pela invisibilidade, a economia de silêncio à localidade identitária positiva e narcísica
da branquitude. Trata-se de uma dinâmica discursiva que permite a coexistência entre “não existe
discriminação” e “sou branca”. Ou seja, tudo se configura como se o reconhecimento da brancura
fosse um movimento de apagamento da branquitude. Nesta redução da relação social e política a
um traço epidérmico inerte localiza-se a dinâmica do silenciamento: não há o que dizer sobre uma
diferença de pele já que “somos todos humanos”. O mito da democracia racial se encarna por meio
deste pacto, numa dinâmica já apontada por Lélia Gonzalez como ligada a uma negativa: uso o não
como forma de fazer emergir a realidade do sim (GONZALEZ, 2020b, p. 127)
Em mais um recurso feito à psicanálise pela psicologia social do racismo, Gonzalez vale-
se da Verneinung (Negativa) freudiana, conceito eminentemente clínico, para pensar a dinâmica

reconstrução histórica deste ideal ver AMBRA, 2021.


281
81A
racial no Brasil e, posteriormente, na Améfrica Ladina e nas Caraíbas. Quando alguém no divã diz
“Sonhei com uma mulher, mas não era a minha mãe, viu?!” cumpre cogitar que, em sua espessura
de verdade do inconsciente, a frase pode prescindir do não. Para Freud, a negativa é basicamente
um modo de tomar conhecimento do recalcado, na condição de disfarçá-lo com seu contrário
(FREUD, 2014, p. 21). Este expediente expressa uma forma primitiva de constituição do Eu, na qual
expulsam-se elementos maus que originalmente pertenceriam ao sujeito, mas não podem ser
aceitos enquanto tais. A negativa atualiza de maneira invertida a dinâmica racial na qual imputa-se
aquilo que é ruim ao outro na tentativa de apagar as contradições da própria lógica hegemônica
da consciência. Assim, para a antropóloga, quando afirmamos “Não existe racismo no Brasil” ou
“Conheço pessoas racistas, mas eu não sou” é de uma negativa que se trata. Dirá Freud que “Na
interpretação, tomamos a liberdade de desconsiderar a negação, extraindo o puro conteúdo da
ideia” (FREUD, 2014, p. 19). A hipócrita ideia de um racismo reverso seria, assim, o reconhecimento
implícito da violência reinante nas relações étnico-raciais do Brasil: ao negar, afirmo.
Apliquemos a racialização desta lógica, captada por Gonzalez, ao já citado trecho eleito por
Bento: “Acho que existe assim, a nível de discriminação ‘fulana que é branca, fulana que é preta’,
isso eu peguei na Prefeitura, senti isso ... senti. Sei [que] se é porque eu sou branca, talvez ... me
pega diretamente, sabe ... me toca diretamente.” Tal como as formações do inconsciente dão a ver
a contradição que sustenta o pacto — edípico, por exemplo —, a negativa racial afirma aqui que a
invisibilidade recobre a ciência da espessura narcísica da branquitude.

Do narcisismo à neurose: história e transformação

Ainda que possamos nos valer do recurso à negativa feito por Gonzalez, é preciso pontuar
agora diferenças importantes em relação às suas premissas e apostas diagnósticas. A antropóloga
não se vale da noção nem da branquitude nem de branquidão. Podemos supor algumas razões
para isso. A primeira é que Gonzalez tem um foco não na substancialidade da branquitude mas no
processo social e psíquico de branqueamento, esse sim presente em sua obra. A segunda é que
o branqueamento é um processo poderoso, mas sempre condenado ao fracasso pois “todos os
brasileiros (e não apenas os “pretos” e os “pardos” do IBGE) são ladino-amefricanos.” (GONZALEZ,
2020b, p. 127). Ou seja, ainda que haja pactos de manutenção de poder entre pessoas brancas, do
ponto de vista da estrutura discursiva fundamental e do desejo inconsciente não há uma branquitude
absoluta no Brasil, pelo contrário. A terceira é que, considerando a questão da racialidade por meio

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da neurose, a análise necessariamente foca-se não na identidade coerentemente narcísica dos
elementos analisados, mas na relação conflitiva entre eles. Branquitude seria, para a autora, uma
tentativa neuroticamente fracassada de recalcamento da verdade negra do Brasil.
A afirmação da branquitude orbita ao redor de sua faceta visível, fenomenológica e, em
suma, sintomática da cultura brasileira e é, como tal, substancialmente um efeito. Suas causas
últimas residem numa hipótese quase oposta à de Bento, a saber, de que o pacto cultural e de
poder que estrutura o Brasil é negro e, na esteira de Clóvis Moura em Rebeliões da Senzala (1988),
resulta numa inversão da hermenêutica tradicional que teria na análise da história institucional
branca, o polo dominante: na quilombagem, o negro é o motor da transformação radical e em sua
luta deve-se buscar a verdade histórica dos processos produtivos e de classe no Brasil. Em Gonzalez
este diagnóstico não, é, contudo, ligado apenas à luta de classes, mas parte de um impasse ligado
ao desejo: o ambivalente lugar da mulher negra na sociedade representa os efeitos socialmente
neuróticos de uma impossibilidade da cultura dominante em reconhecer, em última instância, seu
amor por aquela. Em Racismo e sexismo na cultura brasileira tanto sua epistemologia quanto sua
tese são francamente tributárias à psicanálise: “Para nós o racismo se constitui como a sintomática
que caracteriza a neurose cultural brasileira. [...] Nosso suporte epistemológico se dá a partir de
Freud e Lacan, ou seja, da psicanálise” (GONZALEZ, 2020a, p. 77).
A ideia de que “A batalha discursiva, em termos de cultura brasileira, foi ganha pelo negro”
(GONZALEZ, 2020a, p. 93) se sustenta, a despeito da assimetria oposta vivenciada quotidianamente,
pois a autora compreende o racismo não como o efeito narcísico de um grupo, mas como um
sintoma neurótico de espessura relacional, ou seja, um conflito entre uma poderosa verdade
282
82A
recalcada (a fundação e o desejo pele/a/o negre/a/o como verdade e história) e sua expressão
negativa (da realidade e consciência do racismo como sintoma).
Sintoma é, na psicanálise, não um incômodo a ser extirpado e silenciado — tal como
a hegemonia psiquiátrica e algumas correntes da psicologia propõem — mas uma verdade
transformada a ser decifrada. Em última instância, ele é uma violência contra o Eu cuja força vem
não exatamente de fora, mas de um desejo que ainda não pode se assumir enquanto tal. Não se
trata assim de amenizar o sofrimento, mas antes reconfigurar a lógica de conflitos que estrutura o
sujeito, implodindo formas obsoletas de ocultamento da verdade.
Defendemos que tal precisão metapsicológica está posta para além de uma arqueologia da
noção de neurose cultural pois articula de maneira umbilical teoria e política: se o objetivo último
da utilização de noções psicanalíticas é, para além de diagnósticos precisos, uma transformação
radical que ponha fim ao racismo, é preciso que esta importação conceitual carregue também as
apostas de tratamento indicadas pelo saber analítico.
Esta senda clínica nos conduziria a uma cura na qual o atravessamento da alienação da
branquitude levasse a uma amefricanização da cultura e das subjetividades, análoga à destituição
subjetiva que escantearia o protagonismo do Eu, rumo a uma abertura do desejo e da contingência.
Mas qual percurso de análise serviria de esteio a esta analogia entre o psíquico e o social?
Diferentemente de outras interpretações da doutrina de Freud que pregam um
adaptacionismo reformista de silenciamento da explosão do inconsciente, Lacan resgata o ímpeto
de ruptura dos primeiros escritos psicanalíticos com o objetivo de propor uma teoria do sujeito
e um horizonte de tratamento que ultrapassasse o rochedo da identificação ao analista. Dito de
outro modo, se nos anos de 1950 imperavam na psicanálise modelos de saúde que tinham em uma
espécie de exterioridade moral a sua base (a identificação do analisante com Eu saudável do analista
como índice de eficácia do tratamento), Lacan propõe uma crítica a um modelo de tratamento em
que “a modelagem do sujeito pelo Eu do analista será apenas o álibi do seu narcisismo.” (LACAN,
1998a, p. 349) Em A psicanálise e seu ensino, o argumento se repete
Ora, é na via de um reforço do eu que a psicanálise de hoje
pretende inscrever seus efeitos, por um contra-senso total
em relação ao móvel pelo qual Freud fez o estudo do eu ao
entrar em sua doutrina, isto é, a partir do narcisismo, e para
denunciar nele a soma das identificações imaginárias do
sujeito (LACAN, 1998b, p. 456).

É precisamente de uma crítica ao efeito narcísico da transferência que nasce a aposta

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lacaniana mais radical deste período. Se há um paralelo entre impasses da constituição subjetiva
e tratamento, de um lado, o processo social que produz o racismo e sua superação, por outro,
como ultrapassar o dito pacto narcísico da branquitude? Há alguma alternativa metodológica e
transformativa ao narcisismo?
Em Variantes do tratamento-padrão, lemos:
se ao analista se impõe a condição ideal de que as miragens
do narcisismo tenham se tornado transparentes, é para que
ele seja permeável à fala autêntica do outro, de quem se trata
agora de compreender como ele pode reconhecê-la através
do seu discurso. (LACAN, 1998a, p. 354, negritos nossos)

O discurso é o meio através do qual chega-se a uma fala verdadeira, para além do
narcisismo. A fala autêntica seria possibilitada pelo atravessamento das miragens imaginárias do
narcisismo. Através da cadência do discurso, do reconhecimento dos seus impasses e mecanismos
de apagamento, abre-se um universo de transformação que não apenas corrige o incômodo
sintomático, mas revela as possibilidades históricas ainda não aventadas pelo sujeito.
Qualquer aposta transformativa que tenha como objetivo atravessar os efeitos de assimetria
racial baseadas no narcisismo deveria, assim, incluir a dimensão de um discurso que objetiva uma
modificação no sentido de um certo protagonismo histórico. Afinal, o fundamento da psicanálise
não seria outro senão “essa assunção de sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela
283
83A
fala endereçada ao outro” (LACAN, 1998c, p. 258). Mais ainda, o campo da psicanálise seria o do
“discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da
história, no que ela constitui a emergência da verdade no real” (LACAN, 1998c, p. 259).
Quais seriam as confluências de tais precisões para a luta racial no Brasil? Com a palavra, ou
melhor, com o discurso, Lélia Gonzalez:
Em termos de movimento negro e no movimento de
mulheres se fala muito em ser o sujeito da própria história;
nesse sentido eu sou mais lacaniana, vamos ser os sujeitos
do nosso próprio discurso. O resto vem por acréscimo. Não
é fácil, só na prática é que vai se percebendo e construindo a
identidade, porque o que está colocado em questão também
é justamente uma identidade a ser construída, reconstruída,
desconstruída, num processo dialético realmente muito rico.
(GONZALEZ, 2020c, p. 312), negritos nossos

A partir daqui a transformação histórica — compreendida como a emergência da verdade


(amefricana) no real (da trama social brasileira) — pode ser pensada como um efeito necessário
da assunção do discurso, se considerado como transindividual. Ou seja, a noção de identidade
empregada aqui não pode ser aproximada do narcisismo na medida em que sua verdade está
intrinsecamente ligada a construções e desconstruções paradoxalmente coletivas. A história
enquanto operação é um resultado dialético de um reordenamento discursivo que abalaria a
própria unidade pressuposta no narcisismo. A máxima gonzaleana “o lixo vai falar, e numa boa”
(GONZALEZ, 2020a, p.78) pressupõe que o reordenamento de poder na materialidade do discurso
não visa apenas um ganho de visibilidade por pessoas ou grupos subalternizados, mas uma
transformação radical das estruturas de poder no Brasil.
Vejamos como a categoria psicanalítica de infans, enquanto modalidade linguageira de se
pensar a criança na qualidade de falada é utilizada pela autora:
O conceito de infans é constituído a partir da análise da
formação psíquica da criança, que, quando falada por
adultos na terceira pessoa, é, consequentemente, excluída,
ignorada, ausente, apesar de sua presença. Esse discurso
é então reproduzido e ela fala de si mesma na terceira
pessoa (até o momento em que aprende a mudar pronomes
pessoais). Do mesmo modo, nós, mulheres e não brancas,

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somos convocadas, definidas e classificadas por um sistema
ideológico de dominação que nos infantiliza. Ao nos impor
um lugar inferior dentro de sua hierarquia (sustentado por
nossas condições biológicas de sexo e raça), suprime nossa
humanidade precisamente porque nos nega o direito de ser
sujeitos não apenas de nosso próprio discurso, mas de nossa
própria história (GONZALEZ, 2020d, p. 141).11

Gonzalez se vale de um conceito psicanalítico ligado à estrutura de alienação da criança


no estádio do espelho e no chamado primeiro tempo do édipo não apenas para diagnosticar o
sofrimento individual de mulheres negras que seriam infantilizadas por brancos, mas, sobretudo,
para pensar um sistema de dominação que tem como efeito uma espoliação do discurso e da história.
Temos aqui mais um exemplo de uma metodologia psicossocial que toma sujeito e sociedade como
partilhando de modos de funcionamento análogos e não como parte e todo. O que nos permite
aqui um uso do significante história como dobradiça entre seu significando ontogênico (história) e
social (História).

11 A aparente contradição entre a assunção do sujeito de seu discurso ou de sua história nos dois trechos de
Gonzalez (2020c, p. 312 e 2020d, p. 141) pode ser interpretada de duas maneiras. Numa primeira, a autora no
fundo os trata como sinônimos, ou compreendendo que a história deve ser pensada discursivamente e o discurso
historicamente. Numa segunda, haveria uma diferença entre o processo de emancipação (ser sujeito de seu
próprio discurso é mais abrangente ou radical do que ser sujeito de sua própria história) e de subalternização (que
silencia mais radicalmente a história e não apenas o discurso, tomado como sinônimo de fala).
284
84A
Mas como, a partir dessa ambiguidade da noção de história, desestabilizar tal funcionamento
social supremacista branco? Pensadas por meio da neurose, a escassa liberdade corporal e
discursiva que atinge pessoas negras e indígenas (mas incide igualmente em alienações da própria
branquitude) encontrariam uma saída não pela realidade jurídico-formal de igualdade, mas pela
verdade de uma reescrita histórica que franqueie a emergência da verdade.
Leitora assídua de Lacan, Gonzalez não utiliza as noções de discurso e história em vão e
conhecia a radicalidade com a qual o psicanalista pensava não apenas a materialidade da linguagem,
mas o próprio processo de análise. Vejamos como Lacan resume a articulação entre tratamento,
reordenação da história e emergência da verdade:
É que não se trata, para Freud, nem de memória biológica,
nem de sua mistificação intuicionista, nem da paramnésia do
sintoma, mas de rememoração, isto é, de história, fazendo
assentar unicamente sobre a navalha das certezas da data a
balança em que as conjecturas sobre o passado fazem oscilar
as promessas do futuro. Sejamos categóricos: não se trata, na
anamnese psicanalítica, de realidade, mas de verdade, porque
o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências
passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais
como as constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz
presentes (LACAN, 1998c, p. 257).

Ou seja, levando a sério o diagnóstico de neurose feito por Gonzalez, teríamos que o
atravessamento do racismo implicaria na emergência de uma verdade histórica. A saída da repetição
traumática calcada nas miragens narcísicas da branquitude deve conduzir à esperança de um futuro
outro de necessidades por vir, assentado na reconstrução das leituras sobre as contingências do
passado. Neste sentido, Emiliano de Camargo David (2022, p. 65) realiza um resgate das tradições
do quilombismo, quilombagem, kilombo e devir quilomba com vistas à (re)construção de
tecnologias que ultrapassem a obsolescência violenta do modelo manicomial que ainda opera na
práxis em saúde mental no Brasil. Ao contrário de discursos conservadores que tendem a rejeitar
as denúncias de violações de direitos humanos como “coisas do passado”, a aposta na neurose vê
o sentido e o desejo de devir como dependentes de uma outra historiografia: “O que se realiza em
minha história não é o passado simples daquilo que foi, uma vez que ele já não é, nem tampouco
o perfeito composto do que tem sido naquilo que sou, mas o futuro anterior do que terei sido para
aquilo em que me estou transformando.” (LACAN, 1998c, p. 301). Se lembrarmos, porém, que para

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o mesmo Lacan “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (1998e, p. 213) tal lógica se
aplicaria não apenas à relação entre passado e futuro no tratamento individual mas na própria
transformação social. Para Achille Mbembe, retomado por David (2022, p. 38), “o caminho passa
pela produção, a partir da crítica do passado, de um futuro indissociável de uma certa ideia de
justiça, da dignidade e do em comum.”
O presente teme que a verdade do passado acorde as promessas silenciadas de futuro. A
força com a qual a estrutura dominante reage quando da ameaça de um símbolo que representa o
silencioso orgulho branco, como a queima da estátua do Borba Gato em São Paulo, é exatamente a
mesma que impede a punição dos torturadores da ditadura Civil-Militar. Neste ato, que tem estrutura
da fala, trata-se de um único expediente de resistência à elaboração e reescrita de uma história. A
sociedade brasileira como “adolescente neurótica” (GONZALEZ, 2020a), sofre de reminiscências de
tal forma que a relação entre culpa e exaltação sobre o passado produz estagnação, perpetuada
pelo recalcamento da verdade histórica “toda fixação numa pretensa fase instintual é, antes de
mais nada, um estigma histórico: página de vergonha que se esquece ou se anula, ou página de
glória que constrange.” (LACAN, 1998c, p. 263)
Depreende-se daí uma importância adicional das políticas de memória e reparação. Não
se trata apenas de justiça e compensações com vistas a um equilíbrio e a um amansamento da
luta social pelo constrangimento de glórias ideologicamente questionáveis ou da vergonha que
move o combate à violência policial como expressão da culpabilidade branca (GONZALEZ, 2020a, p.
93). A verdadeira superação consiste em construir uma política do passado que sirva a um desejo
que ainda não pôde se enunciar enquanto tal. Em análise rememora-se o passado não em busca
285
85A
de um evento traumático disparador cuja elaboração aboliria os sintomas. O passado é, antes,
o caleidoscópio de meus futuros possíveis calados pela violência da historiografia hegemônica,
neurotibranca.
A busca das experiências de aquilombamento seja econômico-social (Clóvis Moura),
cultural (Abdias do Nascimento), histórico (Beatriz Nascimento) ou discursivo (Lélia Gonzalez)
não são apenas reparações, mas construções de ferramentas para a instauração de um devir
qualitativamente distinto do presente. Nos voltamos às experiências de resistência para sabotar as
engrenagens da máquina que mói não apenas corpos e almas, mas, fundamentalmente, sonhos. Se
no tratamento analítico temos que “A análise só pode ter por meta o advento de uma fala verdadeira
e a realização, pelo sujeito, de sua história em sua relação com um futuro.” (LACAN, 1998c, p. 303),
para a construção de um projeto de nação, Gonzalez defende, precisamente em seu Discurso na
constituinte que “um povo que desconhece a sua própria história, a sua própria formação, é incapaz
de construir o futuro para si mesmo.” (GONZALEZ, 2020e, p. 255). Mais ainda, em outro momento
no mesmo discurso, afirmará:
E, para criarmos uma nação, temos que criar o impulso comum
de projeto com relação ao futuro. E, para podermos ter
impulso com relação ao futuro, temos de conhecer o nosso. E
a história do nosso país é uma história falada pela raça e classe
dominante, é uma história oficial, apesar dos grandes esforços
que vêm sendo realizados no presente momento. É então que
vamos perceber que nesse período, que vem de 1888 para
cá, as grandes promessas da campanha abolicionista não se
realizaram (GONZALEZ, 2020, p. 248).

Ou seja, pensar um futuro implica em revisitar retroativamente não apenas a realidade dos
desdobramentos históricos, mas igualmente suas promessas. O passado, inconscientemente social,
é um campo em disputa pois ele é o fiador do futuro. Para Freud, contudo, à diferença da neurose,
o narcisismo não possibilitaria uma reconstrução histórica em sentido pleno, pois a ele faltaria o
motor da rememoração mais radical, a saber: a transferência. Por caracterizar-se fundamentalmente
por um ensimesmamento, o narcisismo presta-se muito menos a transformações oriundas das
operações da história no campo do discurso. O que é apenas um limite clínico na psicanálise, na
luta antirracista apresenta-se como um impasse ético: ao apostar em uma diagnóstica que não
possui uma terapêutica clara, arriscamos conceituar as relações étnico-raciais como não passíveis
de processos políticos de transformação. Faz-se assim conveniente uma discussão mais detalhada

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dos paradoxos que o narcisismo enquanto mecanismo psíquico — e não só como enquadre
psicopatológico — pode aportar.
Voltemos à Bento (2002). Em contraste com a ideia de racismo como sintomática da
neurose cultural, tanto sua premissa quanto sua diagnóstica são distintas: o marco zero de sua
análise não é o recalque da verdade negra no Brasil, mas o pacto de branquitude e, no lugar da
neurose, encontramos o narcisismo. Ainda que a autora não faça um recurso forte ao conceito em
sua acepção freudiana autorizemo-nos a tirar algumas consequências de seus pressupostos.
Considerando o narcisismo enquanto não apenas um momento de estruturação do
psiquismo, mas igualmente como o paradigma de um conjunto de afecções que se diferenciam das
neuroses ditas de transferência, temos que na histeria e na neurose obsessiva:
o sujeito tem à sua disposição uma quantidade de libido que
se esforça por ser transferida para objetos externos, fazendo-
se uso disso para levar a cabo o tratamento analítico; por outro
lado, os distúrbios narcísicos (demência precoce, paranóia,
melancolia) caracterizam-se por uma retirada da libido dos
objetos e, assim, raramente são acessíveis à terapia analítica
(FREUD, 2011a, p. 294).

O excesso de libido do eu e a dificuldade em formar laços (seja na realidade, seja na


fantasia) tornaria, para Freud, os distúrbios narcísicos uma categoria majoritariamente diagnóstica
e representativa de um momento de estruturação do psiquismo, mas com poucas indicações
286
86A
terapêuticas. Em especial na melancolia, que será caracterizada no ano seguinte como a patologia
narcísica por excelência (FREUD, 2011b, p. 181), não há propriamente uma perturbação na relação
do Eu com a realidade, mas 1) ambivalência afetiva; 2) perda do objeto não reconhecida enquanto
tal; 3) incapacidade de realocar a libido em objetos que o lancem para além da repetição egóica
(FREUD, 2011c., p. 85).
Vejamos um exemplo da aplicação de alguns destes pressupostos em uma passagem na
qual Bento comenta um trecho da entrevista de Doralice que, para a autora, reconhece violências
e desigualdades, mas não tira consequências em relação à sua própria posição ou engajamento
na transformação deste quadro: “Doralice faz julgamentos e expressa aquiescência ou desacordo
em diferentes momentos da entrevista, mas não faz qualquer menção de crítica ou censura às
desigualdades raciais que ela mesma observa.” (BENTO, 2002, p. 82) e segue:
nada que acontece com “eles” interessa à pessoa, que só se
sensibiliza com questões ligadas a seu grupo de pertença. Este
também é um traço dos pactos narcísicos: “...eu acho que o
negro ele mesmo, ele mesmo fica ... ele mesmo é revoltado, é
agressivo, é como se ele falasse “você me respeita porque eu
consegui esse lugar às custas de muito sacrifício, então você
me respeita” (BENTO, 2002, p. 82).

O narcisismo, assim, implica que o pacto mantém uma separação forte entre grupos, ainda
se reconheçam assimetrias. Mas a partir do trecho selecionado é possível desdobrar daí mais uma
consequência aventada por Freud: a ambivalência. Para Doralice negros são, ao mesmo tempo,
explorados e revoltados, atacados e agressivos, desrespeitados e demandam respeito.
Seriam tais queixas relativas de fato ao grupo objetalizado ou, no fundo, referir-se-iam às
precárias condições de sustentação do desejo e de luto do próprio Eu? Para Freud, a expressão,
seja melancólica ou maníaca, do complexo narcísico é resultado de uma luta que tem em seu cerne
modalidades primitivas de amor, nas quais o investimento libidinal confunde-se com a própria
destruição do objeto. “A perda do objeto de amor é uma oportunidade extraordinária para que
entre em vigor e venha à luz a ambivalência das relações amorosas” (FREUD, 2011c, p. 65)
A identificação narcísica é, portanto, uma regressão face à impossibilidade amorosa e
não um fenômeno princeps: sua ambivalência, agressividade e constituição identitária carregam
sobretudo a marca de um transitivismo entre sujeito e objeto. Ao não abordar tais especificidades,
Bento parece realçar o enunciado de Doralice em detrimento da enunciação aí presente: revolta,
agressividade e demanda de reconhecimento meritocrático são confissões de tais traços na própria

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branquitude, num exemplo da lógica da fala em Lacan: recebo meu discurso invertido, como vindo
do outro.
Assim, ainda que a noção de narcisismo ligado à espessura racial possa indicar modalidades de
tratamento ligadas ao reconhecimento e afirmação identitárias (seja na positivação de experiências
subalternizadas, nas políticas afirmativas, na racialização de invisibilidades, no letramento racial,
etc.) elas não devem ignorar que tanto seu ponto de partida quanto sua aposta transformativa são
incontornavelmente ligados à análise das contradições relacionais. Dito de outro modo, quanto
mais me aproximo das raízes do pacto narcísico da branquitude, mais encontro a impossibilidade
de assunção identitária e dialética do próprio discurso, fato apontado por Gonzalez como base das
relações raciais no Brasil. Erraríamos, contudo, ao descartar o narcisismo como categoria de análise:
não por outra razão Fanon aponta que, ao mesmo tempo, brancura e negrura são narcisismos
(FANON, 2020, p. 23) e que o projeto de descolonização deveria ter como objetivo a dissolução
das raças enquanto tais (FANON, 2020, p. 243), mas que a afirmação positiva de uma identidade
minorizada é necessária e passo incontornável do fim do racismo, (FANON, 2018, p. 89): universal,
mas não sem não sem a radicalidade do particular.
Por fim, na esteira do paralelo ora proposto entre os processos de tratamento e de luta
social, retomemos o uso lacaniano das categorias marciais de tática, estratégica e política. Esta
última, segundo Lacan, é aquela na qual a/o/x analista tem menos liberdade pois se trata de um
limite estrutural e ético do que deve guiar a condução de uma análise: a falta-a-ser (LACAN, 1998d,
p. 596). Utopia de uma verdade que ainda não encontrou espaço na realidade, a política é quem
287
87A
preside a estratégia que, por sua vez, guia a tática, o nível onde há maior liberdade e pluralidade
nas ações. Assim, pode-se dizer que, na batalha contra o racismo, do narcisismo podemos extrair
expedientes táticos de uma diagnóstica de modos de manutenção de privilégio, sobretudo do
grupo racialmente dominante. Ou seja, é verdadeira a constatação de um pacto grupal que retira
sua força de um silencioso narcisismo e sua denúncia pode levar à passagem da vivência alienada
da brancura ao reconhecimento de uma branquitude não mais invisível. O narcisismo, porém, não
é uma categoria diagnóstica que possua uma indicação clara de cura se considerada como uma
dinâmica libidinal radicalmente alheia ao outro.
No nível da estratégia, a branquitude pode ser relacionada ao narcisismo na condição de
que este seja tomado como um efeito de uma estrutura fundamentalmente neurótica, ou seja,
conflitiva. Afinal, não é a identidade branca em si, mas a própria dinâmica ambivalente das relações
étnico-raciais que mantém recalcada a irrupção de uma verdade negra no processo de abolição,
curiosamente uma das traduções para a famosa Aufhebung hegeliana12. Não basta denunciar
o pacto entre brancos enquanto laço entre indivíduos, mas apontar que a constituição deste
narcisismo coletivo tem um caráter defensivo e secundário, é o sintoma de uma incapacidade na
lida com a alteridade amefricana, estruturante da sociedade brasileira.
Do ponto de vista político a assunção das facetas recalcadas da história num projeto de
transformação radical da sociedade — que, em outros tempos, chamava-se sem muitos dedos de
revolução — é, em vista do apresentado, análoga ao processo de final de análise na neurose. Neste
ponto a posição assimétrica do analista chamada por Lacan de Sujeito Suposto Saber é abolida em
nome da emergência da verdade no discurso e do fim da sujeição. Dirá Gonzalez que “a categoria de
sujeito suposto saber enriquece ainda mais a compreensão dos mecanismos psíquicos inconscientes
que são explicados na superioridade que o colonizado atribui ao colonizador.” (GONZALEZ, 2020d,
p. 142). A destituição deste suposto saber colonizador e de seu pacto narcísico correlato é o efeito
esperado da assunção do sujeito racializado no Brasil dos devires revolucionários ainda silenciados
de nossa história.

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12 De acordo com a tradução de Paulo Sérgio de Souza Jr. do uso que Freud faz de Aufhebung em Luto e Melancolia
(no prelo).
288
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mentais, modificações de caráter, distúrbios psíquicos e déficit intelectual na heredogeneração
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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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290
90A
ESCUTA ÉTICO-POLÍTICA NA (TRANS)FORMAÇÃO DE ANALISTAS
PERIFÉRICOS

ETHICAL-POLITICAL LISTENING IN THE (TRANS)FORMATION OF


PERIPHERAL ANALYSTS
João Luis Sales Sousa 1
Marília Paiva de Magalhães 2

Resumo: Ao considerar o fazer analítico com articuladores interseccionais como gênero, raça e classe, propõe-se explicitar
a importância de uma escuta ético-política na formação e transformação descentralizada de analistas periféricos, tendo
como território articulador o Coletivo de Clínica Periférica de Psicanálise de São Paulo-SP (Ermelino Matarazzo, Zona Leste,
ocupação Mateus Santos).  Embasado na teoria lacaniana, a qual se propõe refletir sobre a subjetividade de nossa época,
da contemporaneidade, em articulação com outros saberes, como os feminismos, a teoria queer, a teoria de gênero, a
teoria crítica, teoria social, a filosofia, estudos decoloniais, pós-estruturalistas etc. A estratégia é inverter a lógica que
aborda apenas os corpos subalternos e submetidos a necropolítica, colocando em jogo a branquitude, a colonialidade, a
burguesia, a cisgeneridade, a heterossexualidade e a masculinidade etc. Para tanto, a proposta do trabalho condiz com
o que o coletivo idealiza promover: a escuta ético-política a partir das clínicas públicas como direito de todo cidadão
que requer cuidados de si, da saúde mental que o Estado deveria priorizar promovê-la, e por consequência, formar e
transformar outros analistas.

Palavras-chave: Psicanálise. Ético-política. Coletivo. Formação. Transformação.

Abstract: By considering the analytical work with intersectional articulators such as gender, race and class, we propose
to explain the importance of an ethical-political listening in the training and decentralized transformation of peripheral
analysts, having as articulating territory the Collective of Peripheral Psychoanalysis Clinics of São Paulo-SP (Ermelino
Matarazzo, East Zone, Mateus Santos occupation). Based on Lacanian theory, which proposes to reflect on the subjectivity
of our time, of contemporaneity, in articulation with other knowledge, such as feminism, queer theory, gender theory,
critical theory, social theory, philosophy, decolonial and post-structuralist studies, etc. The strategy is to invert the logic
that only addresses subaltern bodies and those submitted to necropolitics, putting into play whiteness, coloniality, the
bourgeoisie, cisgenerism, heterosexuality, masculinity, etc. To this end, the proposal of the work matches what the
collective aims to promote: ethical-political listening from public clinics as a right of every citizen who requires care of the
self, of mental health that the State should prioritize to promote it, and consequently, to train and transform other analysts.

Keywords: Psychoanalysis. Ethical-Political. Collective. Training. Transformation.

1 Graduado em Psicologia pela Faculdade Metropolitanas Unidas (2019). Psicoterapeuta, atende na linha psicanálise lacaniana. Membro do coletivo
Clínica Periférica de Psicanálise, desde 2018. Profissional da assistência social de São Paulo no Núcleo de Convivência para pessoas em situação de
rua, desde 2020. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2862357193815710. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6968-8515.
E-mail: joao.salespsi@gmail.com

2 Psicanalista em trânsito, com formação em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná, é membro do Coletivo da Clínica Periférica de
Psicanálise, faz pós-graduação no IPPERG em Psicanálise e relações de gênero: ética, clínica e política, faz formação na Rede Para Escutas
Marginais (Margens clínicas) e atua no PSILACS (UFMG) com pesquisas. Lattes: https://lattes.cnpq.br/1813965827851934. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-6519-1659. E-mail: mariliamagalhaes@hotmail.com
Introdução

Jacques Lacan atenta-se para a função da psicanálise, o papel da prática para o autor
consiste em considerar a subjetividade e horizontalidade de seu tempo (LACAN, 1953), isto é,
resta-nos sermos críticos e éticos na contemporaneidade. É importante ter em vista os fenômenos
sócio-políticos que atravessam o psiquismo, explicitando problematizações em torno da teoria e
metodologia da psicanálise como a escuta, um fazer analítico. Somam-se a isso as particularidades
que o Brasil — país que territorialmente possui a proporção de um continente — também nos provoca
a pensar. Uma nação que foi fundada por traumas sucessivos iniciados pela colonização europeia e,
consequentemente, todos os processos de exploração, genocídio e golpes que ocorreram ao longo
da história, sem que houvesse processos de reparação histórica que envolvessem a elaboração da
memória do Brasil. Como escutar a subjetividade de um país em que não é permitido elaborar seus
traumas?
Diante disso, é preciso elaborar formas de promover uma escuta ético-política, a fim de
incluir a interseccionalidade entre gênero, raça e classe. Falar da escuta enquanto fazer analítico
implica pensar na formação do analista, através da transmissão de um saber teórico-metodológico
que é a clínica. Logo, há pautas pouco debatidas nos espaços institucionais de psicanálise como a
branquitude, a cisgeneridade, a burguesia e a colonialidade que permeiam a nossa cultura enquanto
uma identidade brasileira e que perpassam, inclusive, pela história da psicanálise no Brasil.
A interseccionalidade investiga como as relações interseccionais
de poder influenciam as relações sociais em sociedades
marcadas pela diversidade, bem como as experiências
individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica,
a interseccionalidade considera que as categorias de raça,
classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade,
etnia e faixa etária - entre outras - são inter-relacionadas e
moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma
de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas
e das experiências humanas (BILGE; COLLINS, 2020, p. 12).

Há psicanalistas que se movimentam há um tempo para que a psicanálise em dialética


com outros campos de saber se torne uma ferramenta de disputa, como os estudos decoloniais,
queer, de gênero, pós-estruturalistas, feministas etc. Patrícia Porchat no prefácio do livro Psicanálise

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e hibridez: gênero, colonialidade e subjetivações de Thamy Ayouch, nos convoca a pensar que a
psicanálise no Brasil que se encontra em marcha e debate sobre branquitude, negritude, racismo,
feminismo, violência, democracia, LGBTfobia, uma vez que nos leva a refletir sobre “os processos
de subjetivação frutos de relações de poder que definem o posicionamento social e psíquico dos
sujeitos” (PORCHAT, 2021, p. 9). 
O posicionamento social e psíquico debatido pela autora nos remete aos movimentos
sociais. Observamos que os diálogos em torno dos feminismos se entrecruzam com a
interseccionalidade e a psicanálise e contribuem para o fazer político, pois ter um corpo é político
e ele se posiciona a todo momento, seja a partir do inconsciente ou não. Diante disso, é válido
pautar o transfeminismo e o feminismo negro como parte dessa proposta, dado que sem esses
movimentos não estaríamos escrevendo sobre gênero, raça, classe e a opressão social. As lutas se
unem através desses movimentos e ganham mais força para criarem todas as ferramentas possíveis
contra a colonialidade, resultando em um movimento no qual a psicanálise seja uma ferramenta
de disputa e que o pensamento decolonial e contracolonial seja um discurso para se aliar. Logo,
falar sobre a colonialidade é importante. Colonialidade, branquitude, cisgeneridade, burguesia são
conceitos-chaves para se pautar como forma de intervenção, contrapondo em falar somente dos
corpos subalternos ameaçados pela necropolítica, como conceitua Achille Mbembe (2018) em seu
livro intitulado Necropolítica, tendo em vista as relações de poder que colocam esses corpos frente
a morte, ou fazer morrer.
Através do Coletivo da Clínica Periférica de Psicanálise, levantamos a proposta de apostar
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em uma formação de analistas descentralizada, periférica que resgate na psicanálise brasileira a sua
história um tanto apagada, como a escravização no Brasil. Uma formação e transformação de um
coletivo de analistas periféricos que propõe pensar enquanto classe trabalhadora, que tenta cuidar
um do outro para não se sobrecarregar nas demandas que tomam o coletivo e a vida de cada um e
busca descentralizar o saber elitista para atuar frente à uma ética.

Coletivo da Clínica Periférica de Psicanálise de São Paulo


O Coletivo da Clínica Periférica de Psicanálise surgiu em 2018 com seus integrantes ainda
estudantes, cursando Psicologia. Porém sua nomeação ocorreu somente em 2020 em meio a
pandemia do coronavírus e os atendimentos se deram dessa forma, perdurando. Atualmente
buscamos formas de sustentar o coletivo, pois oferecemos atendimento sem custo monetário,
pensando que a luta de classes em si é uma forma de pagamento e investimento do sujeito
implicado na sua análise, e com isso, os atendimentos contribuem com a formação de analistas,
desenvolvem laços entre os pares e transformam o território em que atuamos.  A orientação do
grupo é psicanalítica em sua base, portanto é fundamentada em uma ética linguística e considera
em sua atuação e relação os preceitos fundamentais da psicanálise, dando importância a uma
perspectiva social em que observamos as opressões vigentes no território onde atua.
O que nos motiva politicamente é o comprometimento da Clínica Periférica com a
democratização da psicanálise e o desejo de ampliar o acesso, pensando em questões ligadas a
São Paulo que é geograficamente ampla e economicamente privilegiada para determinado recorte
da população, além disso detém, principalmente nos centros, as clínicas de psicanálise até mesmo
as que se propõem a um modelo de clínica pública. Neste cenário nasce a Clínica Periférica de
Psicanálise com o um intuito em comum de fugir de um caráter messiânico e disponibilizar em suas
amplitudes e nuances o que de fato constitui o que carinhosamente apelidamos de “O Coletivo”.
Assim, iniciamos uma busca por locais que conversem com o projeto e tivessem alinhamentos
políticos similares, com possibilidade de realizar atendimento na periferia. O local escolhido foi na
região do bairro Ermelino Matarazzo, especificamente a Ocupação Mateus Santos, um local que
além de ser uma ocupação cultural, abriga consigo um histórico de lutas, militância e até mesmo
conflitos com os governos responsáveis pela cidade de São Paulo. Inclusive, consideramos atender
além do estado de São Paulo, visto que a vulnerabilidade social atravessa fronteiras.
Dessa forma, podemos afirmar que não é a psicanálise realizando uma análise da periferia ou
do espaço público, mas sim a elaboração de uma experiência dialética da construção de um saber

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provisório, inacabado, parcial sobre a relação analítica que ali ocorre entre o falante e a pessoa do
analista, escuta-se o território e constrói-se por ele.
O que se inventa e específica nossa práxis no Coletivo de Clínica Periférica de Psicanálise
são os modos de acesso à escuta psicanalítica, mesmo que outros coletivos também atendem
gratuitamente, criamos esse acesso ao nosso modo e para que cada pessoa seja escutada na sua
relação com a clínica, nos efeitos que cada atendimento se dá. Nossa práxis foi construída a partir
da clínica, embasando nela e tirando sustento dela, na aposta ao sujeito do inconsciente. Com isso,
pensamos em delimitar esses atendimentos aos moradores da ocupação Ermelino Matarazzo,
inicialmente. O coletivo tem intuito também de promover formações de analistas em torno da
práxis clínica periférica, considerando as interseccionalidades entre raça, gênero e classe e assim,
transmitir uma psicanálise democrática com grupos de estudo, jornadas, aulas abertas em
universidades, produção de artigos, livros etc. Realizamos reuniões abertas como uma maneira de
convidar analistas em formação para integrar, seja às formações e/ou ao corpo clínico. Consideramos
que a participação se dê de modo ativo, na medida do possível, e que esteja compactuada com os
princípios do coletivo. Portanto, o processo de inserção acontece com o tempo.
Dito isso, nossa intenção consiste em analisar como é possível ter uma escuta ético-política
através da formação de analistas. “Todos e todas as psicanalistas podem praticar a psicanálise
pública. Não é necessário fazer parte de um grupo de analistas”, afirma Daniel Guimarães (2020,
s/p) em Convite à prática pública de psicanálise, no blog Outras Palavras. Os coletivos que surgiram
no início do século XXI no Brasil demonstram uma necessidade de ter uma rede como forma de
trocas, de cuidado um com o outro para exercer uma escuta que tenha ideologias em comum como
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a descentralização da escuta psicanalítica a fim de tornar o fazer analítico menos solitário e mais
coletivo e construir uma formação, uma prática de liberdade, com grupos de estudo, discussão de
casos clínicos, reuniões sobre o coletivo etc. Pensando nisso, a função do analista consiste em fazer
falar, o que se torna um ato ético-político. Para tanto, é preciso considerar os marcadores sociais que
a atravessam como meio de opressão da sociedade em que vivemos, isso diz da interseccionalidade.
Ética é o que devemos para as pessoas que atendemos em nossa clínica, ao vê-las além de
um sujeito do inconsciente com angústias e desejos, mas também através do sofrimento psíquico
que advém do mal-estar sociocultural, que teme não conseguir ter dinheiro para se sustentar; de se
preocupar com o futuro constantemente; de ser morto pelo racismo, ou homofobia, ou transfobia;
por não se sentir pertencente, não ter um lugar etc. Como é possível ter uma escuta ético-política
através da (trans)formação de analistas?

Paul Preciado: crítico da psicanálise

Vocês não podem seguir falando do complexo de Édipo


ou do Nome-do-Pai em uma sociedade onde as mulheres
são objeto de feminicídio, onde as vítimas da violência
patriarcal se expressam por denunciar a seus pais, maridos,
chefes, namorados; onde as mulheres denunciam a política
institucionalizada de violação; ou onde milhões de corpos
descem às ruas para denunciar agressões homofóbicas, e as
mortes, quase cotidianas, de mulheres trans, assim como as
formas institucionalizadas de racismo (PRECIADO, 2020, p. 12).

Se investiga há dois séculos no campo psicanalítico quem é a mulher, enuncia que ela não
existe, suas diferenças sexuais em relação ao homem, conceitos como o gozo outro, o gozo feminino,
como é não-toda inscrita na função fálica, de como nasce castrada. E o homem? Tido esse homem
como cis, branco, hetero, europeu, elitista, como símbolo de uma masculinidade. A problematização
se alcança aí, no nível ao qual é pouco falado, pouco questionado e pouco problematizado. 
Mas por que as senhoras e os senhores estão convencidos,
queridos amigos binários, de que só os subalternos têm
uma identidade? Por que estão convencidos de que só

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ou muçulmanos, os judeus, os gays, as lésbicas, os trans,
os moradores de periferias, os migrantes e os negros têm
uma identidade? Vocês, os normais, os hegemônicos, os
psicanalistas brancos da burguesia, os binários, os patriarco-
coloniais, por acaso não têm identidade? (PRECIADO, 2022, p.
31).

É através dessas questões que tomamos como direção, ou como o autor costuma utilizar
saída para que a transformação da psicanálise seja banhada na ético-política para nomear os sem-
identidade, trazendo-os para a fronteira a fim de descentralizar, despatriarcalizar e decolonizar a
psicanálise. Isso nos remete aos movimentos sociais, que se posicionam para lutar. O filósofo traz
em voga o transfeminismo como sua luta, mas que não seria nada sem o feminismo negro e cria
uma ponte para se aliar.

Feminismos
Tomado como movimento social em constante construção,
o transfeminismo emerge de críticas e proposições políticas,
teóricas e éticas aos modelos tradicionais de produção de
conhecimento e aos feminismos de bases essencialistas
e naturalizantes sobre a perspectiva do que significa ser
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94A
mulher.  Filia-se aos movimentos feministas por colocar
em questão as hierarquias de sexo/gênero que justificam
opressões e violências.  Entretanto, aliando-se a referenciais
interseccionais, pós-estruturalistas    e    a    feminismos  
marginais, as pessoas transfeministas questionam a categoria
universal de “mulher” que pauta muitos dos movimentos
feministas, evidenciando seu viés cisheteronormativo, branco
e privilegiado (CIDADE; MATTOS, 2016, p. 144).

Posto isso, o transfeminismo bebe da fonte do feminismo negro, ao passo que ressalta
a importância de considerar a interseccionalidade de raça, gênero, classe e sexualidade
articuladamente. Para além disso, Donna Haraway (1995 apud CIDADE; MATTOS, 2016) questiona
o lugar de pessoas trans como objetos de pesquisa e investigações.
A partir da década de 1830 as mulheres brancas dos EUA começaram a expressar suas
insatisfações com as vidas de donas de casa que levavam, denunciando o casamento como
uma escravização, tanto as donas de casa de classe média quanto as operárias. “Embora fossem
nominalmente livres, elas eram tão exploradas em suas condições de trabalho e em seus baixos
salários que a associação com a escravidão era automática” (DAVIS, 1981, p. 53). Essa comparação
se implica ao fato de que as mulheres brancas de classe média criaram afinidade com as mulheres
e homens negros escravizados. Foi, portanto, a partir da criação da Sociedade Antiescravagista
Feminina da Filadélfia que as mulheres brancas que simpatizavam com a causa da população negra
pudessem estabelecer vínculos enquanto grupos oprimidos, afirma Angela Davis (1981). Pensar
em movimentos sociais, nos diz sobre a luta contra a colonialidade por efeito das marcas que a
colonialidade deixou.

Colonialidade 
A colonialidade se manifesta através da relação violenta — seja sexual, física, psicológica
— e exploratória entre colonizador e colonizado, transformando este em objetos, mercadorias e
animais. Aníbal Quijano (2005 apud LUGONES, 2014), contribui para situar a colonialidade do poder
que está atrelado aos processos de racialização e exploração capitalista, e além da colonialidade do
poder e do gênero, desumanizando a subalternidade.
Na colonização, o colonizador é colocado no lugar de referência universal de ser humano,
aquele que é diferente dele se torna o outro. A partir do capitalismo, racismo, colonialismo e

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generismo produz-se uma organização hierárquica de mundo, que consequentemente resulta
em efeitos nas subjetividades e na produção e valorização de saberes. Com isso, Maria Lugones
(2014) propõe pensar a resistência como movimento de libertação e tensão entre a subjetivação e
subjetividade, mantendo a relação oprimir-resistir ativa. Isildinha Nogueira contribui para resgatar
o apagamento da história do Brasil como estratégia de colonização:
Transportados para o Brasil na segunda metade do século XVI,
os negros provenientes de várias regiões da África, falando,
portanto, diferentes línguas, são enviados ao trabalho escravo
nas fazendas. Por mais de três séculos, as principais atividades
econômicas mercantes brasileiras basearam-se no trabalho
do negro escravizado. A historiografia oficial nos conta que
a substituição do braço escravizado indígena pelo do negro
se deu por este apresentar maior resistência física e por ser
mais dócil. O que essa historiografia não nos conta é que os
negros resistiram violenta e sistematicamente à escravidão.
Evidentemente, era mais fácil submeter alguém à escravidão
num meio geográfico e cultural desconhecido (NOGUEIRA,
2021, p. 31).

A escravização foi uma estratégia dos colonizadores para desenvolver o capitalismo,


valendo-se de pessoas africanas como mercadoria, assim como as pessoas indígenas. Dessa forma, 295
95A
é importante ressaltar como a colonialidade está relacionada ao capitalismo, na mesma medida
que o colonizador faz tudo pelo lucro do capital, e por fim pelo poder. Essa raça dominante tem
nome, é a branquitude instaurada nas estruturas de poder.

Branquitude: entre raça e classe


A branquitude se constrói a partir das estruturas de poder nas quais as desigualdades raciais
se sustentam. A identidade racial branca é caracterizada pela invisibilidade, pela falta de racialização
do indivíduo branco, pela brancura sendo vista como algo natural, normal (SCHUCMAN, 2020). O
embranquecimento foi a estratégia da branquitude para causar o apagamento da cultura brasileira,
tornando-a eurocentrada, baseada no ideal do eu branco como modelo a se espelhar enquanto
sinônimo de raça humana, tal qual o homem branco, burguês e europeu.
A grande questão para mim sempre foi o não reconhecimento
da herança escravocrata nas instituições e na história do país,
tema a que passei a me dedicar como pesquisadora. Não
temos um problema negro no Brasil, temos um problema
nas relações entre negros e brancos. É a supremacia branca
incrustada na branquitude, uma relação de dominação
de um grupo sobre outro, como tantas que observamos
cotidianamente ao nosso redor, na política, na cultura na
economia e que assegura privilégios para um dos grupos
e relega péssimas condições de trabalho, de vida, ou até a
morte, para o outro (BENTO, 2022, p. 14-15).

Reconhecer ser parte da branquitude enquanto lugar de fala não é suficiente, se racializar
enquanto um corpo branco não basta para pensar numa luta antirracista, é necessária uma postura
ética, como trazem Marcinik e Mattos (2021). Portanto, é fundamental compreender a importância
da participação da luta antirracista e horizontalizar os privilégios que impactam nas desigualdades
sociais, sendo essencial o comprometimento com a causa em torno dos marcados de raça e gênero
como forma de enfrentamento do racismo, machismo, misoginia, sexismo etc.
O ideal do eu é branco, diz Neusa Santos Souza (2021), o figurino é branco, branco diz de
uma posição hierárquica, ser letrado, ser bem-sucedido, rico, inteligente, saber o que falar, saber o
que faz. Branco é modelo, é espelho, é o melhor, ninguém o questiona, ninguém fala mais alto que

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ele, ninguém o interrompe. Alberto Guerreiro Ramos (1957 apud SCHUCMAN, 2020) no seu artigo
A patologia social do ‘branco’ brasileiro diz que no Brasil não existe branco puro sem nenhuma
miscigenação com a cultura afro-indígena.
O termo classe identifica os grandes grupos humanos que
lutam e se relacionam entre si para a produção do sustento
próprio, criando relações de dominação, apropriando-se do
excedente gerado para além do mínimo necessário para a
subsistência (NOGUEIRA, 2021, p. 50).

 
Podemos compreender como o privilégio branco abrange as estruturas de classe pelos
privilégios materiais e simbólicos, ou seja, mais oportunidades do que pessoas negras e indígenas.
As desigualdades raciais consistem também em polarizações geográficas, como por exemplo no
Brasil, onde no Sudeste e Sul existem mais pessoas brancas, diferente do Norte e Nordeste. Isso
acontece devido ao sistema escravagista no país com as políticas de incentivo e subsídio à imigração
europeia (SCHUMAN, 2020). Contudo, o ideal branco também existe ao pensarmos sobre o
gênero, tomando como o ideal cis, com uma performatividade padrão, única, universal, como a
masculinidade, a heterossexualidade, mas a cisgeneridade quase não existe, se não tocássemos
nela.

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96A
Cisgeneridade
A invisibilidade do termo cisgênero também é perceptível nas pesquisas e produções
em torno da teoria analítica, questionando-se muito sobre as transidentidades e pouco sobre a
cisgeneridade, ou quase nada realmente. Podemos considerar que a cisgeneridade foi foracluída
do discurso, sendo as transidentidades um tabu, de acordo com Beatriz Bagagli no blog
Transfeminismo (2018). Falar sobre a cisgeneridade propõe pensar o sistema sexo-gênero como um
dispositivo normativo, uma tecnologia de produzir corpos, segundo a teoria foucaultiana. A história
da sexualidade, é uma história que por si só é violenta e produz exclusão das transidentidades,
considerando-as como identidades não naturais, não compreensíveis, que transgride o centro e
são deixadas à margem. Viviane Vergueiro (2016) propõe tecer definições acerca do conceito de
cisgeneridade, considerando as diversidades corporais. A autora parte do pressuposto de que todas
as pessoas têm identidades de gênero, a partir da referência de normalidade, como o natural, o “de
verdade”, isso se alinha a corpos não transtornados, biológicos, cisgêneros. Nomear a cisgeneridade
é utilizá-la como um conceito de intervenção para servir de ferramenta de disputa em relação à
psicanálise, para que ela se movimente, ou nós a colocamos em movimento.

Psicanálise em movimento
Este manifesto nasce do movimento psicanalítico em elipse
decolonial - mais do que em giro. Sua raiz é o encontro
da psicanálise com corpos subalternizados e seus modos
inconscientes de ocupação. Corpos negros na metrópole,
aquilombados no Centro-Oeste, transgêneros nas conquistas
jurídicas, organizados nos desastres ecológicos, pacifistas
nas guerras tribais, indígenas em preservação de suas terras,
denunciantes na cena violenta doméstica, em luta em motins
e chacinas, migrantes e ribeirinhos em terra natal, apátridas
pelo avanço tecnológico, resistentes de telas (GUERRA, 2021,
p. 11).

Há indícios de que a psicanálise está em movimento. É como poderíamos descrever o livro


de Andréa Guerra que ressoa por uma Psicanálise em elipse decolonial, como intitula-o. Ao falar
em movimento, em decolonialidade, o discurso está em jogo, tendo em vista que tentamos sair da

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época que não condiz mais com nosso contexto, que é a contemporaneidade, é o que Lacan faz ao
reler Freud.
Lacan reconhece como o complexo de édipo em Freud é normativo, e relendo Freud tentou
até desler, pensando não ser mais do seu tempo esse discurso, talvez seja isso que tentamos
fazer na contemporaneidade, mudar as formações discursivas como um movimento que se deve
fazer na psicanálise. “Podemos discernir as formações discursivas do nosso tempo, quando ainda
participamos delas?” (AYOUCH, 2021, p. 22). Nisso, implica fazer uma arqueologia do próprio
discurso psicanalítico, não coincidindo consigo mesmo, ou seja, uma saída do seu próprio discurso. É
preciso sair da ilha para ver a ilha, como dizia José Saramago. Entretanto, há um risco em reinventar
a psicanálise, por isso não podemos viver apenas de novidade, pois existe uma teoria escrita e
reescrita, de Freud à Lacan, de acordo com Patrícia Porchat (2021). Por isso, ao invés de nomear
como uma reinvenção, por que não uma transformação?
Deste modo, ao colocar a psicanálise em transformação, esse movimento condiz com
fazer revolução, portanto podemos afirmar que existe uma luta de classe no campo psicanalítico.
Observamos, que durante a história da psicanálise brasileira, a clínica psicanalítica se desenvolveu
boa parte ao lado da burguesia, tornando seus espaços de escuta e formação limitados a uma
determinada classe dominante. Como consequência desse aparelhamento ideológico tivemos
o esvaziamento e uma negação da articulação do sintagma psicanálise-política no que tange a
formação do analista e sua participação no debate público. Essa negação e esvaziamento deixado
pelas instituições psicanalíticas tradicionais frente a urgência das demandas sociais e econômicas
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que ocorriam no Brasil na segunda década do século XXI, resultou na eclosão das clínicas periféricas,
de bordas, na praça, marginais, públicas, dentre outras nomeações, especialmente a partir do golpe
de Estado e a crise das instituições da democracia burguesa que acometeram o país a partir de
2016. Rafael Alves Lima (2019) argumenta que:
Há um conjunto de motivos que podem ser elencados que
configuram o cenário geral da emergência destes dispositivos
públicos de tratamento: 1) uma certa descrença estratégica
nos establishments institucionais de formação de psicanalistas
– algo que frequentemente é traduzido como descrença em
instituições (mas penso que a descrença aponta mais para
establishments institucionais do que para as instituições
propriamente ditas); 2) a chamada ausência de um suposto
grande mestre na psicanálise hoje no mundo; e 3) à posição
supostamente “marginal” da psicanálise no Brasil em relação
ao universo continental (LIMA, 2019, p. 293).

A psicanálise então se torna uma ferramenta de disputa na linha de frente com a escuta
dos sofrimentos sociopolíticos, daqueles que estão desamparados discursivamente em um outro
território que não aquele cujo marcadores sociais a própria psicanálise já está demarcada: o centro.
Ela estaria às avessas com outro território, esse lugar de transição, de relações, inclusive de poder,
território subjetivado que é criado pelo discurso das pessoas que estão ali na sessão. Propomos
então, pensar a política na psicanálise e a política dos psicanalistas, através do tensionamento das
contradições que são colocadas pelos coletivos.
Pensar a coletividade nos remete não só escutar, mas dar voz para esse resgate da cultura
brasileira, como forma de aquilombamento, uma vez que se tentou separar os povos, pois unidos
seria perigoso, o que eles poderiam fazer? Aquilombar colocamos aqui no sentido de assumir um
papel de resistência, contra hegemônica e coletivizar enquanto corpos políticos, como parte da
compreensão do conceito em si. Por isso, a escuta que fazemos hoje, e que tentamos transmitir
dentro desse campo de saber que é a psicanálise, é à brasileira, é resgatando através da memória
do apagamento da história do Brasil e da instauração da psicanálise no Brasil. Não é à toa que hoje
se lê muito Lélia Gonzalez, “mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela
fala através das mancadas do discurso da consciência” (GONZALEZ, 2020, p. 79). Resgatar essas
memórias para que sejam geradoras do futuro, e para isso precisamos falar sobre escutar enquanto
uma ferramenta analítica, e o quanto disso envolve o saber, em como sustentar esse lugar de saber

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que não se sabe, que o inconsciente do outro é que nos dá notícias do sofrimento psíquico.

Uma escuta ético-política à brasileira


Nesta linha, certos projetos filosóficos são capazes de
sustentar uma inigualável crítica a desigualdade humana
pensada universalmente, ao mesmo tempo em que produzem
uma justificação conceitual e política ao colonialismo europeu
e à desigualdade entre raças; ou ainda, certas filosofias são
capazes de fornecer as bases conceituais para a promoção de
uma educação fomentadora de autonomia e orientada para
a liberdade, ao mesmo tempo advogando a superioridade
de certa elite letrada europeia sobre outros povos; e mesmo
são capazes de produzir um viés de crítica ao Estado ou ao
capitalismo, ao mesmo tempo justificando filosoficamente e
politicamente o nacionalismo (BRANCO, 2020, p. 14).

É válido ressaltar que Freud considerava educar, governar e psicanalisar da ordem impossível
de se praticar, uma vez que a relação transferencial está em jogo e isso exige que o saber esteja
sempre como suposto. Como dizia Paulo Freire (1986, s/p) “não existe saber mais ou saber menos:
há saberes diferentes”. Para Michel Foucault (1988), onde há poder, também há resistência, posto
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isso, é necessário colocar problemas nas formas de transmissão da psicanálise, pois isso implica a
formação de analistas e consequentemente na escuta clínica.
Contudo, podemos pensar na ética como um cuidado, cuidado do que falar, de como se
posicionar, de como transmitir um saber, mas sem esquecer do cuidado de si, visto que para
Foucault (2004) em A ética do cuidado de si como prática da liberdade, somente cuidando de si é
possível cuidar do outro.
[...] é a abertura do coração, é a necessidade, entre os pares,
de nada esconder um ao outro do que pensam e se falar
francamente. Noção, repito, a ser elaborada, mas que, sem
dúvida, foi para os epicuristas, junto com a de amizade, uma
das condições, um dos princípios éticos fundamentais da
direção (FOUCAULT, 2010, p.124).

O teórico parte do princípio de Parrhesia, como forma de dizer tudo ou como a coragem da
verdade. Dizer tudo condiz com essa abertura do coração, como condição necessária para falar com
franqueza pensando na prática da liberdade e da ética, do cuidado de si. É com isso que podemos
pensar em como transmitir um saber, tendo o cuidado de não moldar a verdade do outro e sim em
encontrar vias de acesso para o sujeito tornar-se outro e encontrar a sua verdade.
Sem uma ética do amor moldando a direção de nossa
visão política e nossas aspirações radicais, muitas vezes
somos seduzidos, de uma maneira ou de outra, para
dentro de sistemas de dominação — imperialismo,
sexismo, racismo, classicismo. [...] Muitas vezes, então,
o anseio não é para uma transformação coletiva de
sociedade, para um fim da política de dominação; mas
simplesmente para o fim do que sentimos que nos
machuca. É por isso que precisamos desesperadamente
de uma ética do amor para intervir em nosso desejo
autocentrado por mudança (HOOKS, 2006, p. 243).
“[...] A questão central é criar formas de como utilizar esse saber, tendo em vista as práticas
de si e o dizer verdadeiro” (ATHAYDE, 2020, p. 145). Portanto, é preciso ter cuidado com o outro

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que oferecemos escuta e ao transmitir um saber, dando abertura de um espaço ético para isso, e
não patologizar o sujeito ao considerar o saber enquanto uma verdade absoluta. O que existe é a
verdade de cada um. Como diz Thayz Athayde (2020, p. 158), “pode uma pesquisa ser construída
por afetos?” . Que a ética do amor nos guie como fonte de cuidado do outro.

Considerações Finais
Para concluir, a clínica psicanalítica torna-se um lugar de potência discursiva e desejante
onde a primazia do temporal é o tempo do analisante e isso diz de uma ética em considerar o
tempo do outro. Ampliar as possibilidades de desejar algo que não seja pré-determinado pelo
sistema econômico, resultando em sofrimentos sociopolíticos que também servem como formas
de dominação, pois as posições dos sujeitos no laço social determinam e implicam esse sofrimento.
Logo, o sofrimento sociopolítico precisa ser pensado a partir de composição heterogênea que
aponta para uma gama de desamparos, sejam sociais, materiais e psíquicos.
Se considerarmos que escutamos a partir de onde somos, de onde estamos, a partir do
nosso desejo de analista, escutamos a partir de uma filiação com uma teoria, como podemos criar
uma escuta analítica que seja ético-política? Que leve em conta o desejo do analista e as dimensões
dos sofrimentos sociopolíticos? Ou ainda, o que diferenciaria a clínica de um analista politizado para
um que não tenha esses interesses?
Buscamos demonstrar ao longo deste artigo duas possibilidades concomitantes: a retirada
299
99A
do saber europeu enquanto universal e a inclusão da psicanálise em articulação com outros
campos de saber, levando em conta as contradições e colonizações internas e propondo como
horizonte a interseccionalidade das produções de conhecimento que resultaria na desconstrução
da própria epistemologia psicanalítica, na qual o psicanalista expressa o lugar da incompletude do
saber psicanalítico que sustenta essa convocação aos psicanalistas. Um saber suposto que é um
dos fundamentos para o desenvolvimento da prática. Na relação analítica, a pessoa do analista
deveria ocupar o lugar de não-saber, saber daquele que não sabe sobre seu sofrimento, que é
particular do próprio inconsciente. Isso também se dá na atuação do psicanalista na cultura ou
como a psicanálise em intenção e extensão, o saber sobre determinados sofrimentos sociais, sobre
determinadas relações é incompleto e não basta termos como base apenas os clássicos da teoria
freudiana à lacaniana.
A psicanálise precisa ser submetida aos seus próprios aparatos conceituais para continuar
se desenvolvendo. Desse modo, o saber psicanalítico se dá em dependência e em decorrência
da prática analítica que constitui a epistemologia e depois serve a prática novamente, em
um movimento dialético de constituição da práxis e da episteme. Como consequência dessa
articulação interseccional, aponta-se para um eixo fundamental do tripé analítico: a formação.
Democratizar e horizontalizar verdadeiramente a formação dos analistas, pensando também na
manutenção material desses analistas nas formações, as dificuldades e conflitos que são colocados
pela transmissão são algumas nuances do nosso tempo que precisamos estar atentos. As práticas
coletivas de psicanálise têm mostrado caminhos a serem trilhados nesse processo dialético de
atuação clínica que produz uma teoria.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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302
02A
O PACTO PERVERSO DA BRANQUITUDE: SOBRE O DIREITO
SOBERANO DE MATAR NO AMAPÁ

THE PERVERSE PACT OF WHITENESS: ON THE SOVEREIGN RIGHT TO


KILL IN AMAPÁ

Gabriel Avelar Teixeira 1


Adriele Cardoso Sussuarana 2

Resumo: Pretende-se através desse escopo propor uma breve digressão a partir do conceito de pacto narcísico da
branquitude de Bento (2014) e a perversão, considerando a função do véu na noção de objeto fetiche apresentada no
“Seminário Livro 4: A relação de objeto” (1956-57) de J. Lacan. Tensiona-se tais aproximações para investigar a perversão
na estruturação do pacto narcísico da branquitude no Brasil. Para tanto, consideramos uma encruzilhada específica: quem
é o alvo da polícia militar que por três anos consecutivos é a que mais mata do país? De que forma seria possível pressupor
uma montagem perversa na estruturação do pacto narcísico da branquitude no Brasil partindo do Amapá, periferia do
Brasil, extremo norte do país? Através de pesquisa bibliográfica, propõe-se fomentar debates que deslocam concepções
naturalizadas sobre as relações entre os brancos e os negros em nosso país, bem como expor as dimensões estruturais, e
por isso políticas que são racistas e as intermediam, evidenciando o mecanismo da perversão como uma das possibilidades
para discutir, a partir do ponto de vista da psicanálise, sobre a estrutura racista brasileira.

Palavras-chave: Pacto Narcísico da Branquitude. Racismo. Perversão. Violência Policial no Amapá.

Abstract: It is intended, through this scope, to propose a brief digression from the concept of narcissistic pact of whiteness
by Bento (2014) and perversion, considering the function of the veil in the notion of fetish object presented in the “Seminar
Book 4: The object relation” (1956-57) by J. Lacan. Such approaches are stressed to investigate the perversion in the
structuring of the narcissistic pact of whiteness in Brazil. To do so, we consider a specific crossroads: Who is the target of
the military police, which for three consecutive years is the most deadly in the country? How would it be possible to assume
a perverse montage in the structuring of the narcissistic pact of whiteness in Brazil starting from Amapá, the periphery of
Brazil, the extreme north of the country? Through bibliographic research, it is proposed to promote debates that displace
naturalized conceptions about the relations between whites and blacks in our country, as well as to expose the structural
dimensions, and therefore policies that are racist and intermediate them, highlighting the mechanism of perversion as one
of the possibilities to discuss, from the point of view of psychoanalysis, the Brazilian racist structure.

Keywords: Narcissistic Pact of Whiteness. Racism. Perversion. Police Violence in Amapá.

1 Graduado em Psicologia pela Estácio de Macapá. Pós-graduando em Políticas Públicas em Saúde Mental. Acadêmico de Sociologia pela UNIFAP.
Membro da ANPSINEP AP. Membro da ABRAPSO AP. Atualmente é Psicólogo Clínico em consultório particular. Lattes: https://lattes.cnpq.
br/5463361918003287. ORCID: https://orcid.org/0009-0009-7275-389X. E-mail: gabriel.avlrt@gmail.com

2 Psicanalista, psicóloga. Mestra em Psicologia Clínica pelo PPGP/UFPA. Atua em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Adulto-II e no MLA-AP.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8063683415459837 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6316-1299 E-mail: psiadrielesussuarana@gmail.com
Introdução

Abdias Nascimento, em sua obra O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo


mascarado (2016), mostra como a constituição do Estado brasileiro se estruturou a partir de práticas,
ferramentas e meios de extermínio da população negra brasileira. A exploração sexual da mulher
negra, o extermínio direto da população negra, a falta de políticas públicas para integração dos
ex-escravizados no laço social, o silenciamento sobre raça e o conjunto de mitos que estruturaram
a construção do Brasil, várias foram as tentativas de apagar a população negra da história do país.
Todas essas práticas estão internalizadas no escopo genocida que apaga a história da escravização
no Brasil, limpando o sangue das mãos do Estado e mantendo os privilégios que a população branca
herdou ao longo desse processo.
Para a manutenção silenciosa dessa arquitetura genocida, houve uma ampla disseminação
do mito da democracia racial, que defendia fortemente a inexistência do racismo no Brasil. Do ponto
de vista ideológico, foi fortalecida a ideia de que as múltiplas raças viviam seus modos de vida de
maneira harmoniosa nessa pátria. Segundo Abdias Nascimento:

Tal expressão supostamente refletiria determinada relação


concreta na dinâmica da sociedade brasileira: que pretos e
brancos convivem harmoniosamente, desfrutando iguais
oportunidades de existência, sem nenhuma interferência,
nesse jogo de paridade racial, das respectivas origens raciais
ou étnicas (NASCIMENTO, 2016, p. 47-48).

Através da noção de mito da democracia racial, os dispositivos utilizados para o


branqueamento no Brasil, bem como o genocídio da população negra, ganharam corpo teórico e
“cientifico”, estruturando relações em todas as esferas da vida do sujeito, como o campo político,
econômico, social e psicológico. Dessa forma, o racismo estrutura a sociedade brasileira e constrói
um imaginário coletivo, a partir da ideologia dominante do mito da democracia racial, que determina
a forma como essas relações são estabelecidas no Brasil (ALMEIDA, 2019).
Para a manutenção desses privilégios existe um pacto no qual toda a população branca
compactua de maneira implícita. Bento (2014) o denomina de pacto narcísico da branquitude,
compreendido como um acordo tácito entre a população branca de não falar sobre racismo, e

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assim não se implicarem como agentes que determinam o processo de racismo no Brasil. A base
teórica da autora perpassa a psicanálise, mais especificamente o conceito de narcisismo, que
considera o amor a si mesmo, a autopreservação e a aversão ao que é estranho/diferente como
características principais. Essa aversão à alteridade pode engendrar o ódio narcísico, isto é, o ódio ao
grupo diferente do seu, a um grupo minoritário, que pode receber as projeções de todos os afetos
agressivos do Isso.
De acordo com Belloc et al. (2021), o Amapá, estado localizado no extremo norte do
Brasil, encerrou o ano de 2019 com a maior taxa de desemprego do país e um terço da população
identificada como trabalhador informal. Cabe ressaltar que negros e pardos compreendem mais
de 80% da população amapaense, conforme dados divulgados em 2010 pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). Ainda, em 2023 a capital do Amapá, Macapá, foi eleita a grande
cidade com o pior saneamento básico do país, tendo em vista a 15ª edição do relatório elaborado
pelo Instituto Trata Brasil (OLIVEIRA; SCAZUFCA; SAYON, 2023).
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, produzido pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, por três anos consecutivos o Amapá apresenta a maior taxa de
mortes decorrentes de intervenções policiais no Brasil, um desdobramento direto de confrontos
contra indivíduos em conflito com a lei. O curioso é a contraposição de tal dado ao baixo índice de
policiais mortos em decorrência de confrontos no mesmo período, o que poderia suscitar dúvidas
sobre as narrativas dos “confrontos” (CARDOSO, 2022). Trata-se do mesmo dado que coloca o
Amapá como estado com a maior taxa de Mortes Violentas Intencionais (MVI) do país. De acordo
com o mesmo Anuário, a análise dos dados seria incompleta se desconsideramos o marcador “raça”,
304
04A
uma vez que negros correspondem a 78% dos mortos pela violência policial no território nacional.
A partir de um recorte da experiência clínica no único Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
tipo II – Adulto existente no Amapá, localizado na capital Macapá, observa-se uma crescente
demanda categorizada pela nosografia psiquiátrica como Transtorno de Estresse Pós-traumático
(TEPT), com necessidade de intervenção de psicotrópicos da classe farmacológica antipsicótica em
decorrência de eventos situacionais que envolvem de forma direta ou indireta a violência policial.
Não se trata de propor uma relação causal entre os dados apresentados e o manejo de
casos clínicos na atenção psicossocial, não se objetiva aqui analisar a condução e construção de
casos clínicos, mas levantar indagações que consideram a violência estatal como variável que deve
ser levantada de forma coletiva na análise de diferentes formas de padecimento. Como propõe
Santos (2022), é impossível dissociar letalidade policial de letalidade estatal, a partir disso indica-se
o extermínio como mecanismo de controle social e política pública.
Um breve recorte de caso clínico: trata-se de um homem pardo que trabalhava como
pedreiro e em determinado episódio automutilou dois dedos das mãos por acreditar que o Batalhão
de Operações Especiais (BOPE) estaria em seu quintal perseguindo-o. Aos poucos, levantou-se
dados relevantes para a construção do caso clínico, que envolviam a narrativa sobre o precoce
encarceramento de um dos seus filhos, a tentativa de assassinato deste filho pelo referido BOPE,
bem como a falta de notícias, até o momento em que ocorreu o episódio de automutilação, sobre
o seu filho.
Como bem afirma Emicida na canção Ismália, “existe pele alva e pele alvo”. No Amapá,
assim como em todo país, a população negra é a principal vítima da violência policial. Apesar de
alarmantes, os dados não são problematizados pela população local, mas incentivados e por vezes
silenciosamente legitimados a partir de uma indignação seletiva que sempre apresenta como fio
de corte a especificidade étnico-racial. Sobre a análise de como a mídia veicula a violência policial
no Amapá:
O circuito cibernético de legitimação da letalidade policial,
em Macapá, repousa em uma interposição de processos
cismogênicos, onde o par polícia-bandido retroalimenta-se
via cismogênese simétrica, na medida em que o par polícia-
população fornece, via cismogênese complementar, a
ambientação simbólica propícia para a reprodução do status
quo da instituição policial (SANTOS, 2022, p. 115-116).

Trata-se do pacto proposto por Bento (2014), que legitima um acordo tácito e silencia

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possíveis indignações das autoridades públicas, mídia local e consequentemente população em
geral, diante dos agentes que determinam o genocídio em curso no Amapá.
Ao considerar esta encruzilhada específica, o alvo da letalidade da polícia militar do Amapá,
de que forma seria possível pressupor uma montagem perversa na estruturação do pacto narcísico
da branquitude no Brasil? Pretende-se discorrer brevemente sobre o conceito de pacto narcísico
da branquitude a partir de Bento (2014) e sobre perversão a partir da função do véu na noção de
objeto-fetiche apresentada no “Seminário Livro 4: A relação de objeto” (1956-57) de Lacan. Propõe-
se uma aproximação entre tais concepções para indicar a possível perversão na estruturação do
pacto narcísico da branquitude no Brasil, bem como seus desdobramentos necropolíticos no estado
do Amapá. A metodologia adotada foi a pesquisa bibliográfica, que tem como função se utilizar
de conhecimentos já estabelecidos e publicados para fundamentar um modelo teórico explicativo
de um determinado problema de pesquisa, e assim, fundamentar as hipóteses (KOCHE, 2016). A
pesquisa propõe fomentar discussões que deslocam concepções naturalizadas sobre as relações
entre os brancos e os negros em nosso país, expor as dimensões estruturais, e por isso políticas que
são racistas e as intermediam, evidenciando a montagem perversa como uma das possibilidades
de discutir, a partir do ponto de vista da psicanálise, a estrutura racista brasileira, sem hesitar em
considerar o contexto local dos autores, qual seja, o Amapá.

305
05A
O silêncio não pode apagar o passado: o pacto narcísico da branqui-
tude

O pacto narcísico da branquitude é um conceito elaborado por Cida Bento para pensar
a branquitude e o lugar que ela (des)ocupa na discussão sobre racismo. Partindo de teóricos da
psicanálise, Bento (2014) propõe que existe um pacto narcísico da população branca para não
falar sobre raça e não falar sobre os privilégios materiais e simbólicos que herdou do processo de
escravização. Segundo a autora:
O pacto é uma aliança que expulsa, reprime, esconde aquilo
que é intolerável para ser suportado e recordado pelo coletivo.
Gera esquecimento e desloca a memória para lembranças
encobridoras comuns. O pacto suprime as recordações que
trazem sofrimento e vergonha, porque são relacionadas à
escravidão (BENTO, 2022, p. 25).

Aquilo que deve ser esquecido e rechaçado é o sofrimento que a branquitude e seus
descendentes causaram à população negra brasileira. Percebe-se que o pacto mostra duas faces
da mesma moeda, de um lado há o sofrimento e a vergonha; de outro há o gozo dos privilégios
simbólicos e materiais (BENTO, 2022). Poderíamos inclusive analisar os privilégios a partir do
sentido econômico freudiano, de formas de obtenção de prazer, isto é, formas de diminuição de
tensão; e o sofrimento e vergonha estariam no polo do desprazer, no aumento de tensão. Sendo
assim, tal pacto estaria ancorado também em uma economia libidinal à serviço da pulsão, visando
apenas a sua escoação (FREUD, 1915/2016).
É nesse momento que a concepção de Bento se aproxima das construções psicanalíticas
de Freud sobre o narcisismo. É a partir de um dos textos metapsicológicos, denominado Introdução
ao narcisismo (1914/2010), que a autora embasará o seu trabalho. Nesse artigo, Freud indica
as diferenças entre as pulsões do Eu e as pulsões sexuais para assim começar a delimitar o
funcionamento do narcisismo e o seu valor para a teoria e técnica psicanalítica. Para tal, Freud
argumenta que as satisfações sexuais primárias perpassam a autoconservação, isto é, pelas
sensações de prazer vivenciadas pelo bebê que estão diretamente ligadas às ações que possibilitam
que esse ser continue a viver e pela forma que esse prazer autoerótico é deslocado posteriormente
para o cuidado dos responsáveis do pequeno pedaço de carne que estabelece uma relação de
apoio com esses cuidadores (FREUD, 1914/2010).

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Na escolha de objeto encontram-se duas possibilidades, são elas: a do tipo narcísico e
a do tipo de apoio. A primeira tipologia, narcísica, pode ser compreendida como um derivado
do autoerotismo, onde a satisfação pulsional é encontrada no próprio corpo, e posteriormente
identificada como a escolha objetal baseada em si mesmo, um amor próprio, semelhante aos
encontrados nos paranoicos. O segundo tipo, de apoio, é baseado na imagem de seu cuidador,
marcando o desenvolvimento do narcisismo secundário (FREUD, 1914/2010).
Importante salientar que o amor do tipo narcísico carrega em si diferentes formas de
amar a si mesmo. Pode-se amar o que se é, o que se foi, o que se deseja ser e amar a pessoa
que foi parte de si. As diferenciações das relações estabelecidas com os objetos expõem múltiplos
funcionamentos e temporalidades frente ao amor, de modo que marcas se manifestam como
onipotência, como retorno a um passado e como um ideal, seja ele Ideal do Eu ou Eu Ideal (FREUD,
1914/2010).
Essas formas divergentes de se posicionar em relação ao narcisismo aproximam-se da leitura
que Bento (2014) faz para a construção de sua concepção sobre o pacto narcísico da branquitude.
O Eu branco age de forma a autoconservar o prazer e rechaçar as maneiras de desprazer que são
vivenciadas. Freud afirma que em um determinado momento do desenvolvimento infantil, no
autoerotismo, as experiências externas são vivenciadas como desprazer, tendo em vista que todas
as satisfações são encontradas no próprio organismo. No entanto, o mundo externo não cessa de
oferecer objetos para a criança, ela introjeta aqueles que são fonte de prazer e descarta aqueles
que são fonte de desprazer, resultando em uma seleção que marca a vida pulsional daquele sujeito
(FREUD, 1915/2016). 306
06A
Bento (2014) afirma que a tendência a preservar o Eu, bem como a retornar, a partir do
narcisismo, aos primitivos privilégios que um dia foi possuído nos leva ao Eu branco que, como
mecanismo de defesa, projeta os desejos censurados pelo Supereu em outros sujeitos que estão
socialmente autorizados a receber o seu ódio. No caso do Brasil, esse ódio narcísico é direcionado
para populações minoritárias, ou seja, aos não-brancos, que recebem todos os conteúdos hostis
que o Eu branco não aceita em si.
O ideal do Eu é percebido pelo sujeito como algo perfeito, como a medida máxima que
deve ser alcançada e que através do narcisismo, do amor a si, encontra uma forma de sustentar
essa fantasia (FREUD, 1914/2010). O Ideal do Eu brasileiro é branco e fortemente marcado pelas
ideologias de democracia racial que monopolizam e alienam os brasileiros do seu processo de
historicização.
Para Safatle (2020), é impossível identificar experiências de gozo dissociadas de experiências
de poder. O lugar onde naturalmente repousamos o que denominamos de nossa individualidade,
cerne das relações de identificação com os outros, é o ponto de partida do nosso processo de
alienação.
Dessa maneira, o narcisismo da população branca encontra-se alargado diante dos privilégios
que esta tem de gozar de uma herança da escravização que atravessa todo o conforto adquirido,
seja ele simbólico e/ou concreto (BENTO, 2014).

A recusa (verleugnung) e a perversão

Lacan (1957-58) indica que para articular a configuração do complexo de Édipo é necessário
considerar a metáfora paterna. Inicialmente, tal metáfora se apresenta através do que foi constituído
como simbolização primordial entre a criança e a mãe, em seguida se considera a substituição do
pai enquanto significante no lugar da mãe. O pai só é real na medida em que as instituições lhe
atribuem esta função, ou melhor, seu Nome de pai. Tal posição situa-se no nível simbólico, há
uma variedade de materializações de cultura para cultura, mas a necessidade de estar na cadeia
significante as antecede.
Para Lacan (1957-58), quando há simbolização, a criança desloca-se da efetiva dependência
do desejo materno e algo se institui. Trata-se de uma subjetivação a nível primitivo: presença-
ausência da mãe. Para além da presença ou do contato da mãe, a criança deseja o desejo desta. É
neste nível primitivo que podem entroncar-se as perversões. Mesmo exitosa, tal efetuação ocorrerá

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de maneira falha, mas sempre envolverá a priori a mãe que vai e vem. Ou seja:
[...] A mãe que é chamada quando não está presente e que,
quando está presente, é repelida para que seja possível chamá-
la. Esse algo mais, que é preciso que exista, é exatamente a
existência, por trás dela, de toda a ordem simbólica de que ela
depende, e a qual, como está sempre mais ou menos presente,
permite um certo acesso ao objeto de seu desejo, o qual já
é um objeto tão específico, tão marcado pela necessidade
instaurada pelo sistema simbólico, que é absolutamente
impensável de outra maneira quanto à sua prevalência. Esse
objeto chama-se falo (LACAN, 1957-58, p. 188-189).

É extremamente necessário distinguir os tempos lógicos para compreender que a posição do


significante paterno no símbolo é responsável pela fundação da posição do falo no plano imaginário,
tal pressuposto indicará ao analista a condução da análise e do sentido da clínica (LACAN, 1957-58).
O autor indica ainda que a relação do filho com o falo apresenta uma direta conexão quando
se considera o falo enquanto objeto de desejo da mãe. O fetichismo, enquanto clássica modalidade
de perversão, pressupõe a relação com um objeto que vai além do desejo materno, a criança se fixa
neste objeto, o que nos levará a indicar a mãe como palco de uma identificação imaginária.

307
07A
[...] Nesse nível, o pai priva alguém daquilo que, afinal de
contas, ele não tem, isto é, de algo que só tem existência
na medida em que se faz com que surja na existência como
símbolo. Está bastante claro que o pai não castra a mãe de uma
coisa que ela não tem. Para que fique postulado que ela não o
tem, é preciso que isso de que se trata já esteja projetado no
plano simbólico como símbolo. Mas há de fato uma privação,
uma vez que toda privação real exige a simbolização. Assim,
é no plano da privação da mãe que, num dado momento
da evolução do Édipo, coloca-se para o sujeito a questão de
aceitar, de registrar, de simbolizar, ele mesmo, de dar valor de
significação a essa privação da qual a mãe revela-se o objeto.
Essa privação, o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou
recusa. Esse ponto é essencial. Vocês o encontrarão em todas
as encruzilhadas, a cada vez que sua experiência os levar a um
certo ponto que agora tentamos definir como nodal no Édipo
(LACAN, 1957-58, p. 191).

Lacan (1957-58) refere que se tem o falo à medida em que há possibilidade de ameaça
de castração, quem intervém de forma decisiva nessa dinâmica é o pai. Para o primeiro tempo
do Édipo temos a etapa fálica primitiva na qual denota-se a identificação especular da criança
com o objeto de desejo de sua mãe. O discurso da lei pressupõe que a primazia do falo já está
instaurada na civilização, a metáfora paterna já está posta. Dessa forma, a criança captura, portanto,
o desdobramento disso. Em suma, a criança necessita ser o falo para deter o olhar da mãe.
Para efetivar-se o segundo tempo, Lacan (1957-58) propõe que o pai precisa privar a mãe
no plano imaginário; como consequência, o que retorna para a criança é a lei do pai, uma vez que
esta lei priva a mãe. O sujeito desliga-se do plano da identificação e entra na esfera da lei. Para além
de um objeto de desejo, desenha-se aqui um objeto que o Outro tem ou não tem. Para decifrar
a noção do Édipo é necessário pressupor que tanto a mãe como o seu objeto de desejo estão
submetidos à lei que rege esse Outro. Lacan (1957-58, p. 199) assevera: “[...] O que constitui seu
caráter decisivo deve ser isolado como relação não com o pai, mas com a palavra do pai”.
O terceiro tempo determinará a saída do complexo de Édipo, a promessa do pai precisa ser
mantida, se o pai vai recusar ou não, ele ao menos precisa oferecer comprovações de sua detenção
do falo. Portanto, não se afirma que o pai é o falo, mas que ele tem o falo. Assim, Lacan conclui
(1957-58, p. 200): “[...] Se pode produzir a báscula que reinstaura a instância do falo como objeto

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desejado da mãe, e não mais apenas como objeto do qual o pai pode privar”. Ao fim da travessia
desses três tempos, o sujeito dispõe da possibilidade de identificação com a instância paterna.
As estruturas serão determinadas a partir da forma como a criança se posiciona diante da
castração. Se o principal mecanismo que configura a neurose é o recalque, para a psicose tem-se a
foraclusão, e para a perversão, a denegação. O perverso poderia inclusive colocar um objeto para
substituir o falo, e assim, se afastar da angústia de não possuí-lo (PIRES et al., 2004).
Para Freud (1927/2007), o objeto-fetiche é um substituto do pênis materno, aquele que
deveria ter sido abandonado no curso da vida, mas que através do fetichismo é conservado. Existe
nesse processo um mecanismo que o autor denomina de recusa – verleugnung, a qual foi exitosa
contra a castração. O objeto-fetiche tem um sentido antagônico, ele é uma forma de negar a
castração e, ainda, uma maneira de admitir que ela existe.
Segundo Lacan (1956-57), o que constitui simbolicamente o fetiche é retirado de uma
dimensão histórica. O autor afirma que a lembrança encobridora é uma forma de interrupção
da história, ocorrendo um funcionamento paradoxal, isto é, ao mesmo tempo em que há um
congelamento, há um movimento para além do véu. A partir desse momento, essa sequência se
faz acontecer de maneira velada, ausente.
Sobre o ensaio “O fetichismo” de Freud (1927), Julien (2003, p. 107) comenta: “[...] A
perversão é nomeada com o seu verdadeiro nome: nem um recalque, nem uma foraclusão, mas uma
denegação – verleugnung – da castração”. Lacan (1956-57), através da metáfora do véu, apresenta
a dinâmica da estrutura perversa e fetichista. Por denotar algo que o sujeito sabe que existe, mas
tenta esconder de si, o véu é apresentado como o objeto que singulariza o mecanismo de recusa
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08A
(verleugnung) do perverso. O que ele esconde, aqui, de forma determinante é a castração, o horror
da diferença de sexos.

Figura 1. Esquema do véu

Fonte: LACAN, J. (1956-57).

Julien (2003) indica que o perverso, através do mecanismo fetichista, regride a uma das
primeiras teorias sexuais infantis em que afirma: todas as mulheres têm o falo, assim se fixa na
negação da diferença dos sexos.
Pode-se mesmo dizer que com a presença da cortina, aquilo
que está mais além, como falta, tende a se realizar como
imagem. Sobre o véu pinta-se a ausência. Isso não é mais que
a função de uma cortina qualquer. A cortina assume seu valor,
seu ser e sua consistência justamente por ser aquilo sobre o
que se projeta e se imagina a ausência. A cortina é, se podemos
dizê-lo, o ídolo da ausência (LACAN, 1956-57, p. 157).

Para Lacan (1956-57) não há como pressupor o véu sem incluir a ausência. E o que há para
além do objeto: Nada. No entanto, o véu cumpre a função de para-além do objeto. É exatamente
a noção do mais-além que traz à tona a montagem de uma estrutura, o mesmo mais-além
fundamental em qualquer relação simbólica. “[...] Em outras palavras, na função do véu, trata-se da
projeção da posição intermediária do objeto” (LACAN, 1956-57, p. 159).

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Ao pressupor o véu enquanto o que metaforiza o mecanismo do perverso, denota-se este
mecanismo como um retorno em circuito que esconde-designa; esconde-denuncia. Não por acaso,
o véu, ao passo que esconde, é constituído por vários furos que desvelam o que há para-além:
Nada.
Para Dor (1997), a recusa enquanto mecanismo da perversão implica ainda em uma recusa
de qualquer possibilidade de simbolização da falta. Magalhães e Sussuarana (2013) referem que a
perversão não se reduz às práticas sexuais que fogem do habitual, mas a uma forma particular de
se colocar no mundo, pautada pela recusa da realidade da diferença dos sexos, preservando não
apenas o pênis materno, mas a onipotência simbólica que advém dele. Propõe-se aqui o pacto
narcísico da branquitude enquanto um véu que pode esconder-denunciar a montagem perversa
do racismo à brasileira.

O pacto narcísico da branquitude e a perversão

É fundamental que levemos em consideração que sujeitos neuróticos também participam


de uma montagem perversa ao abrirem mão de sua subjetividade e se tornarem ferramentas do
Outro. Essa instrumentalização de si é em nome da seguinte crença: aqueles que estão a serviço do
Outro podem partilhar desse gozo ilimitado (SEQUEIRA, 2009). Quando sujeitos se instrumentalizam
em nome da nova Lei e do gozo do Outro, eles subjugam o outro e o encaram como um inimigo a
ser derrotado, exterminado (DO AMARAL, 2020). Assim, existe uma fantasia sobre a socialização
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09A
do gozo do Outro que permeia as relações dos neuróticos, que adentram a montagem perversa,
fazendo com que acreditem ter o falo a partir de seu fetiche travestido de onipotência.
O fetiche está igualmente inserido na lógica da montagem perversa, ele é o substituto do
falo da mãe que busca reescrever a realidade e a Lei para se afastar da angústia da castração (DO
AMARAL, 2020). Lélia Gonzalez, em Racismo e sexismo na cultura brasileira (1984/2020), afirma
que o significante negro é que representa o nome-do-pai na cultura brasileira, é esse significante
que vai instaurar a Lei e presentificar a ausência. Nesse sentido, hipotetizamos que é o negro que
é causa de angústia, que presentifica a falta e é ele que a montagem perversa tentará negar a
existência. A autora indica:
É por essa via que dá para entender uma série de falas contra
o negro e que são como modos de ocultação, de não assunção
da própria castração. Por que será que dizer que preto
correndo é ladrão? Ladrão de quê? Talvez da onipotência fálica
(GONZALEZ, 1984/2020, p. 90).

A colocação de Lélia Gonzalez pode ser articulada a uma afirmação feita por Frantz
Fanon em Pele negra, máscaras brancas (1952/2020), segundo a qual, o negro para o branco é
a representação do biológico, da potência fálica, da virilidade. Para o autor, o branco civilizado
guarda em sua memória uma nostalgia do passado de orgias e de estupros impunes que através do
mecanismo da projeção acredita fielmente que o negro é o possuidor dessa potência fálica.
Essa crença promove o pensamento de que os negros são a causa de todo mal, o pecado em
pessoa, são os representantes de tudo aquilo que é considerado como imoral (FANON, 1952/2020).
Bento (2014) segue na mesma posição de Fanon, afirmando que a branquitude acredita não ser
possuidora de mal algum, que o mau é sempre o outro e que é em si a vítima. Esse posicionamento
segue e progride para uma justificativa, seria mais correto nomear de racionalização, de violência
ao outro considerado “inimigo”.
Guimarães (2012), ao falar sobre narcisismo, retorna a Freud e afirma que na cultura uma
dupla renúncia é realizada, isto é, é necessário que o sujeito dentro da cultura abra mão das suas
pulsões, a pulsão de vida e a pulsão de morte. É o rito de passagem para o social. O autor considera
que na sociedade existem lugares, para ser mais específico, grupos e coletivos, sobre os quais a
pulsão de destruição teria autorização para ser exercida.
Seguindo o pressuposto de Guimarães (2012), poderíamos afirmar que a renúncia pulsional
da branquitude no Brasil não ocorreu de maneira positiva. Se, como afirma Nascimento (2016), a
história do país é a história de uma colonização que mesmo após a escravização continuou a praticar

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e criar ferramentas de genocídio da população negra, isso poderia ser um indício de que a pulsão de
morte nunca foi renunciada, que existe uma população que estruturalmente e institucionalmente
tem o livre direito de satisfazer as pulsões destrutivas. Como afirma Freud em Introdução ao
Narcisismo (1914/2010), é preciso amar para não adoecer, poderíamos elaborar tomando a pulsão
de morte como base, que é preciso destruir para não adoecer e isso é privilégio para poucos.
Bento (2014, 2022), ao propor o pacto narcísico da branquitude, está afirmando que existe
entre a população branca um acordo que a afasta da discussão sobre a raça e de se identificar como
sujeitos racializados que têm um papel ativo no processo do racismo.
Esse funcionamento aproxima-se da configuração da perversão, na qual, um fetiche é
erigido para substituir/cobrir, se retomamos a metáfora do véu, uma falta que é estrutural. Como
colocado anteriormente, o representante dessa falta, dessa ausência, é o Nome-do-Pai, que na
cultura brasileira é representado pelo significante Negro.
Ao tomarmos essa construção como base, percebemos que quando um sujeito recusa o
significante negro na dialética que interpõe o laço social, ele está recusando a própria castração e a
angústia que advém dela. Recusar o significante também gera implicações no laço social. Por tratar-
se de um significante, este se apresenta através de diferentes significados, coagulando discursos
sociais, bem como nas diferentes tramas que constituem o irrepresentável da linguagem. É possível
então identificar tal recusa de castração nas naturalizadas falas racistas direcionadas aos negros
(GONZALEZ,1984/2020).
Silvio Almeida (2019) aponta que na concepção estruturalista o racismo não é um tipo
310
10A
de patologia ou anomalia social, ele é a condição normal em uma sociedade que se estrutura pelo
racismo, sexismo e lutas de classe. Assim, a perspectiva institucional reproduz as relações que são
construídas estruturalmente, ou seja, as instituições não criam o racismo, elas o legitimam através
de normas. Em uma sociedade estruturalmente racista o racismo não é a exceção, ele é a regra.
Segundo Pires et al. (2004), a montagem perversa se expressa nos laços sociais a partir
de uma relação de obediência com as normas e as leis estabelecidas. Se a sociedade brasileira
é estruturalmente racista e as instituições são uma forma de normatizar o racismo, poderíamos
afirmar que as leis operam de maneira a constituir o racismo como prática habitual pela população,
isso significaria que a relação que os sujeitos estabelecem com a população negra são em si e por si
só racistas.
Sequeira (2009) aponta que a montagem perversa no nazismo era mantida a partir de
práticas de extermínio do outro como inimigo. No campo da montagem perversa, a violência é
um meio possível para atingir o gozo máximo do Outro e se afastar da angústia que é causada pela
castração no sujeito.
Inevitável retomar aqui fragmentos sobre o Holocausto Amazônico. Como um pequeno
número de cristãos brancos trouxe à tona a hegemônica realidade colonial? O terror deve ser
levado em consideração, não apenas como estado fisiológico, mas como um estado social: “[...] o
espaço da morte onde o índio, o africano e o branco deram à luz um Novo Mundo (TAUSSIG, 1993,
p. 27)”. A partir de trechos do Relatório de Putumayo, o autor refere que as crianças indígenas da
Amazônia, pequenas demais para serem açoitadas, eram queimadas vivas para revelarem onde
os pais estavam escondidos. O administrador do seringal Matanzas ateou fogo em uma indígena
por ela ter recusado viver com um dos seus homens. A enrolaram em uma bandeira peruana com
querosene e a queimaram viva: “[...] O melhor entre os piores matava mais pela borracha do que
por esporte (TAUSSIG, 1993, p. 64)”. Em outro trecho do mesmo Relatório, Leavine comenta sobre
dias em que era impossível comer devido a quantidade de indígenas mortos e cadáveres espalhados
ao redor das casas. Lembrava da cena em que os cães, além de comerem membros de seus corpos,
os carregavam de um lado para o outro.
Ainda sobre os escândalos de Putumayo, Silva (2020) refere relatos sobre o recorrente uso
da fome enquanto estratégia de exploração da mão de obra nativa, qualquer forma imaginada
de flagelo convergia para um cenário que o autor intitula como holocausto amazônico. Trata-se
aqui de uma Amazônia mítica que carrega em sua composição exploração, violência e resistência,
pisoteada pelos efêmeros olhares de viajantes. Uma história sistematicamente organizada com
narrativas silenciadas há séculos.

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Sendo assim, o pacto narcísico da branquitude funciona como a metáfora do véu de Lacan
ao configurar-se como o que tenta esconder o racismo, e ao mesmo tempo o denuncia que existe. O
significante negro como Nome-do-pai é posto em cena a todo momento que a montagem perversa
tenta recusar a raça como fator constitutivo da sociedade brasileira (GONZALEZ, 1984/2020). O
pacto narcísico é ele mesmo um fetiche para a branquitude que sustenta a montagem perversa
e conduz esses sujeitos a tentativas de conservação de um gozo total impossível, não importando
os meios necessários para a sua manutenção. O pacto narcísico da branquitude é uma promessa
que se realiza enquanto não alcança seu objetivo. Trata-se aqui de uma montagem que mantém
o racismo de forma estrutural e, ainda, impede o país de reconhecer-se a partir da sua própria
história.

Entre a necropolítica e o pacto narcísico da branquitude: o Amapá e


a violência policial

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), o Amapá é o estado brasileiro


com maior índice de Mortes Violentas Intencionais (MVI) executadas pela polícia militar. Esse dado
aponta para uma lógica de funcionamento estatal baseada na instrumentalização da polícia para o
extermínio da população negra.
Pereira (2019), em seu trabalho etnográfico, aborda a formação do policial militar
macapaense, evidenciando como a estruturação da instituição e as suas ações são baseadas na
311
11A
criação de um “inimigo”. A narrativa de um inimigo a ser derrotado justificaria o uso de forças
extralegais, tendo em vista que, segundo os policiais, os “bandidos” agem fora da lei, e por isso, não
deveriam ser amparados por elas.
Ainda segundo Pereira (2019), os policiais militares que compõem o BOPE afirmam que
se não houvesse uma aceitação popular o esquadrão já teria sido desfeito. Percebe-se nesse
funcionamento uma narrativa baseada em “nós” e “eles” que atravessa a composição de ações
e discursos para a consolidação do fenômeno da violência policial e para a maneira como este
fenômeno é aceito e legitimado pela população.
Um dos pontos fundamentais do conceito de pacto narcísico da branquitude reside
justamente no enredo criado a partir de uma dicotomia entre heróis-bandidos, nós-outros (BENTO,
2022). O que fica evidente nessa configuração é a relação intrínseca entre instituição policial e
racismo, principalmente quando se leva em consideração que a polícia no Brasil é criada durante o
processo de abolição da escravização. Nesta, a polícia assumiu um lugar de controle, colocando-se,
historicamente, a serviço das elites (GAIA; ZACARIAS, 2020).
No entanto, poderíamos nos perguntar, como pode haver um pacto narcísico da branquitude
que legitima a violência policial em um estado no qual a maior parte da população é negra? Para
tal, é necessário lançarmos mão de uma grande psicanalista negra, que é Neusa Santos (2021).
Em Tornar-se Negro, a autora mostra que o Ideal-de-Eu do negro é um Ideal-de-Eu branco, este,
imposto por uma série de ideologias que erige a si como modelo a ser incorporado.
Nesse sentido, poderíamos indicar que os aparelhos institucionais como a polícia militar e
a mídia local são constituídos a partir de um pacto narcísico que tem em seu horizonte estratégias
delimitadas de manutenção dos privilégios de uma elite local. Percebe-se a complexidade da
articulação entre racismo e violência estatal. Há um contínuo e incessante atravessamento entre as
instituições e a produção de subjetividades.

Considerações Finais

A partir do que foi exposto, confirma-se que o Brasil nunca foi esse paraíso descrito por
Gilberto Freyre em que negros e brancos viviam na mais perfeita harmonia. Muitos mecanismos
foram criados para monopolização de poder de uma minoria branca aristocrata. Entre esses
dispositivos estão aqueles inseridos nos processos de produção de subjetividades.
Lembremo-nos que a história do Brasil é a história de um país criado através de forças

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escravizadas, primeiramente com os povos indígenas e posteriormente com a população negra,
que nunca obtiveram justiça pelos séculos em que foram tratados de maneira desumana. As
consequências desse período foram e ainda são inúmeras, os dados estão evidentes.
Como afirma Corrêa e Vieira (2019), no pós-abolição uma série de dispositivos foram
adotados para constituir o branqueamento no Brasil, deixando assim a população negra sem
nenhum tipo de política pública de inclusão no laço social ou reparação dos danos causados pela
escravização.
Esse funcionamento não ocorreu sem intencionalidade. De acordo com a breve digressão
aqui apresentada, confirma-se que existe um mecanismo psíquico complexo que sustenta essa
lógica e articula as formas de manutenção de poder do racismo, este último sendo ele mesmo uma
das formas de gerenciamento de poder. Como bem afirma Achille Mbembe:
[…] o racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a
permitir o exercício do biopoder, “este velho direito soberano
de matar”. Na economia do biopoder, a função do racismo é
regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções
assassinas do Estado (MBEMBE, 2018, p. 18).

Joel Birman (2007) já abordava a perversão no declínio da alteridade e do que caracteriza


o laço social nas formas autoritárias e violentas de poder da sociedade brasileira, conduzindo as
subjetividades para o que ele denomina de polo narcísico do psiquismo:

312
12A
Nesse contexto, a predação do corpo do outro e a depredação
de sua subjetividade se transformam em formas materializadas
de ser e agir das individualidades. Consequentemente, a
perversão se institui como a maneira por excelência de
usufruto dos bens e dos valores que circulam no espaço social
(BIRMAN, 2007, p. 283-284).

Nota-se que personalidades autoritárias aumentaram com a ascensão de governos de


extrema direita e com líderes políticos, homens brancos, que atacam abertamente a democracia
incitando a violência a grupos vulneráveis e minoritários. Os seus apoiadores, quem sabe em uma
tentativa de partilhar do gozo do Outro, identificam-se com governos que facilitam a circulação de
armas e que há anos fazem uma guerra às drogas, que apenas serve para justificar o encarceramento
em massa da população negra.
Sendo assim, o pacto existente entre a branquitude funciona a partir de um Ideal do Eu
branco que silenciosamente institucionaliza e legitima amplos espaços de segregação, incluindo
no laço social apenas os que mais se aproximam dos estereótipos pertencentes à branquitude. No
entanto, o mesmo pacto desdobra-se, ainda, em uma arquitetura social que funciona através do
exercício e aceitação de uma violência direta que determina os que são feitos para morrer e os que
são feitos para viver. A violência policial é o exemplo mais puro dessa política de morte que no país
todo se mostra recorrente, atualmente com índices que são liderados pelo Amapá, extremo norte
do país.
Este artigo é apenas o esboço de uma tentativa de aprofundar os possíveis desdobramentos
psíquicos que se veiculam a uma política de terror e morte. Iniciaremos ao final desse mês um Grupo
de Trabalho para a leitura da obra de Frantz Fanon nos muros do CAPS inicialmente mencionado
aqui, com o objetivo de abrir investigações sobre processos de padecimentos que não suportam
modelos explicativos fechados em uma lógica biomédica e ambulatorial, encerrado assim no
número de um CID. Pretende-se aprofundar as hipóteses levantadas aqui, bem como ampliá-las a
partir de futuras construções de casos clínicos que não desconsiderem a historicidade amazônica e
a realidade psicossocial vivenciada pelas populações mais periféricas do Amapá que chegam até os
escassos equipamentos de atenção psicossocial existentes pelo SUS.
Dessa maneira, apoiados em Cida Bento e Lacan, propomos aqui a noção de pacto da
branquitude como um pacto perverso que recusa qualquer possibilidade de ampliar a dimensão
alteritária desta mesma branquitude. Se a recusa da castração do fetichista indicava uma não
aceitação da diferença dos sexos, a recusa da castração da branquitude envolve a não aceitação de

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seu próprio reflexo, de sua própria possibilidade de historicização enquanto sujeitos. Ser negro no
Brasil é determinante para a posição que o sujeito vai assumir no laço social, na dinâmica libidinal
e em cada passo que der, em cada lugar que queira circular. Ser negro no Brasil determina onde o
sujeito pode ser aceito ou não e até quando ele pode viver ou não.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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15A
PSICANÁLISE, RACISMO E PENSAMENTO DECOLONIAL

PSYCHOANALYSIS, RACISM AND DECOLONIAL THEORY

Carla Cristina Karpem 1


Elaine Cristina Schmitt Ragnini 2

Resumo: Este artigo visa investigar, de maneira exploratória, as possibilidades teórico-clínicas de articulação entre
psicanálise e teorias decoloniais. Utiliza a metodologia de revisão bibliográfica para destacar autoras(es)-chave do
pensamento decolonial, a fim de analisar o entrelaçamento da psicanálise com a colonialidade, desde o recorte do racismo.
Por um lado, situa a discriminação racial no campo da dinâmica psíquica e do inconsciente; por outro, relaciona a questão
racial aos conceitos psicanalíticos em sua interface com os fenômenos sociais. A reflexão sobre como o racismo atravessa
as subjetividades (brancas e pretas) é fundamental e faz-se urgente a promoção de uma escuta atenta ao sofrimento
racial. O artigo conclui que o diálogo interdisciplinar é essencial para a promoção de avanços da técnica. Finalmente,
coloca novas questões às quais a psicanálise é convocada a responder, tanto no cotidiano da clínica quanto em nível
teórico, para estar atenta ao horizonte da subjetividade de nossa época.

Palavras-chave: Psicanálise. Raça. Identidade. Colonialidade. Capitalismo.

Abstract This article aims to investigate, in an exploratory way, the theoretical-clinical possibilities of articulation between
psychoanalysis and decolonial theories. The methodology of the bibliographic review was used to point out key authors of
decolonial thought, in order to analyze the articulation between psychoanalysis and coloniality, from the point of view of
racism. On one hand, racial discrimination was situated in the field of psychic dynamics and the unconscious; on the other
hand, the racial issue was related to psychoanalytic concepts in its interface with social phenomena. The reflection on how
racism crosses subjectivities (black and white) is fundamental and it becomes urgent the promotion of attentive listening
to racial suffering. It is concluded that interdisciplinary dialogue is essential for the promotion of technical advances. Finally,
new questions are posed to which psychoanalysis is called to respond, both at the level of daily clinical practice and at the
theoretical level, in order to be attentive to the horizon of subjectivity of our time.

Keywords: Psychoanalysis. Race. Identity. Coloniality. Capitalism.

1 Psicóloga formada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Colaboradora do Projeto MOVE – Movimentos Migratórios e Psicologia/UFPR.
E-mail: karpemcarla@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5500635835771377. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9875-8300.

2 Professora Doutora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPR. Coordenadora do Projeto MOVE – Movimentos
Migratórios e Psicologia/UFPR. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4453449910723597.  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6086-2388. 
E-mail: elaineschmitt@hotmail.com
Introdução

O giro decolonial1 das formas de produção dos saberes – caracterizado pelo movimento
teórico, político e epistemológico de resistência à lógica da modernidade/ colonialidade – marca,
no campo da psicanálise, o retorno a importantes autoras e psicanalistas brasileiras2. O resgate
de seus escritos torna-se um ponto de referência para a localização dos conceitos freudianos e
lacanianos nos efeitos subjetivos e sociais de nosso passado colonial, que incide sobre nossa época.
O presente artigo é fruto de revisão de literatura sobre o estado da arte da psicanálise e
decolonialidade, realizado nos moldes da pesquisa bibliográfica. Visa apreender, de maneira
exploratória, os possíveis enlaces entre a psicanálise, em sua prática contemporânea, e as discussões
decoloniais acerca da modernidade, da colonialidade do saber e do poder, do racismo e de seus
impactos na constituição das subjetividades. Tal intersecção ressalta, por um lado, o recorte do
racismo como fenômeno no laço social; por outro, seus desdobramentos psíquicos na constituição
subjetiva, sem perder de vista, no entanto, a fundamental relação entre ambas as esferas.
Partindo da perspectiva de uma prática clínica antirracista, colocamos dois questionamentos
iniciais que fundamentam e permeiam o presente texto: por que estudar psicanálise e racismo? E
qual a importância de trabalhar questões raciais no âmbito da formação da(o) analista?
A fim de fundamentar os objetivos da pesquisa, bem como fomentar a reflexão acerca da
problemática “psicanálise e racismo”, recorremos à célebre afirmação de Lacan (1953/1998, p.
321) em Escritos, segundo a qual “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não
conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. Tal frase nos alerta para o fato
que a(o) analista deve estar à altura de seu tempo – atenta(o) a seu território, acrescentaríamos – e
implica a ideia de que o fazer analítico requer situar a prática da(o) analista segundo a organização
discursiva na qual está imersa(o).

Colonialidade, racismo e capitalismo

O nascimento do sujeito racial e, portanto, do(a) negro(a), está indissociavelmente ligado


à história do capitalismo (MBEMBE, 2018). O conceito de raça assume caráter ficcional3, uma vez
que se articula historicamente ao projeto político colonizador através de um plano econômico de
exploração. Na medida em que o capital recorreu a subsídios raciais como meio de execução da
acumulação primitiva, a raça não tem nenhuma essência, ela é antes um efeito. Desse modo, o(a)

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negro(a) não existe4, ele(a) é constantemente produzido(a) por meio de um vínculo social pautado
pela sujeição e pela instituição de um corpo de extração.
Esse corpo objetificado, desumanizado, que antes demarcava – social, econômica e
politicamente – o lugar destinado especificamente às minorias (pessoas pretas e indígenas, por
exemplo) assume caráter universal no neoliberalismo. Dessa maneira, a operação que equipara
seres humanos a objetos, introduzida, no período moderno, através da exploração de pessoas
negras escravizadas durante o capitalismo comercial (mercantilismo), passa a ser a norma de
todas as humanidades subalternas. O que Mbembe (2018) conceitua como devir-negro fala, nesse
sentido, da tendência neoliberal à universalização da condição negra, ou seja, da condição de
mercadoria – essa condição é atravessada pela lógica colonial predatória, ocupatória e exploratória,
na qual o termo “negro(a)” foi inventado para significar a exclusão (MBEMBE, 2018).

1 Termo cunhado originalmente por Nelson Maldonado-Torres em 2005 (BALLESTRIN, 2013). O conceito de giro
decolonial nasce atrelado à trajetória e ao pensamento de intelectuais, em sua maioria latino-americanos, que
integraram o Grupo Modernidade/Colonialidade, formado no final da década de 1990, cujo objetivo principal era
a construção de modernidades alternativas ao único modelo ocidental eurocêntrico.
2 Virgínia Leone Bicudo (1910-2003), Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994), Neusa Santos Souza (1948-2008) e
Isildinha Baptista Nogueira são alguns dos nomes por nós destacados.
3 Mais precisamente, o conceito de raça assume uma profundidade, ao mesmo tempo, real e fictícia. Se por um
lado, a ideia de raça não passa de uma ficção útil – uma projeção ideológica, uma construção fantasmática –, dado
que tal conceito não existe enquanto fato natural físico, antropológico ou genético; por outro, ele opera como
figura autônoma do real (MBEMBE, 2018).
4 “O negro não existe. Não mais que o branco” (FANON, 1952/2008, p. 242).
317
17A
A fabricação do sujeito racial pela branquitude colonizadora encerra a pessoa negra
escravizada como um sujeito no trabalho, um corpo destituído de qualquer humanidade e, portanto,
passível de exploração sem limites. Nesse ponto, a noção de raça funda uma diferença insuperável,
pautada, em essência, pelo altericídio5. A construção dessa estrangeiridade radical passa a justificar
– ideológica, moral e socialmente – a exploração e o extermínio de outros povos, de suas culturas
e identidades. Tratamos aqui de violências concretas, simbólicas, estruturais e, ao mesmo tempo,
daquelas que se dão no âmbito das relações interpessoais.
A violência racial tem seu germe na escravização de pessoas negras no esquema das
plantations – traço distintivo do período colonial (KILOMBA, 2019). Contudo, ela ultrapassa o
projeto colonialista, entrelaçando-se, então, com a colonialidade. O trauma colonial é, desse modo,
reatualizado em episódios de racismo cotidiano. Assim, a reencenação de um passado colonial
expõe a realidade traumática do racismo e lhe confere o traço da atemporalidade, próprio à clássica
definição freudiana de trauma (KILOMBA, 2019), na qual o sujeito se vê exposto a uma situação em
que nada separa o real do imaginário (NOGUEIRA, 2017).
O conceito de colonialidade, elaborado por Aníbal Quijano6 (2009), se distingue do
colonialismo histórico na medida em que o primeiro pode ser definido como uma matriz de poder
inaugurada pelo colonialismo, mas que persiste até hoje. Nesse sentido, a colonialidade não
termina simultaneamente à destruição do colonialismo, com a emancipação das colônias; pelo
contrário, ela é o modo mais fundamental de dominação na modernidade7. Esse padrão de poder
foi estabelecido através da produção de diferenças ou classificações sociais e de identidade, dentre
as quais a ideia de raça é a mais importante.
Assim, o racismo8, a hierarquização étnico-racial, é elemento central para se pensar
a colonialidade. Esta, permeada pela ideologia eurocêntrica, coloniza o imaginário e as
representações culturais dos povos. Defendemos, portanto, a ideia de que a colonialidade coexiste
com o capitalismo e, logo, com a ideologia racista. É dos nós, dos enlaces, das articulações entre as
três esferas – colonialidade, capitalismo e racismo – que derivam os produtos ideológicos, sociais,
culturais, econômicos e políticos que estão na base da constituição subjetiva de sujeitos brancos e
pretos. Nessa perspectiva, “as fantasias estão simultaneamente dentro e fora” (NOGUEIRA, 2017, p.
124), pois se encontram tanto no campo da economia psíquica quanto da economia política.
Uma vez delineada a noção de colonialidade, bem como a ficcionalidade do conceito de raça
(uma ficção que fixa gozo9), sublinhamos que a impossibilidade, desde o campo biológico, de definir
5 Isto é, constituir o outro “não como semelhante a si mesmo, mas como objeto propriamente ameaçador, do
qual é preciso se proteger, desfazer, ou ao qual caberia simplesmente destruir, na impossibilidade de assegurar seu

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controle total” (MBEMBE, 2018, p. 27).
6 Intelectual proeminente dos estudos decoloniais, foi membro do Grupo Modernidade/Colonialidade. O sociólogo
peruano subdivide o conceito de colonialidade entre as esferas (complementares) da colonialidade do poder e
colonialidade do saber.
7 Em consonância com Quijano, podemos acrescentar a definição de Mbembe (2018, p. 105), de acordo com a qual
“a ‘modernidade’ é, na realidade, outro nome para o projeto europeu de expansão ilimitada que foi implementado
durante os últimos anos do século XVIII”.
8 No presente trabalho, optamos por utilizar a noção de Andrade (2018, p. 36), que define o racismo como “uma
produção cultural que se presta a fornecer um código ideológico de criação e organização de identidades com base
na desigualdade, a partir do elemento étnico-racial”. O autor estende “a teorização de Laplanche sobre a produção
de classificações e de códigos mito-simbólicos – a de que um produto inconsciente (o sexual infantil) decorre do
recalque de uma categoria social polimorfa (o gênero) por outra categoria sociobiológica binária (o sexo) – ao caso
do racismo”. Assim, “como código mito-simbólico a serviço do recalque da polimorfia étnica, o racismo fornece um
sistema identificatório excludente e (des)igualador e, ao criar duas categorias – ‘raças’ e ‘desigualdade através de
raças’ – reduz a multiplicidade étnica, associando-a a dois grupos organizados: os superiores (geralmente brancos,
donos de prestígio simbólico e poder material) e os inferiores (geralmente não brancos, escalonados em posições
de menor prestígio e maior vulnerabilidade, até o limite da periferia mais extrema)”.
9 Elevada à categoria de conceito por Lacan, a noção de gozo é complexa e não possui uma definição unívoca.
Sumariamente, podemos afirmar que o gozo é aquilo que se situa para além do princípio de prazer. Dito de outra
forma, é uma satisfação que comporta o desprazer e a autodestruição e que, portanto, apresenta ligação com a
pulsão de morte. Vale ressaltar a ligação dessa ideia à investigação, iniciada por Freud, dos impulsos destrutivos
dos seres humanos nas relações sociais, mais especificamente, contemplada na ideia de mal-estar na civilização.
Assim, nota-se uma dimensão do conceito de gozo que permeia desde a vida psíquica até a cultura e a política.
Desse modo, o racismo pode ser tomado com uma das formas de manifestação do gozo no campo da cultura, no
sentido de “uma satisfação destrutiva que diz respeito à agressividade, aos maus-tratos, à violência, à crueldade
nas relações sociais” (OLIVEIRA, 2010, p. 109).
318
18A
raças humanas situa, já de partida, o debate acerca do racismo no plano político, econômico e social
– consequentemente, também no quadro (inter)subjetivo e (intra)psíquico. Em outras palavras, a
investigação do fenômeno do racismo deve perpassar por outras esferas, para além do discurso
racionalista científico-biológico. Como afirma Mbembe (2018, p. 68), “raça e racismo fazem parte
dos processos fundamentais do inconsciente, ligados aos impasses do desejo humano – apetites,
afetos, paixões e temores”.
O recorte do racismo sob a prerrogativa do inconsciente implica a psicanálise na cena
social e lança seus conceitos sobre o enlace entre real, simbólico e imaginário na dinâmica social e
psíquica dos povos colonizados. Nesse sentido, nosso trabalho deve ser marcado por uma suspeita
permanente, que localize ideias, conceitos e autores(as) a partir da perspectiva da subjetividade
produzida não somente em nossa época, mas, mais precisamente, no território do sul global.
Ao tratar de racismo, falamos, por um lado, da inscrição do real no corpo ou, ainda, da
passagem do signo (cor da pele) ao significante (significação social do corpo). Afinal, ao primeiro
olhar branco, o(a) negro(a) sente todo o peso da melanina (FANON, 1952/2008). Simultaneamente,
abordamos sua inscrição na psique por meio da linguagem. Essa, no contexto colonial, tomada
enquanto instrumento colonizante, demarca um lugar de gozo, lalangue10, engendrado no discurso
do colonizador. Trata-se de um discurso espectral, que pinça o real e retorna, simbolizado, ao corpo,
dado que, em última instância, “é na corporeidade que se atinge o preto” (FANON, 1952/2008,
p. 142). As coordenadas teórico-práticas fornecidas pela psicanálise nos permitem analisar as
dinâmicas discursivas racistas a partir daquilo que, na contramão do saber, permanece latente, a
transmissão dos não-ditos: o que se esconde quando se fala o que se fala?
Atribuímos importância fundamental ao fenômeno da linguagem na medida em que ela
é peça essencial da dimensão para-o-outro, pois falar é existir para o outro (FANON, 1952/2008).
A linguagem como instrumento de dominação pode ser facilmente ilustrada pelo desejo dos
colonizados em falar como o colonizador. É preciso falar como um branco e, assim, reagir ao mito
do colonizado selvagem, afirma Frantz Fanon (1952/2008). “O negro, chegando na França, vai reagir
contra o mito do martinicano que-come-os-RR. Ele vai se reconsiderar e entrar em conflito aberto
com tal mito. Ou vai se dedicar, não somente a rolar os RR, mas a urrá-los” (FANON, 1952/2008, p.
36).
Dessa maneira, todo povo colonizado – aquele no qual nasceu um “complexo de
inferioridade” devido à supressão de sua originalidade cultural (FANON, 1952/2008) – toma posição
diante da cultura metropolitana. Quanto mais um povo ou um indivíduo assimilar os valores
culturais da nação civilizadora, mais escapará de sua selva e quanto mais rejeitar sua negritude,

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mais branco será. Em suma, “o que se percebe é a identificação do dominado com o dominador”
(GONZALEZ, 1984, p. 224). No caso do(a) preto(a) no Brasil, essa identificação com o colonizador
e com os ideais da branquitude pode resultar no que Isildinha Baptista Nogueira (2017) nomeia
como “autorrejeição do negro”. Marcamos, portanto, uma via de identificação importante através
da linguagem e – seguindo o caminho trilhado por Lélia Gonzalez (1984) – tomamos o ato de fala
em sua radicalidade, levando-o às últimas consequências, na medida em que apontamos para as
marcas que o discurso imprime no sujeito.
Partindo de Miller (1976), Gonzalez (1984, p. 225, grifo nosso) convoca a psicanálise a
pensar o lugar do(a) negro(a), que está “na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o
determina a lógica da dominação”. Reagindo à tentativa constante de domesticação do(a) negro(a)
pela lógica colonial, infantilizadora dos sujeitos negros11, a autora responde, em tom provocativo:
“o lixo vai falar, e numa boa” (GONZALEZ, 1984, p. 225).
A partir do recorte brasileiro, tendo como uma das chaves de leitura a questão identificatória
– a ser melhor explorada no tópico seguinte – e a língua, Gonzalez toma como base os escritos de

10 Lalangue possui como finalidade qualquer coisa que não a comunicação, na medida em que é caracterizada
pelo erro, pelo desentendimento, pelo desencontro; em outras palavras, é a linguagem do inconsciente. Associada
à lalação do bebê e à aquisição de uma língua mediada pela figura materna, a lalangue faz referência à posição de
gozo, à satisfação que independe de significação e que, por sua vez, veicula o real (GÓIS; UYENO; UENO; GENESINI,
2008).
11 Gonzalez (1984) destaca a aproximação feita pelo discurso colonial racista entre o(a) negro(a) e a criança. Ao
passo que a criança que se fala na terceira pessoa, porque é falada pelos adultos, o sujeito negro é falado pelo
branco. Delineia-se aí um significativo processo de alienação.
319
19A
Frantz Fanon, mas vai além. Ela desenvolve seu pensamento desde o aporte teórico da psicanálise,
voltado, por sua vez, às especificidades brasileiras. A pensadora parte da ideia de que a fala é
atravessada, estruturalmente, pelo desencontro e é emitida por sujeitos cindidos. Com isso, para a
autora, o racismo “à brasileira” ou “racismo disfarçado” desponta, na linguagem, como denegação
da verdade explicitada na língua portuguesa (GONZALEZ, 1988).
Para Sigmund Freud (1925/2014), a negação é um dos modos de tomar conhecimento do
reprimido, que, todavia, mantém a repressão intacta. Através dela, o eu visa introjetar tudo o que é
bom e projeta o resto, nomeado como estrangeiro ou infamiliar, mesmo que este seja inicialmente
idêntico a ele. Assim, o reconhecimento por parte do eu do conteúdo inconsciente se expressa pela
negatividade. No contexto dos discursos coloniais, a denegação da ancestralidade e da cultura negra
por parte do(a) branco(a) brasileiro(a), bem como o enaltecimento da cultura branca e europeia,
da qual não faz inteiramente parte, atuariam como mecanismos de defesa frente à angústia e a
castração. Uma defesa diante da constatação de que ele(a) não é “branco(a)”, mas apenas um(a)
colonizado(a).
Se Fanon (1952/2008) defende que uma linguagem colonizada, permeada pelo racismo,
é um empecilho para a comunicação horizontalizada entre os sujeitos, Lélia Gonzalez (1984), em
contrapartida, aposta na hipótese de que a fala em sua errância, no seu conteúdo não manifesto,
expõe, em nível cultural, algo do sintomático. Para o autor martinicano, o desencontro linguístico
entre colonizado e colonizador deriva de (ao mesmo tempo em que engendra) um déficit de
reconhecimento do eu pelo Outro, no qual o negro é subjugado através do exercício de poder da
língua colonial. De acordo com Gonzalez (1984), na especificidade brasileira, tal ideia é tensionada,
na medida em que no Brasil não há quem fale um “puro português”, como é o caso da língua
francesa na Martinica, por exemplo. Para a psicanalista, somos todos ladinamefricanos12 e falantes
do pretuguês.
Segundo Gonzalez (1984), a questão da língua como instrumento colonizador funde-se ao
tema do racismo precisamente em seu ponto de interlocução com o sexismo13. Esse duplo fenômeno
situa, discursivamente, a mulher negra no lugar metonímico de “doméstica”, “mulata”, “mãe preta”
e “mucama”14. A mulher preta na sociedade brasileira ocupa historicamente a função de mãe na
relação com a criança branca15, à qual transmite seus valores, cuidados, crenças e, inclusive, a língua
materna. O racismo se constituiria como uma tentativa, com efeitos violentos, de esbranquiçar essa
verdade. A mulher negra que viabiliza, em grande medida, o ingresso na cultura e que estrutura o
imaginário infantil, e “essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês”
(GONZALEZ, 1984, p. 235).

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Gonzalez (1984) se vale da psicanálise para fins de construção de um diagnóstico social,
nos moldes do exercício freudiano empregado em O mal-estar da civilização (1930), Psicologia
das massas e análise do eu (1921) e Totem e tabu (1913). Sua tese é a de que o racismo no
Brasil se estrutura como um sintoma da neurose cultural, cujo signo clínico é a mulher negra na
sociedade. Nesse sentido, a noção de pretuguês expõe uma denegação da verdade presente na
língua, resultante de um recalque do desejo do(a) branco(a) pelo(a) negro(a). Tal qual o sintoma do
neurótico, o sujeito reluta em apreender ali algo de sua verdade, de seu modo de gozo e, muitas
vezes, projeta-a no outro. Afinal, o Brasil não é o país onde ninguém é racista, mas todo mundo
conhece um?
De acordo com Lélia Gonzalez (1984), a consciência ocupa o lugar do desconhecimento,
do saber, do esquecimento e da alienação. Já a memória é tida como “o não-saber que conhece,
esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da

12 Remete-se ao conceito, criado por Lélia Gonzalez, de “Améfricaladina”. A amefricanidade “se refere à
experiência comum de mulheres e homens negros na diáspora e à experiência de mulheres e homens indígenas
contra a dominação colonial” (CARDOSO, 2014, p. 971).
13 Miller (2010) também marca a aproximação entre racismo e sexismo; para o psicanalista, o segundo é
construído sobre o primeiro.
14 “No Brasil e na África portuguesa, escrava negra, geralmente jovem, que ajudava nos serviços caseiros e
acompanhava a dona da casa em passeios, podendo ser também ama de leite” (Oxford Languages Dictionary,
2021).
15 Rita Laura Segato, no texto O édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça (2006), se propõe a pensar as
implicações de tal configuração familiar no complexo de Édipo.
320
20A
verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”. Assim, “consciência exclui o que memória
inclui” (GONZALEZ, 1984, p. 226). A consciência pode ser vista como expressão do discurso
dominante em dada cultura – nesse caso, o discurso racista – e a memória aparece justamente nos
tropeços desse discurso da consciência. No Brasil, vemos com clareza a tentativa de apagamento da
memória da escravização e do fortalecimento do mito da democracia racial16. Porém, “isso tá aí... e
fala” (GONZALEZ, 1984, p. 227, grifo nosso).
A produção da mulher preta e do homem preto – submetidos a diferentes planos
interseccionais (DAVIS, 2016) – pelo colonialismo encontra em seus efeitos algo que ultrapassa
o plano das relações materiais concretas do até então modo incipiente de produção capitalista.
A colonização é, também, uma prodigiosa máquina produtora de desejos e fantasias (MBEMBE,
2018). Logo, na intercalação entre capitalismo e colonialismo, demarcamos uma erótica da
mercadoria, uma quimera, fruto da união de um conjunto de bens materiais alicerçados, por sua
vez, em recursos simbólicos.
Como observa Mbembe (2018), o colonizador tenta levar o(a) nativo(a) a renunciar a seus
modos de gozo, aos desejos aos quais se sente apegado. Caso tal movimento seja malsucedido,
procura complementá-lo com novos ídolos, novas leis, novos valores e uma nova ordem de
verdade. Uma vez imersos no campo do desejo, da fantasia, do sintoma e do gozo, a (re)construção
da memória da colônia evoca para nós, essencialmente, um descentramento primordial entre o eu
e o sujeito.
Assim, os produtos (materiais e simbólicos) de origem europeia passam a fixar e estruturar
os fluxos de desejo. Em síntese, poderíamos dizer da fabricação de desejos colonizados. A relação
de países africanos com o tráfico de pessoas cativas, ou seja, com a mercadoria, denota, sob
numerosos aspectos, a economia política do tráfico de seres humanos como uma economia,
em essência, libidinosa. Extrapola-se a exploração do trabalho para a conversão, em um plano
econômico, de indivíduos em objetos. No mundo colonial, o consumo passa a ser associado à
potência, à dominação e ao poder político. Esse furo na estrutura do sujeito colonizado, que o leva
a vender seu parente ou até mesmo entregá-lo à morte em troca da mercadoria, essa fissura é que
deve ser entendida pelo termo “desejo”, afirma Mbembe (2018).
A colonização criou novos dispositivos de violência social mediados pelo investimento
libidinal nos bens e objetos, marcando, assim, a entrada em uma era caracterizada pelo gozo
desenfreado e pelo desejo sem responsabilidade. Para usufruir de uma pequena parte do gozo
colonizador, os povos colonizados se submetem a uma posição de servidão plena. No entanto, o
colonizado jamais será considerado um cidadão e a possibilidade de uma satisfação efetiva desses

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novos desejos é constantemente adiada. Por essa razão, Mbembe (2018) englobará a colônia em
uma dimensão neurótica. Não se trata apenas de uma sujeição concreta, no âmbito da realidade,
mas da sujeição do(a) nativo(a) a seu desejo e é aí que reside o triunfo da colonialidade. O segredo
de uma dominação duradoura está na inscrição, para além dos corpos dos súditos e do espaço onde
vivem, no seu imaginário.
A tecnologia colonial opera a partir do estabelecimento fundamental da dessemelhança. O
pensamento europeu tende a abordar a identidade segundo a relação especular do mesmo com
o mesmo e não em termos de pertencimento mútuo (copertencimento) a um mesmo mundo, ou
seja, a identidade branca está encerrada em seu próprio espelho (MBEMBE, 2018). Da obstinação
colonial em dividir, classificar, diferenciar e hierarquizar restam cortes e lesões profundas: “a clivagem
criada permanece” (MBEMBE, 2018, p. 22). Analisando essa ferida a partir de um traçado histórico
desde o colonialismo até a formação dos Estados contemporâneos, chegamos à necropolítica17 e a

16 O mito da democracia racial consiste na ideia – construída histórica, social, política e “cientificamente” – de
que, no Brasil, as relações raciais se dão de forma harmônica e todos possuem plena igualdade de acesso aos bens
culturais. Tal noção nega a existência do racismo no Brasil e desconsidera, por um lado, as desigualdades raciais
que colocam as populações negra e indígena em condições de maior vulnerabilidade; por outro, as estruturas
sociais que privilegiam brasileiros(as) brancos(as).
17 Mbembe (2018) aponta para o mundo colonial como manifestação do estado de exceção e para a escravização
enquanto uma das primeiras instâncias de experimentação biopolítica. O autor camaronês se apropria do termo
foucaultiano biopolítica para pensar os efeitos da colonialidade nas formas de governo dos Estados modernos. O
conceito de necropolítica se relaciona à ideia de soberania na medida em que se opera uma divisão, um corte no
campo biológico, entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer. Na divisão da população em subgrupos
321
21A
suas implicações psíquicas, dada a lógica perversa de eleição daqueles que podem ser dignificados
enquanto seres humanos ou, ainda, como sujeitos desejantes. Nesse sentido, caracterizamos
a perversão como modo de resposta e de interação com o(a) outro(a) baseada na destruição e
alienação, bem como no desejo de destruí-lo(a) (HARRIS, 2019).
Essa cisão – herança colonial – incide, de maneira dupla, sobre a cisão subjetiva (eu/ isso).
Afinal, a pessoa preta não persistirá em se reconhecer apenas pela e na diferença com o(a) branco(a)?
Não estará convencido(a) de ser habitado(a) por um duplo, uma entidade estrangeira, invasora, que
o(a) impede de conhecer a si mesmo(a)? (KILOMBA, 2016). Ao localizar a experiência (cotidiana)
do racismo através da linguagem do trauma, Fanon (1952/2008) demonstra como no racismo o
sujeito é removido, cirurgicamente, e assim separado de qualquer identidade que possa realmente
ter. Kilomba (2016) sublinha uma sobredeterminação externa de fantasias violentas, que a pessoa
racializada não reconhece como suas. “Eu espero por mim” (FANON, 1952/2008, p. 126). Fanon
está à espera do negro selvagem, do negro violentador, do negro bárbaro, do negro criminoso,
à espera daquilo que não é: “que grande alienação ser forçado a identificar-se e performar a si
mesmo a partir de um roteiro feito pelo sujeito branco” (KILOMBA, 2016).

Negritude, branquitude e a perspectiva da(s) identidade(s)

Em diálogo com a ideia dos processos identificatórios, a presente discussão parte da


problematização de uma visão essencialista do(a) negro(a) e do(a) branco(a), a qual legitimaria
a generalização de certas categorias, características, anseios e desejos. Antes de adentrar o
tema, ressaltamos que, por falar do lugar da mulher branca, estamos inegavelmente alienadas às
vivências do ser negra(o). Ademais, estamos advertidas da heterogeneidade das discussões acerca
das relações da negritude com o campo das identificações e nós nos pretendemos um discurso que
seja não-todo18.
Partimos de Frantz Fanon, que anuncia: “o negro não existe. Não mais que o branco”
(FANON, 1952/2008, p. 242). Com isso o autor coloca em suspensão uma alienação binária corrente
em sujeitos colonizados (Branco(a)/Preto(a), Eu/Outro). Dessa forma, o campo tradicional dos
estudos identitários é descontinuado, na medida em que se descobre que ele está baseado nos
mitos narcísicos da negritude ou da supremacia cultural branca (BHABHA, 1994). Desde a posição
da psicanálise, que privilegia as singularidades e coloca em primeiro plano o um a um, evocamos,
portanto, as considerações fanonianas sobre a (des)universalização do “ser” negro, compreendendo
a elaboração de sua teoria a partir do recorte de sua vivência no descentramento radical promovido

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pelo encontro com a alteridade e com a imagem totalizante do branco.
Jacques-Alain Miller (2010) aproxima o fenômeno do racismo ao da migração ao equivaler o
estatuto de sujeito para a psicanálise ao do estrangeiro: “o sujeito como tal, definido por seu lugar
no Outro, é um migrante” (MILLER, 2010, p. 43, tradução nossa). O sujeito é um estrangeiro em
seu país natal, ocupa o lugar da extimidade social e esse fato de estrutura o lança sobre a questão
de sua identidade, condenando-o “a buscá-la em grupos, povos e nações” (MILLER, 2010, p. 43,
tradução nossa). Isso coloca em questão o que faz o Outro ser o Outro ou, ainda, qual é o Outro
do Outro. A essa pergunta Lacan (1998, p. 827) responde com precisão: “não há Outro do Outro”,
retornando, portanto, a questão para o sujeito cindido pela linguagem.
Partindo do recorte do racismo e da colonialidade, estamos avisadas(os), desde a psicanálise,
que o humanismo universal não se sustenta, pois se pauta pelo absurdo lógico de que o Outro seria
semelhante. O processo colonial nos mostra o resultado da desorientação completa do discurso
filosófico humanista quando o real no Outro se manifesta como absolutamente diferente. Nesse

e no estabelecimento de uma censura biológica, a raça assume papel central para a concatenação dos dispositivos
de biopoder engendrados no Estado de exceção. Um exemplo atual da necropolítica no Brasil é a política de
“Guerra às Drogas”, que visa mascarar o massacre de populações periféricas (em sua maioria negras) e a violência
policial contra a juventude negra. Outro exemplo, em nível global, é a ocupação da Palestina (MBEMBE, 2018).
18 Referência ao Seminário 18, de Lacan, cuja definição básica abrange a contraposição a uma universal afirmativa.
Ao reservar lugar de destaque à particular negativa, o psicanalista situa a posição feminina em relação à função
fálica. Assim, desde a psicanálise, torna-se possível abarcar sentidos opostos, contraditórios, dentro da lógica do
sujeito. Ainda, no campo discursivo, delimita-se uma posição que aspira o avesso da posição de maestria.
322
22A
momento, “já não se tem mais recurso a não ser invocar a irracionalidade” (MILLER, 2010, p. 46,
tradução nossa). Os efeitos são vistos no regime de violência e terror instaurado nas colônias (que
se tornaram estados de exceção), bem como na perpetuação do racismo no discurso científico, que
o associa, então, à ideia de progresso. No encontro radical com a alteridade, Fanon (1952/2008)
percebe que o Outro do branco é o preto, e essa exposição a algo irracional constitui um contato
traumático.
A fim de apreender o enlace entre psicanálise, racismo e colonialidade no campo
das identificações, faz-se necessário um retorno a Sigmund Freud e a Jacques Lacan. Freud
(1914/1996a), em texto dedicado ao conceito de narcisismo, refere-se à identificação primária
como processo principal a partir do qual o sujeito se constitui, assimilando – ou introjetando –, para
tanto, determinados traços familiares e sociais. Ainda, tal conceito se articula ao campo da política.
No sétimo capítulo de Psicologia das massas e análise do eu (1921/2011), Freud elenca três formas
de identificação: o estádio oral (no qual não se diferencia ser e ter), a identificação regressiva (por
exemplo, Dora, que imita a tosse do pai, ou seja, a escolha do objeto coincide com a identificação)
e a identificação das massas (ao receber uma carta de amor, uma das meninas de um pensionato
reage com um ataque histérico que se propaga entre várias de suas colegas). Tais modalidades
dos processos identificatórios guardam, por sua vez, estreita relação com as instâncias do aparelho
psíquico.
Freud trata com base em três termos a agência que impele o sujeito a agir moralmente:
eu ideal, ideal do eu e supereu. Lacan os distingue precisamente (ŽIŽEK, 2010). O eu ideal designa
a autoimagem idealizada do sujeito e está na esfera imaginária. O ideal do eu, por sua vez, é a
instância cujo olhar tento impressionar com minha imagem do eu, o ideal que tento seguir e realizar,
que se dá na identificação simbólica. Já o supereu é real: é a mesma agência do ideal do eu em seu
aspecto sádico-punitivo.
Segundo Žižek (2010), Lacan situa, em um primeiro momento, a identificação no registro
do imaginário, ligada ao estádio do espelho. Esse estádio marca a passagem da animalidade à
humanidade, do biológico ao social. Tal mudança não constitui um problema para Freud: ela é dada.
Para Lacan, no entanto, ela deve ser explicada. De acordo com o psicanalista francês, o estádio do
espelho não se restringe à simples formação do eu enquanto instância psíquica, mas fornece uma
orientação sobre o funcionalismo do eu (função egóica).
O estádio do espelho se relaciona ao olhar, à imagem e à especularidade − ao ver, ao ser visto
e ao ver-se sendo visto. Ora, “se o que constitui o sujeito é o olhar do outro, como fica o negro que
se confronta com o olhar do outro, que mostra reconhecer nele o significado que a pele negra traz

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como significante?” (NOGUEIRA, 2017, p. 123). O eu enquanto efeito o é sem saber, ou seja, se faz
na contramão do saber. É algo que se faz sem saber e que não se recupera, que resta. Distingue-se,
portanto, de uma maturação psicológica e se distancia de um saber, pois não implica progresso no
campo do conhecimento. É relevante pontuar que o sujeito não se vê reduzido à imagem: há algo
que escapa a ela. A imagem como projeção remete à eficácia do processo simbólico, que se reenvia,
por seu turno, à matriz simbólica que subjaz a ela. Assim, somente a linguagem consegue restituir
seu lugar universal (significante), que localiza o ponto em que o sujeito escapa à própria imagem
que o representa.
Narcisismo e ideal do eu operam como noções fundamentais da dinâmica psíquica
e desempenham papel central na produção subjetiva do negro enquanto sujeito, sujeitado,
identificado e assimilado ao branco19 (SOUZA, 1983). É necessário que haja um modelo a partir do
qual o sujeito possa se constituir – atravessado pela idealização parental, por substitutos e ideais
coletivos – e recuperar o narcisismo original perdido. Ocorre que, em alguns sujeitos negros, o
ideal de eu torna-se branco. Afinal, eles nascem e sobrevivem imersos “numa ideologia que lhes
é imposta pelo branco como ideal a ser atingido” (SOUZA, 1983, p. 34). Nesse sentido, Fanon
(1952/2008, p. 28) afirma: “para o negro, há apenas um destino. E ele é branco”; “e ser branco lhe
é impossível”, acrescenta Neusa Souza (1983, p. 40).
Desse modo, falamos de um ideal de eu – muitas vezes corporificado na figura dos líderes
das nações – que forja o laço social. Aquele que não pertence a esse grupo ou que apresenta uma

19 Sobre conexões possíveis entre ascensão social negra e branqueamento, ver Tornar-se negro (1983), de Neusa
Santos Souza.
323
23A
pequena diferença em relação a ele se torna um grande rival e um objeto comum de ódio, o que,
com efeito, serve ao fortalecimento das relações libidinais no interior da massa. Tratamos aqui
daquilo que Freud denomina como narcisismo das pequenas diferenças, a intolerância à diferença
do outro (FREUD, 1918/2020). Sob uma perspectiva diversa, assinalamos a agressividade dirigida
a um Outro enquanto importante fator de coesão grupal das massas (FREUD, 1921/2011). Em um
grupamento de indivíduos, são “justamente as pequenas diferenças, em meio à semelhança em
todo o resto”, que “fundamentam os sentimentos de estranheza e hostilidade” (FREUD, 1918/2020,
p. 164) − em outras palavras, que suscitam o Unheimliche, o estranho, o estrangeiro, o inquietante.
A eleição de um ideal permeado pela brancura engendra uma profunda ferida narcísica no
sujeito negro, cuja condição de ressignificação pode perpassar pela construção de um outro ideal
de eu. Nas palavras de Souza (1983, p. 44), trata-se de
Um novo ideal de ego que lhe configure um rosto próprio, que
encarne seus valores e interesses, que tenha como referência
e perspectiva a História. Um ideal construído através da
militância política, lugar privilegiado de transformação da
História.

Ora, o caminho das desidentificações é familiar às(aos) analistas e trabalhado longamente no


processo de análise. Durante o tratamento, o sujeito depara-se com suas identificações e passa a se
apartar delas. Ao final, esse movimento aponta para a identidade enquanto resto não contemplado
em uma modalidade identitária coletiva, na medida em que diz respeito, em última instância, à
particularidade da relação do sujeito com o gozo.
Ressaltamos, portanto, que a discussão acerca da temática identificatória deve
necessariamente levar em conta a dimensão histórica do colonialismo e da escravização. É preciso
integrar, portanto, ambos os elementos aos efeitos discursivos e à esfera do inconsciente do
colonizado. No entanto, a questão não deve ser tomada apenas no âmbito individual. Como nos
alerta Souza (1983), o individualismo é uma característica da cultura branca ocidental, que faz uma
apologia à responsabilidade individual. Em contraposição, é preciso um compromisso coletivo
com a recuperação da memória de nosso passado histórico – conforme nos traz Lélia Gonzalez
(1984). Esse compromisso tem por objetivo desmantelar “o efeito internalizado do olhar do outro”
(MBEMBE, 2018, p. 68). Assim, a desalienação deve ser dada na esfera subjetiva, coletiva e objetiva,
a fim de não (re)cairmos na (re)produção das estruturas de opressão (FANON, 1952/2008).
Para o(a) branco(a), a identificação aparece atrelada à reprodução dos ideais construídos
pela branquitude e à manutenção dos privilégios advindos do pacto narcísico branco. Denomina-se

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branquitude a construção sócio-histórica produzida pela falácia ideológica da superioridade racial
branca (SCHUCMAN, 2020), que, nas sociedades estruturalmente racistas, como o Brasil, mantêm
um ideal ilusório de mundo branco. O(a) branco(a) carrega consigo o símbolo da humanidade
e afirma uma condição genérica: “ser branco constitui o elemento não marcado, o neutro da
humanidade” (NOGUEIRA, 2017, p. 123). Mas o que aconteceria se transformássemos essa
familiaridade e naturalidade da categoria de branquitude em algo estranho e infamiliar? (NAYAK,
2007). Se operássemos a passagem do “lugar natural” aristotélico20 ao Unheimliche freudiano?
A branquitude agrega um conjunto de significações construídas social e historicamente
na cultura ocidental. Ela abriga significados normativos de beleza, de civilização, de produção do
conhecimento, entre outros. A branquitude é concebida como uma posição na qual os sujeitos
que a ocupam usufruem sistematicamente de privilégios materiais e simbólicos oriundos do
colonialismo e que são mantidos na contemporaneidade (SCHUCMAN, 2020). É importante
marcar que, nos estudos críticos da branquitude, indivíduos descendentes de europeus ocupam
majoritariamente esse lugar, porém, a depender da configuração histórico-social de determinada
sociedade, outras pessoas podem ocupá-lo (SCHUCMAN, 2020). Assim, a branquitude é tida como
categoria organizadora da modernidade perpetuada pela colonialidade, modificável conforme o
tempo e o lugar, que atua enquanto norma social ligada a privilégios não ditos/explícitos (NAYAK,

20 De acordo com Abbagnano (2014), o conceito de “lugar” para Aristóteles compreende aquilo que circunscreve
imediatamente o corpo. A partir dessa noção, existem “lugares naturais” nos quais um corpo naturalmente está
ou aos quais retorna se estiver afastado, os lugares próprios. Esse teorema é o que baseia toda a física aristotélica.
324
24A
2007). A teoria psicanalítica nos permite apontar para “a tenacidade dos compromissos conscientes
e inconscientes que pessoas ‘brancas’ fazem ao privilégio branco” (HARRIS, 2019, p. 309, tradução
nossa).
Uma contribuição da psicanálise para o campo de estudos críticos da branquitude é o
reconhecimento de que as identidades brancas são construídas, tanto externa quanto internamente,
numa dialética entre o social e o subjetivo. Tal invenção moderna, a categoria de branquitude,
sofre transmutações, o que insere camadas de complexificação que ultrapassam a mera questão
fenotípica. No contexto dos Estados Unidos, por exemplo, a consolidação da identidade branca se
deu de maneira intimamente atrelada à classe proletária. De início não reconhecidos como brancos,
os italianos, irlandeses e judeus passaram a se alinhar ao discurso supremacista branco como forma
de defesa à exploração do capital.
Ao dividir a força de trabalho pela cor, esses recém-criados
“trabalhadores brancos” – muitos dos quais haviam sido
submetidos à discriminação religiosa e de raça – agora
buscavam consolo no fato de que, mesmo “escravos do
capital”, ainda poderiam reivindicar tornar-se cidadãos
brancos: “honestos”, “confiáveis”, “respeitáveis”, os “primeiros
contratados, últimos demitidos” (NAYAK, 2007, p. 4, tradução
nossa).

Essa incorporação das qualidades brancas, no entanto, esbarra em um limite. Os(as)


brancos(as) da América do Sul, por exemplo, são percebidos(as) histórica e culturalmente pelas
nações imperialistas como “não propriamente brancos(as)” (NAYAK, 2007, p. 6, tradução nossa).
No Brasil, a identificação de sujeitos brancos ao ideal da branquitude colonizadora apresenta uma
ferida narcísica pungente: o colonizado (“branco”) nunca chegará a ocupar o lugar do colonizador.
Esse duplo que paira sobre as elites brancas e a burguesia colonial denuncia uma verdade recalcada,
em nível social. O(a) branco(a) no Brasil recalca que, na verdade, é um(a) ladinamefricano(a),
falante de pretuguês. Em outras palavras, o(a) colonizado(a) branco(a) é, assim como o(a) negro(a),
castrado(a). Tal questão também coloca em cena o debate acerca do racismo em suas intersecções
com a classe. “Por ser uma negação sistematizada do outro, uma decisão furiosa de recusar ao
outro qualquer atributo de humanidade, o colonialismo compele o povo dominado a se interrogar
constantemente: ‘Quem sou eu na realidade?’” (FANON, 1968, p. 212).
A psicanalista lacaniana Kalpana Seshadri-Crooks (2000) argumenta que a branquitude é
colocada como significante mestre (S1) na ordem cultural simbólica referente aos sistemas raciais.

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Em síntese, a estrutura racial da diferença seria operada pelo significante mestre branquitude,
que estabeleceria uma cadeia significante a partir da qual se organizaria a diferença humana. O
binarismo do significante gera sempre um excedente libidinal ao deslizar na cadeia significante.
A cadeia desliza dentro da ordem gramatical, erotizando um corpo pela via da norma simbólica.
Nesse sentido, o racismo não possui um substrato biológico: ele é um fenômeno discursivo.
De acordo com Seshadri-Crooks (2000), não há fundamento ontológico para a raça, que
resulta de uma precária colagem de fantasias fragmentadas e projetadas em um Outro imaginário.
As fantasias raciais têm caráter ambivalente, na medida em que são atravessadas pelo par medo-
desejo (FANON, 1952/2008). Um exemplo é o fetiche, noção explorada por Bhabha (1994), que
se liga ao racismo pela via do estereótipo. Através do estereótipo, iriam se tornar públicos os
mecanismos que subjazem ao fetiche na esfera privada e que envolvem a negação (BHABHA, 1994).
Assim, a fetichização de corpos racializados e de sua cultura concorda com o desejo de possessão
e, ao mesmo tempo, de destruição por parte do(a) branco(a). Segundo Nayak (2007), quanto mais
ofensivos, mais ansiolíticos os estereótipos raciais serão para o(a) branco(a), pois eles desvelam o
esforço extraordinário requerido para sustentar o mito da raça. Seshadri-Cooks (2000) afirma, ainda,
em consonância com a tese de Kilomba (2019), que o estatuto ficcional da raça remete às angústias
brancas, que operam a passagem do “ver a diferença” para o “fazer a diferença”, relacionada, assim,
a uma economia visual.
Para as subjetividades brancas, funda-se uma identidade através da dessemelhança absoluta,
no entanto intrinsecamente dependente ao sujeito negro. Em outras palavras, “a negritude serve
325
25A
como forma primária de Outridade, pela qual a branquitude é construída” (KILOMBA, 2019, p.
38). Falamos aqui da dialética hegeliana do senhor e do escravizado. Nela, o servo se encontra
captado pela imagem do senhor e se constitui como um ser-para-si somente mediante um Outro.
No entanto, o que Hegel (1992) nos mostra é que o ato livre desejante depende, intrinsecamente,
do movimento de reconhecimento e nesse movimento o senhor vê sua posição inteiramente
dependente do escravizado e de sua submissão. A branquitude, portanto, precisa ser entendida em
relação ao imaginário do(a) Outro(a) racializado(a), e o racismo não pode ser explicado no plano
puramente racional.
Para além da colonialidade do discurso e da língua, a psicanálise abre, como horizonte de
investigação, o espaço para o não-dito dos registros raciais (NAYAK, 2007), abrangendo fenômenos
como a angústia, a culpa, os atos-falhos, a memória e o esquecimento no que se refere à temática
racial. A partir do absurdo e da violência da conquista colonial, engendra-se um ciclo de angústia
branca e culpa, tamponadas pela projeção, negação e o recalque da realidade traumática da
racialização (NAYAK, 2007). Ademais, a psicanálise tem como uma de suas grandes contribuições
a possibilidade de voltar o olhar desses “Outros monstruosos” para o eu branco enigmático e
desracializado (NAYAK, 2007). A direção de uma reparação aponta para a necessidade de perdas
identitárias, e a desconstrução da identidade branca não se mostra uma tarefa simples.

O giro decolonial na psicanálise

Diversas(os) autoras(es) nos mostram que é possível dizer algo sobre o racismo desde a
psicanálise e que a história, a geografia e a sociologia, embora tratem de um vasto número de
causalidades econômicas, sociais e geopolíticas fundamentais para a compreensão desse fenômeno,
deixam um resto, sinalizam para as “causas obscuras do racismo” (MILLER, 2010). Cabe à psicanálise
se ocupar, dar lugar a esse resto e colocar-se à escuta desse mal-estar. Afinal, a teoria psicanalítica
é herdeira do sujeito – abolido ou universalizado – da ciência, especialmente perdido em seu gozo,
uma vez que o que podia enquadrá-lo a partir de sua sabedoria tradicional fora subtraído (MILLER,
2010).
O racismo pode ser entendido como ódio à maneira particular como o Outro goza e essa
resposta consistente de agressividade aponta para o real nesse Outro. É no ponto de choque entre
colonizado e colonizador, no encontro com diferentes tradições e culturas, que o discurso humanista
se esfacela. Uma vez que o Outro é Outro dentro de mim mesma(o), a raiz do racismo é o ódio ao
próprio gozo, pois, “se o Outro está em meu interior em posição de extimidade, é também meu

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próprio ódio” (MILLER, 2010, p. 55, tradução nossa). É necessário, dessa maneira, localizar o gozo
na ordem discursiva.
A discriminação racial, para além de abarcar um problema constitutivo das estruturas
sociais e institucionais, é um problema de gozo. Tal conceito, jouissance, criado por Jacques Lacan,
parte da noção freudiana de satisfação pulsional e demarca algo que resta em excesso, que beira
o traumático. Essa noção comporta certa abertura, na medida em que pode se referir a qualquer
faceta do comportamento humano, conferindo-lhe carga erótica. O gozo é conceitualizado em
relação à pulsão e, portanto, está para além do princípio do prazer, é uma satisfação que mantém
relação próxima à dor, modulada pela pulsão de morte e pela transgressão da lei (HOOK, 2021).
Tal definição nos possibilita “apreender como a agressividade do racismo pode ser sexualizada,
ser eroticamente carregada, até mesmo (ou talvez, especialmente) em sociedades aparentemente
tolerantes” (HOOK, 2021, p. 192). A(o) analista sensível ao sofrimento decorrente das questões
raciais deve se manter atenta(o) à dimensão pulsional do racismo e suas consequências nos corpos,
nas relações objetais e na fantasia. Deve ser capaz, ainda, de identificar, nas singularidades, a forma
como os efeitos traumáticos ou gozosos decorrentes de uma sociedade fundada pela colonização
se atualizam para cada sujeito durante o tratamento21.

21 Alguns exemplos podem ser extraídos no capítulo cinco do livro Os condenados da terra (1961), de Frantz
Fanon, que conta parte de sua experiência durante o período da guerra de independência argelina. Nele, o autor
ressalta o caráter ativo do colonialismo na formação das patologias da psique dos colonizados e dos colonizadores.
326
26A
O gozo perverso racista22 pode ser definido como uma modalidade de gozo ligada à esfera
identificatória, que excede as três identificações colocadas por Freud em Psicologia das massas e
análise do eu (RIBEIRO, 2021). Essa nova modalidade de identificação estaria ligada ao mais-de-
gozar, à forma de recuperação de gozo, dentro do discurso capitalista, a partir do ódio destinado
a seres humanos, reduzidos a dejetos. Slavoj Žižek (2016) cunha uma ideia próxima, que se refere
à hipótese do racismo como “roubo de gozo”. Em conformidade com Miller (2010), Žižek afirma
que, no encontro com a alteridade, o sujeito projeta seu gozo no Outro, conferindo-lhe acesso
pleno a um gozo consistente. Disso resulta a inveja e a percepção de que o Outro rouba o meu
próprio gozo. Uma possível saída de tratamento desse gozo relacionado ao racismo é a aposta na
via da sublimação, da cultura e da política, a partir dos movimentos sociais (RIBEIRO, 2021) − aposta
construída na dialética entre o singular e o social enquanto caminho de “cura” ou de reparação.
O gozo, articulado à pulsão de morte, pode ser expresso pela via da “exploração e da
aniquilação do homem pelo homem” (COSTA et al., 2020, p. 147). Dessa forma, a noção de gozo
racista se liga ao conceito de necropolítica, termo cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe
(2016). O pensador articula o termo foucaultiano “biopoder” à noção agambeniana de estado de
exceção, do que resulta a formulação do conceito de necropolítica. Em artigo homônimo (2016), o
autor sublinha a ideia do estado de exceção como um arranjo permanente, no qual determinados
grupos permanecem suspensos do estado de direito, ou seja, trata-se do poder soberano de matar
aqueles que não interessam aos objetivos do capitalismo.
No paradigma político moderno, a razão ocupa o lugar de verdade do sujeito e a política
se configura como exercício da razão na esfera pública. Dentro dessa perspectiva, o exercício da
soberania encontra-se expressamente envolto por significações sociais e imaginárias. Assim, o velho
poder soberano do direito de morte se transfigura e toma o racismo como conceito operador que
permite ao Estado exercer seu papel soberano, na medida em que tal conceito passa a “assegurar a
função de morte na economia do biopoder” (FOUCAULT, 2010, p. 308).
No paradigma colonial vemos uma primeira síntese entre o massacre e a burocracia: a
seleção de raças, a proibição de “casamentos mistos”, o projeto político de embranquecimento da
população, a esterilização forçada, os estupros em massa de mulheres pretas e nativas, até mesmo
o extermínio dos povos vencidos. Para Mbembe (2016, p. 132), “o que se testemunha na Segunda
Guerra Mundial é a extensão dos métodos anteriormente reservados aos ‘selvagens’ pelos povos
‘civilizados’ da Europa”. Na atualidade, o controle dos corpos colonizados através da necropolítica
não passa sem imprimir profundas marcas nas subjetividades.
No seio do lugar social, político e econômico destinado à preta e ao preto – construído

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intencional, sistemática e historicamente – na sociedade brasileira contemporânea, ecoam,
insistentes, as palavras de Carolina Maria de Jesus (1995, p. 30): “eu estou começando a perder
o interesse pela existencia. Começo a revoltar. E a minha revolta é justa”. Essa revolta dá contorno
ao movimento de (re)apropriação da negritude por ela mesma e marca o esfacelamento das
identificações ao ideal branco colonizante. O sujeito negro passa, portanto, a ser preenchido com
significantes distintos: “torna-se negra(o)”, como nos aponta a psicanalista Neusa Santos Souza
(1983), pois ser negro não é uma condição a priori, mas um vir-a-ser. Dessa maneira, tornar-se
negro(a) perpassa, necessariamente, pela tomada de consciência do processo histórico e ideológico
que arquiteta o desconhecimento de si e aprisiona o(a) negro(a) em uma imagem alienada na qual
se reconhece. Ser negro(a) é tomar posse dessa consciência e criar uma nova (SOUZA, 1983).
Conceição Evaristo nos dá exemplos de possíveis saídas subjetivas através do ato de
escrita, que permite dar lugar à virada de posição do sujeito negro. Ela toma a escrevivência como
ferramenta metodológica na produção de conhecimento, enquanto possibilidade de transmissão
e de denúncia de uma sociedade racista. Carolina Maria de Jesus, mulher, negra e periférica, é um
brilhante exemplo de narradora escrevivente, que funde palavra e vivência por meio de um jogo
entre memória e (re)invenção. Em Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960/1995), ela
constrói sua literatura de testemunho.
Embora psicanaliticamente não exista o inconsciente negro, existe o inconsciente

22 Tratamos aqui de uma fantasia perversa ou, ainda, de uma participação neurótica na fantasia perversa, na qual
há o desejo de fruição, sem limites, sobre o corpo do outro, o assujeitamento completo do objeto de forma que o
perverso não se defronta com sua própria castração (RIBEIRO, 2021).
327
27A
atravessado pela negritude (NOGUEIRA, 2017), pela cor. É importante ressaltar que a consciência
do sujeito negro acerca das implicações histórico-políticas do racismo não o impede de ser afetado
pelas marcas que uma sociedade estruturalmente racista deixou inscritas em sua psique (NOGUEIRA,
2017). Ora, estamos avisadas(os), desde Freud, da distância entre o saber da consciência e a
dinâmica dos processos psíquicos inconscientes no que tange ao trauma.
Ademais, “as condições de existência material da comunidade negra remetem a
condicionamentos psicológicos que têm que ser desmascarados” (GONZALEZ, 1984, p. 232). Desde
a época colonial até os dias de hoje, há uma evidente separação do espaço físico ocupado por
dominados e dominadores (GONZALEZ, 1984). “Os diferentes índices de dominação das diferentes
formas de produção econômica existentes no Brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a
reinterpretação da teoria do ‘lugar natural’ de Aristóteles” (GONZALEZ, 1984, p. 232). Portanto, é
preciso atentar para o fato de que o psiquismo é atravessado pelas condições objetivas, condições
que receberão, no plano do inconsciente, elaboração própria (NOGUEIRA, 2017).
Por fim, embora a psicanálise tenha seu berço na Europa, ela ocupa papel fundamental
na discussão acerca do racismo. Afinal, foi Freud que instaurou a ferida narcísica nos povos
europeus ao denunciar que sua razão iluminista visa encobrir suas produções de horror. Cabe a
nós, colonizados, reavivar a denúncia de que o eu não é senhor de sua própria casa, como nos alerta
Freud (1917/1996b), e que a razão kantiana deixa restar. Ou ainda, que ela surge para encobrir – ao
mesmo tempo que incitar – aquilo que a memória da colônia grita. Afinal, Lacan nos permite extrair
do seio da moral kantiana seu núcleo obsceno, perverso, excessivo, que não encontra melhor
representação do que a figura sadiana23. Assim, a psicanálise possui ferramentas de enfrentamento
do discurso racionalista, que, por sua vez, está na base da estrutura racista.
Por fim, cabe à(ao) analista branca(o) promover uma escuta atenta aos sofrimentos
raciais que atravessam sujeitos negros, questões que se presentificam, através dos corpos, em
relação transferencial. Ao mesmo tempo, é necessário engendrar uma reflexão acerca da própria
branquitude, a fim de situar seu lugar de escuta na transferência, reconhecendo-se como branca(o),
e estar avisada(o) sobre as possíveis consequências psíquicas e sociais do racismo estrutural, bem
como da possibilidade de reprodução violenta dos discursos coloniais. Ademais, é primordial
marcar a importância da consciência da própria branquitude por parte da(o) analista branca(o),
assim como o reconhecimento de seu lugar de privilégio social e de seus pactos perversos (HARRIS,
2019), para que possa localizar suas condições de escuta das formas de incidência do traumático
no outro. Relembramos, por fim, as palavras de Lacan (1958/1998, p. 601), segundo as quais “não
há outra resistência à análise senão a do próprio analista”. Quais as implicações, para o tratamento,

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da permanência da(o) analista enquanto sujeito desracializado? Haveria uma recusa perversa em
saber-se racializada(o), alimentada pela negação e pela resistência?

Considerações Finais

O entrelaçamento da psicanálise com as teorias decoloniais mostra-se um campo fecundo


e, no entanto, ainda explorado de forma incipiente. O pensamento decolonial nos permite situar,
com maior clareza, o fenômeno do racismo na sociedade brasileira como resultado da colonialidade
do saber e do poder. Assim, a intersecção entre psicanálise, racismo e decolonialidade melhor
localiza a(o) analista no horizonte da subjetividade de sua época.
As categorias universais forjadas pelas epistemologias eurocêntricas produzem modalidades
de poder e de saber que denegam o racismo estrutural. Os efeitos da colonialidade são vistos no
ensurdecimento, institucional e subjetivo – especialmente por parte de sujeitos brancos –, do
sofrimento que habita a base do laço social colonial brasileiro. Uma vez que a problemática do
racismo não se dá no nível da razão, a(o) psicanalista tem seu lugar e importância bem delineados.
Assim, cabe à(ao) analista implicar sua escuta e apresentar um instrumental teórico-prático –
situado na história e nas relações sociais – que permita o acolhimento e a construção de direção de
tratamento adequados. Em resumo, é preciso descolonizar também a escuta, desde a psicanálise.

23 A discussão se insere na perspectiva da construção e desarticulação de filosofias consideradas racionalistas,


como a de Kant.
328
28A
Nesse sentido, a análise possibilita a gestação de questionamentos no âmbito subjetivo, familiar e
social, implicando a posição subjetiva na relação individual e coletiva com o ideal de branquitude
brasileiro.
Por fim, a problemática do racismo e da colonialidade abre outras questões para o
horizonte da psicanálise em nosso tempo. Dentre elas, destacamos a possibilidade de se pensar
os conceitos psicanalíticos a partir da chave de leitura da interculturalidade, visando descolonizar
nossa concepção de estrutura familiar, de desejo e de inconsciente. Apontamos, ainda, para a
necessidade de maiores estudos, no âmbito da psicanálise, acerca da branquitude e dos efeitos dos
ideais coloniais – eurocêntricos e eugenistas – sob a perspectiva do branco brasileiro. Outrossim,
questionamos, sob o prisma da prática clínica, se basta tratar o sintoma do sujeito e reinseri-lo em
uma sociedade doente. Potencializam-se, nesse sentido, possíveis saídas alinhadas ao campo da
coletividade.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

331
31A
PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO ETHOS DIGITAL

MASS PSYCHOLOGY AND ANALYSIS OF DIGITAL ETHOS

Nádia Laguárdia de Lima 1


Márcio Rimet Nobre 2

Resumo: A partir do texto freudiano Psicologia das massas e análise do Eu, o artigo objetiva apresentar uma reflexão sobre
o fenômeno das massas atrelado ao que se compreende como uma mudança no ethos da sociedade atual, tendo em vista
o surgimento da linguagem digital e do novo padrão cultural que dela se origina. Foi empregada a metodologia de estudo
comparativo do fenômeno no período atual e naquele sobre o qual Freud escreveu. Os efeitos da linguagem digital para o
laço social são destacados no que concerne à influência dos dispositivos tecnológicos para uma expansão dos fenômenos
de massa. Sustenta-se que esse ethos revela-se marcado pela dimensão subjetiva do gozo, com prejuízo para a relação do
sujeito com o saber, o Outro e todo o registro simbólico. Observa-se como tais mudanças são correlatas de uma expansão
no próprio nível egoico, portanto, imaginária, sobretudo a partir da implantação do dispositivo algorítmico.

Palavras-chave: Psicologia das massas. Cultura digital. Ethos. Gozo. Discurso capitalista.

Abstract: : From the Freudian text Psychology of the masses and analysis of the Self, the article aims to present a reflection
on the phenomenon of the masses linked to what is understood as a change in the ethos of current society, in view of the
emergence of digital language and the new standard culture that stems from it. Methodology of comparative study of the
phenomenon was used in the current period and in the one about which Freud wrote. The effects of digital language on
the social bond are highlighted with regard to the influence of technological devices for an expansion of mass phenomena.
It is argued that this ethos reveals itself to be marked by the subjective dimension of jouissance, with prejudice to the
subject’s relationship with knowledge [savoir], the Other and the entire symbolic register. It is observed how such changes
are correlated with an expansion at the egoic level itself, therefore, imaginary, especially from the implementation of the
algorithmic device.

Keywords: Mass psychology. Digital Culture. Ethos. Jouissance. Capitalist discourse.

1 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Psicóloga
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Atualmente é professora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais e docente permanente do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/9516537449598946; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7949-0169. E-mail: nadia.laguardia@gmail.com

2 Doutor em Psicologia/Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais; Especialista em Teoria Psicanalítica Universidade Federal de Minas Gerais; Psicólogo pela Universidade Federal de São
João Del Rei. Pesquisador colaborador no Laboratório Além da Tela: Psicanálise e Cultura Digital (FAFICH/UFMG) e no Laboratório Janela da Escuta,
da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Lattes: https://lattes.cnpq.br/6213923647850576; ORCID: https://orcid.
org/0000-0001-7130-0906; E-mail: marcionobre205@hotmail.com
Introdução

Após cem anos da publicação de Psicologia das massas e análise do Eu por Sigmund Freud, a
hegemonia da nova linguagem digital parece revelar que tanto as massas quanto a própria instância
egoica vêm sofrendo consideráveis alterações. A rapidez com que essa linguagem se espalhou, bem
como a impregnação de seus traços em todos os aspectos socioculturais, nos credenciam a cogitar
que um novo ethos esteja em vigência na atualidade. Além disso, por sua abrangência, trata-se de
um ethos que define comportamentos, costumes e atitudes em âmbito global.
Na antiguidade grega, esse termo era empregado para indicar o lugar em que se vivia, bem
como o conjunto de valores que orientam comportamentos sociais de modo a garantir alguma
característica estável ao laço social. A partir de Aristóteles, a noção de ethos adquire sentido ainda
mais abrangente. Para o filósofo, o ethos é aquilo que nos habita desde dentro, nossa forma de ser
ou caráter, nossa morada, algo como uma segunda natureza que se difere da biológica1.
No Seminário 7, Lacan (1959-1960/1997) retoma o termo “ethos” como morada, para
referir-se à dimensão da ética. Conforme Lacan, para Aristóteles, o ethos “hábito” é o que forma o
ethos “caráter” para o humano:
O estabelecimento do ethos é feito como que diferenciando
o ser vivo do ser inanimado, inerte. Como salienta Aristóteles,
por mais vezes que vocês lancem uma pedra no ar ela não
se habituará à sua trajetória, enquanto que o homem, este,
se habitua – esse é o ethos. E esse ethos, trata-se de obtê-
lo conforme ao ethos, ou seja, a uma ordem que é preciso
reunir, na perspectiva lógica que é a de Aristóteles, num Bem
Supremo, ponto de inserção, de vínculo, de convergência, em
que uma ordem particular se unifica num conhecimento mais
universal, em que a ética desemboca numa política e, mais
além, numa imitação da ordem cósmica (p. 33).

Ora, compreendemos que, na atualidade, essa ordem do particular que compõe o ethos
“caráter” vem convergindo para um universal que se reveste em uma nova linguagem, originando
um novo padrão cultural, com profundas mudanças nos modos e na forma do enlaçamento
social, o que afeta decisivamente o ethos “hábito”. É nesse sentido que tal conjuntura convoca-
nos a retomar o texto freudiano que insere a reflexão psicanalítica no âmbito da coletividade,

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ressaltando ainda a relevância de buscarmos compreender o fenômeno das massas na atualidade a
partir das contribuições de nosso campo. Para tanto, lançamos mão de uma metodologia de estudo
comparativo das bases e características de tal fenômeno no período atual, em relação àquelas do
período em que Freud escreveu.
Por isso mesmo, o texto de Freud (1921/2020b) oferece-nos subsídios valiosos para uma
atual análise desse fenômeno que resulta de um conjunto tecnológico inédito, suporte da nova
linguagem, a dos números. Sob essa linguagem, configuram-se novos padrões comportamentais e
de caráter que, desencadeados pelo ethos “hábito” de viver em ambientes virtuais, logo prefiguram
uma cultura que se organiza mundialmente, a caminho do que Lacan (1959-1960/1997, p. 33)
aponta como sendo essa “imitação da ordem cósmica”. Ocorre que, num lapso de pouco mais de
duas décadas, os padrões desse ethos inédito para a experiência humana, por seus visíveis efeitos
para o laço social, “desembocam numa política”, como também assinalava Lacan. Trata-se, portanto,
de uma nova morada para o sujeito, para o exercício de outros modos de estabelecer laço com o
semelhante, com esse Outro que nos habita via linguagem.
Assim, essa cultura resultante da linguagem digital marca o movimento que, em amplo
espectro, caracteriza as trocas sociais e, consequentemente, o acolhimento de grupos, de massas
sociais. Se a formação de massas anônimas, perenes e ilimitadas se tornou realidade no suporte
da rede digital, uma crescente inflação imaginária configurou aspectos da subjetividade a partir de
parâmetros que se alimentam do constante estímulo ao fornecimento e consumo de informação.
1 Disponível em: https://conceitos.com/ethos/. Acesso em: 21 out. 2022.
333
33A
“Uma imagem vale mais que mil palavras”: eis um slogan bastante utilizado em anos
recentes e que ilustra muito bem o que está em questão. Desde que Guy Debord (1968/1997)
apontou a emergência da sociedade do espetáculo, multiplicam-se as metáforas para caracterizar
nosso tempo como o de uma intensificação do que se pode capturar pelo olhar. Nesse sentido, o
sujeito é convidado a se exibir incessantemente, para destacar-se na massa digital; assim, insere-se
numa lógica em que se mostra mais, na qual os dados pessoais tornam-se objeto de um manejo
mercadológico que se volta para o próprio sujeito, seja na forma de mais informações ou de objetos
de consumo e serviços personalizados (ROUVROY; BERNS, 2015).
Todo esse processo é o substrato de uma nova ordem econômica que, atualmente, configura-
se nos moldes de um “capitalismo de plataforma” (SRNICEK, 2022), ou “capitalismo de vigilância”
(ZUBOFF, 2021), em que um conjunto de atores corporativos se apresenta como sendo meros
intermediários tecno-comunicacionais, articulando serviços e negócios entre usuários, e destes
para com instituições e corporações. Nessa guinada, o processo de inserção dos falantes e seus
laços sociais nesse tal ethos digital sofre todas as consequências diretas da orientação econômica
sobre a dimensão política, o que se nota, especialmente, na transposição dos fenômenos de massas
para o âmbito da rede virtual.
O propósito deste trabalho é apresentar uma breve reflexão sobre o fenômeno das massas
a partir do texto freudiano, para, em seguida, proceder a uma leitura do tema atrelado a essa
mudança para um ethos formatado pela linguagem digital, trabalhando com autores que analisam
o contexto contemporâneo, tendo em vista os efeitos políticos dessa transição. Em paralelo,
buscaremos observar como esse processo corresponde a uma expansão no próprio nível egoico.

Freud e a massa como fenômeno identificatório

A escrita de um dos principais trabalhos de Freud sobre a coletividade se deu em contexto


de grave crise política e econômica decorrente da então recém-terminada Primeira Guerra Mundial
(1914-1918). Esse cenário sombrio trouxe para muitos de seus textos uma série de reverberações
teóricas; dentre elas, o artigo Psicologia das massas e análise do Eu, publicado em 1921. O texto
traz uma robusta análise crítica da obra de Gustave Le Bon, Psicologia das multidões, publicada
em 1895, com boa repercussão na época. Apoiado nas reflexões de Le Bon, Freud (1921/2020b)
descreve a psicologia das massas a partir da perspectiva da psicanálise. Para ele, na massa o
indivíduo pode modificar seu comportamento, agindo de modo inteiramente diferente de como

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agiria isoladamente, exacerbando suas paixões e rebaixando o nível de sua inteligência crítica
e consciência moral. Isso porque a vida anímica das massas intensifica os impulsos afetivos,
compensando o desamparo dos indivíduos em seu isolamento. Por isso, a massa é impulsiva,
volúvel, excitável e, sendo guiada quase exclusivamente pelo inconsciente, não tolera demora entre
seu desejo e sua realização.
Na massa, surge o sentimento da onipotência e a noção do impossível desaparece para
o indivíduo, sendo seus sentimentos sempre muito simples e bastante exaltados, tudo sendo
permitido. A massa não conhece dúvida nem incerteza, assim como não busca a verdade, mas
exige ilusões, às quais não pode renunciar. Além disso, na massa, o heterogêneo se perde no
homogêneo, sendo ela um rebanho obediente que não pode viver sem senhor. Produzindo um
sentimento semelhante ao da fascinação na hipnose, o líder exerce um poder misterioso sobre um
indivíduo, que tem paralisada sua capacidade crítica.
Freud (1921/2020b) é enfático ao descrever o poder das massas. Ele busca compreender o
que mantém uma determinada massa coesa, quais mecanismos a ligam a um líder e o que faz com
que ela seja tão influenciável e crédula. Freud não se contenta com a ideia de Le Bon e de outros
teóricos que explicavam o funcionamento das massas por meio de categorias como regressividade,
infantilidade e selvageria. O ponto de partida de sua reflexão é a indissociabilidade entre o individual
e o social. Em suas palavras:
Na vida psíquica do indivíduo, o outro é, via de regra,
considerado como modelo, como objeto, como auxiliar e
como adversário, e por isso a psicologia individual é também,
334
34A
de início, simultaneamente psicologia social, nesse sentido
ampliado, mas inteiramente legítimo. A relação do indivíduo
com seus pais e com seus irmãos e irmãs, com seu objeto
de amor, com seu professor e com seu médico, logo, todas
as relações que foram até agora objeto privilegiado da
investigação psicanalítica, podem reivindicar ser consideradas
fenômenos sociais [...] (FREUD, 2021/2020b, p. 137).

Freud (1921/2020b) mostra que a compreensão da dinâmica das massas requer o estudo
do funcionamento psíquico, da mesma forma que não se pode analisar o psíquico fora do campo
social. Em vez de buscar uma explicação das massas pelo contágio ou imitação, ele articula o
fenômeno social com o inconsciente, descrevendo o princípio da formação de uma massa a partir
do processo de identificação, que define como a forma mais elementar de ligação afetiva com
o objeto. Assim, enfatiza que o poder aglutinador da massa está nos laços libidinais, ou seja, o
afeto constitui a essência da psique das massas: “A constituição libidinal de uma massa resulta
de uma quantidade de indivíduos que colocam um único objeto no lugar de seu ideal do Eu e,
em consequência, identificam-se uns com os outros em seu Eu” (FREUD, 1921/2020b, p. 72). A
identificação se desdobra verticalmente em direção ao líder, e horizontalmente entre os membros
do grupo, numa dupla ligação de ordem libidinal.
Como ensina Jacques Lacan (1953-1954/2009), o ideal do Eu é uma instância simbólica
herdeira do narcisismo, o lugar de onde eu me vejo amável. Os significantes mestres comandam a
formação do ideal do Eu para o sujeito, e o líder sustenta um significante que representa um ideal
para o sujeito.
A agressividade, para a teoria psicanalítica, situa-se na base da constituição do Eu. A
teorização lacaniana a situa no campo da especularidade imaginária, nomeada “estádio do
espelho” (LACAN, 1949/1998c). Trata-se de uma rivalidade especular com o semelhante, que
ilustra o caráter conflitivo de toda relação dual, contendo, portanto, a presença da agressividade.
Em outro escrito, A agressividade em psicanálise, Lacan (1948/1998a) afirma que o ideal do Eu
tem uma função apaziguadora, permitindo ao sujeito transcender a agressividade constitutiva da
primeira individuação subjetiva: “Ela instaura uma distância pela qual, com sentimentos da ordem
do respeito, realiza-se toda uma assunção afetiva do próximo” (p. 120). Assim, o líder, tal como
o pai, é uma figura de exceção com a qual é possível ter um traço de semelhança, mas não uma
identificação total. O líder mantém certa diferença em relação aos membros do grupo, pois, ao
ocupar o lugar de ideal do Eu, sustenta algo a mais que o grupo e também sustenta certa diferença

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entre os membros do grupo (VIEIRA, 2008). Portanto, Eu ideal e ideal do Eu são instâncias psíquicas
distintas, mas, ao mesmo tempo, inter-relacionadas.
Freud (1921/2020b) considera que é possível a substituição do líder por uma ideia condutora,
assim como é possível que uma massa seja formada a partir do ódio a um inimigo em comum.
Para ele, o ódio a determinada pessoa ou instituição pode atuar da mesma maneira unificadora
que a afeição positiva e produzir ligações afetivas semelhantes. Em O mal-estar na cultura, Freud
(1930/2020a) comenta que “sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor,
desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade” (p. 370). Assim, os vínculos de
amor permitem espaços de afirmação identitárias, e a constituição identitária é indissociável de
uma regulação narcísica da coesão social (SAFATLE, 2015).
O texto sobre a psicologia das massas também esclarece acerca do papel primário e
fundamental das identificações na economia psíquica e sobre como, a partir delas, o sujeito
encontra suas primeiras formas de nomeação. Como sabemos a partir de Lacan (1957/1998b), essa
nomeação advêm do Outro, campo da linguagem que antecede o sujeito e lhe empresta desde
seus primeiros traços. Assim, podemos compreender que os três níveis de identificação destacados
por Freud (1921/2020b) estão na dependência desse Outro da linguagem de que nos fala Lacan,
sendo a partir dele que se organiza o campo das identificações. Lacan (1961-1962/inédito) toma a
identificação como uma operação de extração significante do Outro, pelo qual o sujeito encontraria
seu complemento simbólico.
Algumas questões que instigaram Freud há um século são semelhantes às que hoje nos
inquietam, embora de modo adaptado. A que se deve o poder das massas digitais, para além do
335
35A
encontro dos corpos? Por que o afeto nessas massas se mostra tão mais exaltado? Por que uma
massa digital, ainda que mergulhada no atual oceano de informações, permanece impermeável a
qualquer argumento racional ou lógico? Finalmente, o que a mudança no nível do ethos tem a ver
com a resposta a tais indagações?

Da mutação capital à experiência da vida em plataforma

A técnica é constituinte tão indispensável da cultura em todos os tempos e lugares, que


marca a própria experiência do que é ser humano, pois está intrinsecamente ligada à nossa vida
(TAPIAS, 2003). As tecnologias são forjadas em determinado contexto histórico, social, econômico
e político. O desenvolvimento tecnológico, na modernidade, apoiou-se nas condições econômicas
que tornaram possível o modo de produção capitalista.
O nascimento do discurso científico, na modernidade, não se deu sem atravessamentos
políticos. Sobre esse ponto, no seminário sobre o laço social, Lacan (1969-1970/1992) é bastante
claro ao assinalar uma “copulação” entre o capitalismo e a ciência, apontando essa união como
base para o surgimento de um novo discurso que leva o nome do sistema econômico hegemônico.
Neste seminário, Lacan apresenta as quatro matrizes discursas – do mestre, da histérica, do analista
e universitário – do laço social2. Embora já seja mencionado nesse seminário, é apenas dois anos
depois que o discurso capitalista será formalizado (LACAN, 1972/1978), tendo a particularidade
de abolir a característica social dos demais. Trata-se do ponto de disjunção inerente ao liame
existente entre os falantes, referido ao de real de gozo3, que, por ser singular, exige que os falantes
se articulem dialeticamente, sendo o desejo o elemento que, embora guarde a marca desse real,
permite essa operação basal do laço.
Conforme Lacan (1972/2011), o discurso capitalista surge de um deslizamento do discurso
tradicional de mestria quando, a partir do surgimento do proletário, propaga-se “a forma do Estado
marxista” (p. 88). De fato, no final dos anos 1970, a ascensão do neoliberalismo sustentado pela
gramática do empreendedorismo garantiu a perpetuação do modo capitalista de circulação da
riqueza.
A globalização se acelerou com a circulação digital da informação, insumo que veio a se
tornar o novo petróleo (MOROZOV, 2018), em termos econômicos. O saber da ciência moderna,
representado pelo conhecimento no discurso universitário, impunha-se nos termos de uma tirania
(LACAN, 1969-1970/1992), para cujo exercício se exigia todo um árduo percurso de formação

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subordinado às instituições educativas. A informação, ao contrário, no contexto atual exibe-se às
massas que povoam as plataformas, sendo nesse âmbito que escoa esse petróleo.
Também para Shoshana Zuboff (2021), estamos vivendo uma mutação econômica que leva a
uma nova forma de capitalismo, que nomeia como “capitalismo de vigilância”, que perpetrado pelas
empresas de tecnologia do Vale do Silício, concentra as informações dos usuários da web, portanto,
da imensa maioria da sociedade global. Para ela, o capitalismo de vigilância reivindica algo inédito,
fora do mercado, que é a experiência humana privada; ele utiliza essa experiência, acolhida pelas
plataformas, como matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais. Alguns
desses dados são aplicados para o aprimoramento de produtos e serviços, e o restante é declarado
como superávit comportamental do proprietário, que alimenta avançados processos de fabricação
conhecidos como “inteligência de máquina” (ZUBOFF, 2021, p. 22) e manufaturado em produtos de

2 Nesta teoria, Lacan (1969-1970/1992) lança mão do matema, fórmula na qual circulam os elementos que
compõem o discurso, sendo eles: S1, significante mestre, que inaugura a rede do saber; S2, saber, que condensa
a cadeia de significantes; $, sujeito barrado pela linguagem; e objeto a, ou mais-de-gozar. Este último traz o
diferencial apresentado pela teoria dos discursos, na qual Lacan passa a compreender saber e gozo como estando
primitivamente articulados. Nesse sentido, o matema discursivo tem como ponto alto a indexação do real de gozo,
do que o objeto a faz signo.
3 A complexidade do conceito de gozo é evidente pela diversidade de sentidos que assume ao longo do ensino de
Lacan. A esse respeito, recomendamos a leitura de Os seis paradigmas do gozo, de Miller (2012). De modo geral,
o gozo pode ser compreendido como a dimensão da subjetividade que extrapola o campo do simbólico, embora
receba deste algum tratamento. É nesse sentido, inclusive, que Lacan (1969-1970/1992) irá definir a relação entre
saber e gozo como sendo de limites mútuos.
336
36A
predição que antecipam o que um determinado indivíduo faria agora, daqui a pouco e mais tarde.
Esses produtos são comercializados num novo tipo de mercado para predições comportamentais,
que são os mercados de comportamentos futuros.
Para Lima (2006), no novo contexto que se descortina para o sujeito, o fascínio provocado
por seu encontro com esse aparelhamento tem na alienação o seu principal resultado. A autora
destaca uma expansão narcísica como correlata da rarefação da dimensão simbólica, o que se
traduz, especialmente, em termos de busca do prazer imediato e desinteresse por atividades que
exigem esforço ou adiamento de satisfação. Em outro trabalho, a autora ressalta que a singularidade
tende a desaparecer na sociedade em rede, havendo uma “homogeneização de pessoas e valores”
(LIMA, 2013, p. 490). Embora as reverberações imaginárias não contemplem toda a complexidade
da experiência humana no espaço virtual, pode-se apostar que a erosão do registro simbólico
ocorrida no avançar do período moderno ganha incremento em termos de aceleração com a
implementação da lógica de plataformas.
Assim, o que o capitalista quer transmitir é uma tentativa de tamponar o vazio inerente
à divisão subjetiva que a castração faz operar. É nessa medida que tal divisão será aproveitada
para compor o semblante veiculado por esse discurso, que se baseia na ideia de que não há
nada impossível para o sujeito, desde que ele consuma. Ao contrário das quatro matrizes que se
deparam com o real e operam sempre deixando um resto inerente ao exercício da linguagem, o que
o capitalista transmite é essa ilusão que incrementa o Eu, fazendo como que ele evite defrontar-se
com a divisão que lhe é inerente. Trata-se de um discurso falacioso, pois veicula algo que não se
efetiva jamais, posto que não se pode desconsiderar que ali, de fato, não há um indivíduo, mas
um sujeito dividido em sua verdade singular de ser castrado, e que somente se faz revelar pela
metade. Desse modo, o ethos digital tem por propriedade o acolhimento do indivíduo no formato
dessas massas que funcionam sob a lógica de plataformas comandadas pelos conglomerados
informacionais (SRNICEK, 2022).
A partir dessas operações comerciais, os capitalistas de vigilância têm acumulado grande
riqueza, na medida em que as tecnologias digitais permitiram que o braço do mercado se estendesse
até o campo dos afetos, aspecto ainda não explorado da subjetividade, até então. Entretanto, tal
exploração só se tornou possível quando o âmbito da rede digital se estendeu a toda a cultura,
de modo a acolher os indivíduos como uma nova morada, delineando seus hábitos e seu caráter,
dando curso a esse novo ethos. Vejamos como isso ocorre, em termos psicanalíticos.

A metonímia de gozo como ethos da massa digital

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Se a análise freudiana nos ajuda a compreender o que está em jogo nesse fenômeno social,
ela não é suficiente para abarcar toda a complexidade que envolve a formação e o funcionamento
das massas digitais na atualidade, sendo isso o que nos conduz a investigar se estaríamos diante de
um novo ethos.
Noção básica do pensamento filosófico na antiguidade grega, o termo ethos4 diz respeito
ao conjunto de características que compõe nosso modo de ser, isto é, nosso caráter, a composição
comportamental que define atitudes, opções, estilo. Mais próximo à ideia de morada ou covil
para os animais, Henrique Lima Vaz (1999, p. 16) defende que a transposição, por Aristóteles,
do termo ethos para a práxis, faz dela a versão humana da physis, já que o filósofo interpreta “o
ethos no homem como o princípio que qualifica os hábitos (hexeis) ou virtudes (aretai) segundo
os quais o ser humano age de acordo com a sua natureza racional”. Para o autor, a realidade da
experiência, tão evidente como são também os seres da natureza, é o que constitui o objeto da
ética: “Realidade humana por excelência, histórica, social e individual e que, com profunda intuição
das suas características originais, os gregos designaram com o nome de ethos. A Ética, portanto,
nominalmente definida, é a ciência do ethos” (VAZ, 1999, p. 17).
Esse ethos, portanto, não está isento dos efeitos da coletividade, mas, antes, está
intrinsecamente ligado à cultura de determinada sociedade. É nessa medida que, no presente
estágio de desenvolvimento tecnológico da “aldeia global” de Marshall McLuhan (1911-1980)
4 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ethos. Acesso em: 22 out. 2022.
337
37A
podemos entender o ethos atual como se traduzindo e se orientando pelos efeitos dessa cultura
resultante da nova linguagem, a digital.
A cultura digital é resultado da mediação das relações sociais em todos os níveis, em virtude
do processo de digitalização em que as informações foram transcritas para a linguagem numérica e,
mais recentemente, algorítmica. Essa linguagem torna-se o meio preferencial para os fluxos sociais,
exigindo o suporte de um aparato tecnológico que, tendo se popularizado mundialmente, definiu
um complexo conjunto de dispositivos e fenômenos com forte e constante presença em nossas
vidas. Nesse sentido, a expressão “cultura digital” contempla até mesmo setores da sociedade
ainda não diretamente inseridos na linguagem dos computadores, mas que, apesar disso, não
podem prescindir de tal aparato nas operações mais cotidianas (NOBRE, 2021).
Compreendemos que, sob esse novo ethos, o contexto atual se encontra bastante modificado
em relação ao de Freud (1921/2020b). São inúmeras as transformações ocorridas no decurso
desses 100 anos, nos campos social, político, econômico e tecnológico. Entretanto, é inegável
que, nos anos recentes, a própria dinâmica das mudanças sofreu acentuada ênfase, em virtude
da aceleração provocada pela informatização. No empobrecimento do laço social decorrente da
emergência da sociedade em rede (CASTELLS, 1999), o capitalismo instala os produtos da ciência
no lugar do significante mestre, pondo em movimento a função do mais-de-gozar. Conforme nos
adverte Lacan (1969-1970/1992, p. 48), “Aí está o oco, a hiância, que de saída um certo número de
objetos vêm certamente preencher, objetos que são, de algum modo, pré-adaptados, feitos para
servir de tampão”.
Na contemporaneidade, na medida em que o sujeito se deixa capturar pela lógica do gozo
propiciada pelos objetos oferecidos pelo capitalismo, observamos um prejuízo em seu enlaçamento
com o Outro, ou seja, com a própria linguagem, que, conforme denunciado por autores diversos
(BAUMAN, 2004; MILLER, 2005), entra também em derrocada. Não sendo mais preciso desejar, por
que esperar que o Outro compareça com seu saber? Como se pode ter tudo na forma de imagens,
novidades, informações e produtos, pode-se tudo acessar com garantia de fruição, o que repercute
no desejo e na relação com o Outro como categorias inaugurais e, em grande medida, reguladoras
do laço (LACAN, 1969-1970/1992). Como sabemos, essa regulação fica a cargo do supereu, instância
simbólica máxima que se herda da relação edipiana, como teorizado por Freud.
No Seminário 20, entretanto, Lacan (1972/1985) indicará o supereu a partir de outra
perspectiva, ao apontar o gozo como correlato da castração, introduzindo uma guinada que atualiza
a função do supereu em termos de seu papel na presentificação dos conteúdos culturais:
Mas o que é o gozo? [...]. Aqui eu aponto a reserva que esse

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campo do direito implica: direito ao gozo. O direito não é o
dever. Nada força ninguém a gozar, exceto o supereu. O
supereu é o imperativo do gozo: Goze! (LACAN, 1972/1985,
p. 14)

Desse modo, o supereu surge não mais como uma instância proibitiva do gozo, mas como
um ordenador, cuja função, a se pensar em sua vertente inconsciente, pode ser exercida ainda na
forma de uma tirania. No Seminário 17, Lacan (1969-1970/1992) havia apontado a relação entre
saber e gozo como sendo de limite mútuo. Ora, se o saber já se exercia como tirania, ainda sob
efeito da repressão da sexualidade em tempos modernos, pode-se considerar que, no contexto do
discurso capitalista, o que se traduz nesses termos é essa injunção de gozo. A repressão, inclusive,
não passa da face visível da operação que Freud chegou a reconhecer como mais originária e,
portanto, estrutural para o psiquismo, ou seja, a do recalcamento, surgido em função dos avanços
na direção da virada para sua segunda tópica, como nos alerta Lacan (1973/2003b) em Televisão.
É nesse texto que vemos, ainda, Lacan (1973/2003b) atribuir ao supereu a curiosa
característica da “gulodice”. Essa nova perspectiva em relação à instância deve ser também tomada
em referência à mudança de rumo do simbólico para o real em seu ensino e que, em grande
medida, tem de fundo uma releitura sobre a “virada” de Freud, como se sabe amplamente: “A
gulodice pela qual Freud denotou o supereu é estrutural – não é um efeito da civilização, mas um
‘mal-estar (sintoma) na civilização’” (p. 528, grifos do autor). Dessa forma, pode-se compreender
como, na medida em que o discurso capitalista suprime a marca de impossibilidade inerente ao laço
338
38A
social, deixa aberto o caminho para uma regulação superegoica que franqueia o exercício do gozo
e não mais o proscreve ou trata. Daí se poder vislumbrar a circularidade infinita entre os quatro
termos do matema, antes impossibilitada em virtude do real indexado e diante do qual a verdade
circunstancial se mostrava impotente (LACAN, 1969-1970/1992).
Na atualidade da linguagem digital, o saber inconsciente rechaçado no âmbito da ciência
moderna se apresenta ainda mais deteriorado diante de um maior afluxo de gozo, que ganha
incremento em virtude do hiperinvestimento na informação, essa deriva mais leve e fluida do saber
(NOBRE, 2020). Assim, uma lógica metonímica de gozo ganha uma aplicação prática em função de
seu acoplamento à informação, e isso ocorre justamente porque ela se insere no nicho do saber,
que não se presta mais a fazer limite ao gozo.
A partir daí, pelo exercício desse saber mediatizado, esse hipermestre pode fazer retornar
ao sujeito os objetos, para manter o moto-contínuo da fruição de seu gozo, sempre parcializado, no
sentido do consumo – este sempre efêmero, descartável –, seja de elementos virtuais fartamente
disseminados nas plataformas digitais, seja de objetos que se tornam cada vez mais personalizados.
Com novos hábitos, novos caracteres são forjados sob esse novo ethos, que tem a linguagem
numérica, hoje também algorítmica, como pano de fundo.

As massas como comunidades de gozo ou enxames de Uns

O uso político do aparato tecnológico sobre as massas formadas digitalmente parece algo
consolidado em nossa sociedade atual. A ausência de vínculos referidos a uma figura central de
liderança é outro dado importante dessas massas sem corpos, embora visceralmente marcadas
pela ordem do afeto.
Se Freud (1921/2020b) descreveu o processo de formação das massas via identificação, no
contexto atual acentua-se o declínio da função do ideal do Eu. Como vimos, isso tem por efeito uma
promoção máxima do objeto a como mais-de-gozar, que Lacan (1970/2003a) já havia assinalado
em Radiofonia. Essa ascensão determina um funcionamento social regido por promessas de gozo,
que rapidamente tomam a forma das injunções superegoicas. Assim, de uma política sustentada
pelo simbólico passamos para uma orientação pela urgência de gozo, o que o mercado não apenas
acompanha atentamente, mas estimula de modo cirúrgico, isto é, personalista.
Se a identificação é o modo de responder a uma precariedade constitutiva do sujeito, ela
pode ser pensada tanto no nível de um complemento significante como também referida a uma

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materialidade relacionada ao gozo. Se o Outro da nossa época não mais se apresenta de forma
consistente e unitária, já não é possível dele extrair um significante com sentido estável sobre o qual
apoiar a identificação. Assim, estamos às voltas com a pluralização dos significantes-mestres, o que
faz com que Lacan (1972/1985) insira a metáfora do enxame [essaim] de S1 [es un] para referir-se
a esse significante primaz que, a um só tempo, impregna de palavra, de saber, o corpo de gozo. O
enxame é esse Um que se encarna no corpo no qual repousa um saber inconsciente, saber Outro,
que permite enlaçarmo-nos, via linguagem, com o que nos cerca.
A mesma figura do enxame é empregada pelo filósofo Byung-Chul Han (2018) para referir-
se ao excesso de informação que caracteriza a cultura digital. Para ele, a crise da representação,
em nosso tempo, tem como corolário a dissolução do sujeito no enxame digital, o que provoca
um achatamento da linguagem e da cultura, que se vulgarizam. Nessa mudança de paradigma,
a informação torna-se instrumento de uso político, impondo uma lógica de urgências que põe
toda ênfase no presente, anulando “o futuro, [que] enquanto tempo político, desaparece” (HAN,
2018, p. 39). Nesse sentido, a pura positividade da informação impede o movimento dialético,
que deve comportar também a negatividade necessária ao laço social e ao avanço subjetivo e,
consequentemente, do conjunto social. Tudo se torna explícito, imediato e transparente, não
cabendo o recurso ao Outro, à negociação via palavra, à interpretação, e, portanto, ao simbólico.
No século XXI, a possibilidade de digitalização do laço social tornou possível que processos
de identificações paralelas se multiplicassem de forma considerável e sem qualquer necessidade
de encontro entre os corpos. Acompanhado da ascensão do mercado, o declínio da autoridade
acentuou as formas de segregação que se multiplicam, obedecendo à lógica das comunidades
339
39A
de gozo que proliferam a cada dia. Deparamo-nos com o fenômeno das massas digitais, que
assumem diversas tonalidades a partir de suas especializações. Existem aquelas formadas por
seguidores de figuras políticas, celebridades, influenciadores digitais, jogos ou outros aspectos do
entretenimento, assim como aquelas formadas a partir do ódio a um inimigo em comum. Existem
as massas constituídas a partir de pensamentos ou ideias comuns a determinados grupos políticos
ou ideológicos, bem como aquelas que se formam em redor de nomeações diagnósticas, como
TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), depressão, bulimia, anorexia, TOC
(Transtorno obsessivo-compulsivo), dentre outras.
O crescimento exponencial da intolerância às diversidades de todas as ordens, fanatismo,
racismo, negacionismo, extremismo, assim como os linchamentos e a cultura do cancelamento,
não deixam dúvidas sobre a capacidade do digital de potencializar também as mazelas inerentes
ao laço. Além disso, recentemente, a pandemia de covid-19 acelerou ainda mais a digitalização das
relações sociais, com a intensificação de todos os seus efeitos.
Seguimos cada vez mais desaparelhados de um Outro consistente, atordoados por um
enxame que se faz presente nas diversas nomeações, categorias, diagnósticos, etiquetas, ofertas
que levam à ilusão de uma possível homogeneização de gozo sob a forma de identidades, que
apagam toda singularidade. O laço social, hoje, pode ser pensado fundamentalmente como
estando articulado aos modos de gozo, produzindo comunidades de gozo. E é na medida em que
esse estado de coisas reflete sobre o sujeito e sua relação com os elementos do laço, que podemos
compreender a vigência de um novo ethos, marcado pela exigência que caracteriza o gozo em sua
lógica de excesso.
Freud (1921/2020a) sustenta que o afeto é o amálgama das massas, seja ele o amor, o ódio
ou qualquer outro. Assim, quando aborda um tipo de massa formada em redor de um inimigo
comum, ressalta que o afeto de ódio é o que está em sua base. Seja como for, trata-se de um afeto
desmedido, que tende a se mostrar de forma mais crua, inapto a um tratamento via saber. Nesse
sentido, revela-se mais próximo ao campo do gozo que à dialética do desejo, na qual sujeito e Outro
estão mutuamente implicados, com efeitos para o laço (LACAN, 1969-1970/1992).
Certamente, este ethos gozante não se dá isento de novas formas de mal-estar. Embora certa
expansão narcísica seja um dos efeitos da web, isso não abarca todos os aspectos da subjetividade,
pois é justamente sobre o real do gozo, seja via olhar ou voz, que o algoritmo introduz algo de
inédito em relação às demais tecnologias, na medida em que alcança os modos de gozo de cada
um, ou pelo menos se aproxima disso. Mas, esse algo de novo introduzido pelo ethos digital não
afeta apenas a dimensão do indivíduo. Como campo propício à expansão das massas, os ambientes

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digitais envolvem relações de força, em seus mais variados níveis: político, econômico e afetivo.

Algoritmos, “bolhas” e as novas dimensões do poder sobre as massas

No final dos anos 2000, o novo ethos, nossa morada digital, passou a contar com um
dispositivo matemático que, funcionando de modo bastante simples, inseriu uma perspectiva
estatística radicalmente diferente e bem mais eficaz que os modelos tradicionais desse campo.
Com a entrada em cena dos algoritmos digitais, um novo modo de governança passou a orientar
ações de indivíduos e grupos no horizonte informacional, com decisivos efeitos comportamentais
e políticos.
Embora estejamos vivendo sob a égide da transparência (HAN, 2017) e do espetáculo
(DEBORD, 1997), tais relações de forças atuam de modo contrário no que diz respeito aos
conglomerados informacionais. Operando de forma velada no manejo dos dados de cada usuário
da web, as plataformas atuam por meio das “bolhas digitais”, noção amplamente divulgada na
mídia e que diz respeito a grupos formados algoritmicamente a partir dos interesses comuns dos
usuários.
Em meados dos anos 2010, os escândalos envolvendo redes sociais e agências de publicidade
revelaram que diversas eleições ao redor do mundo tinham sido influenciadas por grupos que,
com o auxílio de empresas como o Facebook, teriam manipulado a opinião dos eleitores. A
empresa Cambridge Analytica, juntamente a empresários multimilionários, como Steve Bannon e
340
40A
Alexander Nix, seriam responsáveis pela criação de um sistema complexo envolvendo a psicologia
comportamental e o uso de dados organizados por programadores. Esse feito alterou o rumo de
relevantes fatos históricos atuais, como as eleições que elegeram Donald Trump presidente dos
Estados Unidos; o plebiscito do Brexit, que levou a Grã-Bretanha a sair da União Europeia; e as
eleições no Brasil, que levaram a extrema-direita ao poder, com Jair Bolsonaro. Foi a partir de dados
coletados dos usuários do Facebook que milhares de pontos de informação foram analisados e
classificados num sistema de pontuações pela Cambridge Analytica. Em seguida, tais dados foram
vendidos para a clientela política que elaborou suas estratégias de manipulação dos usuários da
rede na própria rede (CADWALLADR, 2019).
Essa situação demonstrou a forma de comando via internet que não é lançada por um
líder, mas funciona por meio do dispositivo algorítmico, que hoje opera em toda a web. Em tais
comandos, não há qualquer compromisso com padrões éticos, não cabendo checagem sobre a
veracidade de fatos supostamente ocorridos, o que torna os ambientes da internet propícios para a
disseminação de notícias falsas, que vão se sofisticando com o passar dos anos.
Para Antoinette Rouvroy (2019), a constante adaptação dos ambientes aos perfis individuais
e coletivos produzidos pela inteligência de dados é um modo de governança de grupos sem
precedentes. Como salienta a autora, as operações de coleta, processamento e estruturação de
dados com o propósito de data mining [mineração de dados] e profiling [criação de perfis] tornaram
a vigilância de dados [dataveillance] cruciais para atividades de setores públicos e privados em
domínios tão variados quanto a prevenção da criminalidade, a gestão da saúde, o marketing ou o
entretenimento.
Então, na lógica das massas digitais, o mecanismo algorítmico opera na formação dessas
“bolhas”, selecionando e direcionando conteúdos a serem apresentados aos usuários nos feed de
notícias das redes sociais e das plataformas de serviços, como Netflix e afins. Com recurso ao perfil
de consumo capturado pelos algoritmos – abastecidos de dados pessoais, geográficos, padrões
de uso dos aplicativos, dentre outros –, as plataformas passam a circunscrever um ambiente
específico para cada um, moldado a partir de seu reflexo. Com isso, o indivíduo passa a receber
conteúdos semelhantes àqueles que ele buscou anteriormente, sendo “apresentado” a pessoas
que compartilham ideias e pensamentos próximos aos seus, e vice-versa (ROUVROY, 2019).
Os capitalistas de vigilância (ZUBOFF, 2021) descobriram que os dados comportamentais mais
preditivos provêm da intervenção no jogo, de modo a incentivar, persuadir, sintonizar e arrebanhar
comportamentos, em busca de resultados lucrativos. Na fase atual da evolução do capitalismo de
vigilância, os meios de produção estão subordinados a meios de modificação comportamental cada

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vez mais complexos e abrangentes, influindo tanto do ponto de vista econômico quanto do político.
As tecnologias são pensadas visando determinados fins. Fruto de muito investimento
e planejamento, atualizam-se em processos de design, interfaces, mídias, estruturas de links,
aplicativos, códigos para a escrita e leitura de programas operacionais, além da própria estrutura
de aparelhos e cabos que formam uma rede complexa de elementos diversos. Em linhas gerais,
podemos dizer que tudo é planejado para que as pessoas fiquem o máximo de tempo possível
usando os dispositivos tecnológicos. Cada rede social tem seus objetivos e regras, cada fórum de
discussão tem suas características peculiares, voltando-se para um grupo específico de pessoas
(NOBRE, 2020). As notícias falsas, que sempre existiram, circulam mais em meio digital porque
se adéquam bem aos modelos de negócios baseados em cliques, que foram aperfeiçoados pelos
gigantes extrativistas de dados. As fake news somente são lucrativas se forem amplamente
compartilhadas, o que justifica o fato de se difundirem com tanta rapidez (ZUBOFF, 2021).
Assim, nas “bolhas digitais”, o usuário se vê numa sala de espelhos que reforça sua visão
de mundo, sendo essa captura algorítmica possível justamente porque incide sobre o narcisismo
de cada um. Há um sentimento de pertencimento dentro das bolhas, como se as informações e
as interações que fazemos com nossos semelhantes fossem o respaldo para podermos continuar
agindo daquela maneira. Dentro de nossas bolhas, encontramos conforto e estamos protegidos
por uma rede criada para nos passar a sensação de que sempre estamos com a razão. Dessa forma,
tornamo-nos cada vez mais reféns de nós mesmos, admirados com nossa própria identidade
(SIBILIA, 2008).
Christian Dunker (2021) assinala que um processo de aceleração narcísica vem ocorrendo
341
41A
na sociedade digital. A massa digital é contagiante e redutora. Nela, ficamos mais vulneráveis à
agressividade, ao ódio, às intimidações. No entanto, é preciso reconhecer que, para além do jogo
de espelhos, há uma zona de poder assimétrico que atua nas redes. A expertise em ciência e
design das plataformas visa dar causa a um circuito fechado que alimente a inclinação individual
do usuário para uma fusão com o grupo, reforçando também a tendência a compartilhar, de forma
exagerada, suas informações pessoais. As pessoas anseiam por pertencer a um grupo, e uma série
de dispositivos está planejada para que todos se sintam estimulados a interagir, a postar fotos e
outras informações.
O capitalismo digital atua de forma insidiosa na formação e condução das massas digitais.
Para Zuboff (2021), trata-se de uma nova arquitetura global de modificação comportamental que
não visa corpos dóceis, mas previsíveis, em que cada decisão, escolha ou necessidade possa ser
prevista, antecipada e satisfeita. Esse capitalismo visa sequestrar e comercializar o nosso futuro
para nós mesmos.
O objetivo maior dos capitalistas de vigilância é alimentar os algoritmos que serão capazes
de agarrar os jovens de forma efetiva e não mais soltá-los (ZUBOFF, 2021). Algumas plataformas,
como o Facebook ou o Instagram, geram uma inflação do perfil, ocasionando maior vigilância
corporal. Não se trata apenas de oferecer um espelho para refletir a própria imagem, mas de uma
criação artificial projetada a serviço do bem maior do capital de vigilância. Os jovens nas redes
não estão somente entre os seus pares. Eles se juntam aos mestres da vigilância, os cientistas de
dados, programadores, especialistas em aprendizagem de máquina e profissionais da tecnologia
de design mais sofisticados do mundo. Encontros entre amigos adolescentes são incorporados a
um projeto de engenharia comportamental de escopo e ambição planetários. As redes sociais, com
seus likes, emojis, contagem de caracteres e hashtags, seriam alguns dos dispositivos empregados
para a produção de comportamentos massificados.
Para Rouvroy e Berns (2015), na medida em que não reconhece nada além de dados
infraindividuais e perfis supraindividuais, evitando confrontos com sujeitos tanto física quanto
linguisticamente, o governo algorítmico pode ser compreendido como o ponto culminante de
um processo de dissipação das condições institucionais, espaciais, temporais e linguísticas de
subjetivação. Para Rouvroy (2019), um governo algorítmico molda o futuro, afetando indivíduos
e grupos sobre o modo de lançar respostas de forma reflexa, erradicando as condições de crítica.
Segundo Zuboff (2021), esse extrativismo de dados tem consequências políticas e
econômicas. A autora chama atenção para o fato de que estamos diante da construção de uma
forma de poder inédita, caracterizada por uma extrema concentração de conhecimento que não

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passa pela supervisão da democracia.
Ainda do ponto de vista político, Achille Mbembe (2021) considera que as formas com as
quais as expressões de poder são verificadas na contemporaneidade podem ser referidas aos
conceitos de biopoder e de necropoder. Para o autor, o sistema econômico da atualidade, aliado
ao desenvolvimento tecnológico, estende uma forma de brutalidade contra a natureza, o meio
ambiente e os mais vulneráveis. Em linhas gerais, trata-se de definir quem é importante e quem
não é, e o que fazer com aqueles que são definidos como não importantes para a sociedade.
Nesse sentido, o capitalismo de vigilância e a biopolítica, associados à necropolítica, são forças de
dominação que atuam sobre as subjetividades, por meio dos dispositivos tecnológicos digitais e das
massas que eles dão causa.
Talvez o efeito mais nefasto observado nos últimos anos seja mesmo a tendência à
desagregação do tecido social causada pela distribuição desenfreada de fake news, em função
da descoberta das facilidades do uso das redes por grupos conservadores, fundamentalistas e de
inspiração nazifascistas. Sob a lógica das plataformas, multiplicaram-se os canais de profusão da
propaganda fascista, tal como analisada por Theodor Adorno (2018) em artigo publicado em 1951,
por ocasião dos trinta anos do estudo de Freud (1921/2020b). Para além da riqueza de sua leitura
do texto freudiano, nesse trabalho que tinha como mote a emergência do fascismo nos Estados
Unidos em meados do século, Adorno (1951/2018) coloca-se uma questão que ultrapassa o escopo
dos textos de Le Bon e de Freud. O autor indaga-se sobre os motivos de a psicologia das massas
ser mais peculiar ao fascismo que à maioria dos demais movimentos que buscam apoio de grupos,
como os de inspiração liberal ou progressista. Parece pertinente, portanto, retomar esse ponto para
342
42A
uma leitura atual, especialmente em relação ao surgimento do bolsonarismo, modelo brasileiro de
inspiração abertamente fascista.
Segundo Adorno (1951/2018), a irracionalidade dos objetivos do líder fascista parece
contraditória com os interesses das massas, uma vez que um constante risco de guerra e destruição
é inerente ao fascismo e contrário, portanto, ao interesse geral, o que as massas sabem, ao menos
em nível pré-consciente. Entretanto, não é por argumentos racionais que os líderes fascistas
ganham a adesão das massas; ao contrário, a propaganda fascista orientada psicologicamente deve

[...] mobilizar processos irracionais, inconscientes e


regressivos. Essa tarefa é facilitada pelo estado de espírito de
todos aqueles estratos da população que sofrem frustrações
sem sentido e desenvolvem, por isso, uma mentalidade
mesquinha e irracional. O segredo da propaganda fascista
pode bem ser o fato de que ela simplesmente toma os homens
pelo que eles são – os verdadeiros filhos da cultura de massa
estandardizada atual, amplamente despojados de autonomia
e espontaneidade – em vez de estabelecer metas cuja
realização transcenderia o status quo psicológico não menos
que o social. A propaganda fascista tem apenas de reproduzir
a mentalidade existente para seus próprios propósitos – não
precisa induzir uma mudança –, e a repetição compulsiva,
que é uma de suas características primárias, estará em acordo
com a necessidade dessa reprodução contínua (ADORNO,
1951/2018, p. 17).

Conforme Adorno (1951/2018, p. 17), a propaganda fascista apoia-se tanto numa estrutura
total quanto em cada traço particular de caráter autoritário, resultante da “internalização de
aspectos irracionais da sociedade moderna”, o que permite que ela se torne “racional no sentido da
economia pulsional”. Nesse ponto, cabe indagar se, nessa “racionalidade pulsional”, não podemos
espreitar aquela que abre espaço para um livre curso da dimensão de gozo, embora sob as balizas
algorítmicas, tal como propomos em relação ao ethos digital.
Em relação aos líderes, Adorno (1951/2018) sustenta que na medida em que se conscientizam
e se apropriam da psicologia de massa, ela tende a deixar de existir, sendo nesse ponto que a

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contribuição da psicanálise é mais notável. Segundo o autor, Freud define o “reino da psicologia”
pela supremacia da dimensão do inconsciente que, essencialmente negativa, precisa ser conhecido,
em “que o que é isso deveria se tornar eu” (p. 19). Ora, embora atuando preferencialmente por essa
via negativa do inconsciente, a propaganda fascista faz justamente o caminho inverso ao que é
proposto por Freud em relação ao inconsciente:
A emancipação do homem do domínio heterônomo de seu
inconsciente seria equivalente à abolição de sua “psicologia”.
O fascismo promove essa abolição no sentido oposto, pela
perpetuação da dependência em lugar da realização da
liberdade potencial, pela expropriação do inconsciente
por meio do controle social em lugar de tornar os sujeitos
conscientes de seus inconscientes (ADORNO, 1951/2018, p.
19).

Sob esse ethos do gozo estendido ao âmbito digital, esse processo ganha – para além do
melhor alcance – uma maior nitidez. É por serem tocados em algo muito íntimo e singular, que
os sujeitos se veem convocados a atitudes bizarras, ridículas ou desumanizadoras, como as que
presenciamos nas manifestações de atos fascistas hoje abundantes no Brasil. E isso ocorre a despeito
do grande acesso ao conhecimento e à informação que circulam na atualidade, diferentemente do
que estava disponível às massas fascistas do século passado. Entretanto, é justamente em função
do efeito personalista dos dispositivos digitais que, aliado ao excesso de conteúdos e à incapacidade
343
43A
humana de avaliar, julgar e escolher diante desse automatismo acelerado, que essa diferença faz
efeito contrário.
Empregando a expressão “demônios interiores”, Gustavo Dessal (2019) ressalta que eles não
foram criados pela tecnologia, mas que ela pode “despertá-los, reforçá-los, multiplicá-los, ampliá-
los, explorá-los e projetá-los em narrativas capazes de gerar fenômenos de identificação coletiva” (p.
105-106, tradução nossa). O autor chama atenção para o fato de que, pelo menos até o momento,
a tecnologia não insere nada que venha do exterior, de fora do sujeito, como fosse um implante.
A tecnologia de comunicação difere dos métodos clássicos
de evangelização, doutrinação, manipulação de consciências
e criação de seguidores para uma determinada causa ou fim,
pelo fato de que sua capacidade de alcance é praticamente
infinita, difícil de controlar e com o acréscimo de que pode
ser implementada por meio de técnicas de automação que
garantem uma reprodução viral de mensagens e notícias
(DESSAL, 2019, p. 106, tradução nossa).

A eloquência do adjetivo “viral” (DESSAL, 2019, p. 87) é proporcional à magnitude de seu


alcance, medido não somente pelo tamanho da massa de usuários da rede que o recebem e
visualizam, mas também pelos efeitos que tal conteúdo produz na forma de perceber a estrutura
ficcional da realidade, bem como na potencial capacidade de monetização. Apesar de certa
percepção das massas em relação à impostura do líder, aspecto destacado por Adorno (1951/2018),
isso não impede que elas o acompanhem em seus desvarios, encenando um entusiasmo e
participando de sua performance.
É por meio dessa encenação que atingem um equilíbrio entre
seus desejos instintuais continuamente mobilizados [...]. É
provavelmente a suspeita do caráter fictício de sua própria
“psicologia de grupo” que torna as multidões fascistas tão
inabordáveis e impiedosas. Se parassem para raciocinar por
um segundo, toda a encenação desmoronaria, e só lhes
restaria entrar em pânico (ADORNO, 1951/2018, p. 19).

A rigor, podemos compreender que a linguagem digital concorre para potencializar os


efeitos dos excessos, movimentando as massas, muitas vezes, por lógicas absurdas e, para o que
quer que seja, atuando precisamente em direção ao ser de gozo, já disperso do manancial simbólico

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do Outro.

Considerações Finais

Para a psicanálise, os efeitos mais deletérios desse processo de intensas mudanças estão
relacionados à adesividade ou à apropriação da experiência do inconsciente pelos dispositivos
tecnológicos que deram causa à linguagem digital. Na medida em que nos fazem operar sob essa
nova linguagem, é também para nos convocar a morar nesse novo ethos de fruição que, funcionando
pelo excesso, pela aceleração, termina por inflacionar o campo do gozo. A partir daí, torna-se passo
fácil um maior desligamento do sujeito em relação às balizas simbólicas, com prejuízo ao laço, à
dimensão política como um todo.
É trivial ceder aos encantos dessa modalidade lúdica e pouco exigente do saber, que tão
facilmente consegue implementar a lógica que se aproxima ao mais-de-gozar. Pode-se dizer
que esse saber hipermoderno que se coloca como informação assumiu o tom de uma sedução.
Instalando-se no lugar da regulação superegoica do saber inconsciente, a informação fornece um
modo mais direto de fruição pelo sujeito, que fica à deriva de seu gozo.
Do ponto de vista da psicanálise, essa exigência de gozo está no cerne daquilo que, a partir
da cultura digital, o discurso capitalista pretende transmitir ao franquear um marco regulatório
para o laço social via informação, na medida em que busca elidir a castração. Estando o sujeito já
capturado na vertente do gozo e isento dos ritos e das obrigações anteriores para o exercício do
344
44A
saber, trata-se, antes, de uma apropriação do mais-de-gozar pelo hipermestre do mercado, do que
propriamente de uma anulação de seus efeitos. Desse modo, o empuxo ao gozo que caracteriza
os excessos que tanto nos arrebatam e assustam parece nos alienar de nós mesmos, alterando
nossa relação com tempo e espaço e deixando impressões danificadoras também para o laço social,
impondo um ritmo de vida alucinante, ele próprio tirânico. No estilo capcioso de seduzir com suas
benesses, o discurso capitalista engendra um modo de vida que algoritmiza o próprio gozo, que
pode ser contabilizado em praticamente todos os âmbitos da experiência humana, sem deixar
brechas para escape.
A história parece nos mostrar que os atuais fenômenos de massa são da mesma ordem
que aqueles que se observavam no século passado. A psicologia de cada indivíduo – ou sujeito
– é a mesma que se projeta para as massas, tal como o próprio Freud (1921/2020b) observou.
Entretanto, se hoje funcionamos sob um ethos de gozo estimulado no um a um pela cultura do
número – e, ainda, algoritmizado – o laço com o Outro, estando ainda mais precário, é atravessado
pelas ferramentas tecnológicas em dimensões antes pouco exploradas, como as do domínio do
afeto. Então, mais isolados no laço, talvez estejamos mais suscetíveis a identificações marcadas
pelo gozo, menos pela dialética desejante, imersos que estamos a esse novo ethos.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.
Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

347
47A
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA PSICANÁLISE SOBRE A
ANTROPOLOGIA CULTURAL E UMA ANÁLISE DE CASO DO
MOVIMENTO DAS QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU

THE IMPORTANCE OF THE STUDY OF PSYCHOANALYSIS ON CULTURAL


ANTHROPOLOGY AND A CASE ANALYSIS OF THE MOVIMENTO DAS
QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU

Virginia Maria Lima Barbosa 1


Vitor Hugo Abranche de Oliveira 2
Eloy San Carlo Maximo Sampaio 3

Resumo: O estudo aborda a importância da psicanálise sobre a cultura na sua acepção antropológica, trazendo um estudo
de caso do Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu, comunidade tradicional que vêm lutando pela proteção jurídica
de suas tradições. O objetivo é demonstrar a relação da psicanálise com os conflitos sociais e culturais, para alcançar
o resultado é explorado o conceito de cultura dentro do contexto antropológico e sua relação com os conhecimentos
tradicionais, explorando as ideias freudianas sobre a instituição cultural, o indivíduo e suas relações em grupos. Ao final
apresenta o estudo de caso do Movimento das Quebradeiras de Coco babaçu, demonstrando que a teoria da psicanálise
tem relação com os conflitos culturais vivenciados na atualidade. Concluindo que uma civilização organizada só existe
quando impõem limites aos instintos hostis (pulsões) e naturais do homem, por isso criam instituições e ordens com
incumbência de defender a coletividade contra o próprio indivíduo.

Palavras-chave: Psicanálise. Cultura. Antropologia. Conhecimento Tradicional.

Abstract: The study addresses the importance of psychoanalysis on culture in its anthropological sense, bringing a case
study of the Babaçu Coconut Breakers Movement, a traditional community that has been fighting for legal protection of
their traditions. The objective is to demonstrate the relation of psychoanalysis with social and cultural conflicts. To achieve
the result, the concept of culture within the anthropological context and its relation with traditional knowledge is explored,
exploring Freudian ideas about the cultural institution, the individual and its relations in groups. At the end it presents the
case study of the babassu coconut breakers’ movement, demonstrating that the theory of psychoanalysis is related to the
cultural conflicts experienced today. It concludes that an organized civilization only exists when they impose limits to the
hostile instincts (drives) and natural instincts of man, for this reason they create institutions and orders with the task of
defending the collectivity against the individual himself.

Keywords: Psychoanalysis. Culture. Anthropology. Traditional knowledge

1 Graduada em Direito (pela Unifev), Especialista em Administração (pela UNIRP) e Mestranda em História das Populações Amazônicas (pela UFT).
Atualmente é professora Substituta no Instituto Federal do Tocantins - IFTO. Lattes: https://lattes.cnpq.br/0940370732673476. ORCID: https://
orcid.org/0000-0003-3299-8402. E-mail: virlima82@gmail.com
2 Doutor em história pela Universidade Federal de Goiás, com período de estudos na l’Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales e bolsista
da Capes. É professor do curso de História da Universidade Federal do Tocantins e do Programa de Pós-graduação em História das Populações
Amazônicas (UFT). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3540558249390894. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1460-8992.
E-mail: oliveira.vha@mail.uft.edu.br

3 Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. É Professor do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Tocantins.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8054440122552778. E-mail: eloysancarlo@mail.uft.edu.br
Introdução

O presente artigo tem como finalidade principal abordar a importância do estudo da


psicanálise sobre a cultura na sua acepção antropológica, trazendo uma análise de caso do
Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu, comunidade tradicional que vêm lutando pela
proteção jurídica de suas memórias, práticas e identidades culturais, demonstrando que a
psicanálise contribuiu para compreender comportamentos humanos e motivadores que ensejaram
os conflitos sociais e culturais.
Peter Gay (1989), em sua obra “Freud para historiadores”, cita que o psicanalista acreditava
que a consciência humana era uma “herança social”, pois aquela recebe influência dos pais,
professores e da cultura, sendo que esta transfere para o homem a opinião pública.
E é baseada nessa herança social que as mulheres quebradeiras de coco babaçu vêm buscando
junto às instituições governamentais a proteção jurídica de seus conhecimentos tradicionais.
Para um indivíduo existem muitas formas de se relacionar com o outro, neste sentido Gay
(1989) faz uma explanação da interpretação de Freud sobre o individual e o coletivo, pois para a
mente humana o outro pode ser visto ou como modelo, ou como auxiliar, ou como adversário,
concluindo que não existe separação entre a psicologia individual e social, ou seja, para o conceito
freudiano todo homem está envolvido com o grupo, que pertence.
A cultura está tão ligada ao ser humano que podemos concluir que sem ela não haveria
civilização, neste sentindo, “[...] o indivíduo é a cultura escrita em letras minúsculas, e a cultura, o
indivíduo escrito em letras maiúsculas [...]” (FREUD, 1923, apud Gay, 1989, p. 124).
Freud (1923) conclui que:
[...] toda a história da cultura demonstra apenas os métodos
que a humanidade adotou para dominar os seus desejos
insatisfeitos sob condições mutáveis, ainda mais modificados
pelo progresso tecnológico, desejos algumas vezes admitidos,
algumas vezes frustrados pela realidade (apud Gay, 1989, p.
121).

Sendo assim, estudar as formas de contribuição da psicanálise para a cultura na sua acepção
antropológica justifica-se pela necessidade de oferecer informações sobre o funcionamento da
mente do indivíduo, facilitando a compreensão da vida em sociedade, pois quando se compreende
o comportamento humano e a natureza que o cerca é possível perceber os motivos que formam as

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características que definem uma determinada sociedade.
Assim, os conceitos da psicanálise voltados para a antropologia cultural têm a finalidade de
compreender os mistérios do psiquismo humano relacionando-os com padrões de comportamento,
crenças e costumes dos grupos sociais. Diante disso, nota-se que os indivíduos passam seus
conhecimentos tradicionais de geração em geração formando uma cultura popular ou grupal, mas
qual seria a ligação dos conhecimentos tradicionais com a cultura e qual a relação destes com a
psicanálise?
Assim, considerando que as ideias freudianas visam analisar comportamentos humanos e
as formas de expressão em grupo, chegamos ao problema central deste estudo, que é analisar a
importância da psicanálise para a cultura, apresentando um estudo de caso para exemplificar de
forma efetiva a relação da psicanálise com grandes conflitos atuais vivenciados pela sociedade e
que muitas vezes são consequências de culturas homogêneas e dominantes. Para isso, o estudo
tem como objetivo identificar a importância da psicanálise para a antropologia cultura, sendo que
para alcançar este resultado é preciso conceituar o que é cultura dentro do contexto antropológico
e sua relação com os conhecimentos tradicionais. Explorar as ideias freudianas sobre a instituição
cultural, sobre o indivíduo e suas relações em grupos. E finalmente apresentar um estudo de caso do
Movimento das Quebradeiras de Coco babaçu para demonstrar que as descobertas da psicanálise
sobre o funcionamento da mente contribuíram para compreender comportamentos humanos e
elementos motivadores que ensejaram os conflitos sociais e culturais da atualidade.

349
49A
Metodologia

O presente estudo consiste numa pesquisa aplicada de caráter descritivo, que visa estudar a
importância da psicanálise sobre a cultura na sua acepção antropológica, trazendo uma análise de
caso do Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu, uma comunidade tradicional que diante da
dificuldade de manter suas identidades, perpetuar, coexistir, resistir e praticar sua cultura dentro
de seu Estado se viu diante da necessidade de unir forças para alcançar seus direitos culturais por
meio de um instrumento legislativo.
Pesquisa descritiva é aquela que analisa, observa, registra
e correlaciona aspectos (variáveis) que envolvem fatos ou
fenômenos, sem manipulá-los. Os fenômenos humanos ou
naturais são investigados sem a interferência do pesquisador
que apenas “procura descobrir, com a precisão possível, a
frequência com que um fenômeno ocorre, sua relação e
conexão com outros, sua natureza e características” (CERVO;
BERVIAN, 1983, p.55).

Este estudo é construído baseado em bibliografias, nesse sentido, os resultados serão


apresentados partindo da coleta de informações de fontes secundárias, utilizando os conceitos e
teorias de Sigmund Freud, conhecido como pai da psicanálise e um dos maiores estudiosos da
mente e do comportamento humano. Também serão abordados artigos e documentos de outros
autores, que exploraram a psicanálise, a cultura, a antropologia e os conhecimentos tradicionais
das quebradeiras de coco babaçu, dando subsidio para mais diretrizes e informações sobre o tema.

A cultura na sua acepção antropológica e sua relação com os


conhecimentos tradicionais.
Formas de comportamento, hábitos, saberes ou verdades que distinguem um grupo social
dos demais, conjunto de aprendizagens e instruções adquiridas através da convivência com seus
antepassados são designações dadas pelos mais diversos dicionários à palavra cultura, contudo, o
termo cultura é amplo e teve diferentes acepções no decorrer da história, a seguir vamos aprofundar
neste conceito para entender sua importância para natureza humana.

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A cultura é um dos braços da ciência que estuda a antropologia, por isso é preciso
compreender a abrangência desta ciência, o termo advém do vocabulário grego, que significa
homem (antrophos) dentro de um estudo específico (logos), em outras palavras, a análise da
humanidade em seu aspecto natural, que estuda o homem e sua natureza ditando “[...] quais são
os limites conhecidos da experiência humana até o momento [...]” “[...] e o que é compartilhado
por toda humanidade” (FROST; HOEBEL, 2006, p.3).
Os antropologistas analisam os seres humanos em todos os locais que existem traços de
sobrevivência, como regiões áridas, florestas, tentando encontrar vestígios que tragam informações
relevantes de períodos passados, mas também nos ambientes e civilizações atuais, o estudo
mantém sua concentração no homem e na cultura, visando entender como as nações passadas
viveram e como a cultura se desenvolveu (Ibidem, 2006).
O historiador Peter Buker (2005) reafirma essa ideia quando apresenta a cultura de acordo
com uma disciplina que é dividida em várias especialidades, como: a história de uma nação;
memórias; lutas; ideologias; entre outros, para ele tudo que envolve o homem faz parte da cultura,
fazendo nascer o conceito de multiculturalismo em diversos países.
Já Freud (1923), citado por Peter Gay (1989, p. 121) também traz suas acepções em relação
a cultura, considerando o folclore, a linguagem e a música criações geniais adotadas pelos grupos
que formam características culturais que são passíveis de mudanças no decorrer da história da
civilização, em razão do progresso tecnológico:
O psicanalista ainda cita que:
350
50A
toda a história da cultura demonstra apenas os métodos
que a humanidade adotou para dominar os seus desejos
insatisfeitos sob condições mutáveis, ainda mais modificados
pelo progresso tecnológico, desejos algumas vezes admitidos,
algumas vezes frustrados pela realidade.

Em relação as características citadas pro Freud, os autores Souza e Pereira (2014) afirmam que
são sui generis e surge no homem por meio de conhecimentos transmitidos por seus antepassados
proporcionando uma integração com o ambiente (território) onde vive, com o passar do tempo elas
vão se transformando em tradições e estabelecem uma memória coletiva capaz de construir uma
identidade que causa um sentimento de pertencimento a um povo ou nação, com isso é possível
perceber que a cultura só é legitimada pelos povos quando é conduzida para um ponto em comum.
Diante dessas afirmativas é possível perceber que tais característica ou comportamentos
humanos formam aquilo que denominamos de cultura, tal processo só é possível quando o
passado é compartilhado e repassado para o presente, portando, a visão de Freud no momento
que afirma que a história da cultura demonstra apenas os métodos que os homens adotaram e
aqui eu arrisco usar o termo inventaram para dominarem seus desejos insatisfeitos em relação
aquilo que eles não podem mudar, é coerente com ideologias de outros autores que estudam o
fenômeno cultura, para Benedict Anderson (2008) homens que possuem as mesmas características
e comportamentos formam comunidades culturais consideradas imaginadas (ANDERSON, 2008)
e que são regularizadas por tradições inventadas segundo Hobsbawn e Ranger (2006), indivíduos
carregam a imagem de afinidade mútua, mesmo que não conheçam ou interajam pessoalmente
com todos os participantes da mesma ideologia, mas todos compartilham dos mesmos interesses
e aspectos de identidade.
As ideias de comunidade imaginada e tradição inventada coadunam com a visão freudiana,
pois tais características não deixam de ser “inventadas” por determinado grupo com intuito
de garantir proteção, tanto social quanto espiritual, e garantir a sobrevivência diante doutras
características culturais dominantes dentro de um Estado.
As afirmações acima mostram que a cultura vem evoluindo no decorrer dos tempos, e os
grupos vão criando formas de proteger suas tradições e conhecimentos como forma de reprimir
seus instintos hostis (animais) e naturais, sendo que para a psicanálise isso vem acontecendo no
decorrer da história da civilização, envolvendo neste processo diversos ramos sociais, conforme
será apresentado no item seguinte.
Com a base de conceitos consolidada e a sucinta explanação sobre ideias freudianas sobre a

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cultura, passamos a demonstrar a relação da cultura com os conhecimentos tradicionais, para que
possamos entender os motivos das lutas de algumas comunidades em busca da proteção jurídica.
O conhecimento tradicional é espelho das tradições culturais de um determinado grupo,
por isso é uma ferramenta de construção da cultura, a maneira que eles são inventados, praticados,
conservados e expandidos promovem forte influência na formação da identidade cultural de seus
detentores (PINTO, 2004), neste sentido, considerando que tais conhecimentos fazem parte dos
elementos que formam a identidade cultural de um grupo, então, podemos afirmar que eles são
uma especialidade da disciplina cultural como apregoou Peter Buker (2005).
A identidade cultural também é analisada pelo Freud, que entende que o homem renunciou
sua singularidade para viver em grupo, elaborando conhecimentos e formas de limitar seus instintos
animais, inventando instituições (órgãos) com competência para defender a coletividade contra
o outro, que ainda não foi educado segundo suas doutrinas e que possuem impulsos agressivos
visando conquistar e dominar financeiramente todos os recursos naturais existentes na terra
(FREUD, 1927).
A análise de Freud sobre essas instituições inventadas pela civilização para defender a
coletividade contra o outro, pode ser compreendida no entendimento de Yussef (2013), ele afirma
que o Estado (Brasil) visando uma homogeneização de seu povo impôs uma identidade dominante
e majoritária para fortalecer características “únicas e próprias” de seu território, o que ocasionou
uma crise de identidade entre comunidades de diferentes características culturais, portanto essas
lutas atuais pela preservação das identidades culturais são consequências disso. Porém, para o Autor
tudo isso foi inviável, pois os fluxos migratórios trouxeram para o Brasil variedades de formas de
351
51A
vida e valores culturais, que trouxeram movimentos sociais como tratados internacionais voltados
para os direitos culturais dessas comunidades minoritárias, colaborando com a invenção do direito
cultural, que nada mais é do que medidas de proteção jurídica para salvaguardar os conhecimentos
tradicionais desses povos.
Portanto, é compreensível que existe uma relação entre as ideologias da psicanálise e a
formação da identidade cultural e a busca pela proteção jurídica desses elementos, passaremos
para o estudo um pouco mais aprofundado da psicanálise sobre a cultura para que possamos
concluir de que forma ela vem contribuindo na esfera cultural, pois as teorias freudianas tem o
intuito de aclarar dilemas vivenciados pela sociedade que abrangem diversos ramos sociais.

O estudo da psicanálise sobre a antropologia cultural

Para compreender a relação entre o homem, a sociedade e a cultura, Freud analisou


de forma minuciosa a psique humana de forma individual, fazendo uma ponte para a vida do
indivíduo na coletividade, buscando identificar as razões que estimulam o ser humano e obter
certas características comportamentais na vida em sociedade. Assim, para aprofundar este estudo
é necessário discorrer sobre as principais obras de Freud, que abordaram a cultura e a sociedade
como tema central.
Na obra Totem e Tabu, Freud (1913-1914) afirma que o complexo de Édipo (fase em que
a criança sente uma forte atração pela figura materna e se rivaliza com a figura paterna) é uma
estrutura social universal e toda e qualquer cultura deve se fundar a partir da lei moral de proibição
do incesto e parricídio. Portanto, para a psicanálise tanto o tabu do incesto, quanto o tabu do
parricídio são necessários para organizar a ordem social e cultural na civilização.
Já na obra “Psicologia de Massas e análise do eu” [1921] (1981), Freud afirma que o indivíduo
não existe por si só, mas confronta de forma subjetiva e objetiva com outros indivíduos e com
objetos externos que muitas vezes são subjetivados pelo homem, e aqui fazemos uma analogia com
o termo memória coletiva criado por Halbwachs (1990), que constitui a referência que o indivíduo
encontra no mundo externo para formar sua memória individual, a memória coletiva é baseada em
símbolos, imagens, histórias e narrativas do passado que contribuem para formar a identidade do
indivíduo com o grupo, a memória individual sempre está fundamentada no ambiente social em
que vive e os marcos sociais do presente, além dos territórios, a memória coletiva é constituída
por outros elementos, como: personagens ou personificações capazes de construir uma relação de
força mútua na comunidade; e eventos vividos ou não por determinado indivíduo e que o grupo

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tem interesse social ou político em valorizá-los.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, ainda na obra “Psicologia de Massas e análise do eu”
[1921] (1981), nas palavras de Freud:
Quando um indivíduo renuncia à sua singularidade num grupo
e deixa que os outros membros o influenciem através da
sugestão, fica-se com a impressão de que ele o faz por sentir
necessidade de estar em harmonia com os outros e não em
oposição a eles, de modo que talvez, afinal, ele o faça ihnen
zu Liebe.1

Na obra “O futuro de uma ilusão” Freud (1927-1931) propõe uma reflexão sobre a essência
da cultura, abordando desde a criação da cultura, passando pelo funcionamento das instituições
organizacionais, indo até as perspectivas com o futuro das civilizações.
Na mesma obra, Freud é resistente em distinguir cultura de civilização, pois existe uma
íntima abrangência entre eles, citando dois aspectos importantes sobre estes conceitos:
Por um lado, inclui todo conhecimento e capacidade que o
homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza
e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades
humanas; e por outro, inclui todos os regulamentos

1 Ihnen zu Liebe termo em alemão que na língua portuguesa significa por amor a eles (FREUD, 1921)
352
52A
necessários para ajustar as relações dos homens uns com os
outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível
(FREUD, 1927, p.4).

Portanto a teoria freudiana (1927) afirma que para existência de uma civilização com relações
organizadas é necessário limitar os instintos hostis (animais) e naturais do homem, adotando
meios de coerção e formas de repressão destes instintos existentes na natureza humana, assim as
instituições e as ordens têm a incumbência de defender a coletividade contra o próprio indivíduo,
que possui impulsos agressivos visando conquistar a natureza e distribuir riquezas.
A referida afirmativa de Freud pode ser retratada na sociedade atual, por meio dos
princípios criados pelo Estado no ramo do direito público, que define a coerção como “Supremacia
do interesse público”, tal princípio significa, que quando houver divergência entre um particular e
um interesse público coletivo, deve prevalecer o interesse público.
Já a repressão dos instintos animais é retrata na atualidade no momento que o Estado
manifesta sua intenção de coibir a delinquência, através de sanções repressivas ou preventivas,
indicando os atos humanos que constituem responsabilidade e culpa, como exemplo temos o
Código Penal (Decreto-lei nº 2.848 de 1940).
Voltando para o texto “O futuro de uma ilusão” Freud chama atenção para certas coerções e
repressões que só se aplicam a certos grupos sociais, isso faz com que surja cobiça entre os grupos
menos privilegiados, instigando conflitos sociais.
Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a
satisfação de uma parte e de seus participantes depende
da opressão da outra parte, parte esta talvez maior - e este
é o caso em todas as culturas atuais-, é compreensível que
as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa
hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam
possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem
mais do que uma quota mínima (FREUD, 1927, p.8).

Com isso, o autor compreendeu que o sentimento de pertencer a uma cultura traz uma
satisfação de natureza narcísica, fazendo o homem acreditar que existe uma cultura ideal,
induzindo comparações e atos de hostilidade com comunidades diferente. Inclusive ele deu nome
a este fenômeno de “narcisismo das pequenas diferenças”, justificado no fato de um grupo/país se
incomodar com diferenças culturais do outro grupo/país, transformando em conflitos irremediáveis.

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Está afirmação vai ao encontro com outros conceitos da obra “O mal-estar na civilização”
(1930) onde o autor fez importantes considerações sobre o indivíduo, para ele o homem possui
a “hostilidade mútua primária dos seres humanos”, o termo usado significa que o homem nem
sempre é uma criatura gentil, pois muitas vezes expressa sua agressividade quando se sente
ameaçado ou atacado pelo outro. “Em consequência dessa mútua hostilidade primária dos seres
humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração” (FREUD,
1930, p. 70).
Mas, mesmo diante desta resistência diante do outro, o ser humano não vive sozinho e
assim, Freud afirma que existe uma força que supera esta hostilidade, levando o homem a conviver
em grupo, está força está relacionada com o amor pela autoridade, que é constituída na figura
paterna, conforme relações feitas pelo autor na obra “Psicologia de Massas e análise do eu” [1921].
Com isso, a figura paterna traz um forte vínculo entre os membros do grupo, “[...] é por
compartilharem o amor pela mesma figura paterna que eles se sentem parecidos e próximos uns
dos outros.” (FREUD, 1921)
Sabe-se que todo indivíduo é parte de seu grupo, ligado por meio de identificações como
raças, religiões, costumes, educação, entre outras características que formam a cultura de uma
sociedade. Considerando a importância dessas características, é preciso aprofundar no conceito de
religião, pois para a psicanálise é a característica fundamental para a formação cultural de um povo.
A religião tem uma íntima relação com a cultura, chegando a ser considerado pelo psicanalista
um predicado cultural, pois as ideias religiosas exercem grandes influências sobre a sociedade, o
que para Freud seria um problema psicológico capaz de fortalecer e tornar efetiva uma nação e
353
53A
suas doutrinas.
Na obra “O futuro de uma ilusão”, Freud traz o que seria o ponto inicial da religião na
civilização, afirmando que o medo dos fenômenos da natureza e a incerteza do destino pode
trazer desamparo para os homens, fazendo-os buscar uma proteção superior. “A isso acrescentou-
se um segundo motivo: o impulso a retificar as deficiências da civilização, que se faziam sentir
penosamente” (FREUD, 1927, p.14).
Para o estudioso a religião é uma ilusão, pois são preceitos e afirmações sobre fatos da
realidade trazidos por nossos ancestrais e que não descobrimos sozinhos, assim:
Temos que acreditar porque nossos antepassados acreditaram.
Mas nossos ancestrais eram muito mais ignorantes do que nós.
Acreditavam em coisas que hoje não nos é possível aceitar,
e ocorre-nos a possibilidade de que as doutrinas da religião
possam pertencer também a essa classe (Ibidem, 1927, p.17).

E autor vai mais além, levantando a hipótese de que as ideias que geram as regulamentações
políticas também pudessem ser uma ilusão, afinal são ideias de organização social advindas de
nossos antepassados. Esta afirmativa se torna interessante quando se relembra das formas de
governo mais conhecidas na história, como democracia, monarquia e republicano, todas têm
ligações diretas com ensinamentos e lutas dos antepassados de cada civilização.
Para o autor, o sistema doutrinário da religião só tem dado certo até os dias atuais por
causa da necessidade de manter o indivíduo sob controle até que ele esteja pronto para viver na
civilização, moldado segundo os preceitos daquela comunidade.
Freud vai confirmar isso com mais vivacidade e trazer contrapontos na obra “O mal estar na
civilização (1930 [1929])”, para o autor a civilização buscou a regularização das relações sociais para
que o indivíduo não pudesse agir de forma arbitrária.
Desta forma, a civilização só se torna possível com a junção dos indivíduos mais fortes,
formando uma comunidade que passa a colocar os interesses da coletividade acima dos, individuais,
formando assim uma cúpula capaz de dominar o indivíduo.
Com isso o desenvolvimento da cultura vai sendo baseado nas leis que abrangem os direitos
da comunidade. “A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de
que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo [...]” (FREUD, 1930, p.61)
Diante desta ideia de necessidade de controle do indivíduo por meio de um rígido sistema
doutrinário religioso e instituição de leis que trazem a imagem de justiça por defender a coletividade,
Freud faz fortes críticas e contrapontos na obra “O mal estar na civilização (1930 [1929])”, afirmando

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que a educação religiosa limita o pensamento crítico e intelectual do homem, levantando vários
questionamentos:
Como podemos esperar que pessoas que estão sob domínio
de proibições de pensamento atinjam o ideal psicológico,
o primado da inteligência? [...] Não é verdade que os
dois principais pontos do programa de educação infantil
atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento
sexual e na influência religiosa prematura? (FREUD, 1927, p.
17).

Assim, Freud (1930) afirma que o desenvolvimento/evolução cultural está comprometido


por causa da resistência de uma comunidade em deixar suas crenças e ensinamentos de seus
antepassados e se voltar para atualidade e para novas descobertas científicas e tecnológicas.
As transformações da opinião científica são desenvolvimentos,
progressos, e não revoluções. Uma lei que a princípio foi tida
por universalmente válida, mostra ser um caso especial de uma
uniformidade mais abrangente ou é limitada por outra lei, só
descoberta mais tarde; uma aproximação grosseira à verdade
é substituída por outra mais cuidadosamente adaptada, a
qual, por sua vez, fica à espera de novos aperfeiçoamentos
(Ibidem, p. 36).
354
54A
Analisando a sociedade atual e sua organização baseada nos três poderes (executivo,
legislativo e judiciário) é possível concluir que as ideias freudianas sobre o desenvolvimento cultural
permanecem, pois as civilizações continuam buscando meios de controlar os atos instintivos do
homem como forma de proteger a sociedade, através de doutrinas religiosas e instituições de leis
que garantam os direitos fundamentais ou a proteção jurídica da coletividade.

A psicanálise e o estudo de caso do Movimento das Quebradeiras de


Coco Babaçu
Para compreendermos este subtítulo é preciso apresentar alguns fatos e conceitos instituídos
no decorrer da história, como a conferência ECO-92, da qual o Brasil sediou e participou, uma
convenção das Nações Unidas realizada na cidade do Rio de Janeiro em 1992, neste evento foram
ofertados e discutidos muitos tratados/documentos com a finalidade de garantir a preservação
ambiental, o desenvolvimento sustentável e os direitos fundamentais dos povos tradicionais.
O país assinou nesta conferência o tratado da agenda 21, que consiste num plano de
ações criado para abranger todas as sociedades do planeta, suas estratégias têm como objetivo
promover a preservação ambiental e cultural, conciliando programas de justiça social e eficiência
econômica. (GADOTTI, 2003), e baseado neste documento o Brasil ficou responsável por criar
programas efetivos, capazes de garantir os direitos expressos no referido documento, então, criou-
se a “Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais” por
meio do Decreto nº 6.040/2007, nesta norma consta o conceito de povos tradicionais, um termo
fundamental esta parte do estudo:
 Art. 3o  Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-
se por:

I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente


diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam
territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição; (BRASIL, 2007).

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Diante desse conceito, entende-se que os conhecimentos tradicionais formam os povos
tradicionais, neste sentido, Freud (1927) afirma que essas características formam a cultura de
um grupo, são fatos da realidade trazidos por nossos ancestrais e que influenciam a forma de
comportamento do indivíduo, é uma habilidade que o homem adquiriu com objetivo de controlar
as forças da natureza e extrair a riqueza desta para satisfazer suas necessidades (Ibidem, 1927).
Como foi apresentado no item anterior, no Brasil muitas comunidades tradicionais
minoritárias têm vivido grandes lutas visando garantir a perpetuação de suas memórias e tradições
aqui na terra, como é o caso das Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu no norte do país,
abrangendo especificamente os Estados do Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins.
Essas mulheres chegaram com suas famílias na referida região e ocupando áreas de florestas
que aparentemente não tinham proprietários e nem cercas de delimitação, foram consolidando
seus conhecimentos tradicionais sobre os recursos naturais disponíveis em grande quantidade
naquelas terras, como os babaçuais. (MONTEIRO, 2015)
As mulheres e suas filhas eram responsáveis pela coleta e quebra do coco babaçu, retirando
o óleo e outras matérias-primas para preparo dos alimentos, sendo que o restante era vendido em
feiras para a subsistência da família. (AYRES, 2007)
Na década de 70, em consequência da Lei nº 2.979/1969 chamada de Sarney de Terras,
surgiram muitos indivíduos e que se diziam fazendeiros e declarando proprietários destas terras
tradicionais, houve tentativas de cercamento e expropriação da comunidade tradicional, aqueles
que estavam na posse da terra resistiram a estas tentativas. (MONTEIRO, 2015). Os conflitos
355
55A
foram inevitáveis entre os indivíduos que usando a agressividade ambicionavam alcançar o
reconhecimento da propriedade privada, que é uma criação da civilização que visa organizar as
terras de um território.
Aqui a psicanálise pode ajudar a compreender estes conflitos, pois Freud (1930) chama
atenção sobre a propriedade privada na obra “O mal estar da civilização”, primeiramente ele cita
que o regime comunista defende a ideia que “se a propriedade privada fosse abolida, possuída em
comum toda a riqueza e permitida a todos a partilha de sua fruição, a má vontade e a hostilidade
desapareceriam entre os homens” (p.70). Depois o autor refuta está afirmativa, argumentando
que a agressividade do indivíduo está presente desde os tempos primitivos, e que se abolisse a
propriedade privada da civilização apenas alteraria o foco do indivíduo em relação ao poder e
influência, que são mal geridos pela agressividade humana.
Se eliminarmos os direitos pessoais sobre a riqueza material,
ainda permanecem, no campo dos relacionamentos sexuais,
prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais intensa
antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob
outros aspectos, se encontram em pé de igualdade (FREUD,
1930, p. 71).

Diante dos conflitos, as terras com babaçuais ficaram sob o domínio dos fazendeiros, que
tinham o título da propriedade, sendo que as mulheres quebradeiras de coco babaçu ficaram
impedidas de acessar estas terras e colher os frutos necessários para sua subsistência.
É interessante que a psicanálise já fazia referência sobre estas possíveis coerções e
repressões, que muitas vezes são feitas pelas civilizações por meio de leis que atendem apenas um
grupo social, deixando outras comunidades de fora, fazendo surgir conflitos sociais entre grupos
menos privilegiados.
Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a
satisfação de uma parte e de seus participantes depende
da opressão da outra parte, parte esta talvez maior - e este
é o caso em todas as culturas atuais-, é compreensível que
as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa
hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam
possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem
mais do que uma quota mínima (FREUD, 1927, p.8).

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Diante do conflito instalado, as mulheres quebradeiras de coco babaçu tiveram que criar
um movimento de união com objetivos em comum para alcançar seus direitos diante de uma
sociedade voltada para a cultura capitalista. As quebradeiras de coco babaçu se organizaram em
forma de associação para que ganhassem força perante instituições e poderes do Estado.
A associação é a organização do indivíduo em grupo, assim, trazendo fatos importantes sobre
isso, Freud (1921) cita Le Bon em sua obra “Psicologia das massas e análise do eu”, sobre as massas
(grupos) que buscam uma liderança e sentem seguros se tornando mais instintivos, deixando a
repressão de lado. “O primeiro é que o indivíduo na massa adquire, pelo simples fato do número,
um sentimento de poder invencível que lhe permite ceder a instintos que, estando só, ele manteria
sob controle” (p.20).
E foi com este sentimento de poder invencível que as quebradeiras de coco babaçu vêm
buscando perpetuar suas tradições por meio da “Lei do Babaçu Livre”, visando acabar com o
processo de devastação dos babaçuais e garantir o livre acesso e o uso comum das palmeiras
(NETO, 2017).
Estudos científicos comprovaram que as palmeiras de babaçu quando manejadas
adequadamente podem ser preservadas junto com o pasto usado na pecuária dos grandes
latifúndios sem comprometimento, além de proteger os animais do sol quente. (AYRES, 2007). No
entanto, os proprietários dos grandes latifúndios não reagiram bem com a ideia de uma suposta
possibilidade de instituir uma exploração dos babaçus (recursos naturais) de forma conjunta com
as quebradeiras de coco.
356
56A
Quanto mais as mulheres lutavam pelo coco, mais os
latifundiários intensificavam as restrições de acesso aos
babaçuais e ao seu desmatamento, elevando a pressão sobre
as famílias que se viam cada vez mais coagidas (AYRES, 2007,
p. 98).

A ciência e a tecnologia comprovaram a efetividade do cultivo dos babaçuais junto com os


pastos da pecuária, mas mesmo diante dos estudos científicos um dos grupos não aceitou essa
possibilidade, neste fato é interessante apresentar uma visão de Freud (1927) que se relaciona com
este assunto. “As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as
construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação.” (p.4)
Nesta afirmativa o psicanalista estava se referindo sobre esta modernidade e racionalidade
que a ciência e a tecnologia trazem para a civilização, podendo salvar o mundo de muitas tragédias,
porém também possuem o condão de destruir a humanidade, como exemplo as guerras mundiais
instaladas na sociedade.
Voltando para as lutas das quebradeiras de coco babaçu, atualmente está tramitando na
Câmara dos Deputados Federais o Projeto de Lei nº 2.334/2015 que dispõe sobre a Política Nacional
para o Manejo Sustentável e Plantio de Espécies Nativas da Flora Brasileira e restringe o corte de
espécies da flora nativa e determinar o usufruto comunitário das matas naturais constituídas de
palmeiras de babaçu pelas quebradeiras de coco babaçu que as exploram em regime de economia
familiar.
Este projeto de lei está na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
com o parecer pela aprovação aguardando movimentação desde o ano de 2019, para que então
possa ser aprovado em plenário e enviado ao Governo para ser sancionado, só assim as mulheres
quebradeiras de coco terão acesso livre às florestas de babaçuais e poderão usufruir de forma
conjunta com os grandes fazendeiros. (BRASIL, 2015)
Este contexto social apresentado, narra um drama vivenciado por grupos que possuem
divergências culturais, de um lado mulheres que buscam o direito à terra e ao babaçu, à valorização
de suas memórias tradicionais e à pratica da agroecologia, e do outro, fazendeiros que visam o
direito de propriedade e a liberdade de trabalhar e cultivar em suas terras com liberdade e poder de
decisão. Mas tem também o terceiro lado, aquele da instituição (órgão governamental) responsável
por criar e gerir as normas do Estado, visando os direitos da coletividade.
Diante disso, compreende-se que o homem possui impulsos agressivos visando conquistar a
natureza e distribuir riquezas e por isso a civilização foi criada para abranger regras necessárias para

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04


ajustar as relações dos homens uns com os outros, assim as instituições e as ordens são formadas
por identificações e possuem a incumbência de defender a coletividade contra o próprio indivíduo.
Contudo, estas instituições podem ser corrompidas por interesses especiais das classes dominantes,
e induzidas por regras criadas para servir aos seus próprios propósitos. (GAY, 1989)
Então, como dirimir tantos conflitos culturais que estão eivados de impulsos inconscientes?
Talvez essa pergunta não tenha uma resposta exata, para Huntington (1998), cientista
político, as diferenças culturais são mais importantes que a política e a economia, pois desde que
findou a Guerra Fria, o que vem ocorrendo no mundo é um “choque de civilização” pelas distintas
características culturais.
Já Freud (1927) explica que os conflitos sociais são inerentes à civilização, é uma dimensão
inconsciente do homem, este possui ambivalência entre amor e ódio, entre vida e morte, todos
esses sentimentos são cultivados, coibidos e reinterpretados (sublimação) durante as gerações,
produzindo culturas, para o autor só é possível ultrapassar o mal estar das culturas a partir do
trabalho sob as pulsões (desejos, anseios) para que a ordem social seja mantida.
Ademais, o indivíduo precisa superar as gerações anteriores, pois cada pessoa deve se
formar intelectualmente tanto nos aspectos conscientes e intencionais do aprendizado, quanto nos
aspectos inconscientes, pois a fase infantil é superada pela fase adulta, é preciso acabar com os
extintos hostis, este fenômeno é chamado por Freud (1927) de “educação para realidade”.
O ser humano não está desamparado, pois o conhecimento científico, apesar de seu
poder destruidor, tem proporcionado soluções sustentáveis para os conflitos sociais e culturais da
civilização.
357
57A
Considerações Finais
Sendo assim, estudar sobre a importância da psicanálise para a cultura justifica-se pela
necessidade de analisar as relações sociais, estas descobertas abrem caminhos para compreender
os impulsos que atrapalham a convivência em grupos, como o caso da agressividade, mas também
oferece explicações coerentes sobre o funcionamento da mente humana.
No decorrer deste estudo foi possível perceber que Freud usa os fenômenos sociais e
culturais para entender a dimensão do inconsciente do indivíduo, para o autor a cultura passa a ser
uma fonte de interpretação do inconsciente humano.
Assim, na visão de Freud, o homem instituiu a civilização para proteger a si mesmo de seus
instintos animais, as defesas culturais criam normas, princípios morais, ritos religiosos, poder de
polícia, costumes matrimoniais, entre outras formas de acalmar o indivíduo das pulsões criadas
pelas suas necessidades.
A visão da psicanálise sobre a cultura é refletida no caso apresentado neste trabalho das
mulheres quebradeiras de coco babaçu, onde mulheres se uniram para garantir a perpetuação de
suas memórias por meio da “Lei do Babaçu Livre”.
Portanto, as ideias de Freud estão vivas na sociedade atual, os grupos são formados por
identificação, os líderes são escolhidos pelo sentimento de segurança (o mesmo da paternidade),
ficando fortalecidos para reivindicar seus direitos perante as instituições, estas por sua vez trabalham
para oprimir instintos e assegurar direitos da coletividade.
Contudo, como já citado anteriormente, o homem não está abandonado, uma educação
voltada para a realidade e para o conhecimento científico pode proporcionar soluções sustentáveis
para os conflitos sociais e culturais da civilização.

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nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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Recebido em 16 de Janeiro de 2023. Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04
Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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59A
CONVERSAÇÕES E ESCREVIVÊNCIAS: A CONSTRUÇÃO DE
ESPAÇOS DE FALA DA NEGRITUDE NA UNIVERSIDADE

CONVERSATIONS AND ESCREVIVÊNCIA: THE CONSTRUCTION OF


BLACKNESS SPEECH SPACES AT THE UNIVERSITY
João Otávio Vieira Carvalho Almeida 1
Fábio Santos Bispo 2
Lais Andrade Vitório 3
Luizane Guedes Mateus 4
Isabele Colares da Silva 5
Raiani Dercilia da Silva 6
Julia Cibele Gomes Santos 7
Resumo: Este trabalho tem como objetivo relatar a experiência do Coletivo Interestadual Ocupação Psicanalítica - por
uma clínica antirracista, na construção de um espaço de escuta, produção e compartilhamento de narrativas e vivências
entre estudantes e trabalhadores negros da Universidade Federal do Espírito Santo sobre a experiência de ser uma pessoa
negra no espaço universitário. Apresentamos a proposta de articulação da metodologia das conversações, de inspiração
psicanalítica, com as escrevivências, de Conceição Evaristo, fundamentadas no resgate das vozes e memórias das mulheres
negras. Trata-se de um espaço onde a palavra, a fala e a escuta se entrecruzam e ressaltam a torção que implica o encontro
do singular e do coletivo. Ao inaugurar esse espaço, abrimos uma fresta para a escuta do mal-estar advindo do racismo e
para a possibilidade de criar novos caminhos para uma universidade inclusiva e antirracista.

Palavras-chave: Conversação. Escrevivência. Psicanálise. Antirracismo.

Abstract: This work aims to report the experience of the Coletivo Interestadual Ocupação Psicanalítica - for an anti-racist
clinic in the construction of a space for listening, production and sharing of narratives and experiences among black
students and workers of Universidade Federal do Espírito Santo. We present the proposal of articulating the methodology
of conversations, inspired by psychoanalysis, with Escrevivências, by Conceição Evaristo, based on the rescue of black
women’s voices and memories. It is a space where speech and listening intertwine and highlight the torsion that implies the
meeting of the singular and the collective. By opening this space, we opened a window for listening to the malaise arising
from racism and for the possibility of creating new paths for an inclusive and anti-racist university.

Keywords: Conversation. Escrevivência. Psychoanalysis. Antiracism

1 Graduando em Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica e do grupo de pesquisa
Infâmias Resistências. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7522199569260591. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-0346-630X. E-mail: joaootavio64@
hotmail.com

2 Doutor em Psicologia, Pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor do
Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES, integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7078731129867747. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0488-6163.E-mail: fabio.bispo@ufes.br

3 Psicóloga graduada pelo Centro Universitário Salesiano e integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/5391430658865852. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8083-2901. E-mail: laissvitorio1@gmail.com

4 Doutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia da UFES e integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/4878991655516101; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3643-7645. E-mail: luizane.mateus@ufes.br

5 Graduanda de Psicologia pela UFES, integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica e do PET Psicologia UFES.Lattes: http://lattes.cnpq.
br/0844163116867755; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4654-6688. E-mail: isabele.colares02@gmail.com

6 Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo e integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica. Lattes http://lattes.cnpq.
br/1085888350812997; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8468-3766. E-mail: raianidasilva14@hotmail.com

7 Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo e integrante do coletivo Ocupação Psicanalítica. Lattes:http://lattes.cnpq.
br/9788192840233930. ORCID:https://orcid.org/0000-0002-2430-6157.E-mail: juliacgomes.santos@gmail.com
Introdução

Este relato tem como objetivo compartilhar a experiência do Coletivo Interestadual


Ocupação Psicanalítica - por um clínica antirracista na construção de um espaço de escuta,
produção e compartilhamento de narrativas e vivências entre estudantes negras e negros assistidos
pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Cidadania (Proaeci) da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), aberto também a servidores e pesquisadores de pós-graduação da UFES, sobre a
experiência de ser negro na universidade. Apresentamos brevemente o coletivo, a demanda que nos
foi encaminhada, a metodologia composta pelo dispositivo psicanalítico das conversações (MILLER
et al., 2005; MENDONÇA, 2017) e pelas escrevivências (EVARISTO, 2020), que fundamentaram
nossa prática inicial de ciclos de conversa em torno de questões levantadas por autoras negras
como Neusa Souza, Grada Kilomba e Conceição Evaristo.
O Coletivo Ocupação Psicanalítica tem como objetivo principal o enfrentamento de
desigualdades e privilégios raciais (UFES, 2021) por meio de ações voltadas à escuta e ao acolhimento
da população negra, assim como o apoio à formação de profissionais e estudantes de Psicologia
segundo a prática da psicanálise lacaniana (UFES, 2021). Formado por psicanalistas, psicólogos e
estudantes dos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia, o coletivo atua
segundo os eixos de: oferta clínica antirracista em ato e pesquisa, construção e difusão do saber
inovador em psicologia clínica antirracista e formação continuada para uma clínica antirracista
(GUERRA et al., 2022; GOMES-SANTOS et al., 2022; VITÓRIO et al., 2022).
No Espírito Santo, foco deste relato, o coletivo está vinculado ao Departamento de Psicologia
da UFES, trata-se de um projeto de extensão com práticas voltadas ao acolhimento e à escuta da
população negra do Território do Bem1 e outros bairros da Grande Vitória, por meio de atendimentos
individuais e encontros coletivos, realizados também com coletivos e estudantes da universidade,
principalmente aqueles atendidos pela assistência estudantil, trabalhadores universitários e
interessados (VITÓRIO et al., 2022; GOMES-SANTOS et al., 2022).
Em março de 2021, o Coletivo iniciou sua parceria com a Diretoria de Ações Afirmativas e
Diversidade (DAAD/Proaeci). Foi realizada uma roda de conversa com servidores da Pró-Reitoria
que lidam diretamente com a assistência estudantil. Eles falaram sobre as frequentes narrativas
de sofrimento de estudantes negros referentes ao ingresso e à permanência na universidade
– o processo de tornar-se negro, os silenciamentos e a ausência de espaços que possibilitem o
compartilhar de suas questões com seus semelhantes. Desse encontro, surgiram estratégias
e práticas para lidar com as questões levantadas, como a supervisão e o encaminhamento de

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atendimentos psicológicos e a realização conjunta de atividades de formação e acolhimento.
Destacamos, neste relato, uma dessas ações, que foi inspirada em um trabalho anterior
realizado pela psicanalista Sônia Rodrigues da Penha (integrante do Ocupação-ES) no Projeto Raiz
Forte - Espaço de Criação. O primeiro ciclo de conversações na universidade aconteceu de forma
remota e síncrona, devido ao período pandêmico e ao sistema de Ensino Aprendizagem Temporário
Emergencial (Earte) da UFES. Como orientação metodológica, foi utilizado o dispositivo clínico de
conversações (MILLER et al., 2005; MENDONÇA, 2017) em torno do livro “Tornar-se Negro”, de
Neusa Santos Souza (2021), articuladas à prática de escrevivência, proposta pela escritora Conceição
Evaristo (EVARISTO, 2020; GOMES-SANTOS et al., 2022; COSTA et al., 2021). O segundo ciclo de
conversações foi realizado presencialmente, considerando o retorno das atividades presenciais
após longo tempo de distanciamento social, a partir das experiências vivenciadas no primeiro
ciclo. Seguindo a mesma estratégia de ressaltar o nome de uma escritora negra, foi proposta uma
chamada com o título “Grada Kilomba: quem pode falar na universidade”, evocando justamente a
abertura para ocuparmos, com a fala e com o corpo, espaços de ruptura do silenciamento.
Em ambos os encontros escutamos e experienciamos, enquanto mediadores, a importância
desse espaço de forma horizontal, com o cuidado de não assumir uma postura de saber e avaliação
da experiência de cada um, inspirados na lógica do dispositivo clínico psicanalítico de livre circulação
da palavra. Adotamos a estratégia de registrar e escrever afetos e questões teóricas, clínicas e

1 O Território do Bem é composto por nove bairros da cidade de Vitória/ES - Bonfim, Da Penha, Consolação,
Floresta, Jaburu, Itararé, Engenharia, Gurigica e São Benedito.
361
61A
vivenciais que foram despertadas durante os encontros para que pudessem mobilizar também a
construção de um saber a ser compartilhado. Assim, partindo de uma fundamentação psicanalítica,
dialogamos também com outros saberes e dispositivos da negritude, sobretudo com a orientação
política das escrevivências. Como escrevem Guerra et al. (2022, p. 264): “[...] urge atualizar a teoria
e a práxis de quem sustenta o lugar de escuta, potencializando o acolhimento da voz que enuncia o
mal-estar colonial que recai sobre os corpos de modo discrepante”.

Metodologia

Esta sessão visa detalhar a metodologia dos dois ciclos de conversações supracitados.
Os dois encontros foram divulgados, via e-mail, pela DAAD/Proaeci e pelo Coletivo Ocupação
Psicanalítica aos estudantes assistidos, também houve divulgação nas redes sociais do Programa
de Educação Tutorial Psicologia (PET-Psi) e do Centro Acadêmico Livre de Psicologia Maria Clara da
Silva (Calpsi/UFES). Os encontros, somados, contaram com a inscrição de 91 participantes2, sendo
eles estudantes de diversos cursos3 e servidores4 da UFES.
O primeiro ciclo começou a ser idealizado após o encontro realizado com os servidores das
três diretorias da Proaeci/UFES – diretoria de Assistência Estudantil, diretoria de Ações Afirmativas e
Diversidade e diretoria de Gestão dos Restaurantes. Em parceria com uma das psicólogas da equipe
da UFES, iniciamos a discussão, nas reuniões do Coletivo Ocupação-ES, para pensar em formas
de promover um espaço de escuta e fala para os estudantes negros assistidos. Nessas reuniões,
além de retomarmos impasses e experiências levantados pela Proaeci/UFES, foram realizados
estudos sobre a metodologia das conversações, que nos ajudaram a conceber a possibilidade de
utilizar livros com a temática racial como forma de abrir o convite para falar sobre o tema. Também
estudamos sobre as escrevivências (EVARISTO, 2020), pensando em formas de articulá-las ao
trabalho coletivo, seja como inspiração político-poética, como suporte para a fala dos estudantes
ou como um registro daquilo que foi despertado nas conversas.
A escolha pelas conversações articulou-se com as experiências de trabalho e pesquisa
realizadas pela psicanalista capixaba Sônia Rodrigues da Penha, que conduziu um grupo de estudos
vivencial acerca do livro “Tornar-se negro” (SOUZA, 2021). A psicanalista Renata Mendonça, do
Ocupação Minas, e a psicanalista Vilma Dias, do Ocupação-Rio também contribuíram para essa
preparação, compartilhando experiências de trabalho em escolas e dispositivos de saúde mental,
orientados pela metodologia das conversações. O dispositivo apresentado por Miller et al. (2005)

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tem como proposta central a circulação da palavra, tornando coletivo o método freudiano de
associação livre (FREUD, 1925/1996), capaz de fazer o sujeito estranhar-se, surpreender-se consigo
mesmo e com a linguagem, permitindo que a palavra seja usada como sujeito, e não como objeto
de “[...] nomeação dada pelo Outro” (GUERRA; ARANHA; VIDIGAL, 2018, p. 47). Logo, nesse espaço,
embora ausente de pretensões terapêuticas, a aposta é que se possam alcançar transformações com
valor político e subjetivo: “[...] abalar significados cristalizados, expressar e produzir significações,
ouvir as singularidades, o que possibilita novas ideias, ângulos e perspectivas de mundo” (GOMES-
SANTOS et al., 2022, p. 2).
A surpresa está nessas conversas, no sem sentido que surge
delas, mas que pode fazer sentido a algum participante, e por
isso a aposta das conversações é fazer emergir o real que toca
a cada um. É esse real que pode ser contornado por meio das
palavras. A surpresa nos diz que se tocou em algo novo. A
palavra o contorna pois o real nos escapa sempre. São essas as
surpresas que advém da multiplicidade de sentidos dados que

2 Autodeclaração: pretas(os): 25 em cada ciclo, totalizando 50; pardas(os): 10 em cada ciclo, totalizando 20,
indígenas: um, apenas no primeiro ciclo; brancas(os): sete no primeiro ciclo e 13 no segundo, totalizando 20.
3 Artes Plásticas, Artes Visuais, Ciências Sociais, Jornalismo, Geografia, Letras - inglês, Artes, Mestrado Profissional
em Educação, Nutrição, Oceanografia, Psicologia, Terapia Ocupacional, Mestrado em Psicologia, Ciências
Econômicas, Direito, Biblioteconomia, Fonoaudiologia, Pedagogia, Ciências Biológicas, Engenharia Florestal,
Educação Física, Comunicação Social - Jornalismo, Ciências Contábeis e Licenciatura em Música.
4 Administração Central e Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (HUCAM).
362
62A
vão surgindo oportunizando conhecer algumas identificações
manifestas (MIRANDA; VASCONCELOS; SANTIAGO, 2006, p. 3).

Sendo assim, é pertinente que o trabalho se dê por meio das conversações, pois os afetos
são gerados por meio das palavras. Miranda, Vasconcelos e Santiago (2006) dizem que a interação
nas conversações se dá com o discurso, ou seja, a fala, e não com os outros participantes. O desejo
inicial de constituir um lugar onde se pudesse falar fez com que as conversações se tornassem um
espaço inaugural, onde o discurso pode fluir e abrir um espaço seguro5 (COLLINS, 2019) para a fala
sobre o mal-estar advindo do racismo, que é tão sistematicamente silenciado na cultura brasileira.
Apesar de as conversações terem esse caráter singular, “para cada um existe um real que
faz sentido singular, e não pode ser recoberto com o sentido pleno, comum e consensual, pois este
real opera em cada um dando lugar a distintas respostas do sujeito” (MIRANDA; VASCONCELOS;
SANTIAGO, 2006, p. 3), ao se tratar das relações raciais há algo no âmbito do singular-coletivo que
emerge, e é nesse sentido que evocamos Conceição Evaristo (2020) e as escrevivências, para dar
conta desse coletivo que surgiu ao se elaborar questões raciais. A autora define a escrevivência
como “um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer
uma imagem do passado” (p. 30) escravocrata em que a voz e o corpo das mulheres pretas eram
controlados por outros. Retomar para as mulheres negras o gesto da escrita é, pois um ato ao
mesmo tempo subversivo e político, pois, “ao escrever a si próprio, seu gesto se amplia e, sem sair
de si, colhe vidas, histórias do entorno” (p. 34). Nesse sentido, em vez de submergir no grupo, a voz
de cada um evoca, de forma muito própria, vivências que ultrapassam a dimensão narcísica para
referir-se aos pontos comuns que emergem das encruzilhadas das histórias, memórias, territórios
e saberes.
Trata-se de uma tentativa de localizar os pontos de
condensação do mal-estar na cultura atual, porque abre as
possibilidades para cada membro do grupo questionar esses
pontos. É uma modalidade de investigação que, para além
da busca de informações, propõe uma intervenção no campo
pesquisado (MIRANDA; VASCONCELOS; SANTIAGO, 2006, p.
4).

Se, por um lado, é possível acolher e intervir sobre esse mal-estar, por outro, essa intervenção
emerge da própria singularidade do encontro coletivo.
Em relação à utilização de obras de psicanalistas negras com temática étnico-racial, e à

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escolha pelo caminho das escrevivências, importa dizer que elas permitem sinalizar um desejo
político explícito de levantar o véu do silenciamento racial na universidade. Embora a problemática
racial já estivesse presente desde o início da demanda apresentada, através da busca de estudantes
negros por espaços de fala e de escuta, essa busca não encontraria um endereço se não houvesse
a proposta explícita de uma escuta antirracista. Ela aparece no próprio nome do coletivo e é
reforçada pelo convite feito aos estudantes e servidores, sem isso, o mal-estar racial, tantas vezes
denunciado por coletivos de estudantes, tenderia ao silenciamento típico da neurose cultural
brasileira (GONZALEZ, 1984). O trabalho do Coletivo Interestadual de Ocupação Psicanalítica foi
construído, em partes, pelo efeito das vivências dos próprios estudantes negros membros dentro
das universidades.
Diante dos impasses institucionais, ausência de autores negros nos planos de ensino e da
própria experiência universitária, pessoas negras, através do movimento estudantil, tem tensionado
o ambiente acadêmico há anos para a chegada das escrevivências, das autoras negras nas aulas,
nas pesquisas e na escrita. Trata-se de um movimento histórico de reivindicação, de “[...] uma fome
coletiva de ganhar a voz, escrever e recuperar nossa história escondida” (KILOMBA, 2019, p. 27).
Com esse desejo coletivo de ganhar voz, escrever e recuperar a própria história no espaço
universitário e além dele, trazemos o conceito de escrevivência, da autora Conceição Evaristo

5 Collins (2019) aborda os espaços seguros entre mulheres negras estadunidenses, como espaços de resistência na
década de 1960 e um espaço onde há divergências, porém há uma agenda comum e prioritária. Utilizamos esse
conceito para pensar este espaço das conversações como sendo seguro onde os participantes podem estar e falar
do mal-estar advindos do racismo.
363
63A
(2020). “Escrevivência nunca foi uma mera ação contemplativa, mas um profundo incômodo com
o estado das coisas” (p. 34), esclarece a autora. Concebido na oralidade, na passagem da Mãe
Preta na Casa Grande para a mulher negra da atualidade, dona de sua própria voz e letra, junto
da experiência singular e coletiva das pessoas negras, o conceito de escrevivência visa convidar à
escrita e à fala sobre o que foi sentido, estranhado ou emudecido (VANNUCHI, 2017).
Vale ressaltar que esse encontro entre psicanálise e as escrevivências se dá num cenário de
interesse, investimento e escuta atenta aos sujeitos negros na cidade (LAURENT, 1999) e trocas com
psicanalistas e psicólogas que também se debruçam sobre esse encontro – psicanálise, questões
étnico-raciais e escrevivências. Temos, por exemplo, Cristiane Ribeiro (2022) e seu livro “Tornar-
se negro, devir sujeito”, Lilian Machado (2021), com sua dissertação de mestrado “Escrevivências
clínicas: violência sexual na vida de meninas negras – um triplo trauma” e Beatriz Oliveira da Silva
(2022), com sua dissertação de mestrado “Por acaso não sou uma mulher? Sobre a depreciação
das mulheres negras nas relações amorosas”. Cada um desses trabalhos de pesquisa apresentou
um modo muito próprio de articular a escrevivência com a clínica e com a pesquisa, de modo que
consolidam uma fundamentação para uma clínica escrevivente.
Ainda no que se refere à metodologia, o período de pandemia de Covid-19 impôs a
necessidade da modalidade do ensino remoto em muitas instituições de educação brasileiras, na
UFES, ela foi chamada de Earte, conforme já mencionado. O Earte demandou que o primeiro ciclo
de conversações do Coletivo fosse realizado de forma remota e síncrona, via Google Meet6. Sendo
assim, o primeiro ciclo aconteceu nos dias 08, 15 e 22 de março de 2022, com duração de duas
horas cada. No primeiro encontro, foram apresentados o Coletivo, sua proposta de trabalho e seus
participantes. Além disso, houve o compartilhamento de expectativas, além do estabelecimento
de um contrato verbal de como se dariam os encontros (MIRANDA; VASCONCELOS; SANTIAGO,
2006). Ainda no primeiro encontro, foi escolhido, conjuntamente, o capítulo “O mito negro”, do
livro “Tornar-se Negro”, de Neusa Santos Souza (2021). Esse capítulo abriu caminho para que os
participantes contassem, no segundo encontro, como foram atravessados pelo texto, e, então,
após breve explicação do conceito de escrevivência (EVARISTO, 2020), estabeleceu-se que para o
terceiro e último encontro cada um traria uma escrevivência (EVARISTO, 2020; COSTA et al., 2021;
GOMES-SANTOS et al., 2022) a partir da experiência das conversações. A partilha ou não partilha da
escrita com o grupo foi decidida por cada participante. Esse poder de escolha foi determinado por
entendermos que os temas poderiam ser muito sensíveis e que a própria experiência de escrever
já comportaria um exercício de elaboração. Mesmo assim, a maioria dos participantes decidiu
compartilhar.

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A partir do que foi ouvido no primeiro ciclo de conversação, o Coletivo elaborou o segundo
ciclo de conversações para o semestre seguinte, agora de maneira presencial, tendo como disparador
o livro “Memórias da plantação”, de Grada Kilomba (2019). O título escolhido para o ciclo foi “Grada
Kilomba: quem pode falar na universidade?”, e abarcou não só os estudantes do campus Goiabeiras
e Maruípe da UFES, como também despertou o interesse de servidores da universidade. Esse ciclo
foi realizado na Célula Modular Universitária (Cemuni) VI – o prédio da Psicologia – quinzenalmente,
entre os dias 31 de maio e 26 de julho de 2022, totalizando cinco encontros, com cronograma
parecido com o do primeiro ciclo (primeiro encontro: apresentações e contrato verbal, último
encontro: produção de escrevivências), porém, com três encontros para discussão.
Os capítulos para leitura foram escolhidos pelo grupo: a “Carta da Autora para Edição
Brasileira”, a “Introdução”, o segundo capítulo, “Quem pode falar?”, e o décimo primeiro capítulo,
“Performando negritude”. Esse processo de se apresentar e de falar das obras e dos fragmentos
escolhidos para leitura não era meramente burocrático, nele os participantes já iniciavam a
constituição de alguns vínculos e encontros com histórias novas ou semelhantes, assim como
discorriam acerca do ponto em que cada um se confrontou com o racismo e com a negritude em
sua trajetória acadêmica.

6 Importante ressaltar que, a essa altura, os problemas de acesso à internet e outros dispositivos para o ensino
remoto já haviam sido mitigados através de auxílios e políticas universitárias, não sem muita luta dos estudantes
e da comunidade universitária.
364
64A
Desenvolvimento, resultados e discussão

O primeiro ciclo de conversações está relatado no artigo “Tornar-se negro no contexto


universitário e os efeitos na saúde mental dos estudantes”, resultado de uma apresentação no
XII Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as (COPENE) (GOMES-SANTOS et al., 2022).
Focalizaremos, no presente relato, a experiência do segundo ciclo de conversações, denominado
“Grada Kilomba: quem pode falar na universidade?”, composto, conforme mencionado, por cinco
encontros. No primeiro e segundo encontros, os estudantes e servidores falaram sobre o que os
motivaram a participar das conversações e sobre os diversos significados e enfrentamentos de ser
pessoa negra na universidade.
A partir da pergunta mobilizadora “quem pode falar na universidade?”, os participantes
discorreram sobre a necessidade de falar de suas experiências dentro dos espaços universitários,
de encontros com a narrativa branca e com a brancura (COSTA et al., 2021) no dia a dia e também
sobre o processo pelo qual passaram para conseguir nomear como racismo o “estranho” que
sentiam em seus corpos (RIBEIRO, 2022; KILOMBA, 2019). Entre as narrativas escutadas, vale
destacar o entrecruzamento das seguintes falas no segundo encontro: uma servidora diz ter
percebido que, em seu ambiente de trabalho, os estudantes negros são chamados apenas por
apelidos, precisamente, “os alunos negros têm seus nomes apagados”; uma estudante negra diz
que “quem narra é o branco”. Essas falas refletem as falas daqueles que têm o nome apagado por
aqueles que, “[...] [em] uma hierarquia violenta, [determinam] quem pode falar” (KILOMBA, 2019,
p. 52). Os participantes falaram sobre a vida, sobre o nome da pessoa negra e o poder de alterá-
lo com apelidos pejorativos, como “Pelé”, “neguinho”, “morena”, entre outros relatados pelos
participantes no decorrer do encontro.
No terceiro encontro, motivados pela leitura do capítulo “Quem pode falar? Falando no
centro, descolonizando o conhecimento” (KILOMBA, 2019), os participantes apontaram com fervor
embates e angústias diante da branquitude, o trabalho custoso de gingar nesse espaço trazendo
suas próprias histórias e correndo o risco de serem “capturados” pelas histórias da pessoa negra
incondicionalmente sofredora, fruto da meritocracia e que deve agradecimento constante ao outro
branco. Suas falas também se organizaram em torno da presença da pessoa negra nos espaços de
produção de saber e em questões como
[...] [quem] está autorizado a produzir conhecimento? E,
mesmo quando esse conhecimento é produzido, quem o

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legitima como aquele que será difundido em determinado
campo de saber? O que produz reconhecimento e o que é
preciso para ser reconhecido intelectualmente? (RIBEIRO,
2022, p. 21).

Um estudante relata que, durante a escrita de sua pesquisa, se perguntava sobre em quais
autores ele se embasaria, quais palavras usaria e até onde poderia escrever. A analista, mediadora
da conversação, cede algumas palavras sobre a experiência do estudante, entre elas, a frase: “pode,
porém, depende”. Na experiência universitária, pode-se escrever até certo ponto, falar até certo
ponto, sendo que esse ponto é a brancura e a branquitude (COSTA et al., 2021; BENTO, 2022). A
branquitude é um lugar construído historicamente, conforme Bento (2022), de poder e privilégio.
“David Roediger e muitos outros estudiosos afirmam então, que a branquitude é sinônimo de
opressão e dominação e que não é identidade racial” (p. 59). A autora afirma que os estudos sobre
branquitude tem início com intelectuais negros, ao questionar as estruturas da supremacia branca,
destacando sua fundação nas obras de Du Bois.
Uma estudante negra também conta que, durante uma conversa sobre projetos de Iniciação
Científica, um estudante branco a olhou com surpresa e disse: “não sabia que você sabia discutir
sobre isso, achei que você não ia entender. Achei que você só estudava essas coisas de militância e
negro”. A palavra circula e outro participante indaga-se: “será que eu devo continuar aqui? Posso
me dar ao luxo de sonhar? Vale a pena?”. A fala dos estudantes apontam para a violência racial
e seus efeitos. Essa violência impõe-se de maneira dolorosa ao corpo negro, fazendo o indivíduo
refletir sobre a própria identidade e auto restringir-se no que se refere a todo o seu potencial
365
65A
(COSTA et al., 2021). Após a fala do estudante negro, os servidores da universidade buscaram
acolhê-lo e incentivá-lo, durante o encontro, a recordar-se de sua história familiar, de sua posição
e importância no espaço universitário – o encontro, nesse sentido, representou um espaço seguro
(COLLINS, 2019) e um espaço propício para aquilombar-se7 (SOUTO, 2020).
No quarto encontro, o qual foi discutido o capítulo “Performando a negritude” (KILOMBA,
2019), os participantes narraram sobre o peso de performar o corpo, raça e história de todo um
grupo. No dia a dia, com suas subjetividades sendo negadas e tendo de representar os que foram
impedidos de frequentar o espaço (KILOMBA, 2019), surge a fala de uma estudante angustiada
diante da decisão de trancar o curso ou não. A estudante negra diz ter pensado constantemente em
seus pais, sua família e como sua decisão poderia afetá-los, ainda que “essa decisão só implicava a
mim”. Essa fala ressalta bem a dialética entre a decisão singular e uma experiência coletiva que, em
alguns momentos, pode apresentar-se como um peso, mas, em outros, serve de contrapeso para
alavancar um percurso.
No quinto e último encontro, foi proposto que os participantes pudessem elaborar
alguma escrevivência sobre o que foi sentido, escutado, falado ou aquilo que não pôde ser dito
anteriormente durante os encontros. Num movimento de ler o próprio texto, comentar sobre ele e
até falar da dificuldade de escrever sobre si, ou mesmo escrever para além da estrutura acadêmica
ensinada, os participantes enfatizaram sua relação com a universidade e a experiência singular de
ser negro nesse espaço. Um estudante, em específico, começa dizendo que vivencia a relação com
a universidade como um “morde e assopra”, e esclarece: “num dia, há uma política, e no outro,
silenciamento”. O estudante desabafa e critica a forma com que a política se dá diariamente, pois,
se num primeiro momento as políticas de ações afirmativas possibilitaram a entrada do estudante
negro na universidade, no segundo momento, no que se refere à permanência nesse espaço,
ela é ainda permeada de muitas violências. Em seguida, esse mesmo estudante, apresenta sua
escrevivência. Compartilhamos um pequeno trecho de sua escrita.
Quem definiu a minha personalidade, o meu comportamento,
a minha forma de olhar o mundo e me olhar? Não digo ou
questiono isso para dizer que sou subalterno, afinal foi algo
que me adestraram a acreditar, mas digo e questiono isso num
exercício de pegar minha voz de volta. De dar voz a minha voz,
de mostrar que ela está aqui, e que ela merece ser ouvida.

Uma servidora, após a fala e leitura da escrevivência desse estudante, diz ficar pensando:
“até que ponto você tem de se desconfigurar para acessar esses lugares?”. Ela indaga sobre as

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autorrestrições, anulações e torções que pessoas negras têm de fazer para ingressar na universidade
e conseguir manter-se.
No final dos encontros, a pergunta “quem pode falar na universidade?” ganha palavras.
Escutamos ainda sobre esse Outro da brancura, da branquitude e do racismo estrutural e
institucional (BENTO, 2022; ALMEIDA 2021; COSTA et al., 2021) na academia. Também escutamos
os estudantes e servidores engasgarem-se, embaralharem-se e ficarem silenciosos diante de novas
palavras, palavras que dizem respeito às suas singularidades e experiências. As conversações
oferecem, nesse sentido, um lugar para a “[...] palavra falar, testemunhar, ultrapassar a dor, usar
a língua em sua função de ferramenta cultural, que pode desenhar outros destinos” (VANNUCHI,
2017, p. 68).
Nossa prática não buscou ou esperou resultados objetivos. Ao propor um espaço de
escuta e fala livre aos estudantes negros e servidores dentro da própria instituição, os “resultados
objetivos” dizem respeito às palavras estranhadas, à formulação de demanda analítica (MIRANDA;
VASCONCELOS; SANTIAGO, 2006), às reverberações que podem surgir no tempo de cada sujeito
participante. Para o nosso coletivo, também implicou o desejo de continuar a experiência com

7 Souto (2020) fala do quilombo enquanto uma tecnologia afrodiaspórica e o aquilombamento enquanto o
dispositivo - derivado do quilombo - de resistência. “[...] aquilombar-se é o ato de assumir uma posição
de resistência contra-hegemônica a partir de um corpo político” (SOUTO, 2020, p. 144). Assim, se a fala de
um estudante expressa a opressão que o ideal de Ego branco institui na vivência negra (Souza, 2021), as outras
falas permitem abalar essa configuração, instituindo um espaço de separação a partir do qual se pode respirar e
retomar outras linhas desejantes.
366
66A
outros ciclos de conversações8, nos colocou em contato com o projeto de acolhimento Escuta
Preta9 da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o qual realizamos trocas, e passamos
a integrar uma pesquisa multicêntrica10 que tem nos permitido aprofundar os estudos acerca da
metodologia aqui delineada.
Quando pensamos em desafios, percebemos que, ao abrir um espaço de escuta para
estudantes e servidores negros, abrimos também um espaço de imersão em nossas próprias feridas
e cicatrizes, no tocante às vivencias do contexto universitário. Nesse sentido, percebemos com
frequência quase que rotineira a similaridade dos relatos de racismo, de silenciamento, de repetidos
episódios de dor e sofrimento em um espaço que deveria ser de construção de conhecimento.
Como falar e o que se falar diante de acontecimentos tão marcantes na vida das pessoas que, ao
mesmo tempo, pareciam falar também de nossas vidas? Nosso maior desafio foi acolher essas
falas sem perder de vista que era preciso conferir um sentido mais amplo às experiências vividas,
coletivizando-as.
Assim sendo, ouvir as histórias relatadas tornou-se não só um desafio, mas uma tarefa
delicada e decisiva na afirmação dessas narrativas. Esses discursos se dão “em movimento”, são
como ondas gigantes e avassaladoras em um mar antes calmo, “tsunamis” de palavras que invadem
não só a nós, mas a escrita – nosso fazer enquanto corpo e psicologia invadem a academia. Trazer
essas palavras e discursos a estas páginas foi como reviver o fluxo intenso delineados por essas
mesmas palavras e discursos.

Conclusão

Construir um espaço de escuta de alunos e servidores negros dentro da universidade foi


uma experiência de muitos “achados”: achados no sentido amplo da palavra, uma vez que as
narrativas dos sujeitos se mostraram tanto como uma estratégia de escape do sofrimento causado
pelo racismo, quanto como uma possibilidade de existência coletiva, que se coloca para além da
dor e do sofrimento.
Frente a essa colocação, importa dizer que os encontros promovidos pelo Coletivo
Interestadual Ocupação Psicanalítica foram difíceis, sobretudo por tratarem de experiências
traumáticas causadas pelo racismo institucionalizado. Essas experiências, em alguns momentos,
foram reatualizadas pelas narrativas. Evocar memórias dolorosas vividas no espaço universitário
mostrou que, se por um lado essas experiências podem produzir adoecimento, por outro elas
abrem a possibilidade de construção de estratégias coletivas de luta e resistência.

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Falar, escutar, escrever, escreviver sobre histórias e experiências, tudo isso aliado às leituras
e pontuações do grupo de alunos e servidores negros, apontaram a necessidade de potencializar
essas falas de forma que elas possam reverberar em todos os cantos da universidade, não só nas
salas do CEMUNI VI. Nesse sentido, a experiência, como parte desse processo, possibilitou perceber
que produzir ativamente esse espaço de fala e escrita é parte constitutiva da formação de alunos,
professores, psicólogos e psicanalistas. Escutar e construir caminhos com esses sujeitos nos torna
parte ativa da luta por uma universidade mais inclusiva e de fato antirracista.

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BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

8 Iniciamos no semestre 2022/2 um novo ciclo chamado “Conversações: Escrevivências múltiplas e a arte de
narrar a si” e estamos planejando mais dois ciclos para o semestre de 2023/1.
9 O grupo de acolhimento é organizado pela profª Dra. Lia Vainer Schucman junto de duas estagiárias de psicologia.
Ver em: https://noticias.ufsc.br/tags/escuta-preta-grupo-de-acolhimento/.
10 Trata-se da pesquisa “Leitura e intervenções psicanalíticas sobre o mal-estar colonial”, coordenada pela Profa.
Andréa Guerra (2021) e financiada pelo Edital CNPq Chamada Universal 2021, com a participação de universidades
de Minas Gerais, do Espírito Santo, da Bahia, de Alagoas e do Pará.
367
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Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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369
69A
“SE O QUE NOS CONSOME FOSSE APENAS FOME”:
O PLANTÃO PSICOLÓGICO NA ESCOLA COMO UMA VIA
POSSÍVEL PARA JOVENS E TRABALHADORES DA EDUCAÇÃO
COM OU SEM EXPERIÊNCIA DE AUTOLESÃO
“IF WHAT CONSUMES US WERE ONLY HUNGER”:
THE PSYCHOLOGICAL DUTY ON SCHOOL AS A POSSIBLE WAY
FORWARD FOR YOUNG PEOPLE AND EDUCATION WORKERS WITH OR
WITHOUT EXPERIENCE OF SELF-INJURY

Wanessa Alessandra Braga Chagas 1


Débora Luiza Bezerra Marques 2

Resumo: O Plantão Psicológico na escola foi realizado no mês de setembro de 2018 com o objetivo de acolher a demanda
espontânea de jovens com experiência de autolesão em um colégio público, porém, durante a ação, ampliou-se para a
comunidade escolar. Realizado por um serviço CAPS e graduandos voluntários de Psicologia, o Plantão foi desenvolvido em
algumas etapas: divulgação da ação na escola, inscrição durante o plantão, atendimento, avaliação da ação, devolutiva
a gestão escolar e desdobramentos. Foi observado que as vulnerabilidades sociais, econômicas, trabalhistas e afetivas
influenciam nas vivências escolares e a autolesão manifesta-se como “alívio” no corpo. Concluímos que a via da linguagem
pela associação livre, atenção flutuante e retificação subjetiva solicita àquele que sofre uma outra saída ao mal-estar,
além de colocar o plantonista em posição de disponibilidade, contribuindo para que a escola seja espaço potente. Equipes
multiprofissionais da Educação poderiam fazer diferença como suporte à comunidade escolar.

Palavras-chave: Colaboração Intersetorial. Serviço de Saúde Mental Escolar. Tentativa de Suicídio.

Abstract: The Psychological Duty at School was held in the month of September 2018 with the objective of receiving the
spontaneous demand of young people with experience of self-injury at a public high school, but, during the action, was
extended to the school community. Performed by a service CAPS and volunteer Psychology graduating students, the On
Duty was developed in a few steps: publicizing the action at school, enrollment during the on duty, attendance, evaluation
of the action, feedback to school management, and developments. It was observed that social, economic, labor, and
affective vulnerabilities influence school life and the self-injury manifests as “relief” in the body. We conclude that the
language path through free association, floating attentions and subjective rectification asks the sufferer another way out
of his or her discomfort, besides placing the on duty worker in a position of availability, contributing for the school to be
potente space. Multi-professional education teams could make a difference in supporting the school community.

Keywords: Intersectorial Collaboration. School Mental Health Service. Suicide Attempted.

1 Mestra em Psicologia com ênfase em Saúde Mental (pela PRISMAL - UPE), Especialista em Abordagem Psicanalítica (pela FAFIRE), Graduada em
Psicologia (pela UFPE). Atualmente, psicóloga efetiva/trabalhadora SUS nas Secretarias Municipais de Saúde em Paranatama (PE) e São João (PE),
Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0237886746698143. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6672-8243.
E-mail: wanessa.alessandra@yahoo.com.br

2 Pós-graduanda em Saúde Mental (pela Instituição Facuminas de Montes Claros). Graduada em Psicologia (pela CESMAC). Trabalhadora SUAS no
município de Paranatama, Pernambuco, Brasil. Lattes: https://lattes.cnpq.br/4953308309519584. ORCID: https://orcid.org/0009-0000-1129-
6183. E-mail: debora.marques7@hotmail.com 
Introdução

Desde 2016, o Ministério da Saúde (MS) solicita aos serviços estratégicos em Saúde Mental –
os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – atuação em formato de campanha referente a temática
do suicídio. Conforme dados epidemiológicos dos últimos 10 anos, os números nesta temática
tornaram-se expressivos nos serviços de emergência, justificando a mobilização da rede de saúde no
Brasil. Entre 2010 e 2016, mensurou-se pelas notificações de violência interpessoal e autoprovocada
um aumento de 9,36% de casos (OMS, 2022). Estima-se que no mundo 800 mil pessoas tentam se
matar diariamente (OPAS, 2021). Frente a esta realidade (BRASIL, 2016; OMS, 2022), o Setembro
Amarelo – Campanha de Prevenção ao Suicídio tem como objetivo esclarecer à sociedade sobre
o assunto, qualificar os trabalhadores de saúde a identificar e acolher estes sofrimentos e ofertar
atendimento àqueles que pensam na morte como alternativa. Nas qualificações ofertadas fica claro
que, quando a pessoa em sofrimento manifesta comportamentos de autolesão e permanece sem
assistência, aumenta em 50% as chances dessa pessoa tentar suicídio (BRASIL, 2016; OPAS, 2021).
Em um contexto micropolítico – um município do interior pernambucano – o serviço CAPS
Entre Rios foi acionado pela gestão de uma escola no ano de 2018: de forma expressiva, crescia a
demanda de adolescentes que recorriam a práticas de autolesão (“se cortavam”). Frente a angústia
dos professores em acolher e compreender essa circunstância, como poderíamos nos aproximar
dessa realidade? Dessa forma, com a chegada do mês de setembro, foi proposto o Plantão
Psicológico na Escola como intervenção territorial organizado pelo serviço CAPS e parceiros.

Metodologia

O território de trabalho foi uma escola estadual em um município do interior de Pernambuco,


situada a mais de 300km da capital. Uma cidade com baixo IDH, cerca de 80% da população em zona
rural e convivendo com impactos socioeconômicos dos parques eólicos. A escola é turno integral
(estudantes o dia todo, todos os dias).
O Plantão Psicológico pela abordagem da Psicanálise é a escuta no tempo ético do
sujeito em enunciar seu sofrimento; é a disponibilidade daquele que escuta, trabalhando com a
demanda espontânea e a queixa inicial (QUINET, 2005). A escuta analítica, desde Freud (1969),
tem possibilitado àquele que sofre “encontrar-se naquilo que diz” (DOLTO, 2010, p.31). Através

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do que é dito, inicialmente pelas queixas, outra posição subjetiva pode ascender enquanto sujeito
responsável pelo seu destino (MILLER, 1999), fazendo “o próprio sujeito que fala se ouça” (DAHER
et al, 2017, p.147).
Nessa disponibilidade, o plantão para adolescentes é na contramão da atuação do sintoma e
da “queixa circular” para encontrar a enunciação do sofrimento, produzindo uma torção do desejo
pela via da linguagem e (por que não?) outros caminhos (PACHECO, 1999). Importante destacar a
técnica da associação livre (é solicitado ao paciente que fale tudo o que lhe vier à mente), escuta
pela atenção flutuante (escutar o paciente sem influências conscientes), retificação subjetiva
(implicação do sujeito que sofre em seu próprio sofrimento) no plantão (FREUD, 1969; QUINET,
2005).
Pensando em ampliar a intervenção com parcerias, convidamos graduandos de Psicologia-
UPE do décimo período para atuação voluntária e supervisionada durante o plantão. Pela
metodologia do Plantão Psicológico, além de tornar acessível a acolhida do sofrimento em tempo
real, possibilitava aos graduandos-voluntários a oportunidade de conhecer o território vivo (MERHY,
1997), atuando também em práticas pela tríade serviço-comunidade-ensino (objetivo secundário
do projeto). Participaram seis estudantes que responderam a três perguntas para alinhamento com
a ação de saúde: o porquê de participar, a visão de sofrimento e expectativas sobre o plantão na
escola.
O público alvo eram os adolescentes do turno integral da escola com experiência de
autolesão. A ação em saúde no formato de Plantão Psicológico envolveu algumas etapas: em um
primeiro momento, houve a divulgação (com antecedência) do projeto no formato de cartazes
371
71A
estampados na escola. Segundo, durante o plantão, as pessoas que manifestavam o desejo de
serem acolhidas realizavam uma inscrição breve (nome e idade) com plantonistas circulando nas
áreas comuns da escola e, posteriormente, eram atendidas pelo plantonista (trabalhador do CAPS
ou graduando-voluntário) em sala reservada; a escuta acontecia de acordo com o que era dito, sem
cronômetro.
O terceiro momento aconteceu após o encerramento dos atendimentos, onde os
trabalhadores do CAPS e os graduandos-voluntários se reuniram para discussão da experiência. Em
um quarto momento, houve uma devolutiva à gestão escolar com propostas de encaminhamentos.
Por último, foi realizada, a partir dessas escutas, a Oficina de Corpos e a Assembleia dos Estudantes
(desdobramentos).
Em uma breve revisão de artigos sobre outros trabalhos anteriores e semelhantes a este,
foi encontrado uma variedade metodológica onde o Plantão Psicológico na Escola é realizado, por
exemplo, com outras abordagens psicológicas, ou acontecem em outros formatos como na hora do
recreio ou universidades, ou não apenas com profissionais psicólogos e, ainda, com regularidade
variável do plantão. A riqueza dessa metodologia está na possibilidade de diversificar o acolhimento
e oportunizar o endereçamento dos processos a uma outra via para além do sofrimento.

Discussão

A importância de uma intervenção com as características que o Plantão Psicológico possui


tornou possível flexibilizar objetivos ideais e reais (FREUD, 1969), como aconteceu com o público
alvo que foi ampliado durante a ação: de jovens com experiência de autolesão, chegaram os jovens
que não tinham esta experiência e com relatos para esse fim e, mais ainda, nos trabalhadores.
Assim, foi proporcionado escuta dos diversos sofrimentos do outro, onde esse outro diverso é
recepcionado.
O Plantão Psicológico também possibilita essa escuta do sofrimento para escuta do sujeito, a
qual durante a associação livre é possível observar que a autolesão é um reflexo de algo com maior
dimensão; em outras palavras, a autolesão como sintoma. E um sintoma sempre diz algo (FREUD,
1969; QUINET, 2005). Com a possibilidade de fala ao sujeito, este é colocado em destaque para
responder sobre seu sofrimento e não o contrário (MILLER, 1999).
Além desse trabalho individual, o Plantão Psicológico redimensionou o espaço da educação
como potencial para uma saúde possível, ao mesmo tempo que evidenciou suas contradições na
relação com os jovens e trabalhadores.

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04


Um dos objetivos do Plantão Psicológico era ofertar um espaço de fala livre dentro da escola
como um ponto fundamental de possibilidade a uma nova via (diferente do sofrer): o sofrimento que
emerge é também onde ele pode ser transformado (FREUD, 1969; DOLTO, 2010). Como também
existiam histórias de jovens que manifestavam esse sofrimento pela autolesão fora da escola, esse
espaço educacional pôde ser utilizado como ponto de apoio à ascensão de novos processos. Em
outras palavras: a escola como escolha a esses jovens para espaço de existência.
De uma forma geral, a equipe multidisciplinar do CAPS e os graduandos-voluntários
observaram que os jovens eram muito participativos, pensamento reflexivo acurado, com queixas
de ansiedade aguda e críticos em relação ao sistema integral de ensino. Pela proposta de fala livre e
atenção flutuante, outros temas surgiram: família, violências, amizades, músicas e futuro.
Sobre os adolescentes que relatavam as práticas de autolesão o significante “alívio” foi
predominante nos discursos. A palavra “alívio” tornou-se estratégica aos plantonistas para um
outro caminho. Segundo Pacheco (1999), a Psicanálise quando “leva em conta o sujeito, nomeia a
adolescência como um tempo de despertar” (p.26). Um despertar que não se constitui “em uma
fase”, mas sim “em uma passagem do pensamento ao ato, havendo, dessa forma, a exigência de
uma atividade do encontro com o objeto sexual” (Freud, 1969, p.33). Freud continua: para esse
encontro dinâmico o adolescente primeiro se lança na tentativa de separação do Outro, fonte
de angústias pelas “quedas dos semblantes” (PACHECO, 1999, p.27). O corte no corpo seria essa
tentativa falha de separação? Algo que não se sustenta nas relações subjetivas, uma falha no
simbólico, que emerge no corpo e gera “alívio”?
372
72A
A ideia do plantão, ou seja, a via da linguagem, traz uma outra forma de “alívio” sem riscos,
ao contrário dos cortes - riscos no corpo que traziam riscos físicos.
Alguns adolescentes compareceram por vontade própria, outros foram levados por amigos
ou por solicitação dos professores. Não foi observado adolescentes com transtorno mental severo ou
persistente, mas sim crises de ansiedade com sintomatologia depressiva. Durante os atendimentos,
alguns jovens mostraram pequenos objetos cortantes dentro das capas dos celulares, o que
estimulou a gestão escolar a proibir este equipamento na circulação do colégio - não impediu que
os adolescentes carregassem essas peças cortantes de outras formas, evidenciando a insistência
em se “aliviar”, avessa à proibição. Freud (1969) ressalta sobre o inconsciente, esse algo que insiste
em se manifestar, seja de forma pulsional ou sublimada, com configurações imediatas impulsivas ou
pela criatividade, destacando Winnicott (1975), independente dos embargos. Dolto (2010) também
destaca as relações entre o corpo, as interdições e seus fracassos: “a visão do mundo é conforme
a imagem do corpo” (p.26), onde se inscrevem as primeiras experiências relacionais “narcisantes
e/ou desnarcisantes” (p.27), de valorização ou não do sujeito pela via da linguagem. A partir disso,
o sujeito se posiciona no mundo: pelas suas inscrições inconscientes e não apenas pelas regras
externas, onde a imagem do corpo foi receptáculo dessas relações e suas marcas.
Um ponto em destaque: os jovens com ou sem relatos de autolesão conseguiam observar
experiências de aprisionamento na família e que se repetiam na escola. Muitas críticas sobre “o que
é um colégio integral” surgiram, no sentido de questionar se o que definiam como “integral” dizia
respeito somente ao horário e não a visão integral do sujeito (vê-los como um todo): como cantou
Quinteto Violado, se o que nos consome fosse apenas fome, cantaria ao pão.
O sujeito humano em sua complexidade é multifacetado, inclusive como se deseja existir
(WINNICOTT, 1975; DIAS, 2002). Como destacado por Winnicott (1975), a pulsão agressiva não
são marcas da violência, mas do movimento de “lançar-se no mundo como ação espontânea”
(p.76). No caso desta experiência, o lançar-se nesse mundo não vinha em forma criativa ou por
outros substitutos, mas voltava para o próprio corpo (DOLTO, 2010). Colocar o desejo do sujeito
em movimento é, portanto, colocá-lo vivo diante do seu em torno; ao contrário da experiência de
cerceamento, que encerra o sujeito de forma limitante, principalmente para adolescentes como
lembra Pacheco (1999). Essa via possível do “movimento” será melhor desenvolvida a seguir.
Os jovens participantes do Plantão tinham 14 a 20 anos de idade, provenientes de territórios
com índices de vulnerabilidade socioeconômica elevados, cenários familiares fragilizados pelo
uso excessivo de drogas lícitas (bebidas alcoólicas) e por relações familiares onde seus membros
exercem suas funções de forma precária.

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04


Nesse sentido, maximizamos o contexto do sofrimento desses adolescentes a partir das
comunidades em que eles pertencem: moradores da zona rural, estão afastados da área urbana
onde se concentra todas as atividades que poderiam ser aproveitadas por eles como os jogos
poliesportivos, os grupos de dança, de teatro e música, artesanatos. São atividades disponibilizadas
pela Casa da Cultura, mas que se aglutinam na área urbana, distantes dos adolescentes.
Privados do acesso àquilo que poderia pluralizar suas existências, ou como citado acima,
colocar em movimento desejo e mal-estar (FREUD, 1969; WINNICOTT, 1975), os jovens se queixam
sobre o sistema “integral” ofertado, queixa que se estende da escola a comunidade, ambas
ofertando apenas restrições e privações do que poderiam ser caminhos possíveis. Como citado
acima, a adolescência nesse sentido de separação do Outro, “localiza a adolescência como uma
crise da confrontação com o Outro da lei” (PACHECO, 1999, p.27). Logo, os jovens acolhidos se
posicionarem de forma crítica e reflexiva frente à escola, a comunidade e suas falhas, evidencia
essa “crise” como uma separação para emergir o sujeito desejante contra o Outro social, e de todos
os semblantes encarnados pelo Outro familiar (SOLANO, 1997). “É por isso que há encontro com o
pior (...) que se espatifem as figuras do Outro e se soltem todos os tampões como insígnias do pai”
(SOLANO, 1997, p. 14). Nessas rupturas que a via da linguagem proporciona, o adolescente emerge
sujeito de desejo.
Resumidamente: as vulnerabilidades complexas enunciadas por esses jovens (renda familiar
precária, moradia longe dos pontos de cultura, lazer e de esportes, vínculos fora e dentro da escola
enfraquecidos) estratificam as possibilidades múltiplas dos fatores de proteção, mas faz surgir um
sujeito que se posiciona frente esses desafios.
373
73A
A parceria intersetorial entre escola-CAPS-universidade como outro objetivo do Plantão
Psicológico na escola mostrou-se frutífera na aliança preconizada pela saúde pública denominada
comunidade-ensino-serviço (BRASIL, 2016). Assim, o voluntariado dos graduandos proporcionou
maior abrangência da ação para atender a comunidade escolar, trouxe oportunidade aos futuros
psicólogos sobre a realidade da população e um olhar significativo sobre o acolhimento humanizado.
Na avaliação dos plantonistas (uma das últimas etapas do projeto), o Plantão Psicológico
veio atender a um pedido de socorro dos professores que identificavam as demandas: o limite
psicológico destes trabalhadores da educação em receber o sofrimento os faziam sofrer. Alguns
deles tinham experiência de suicídio e, com isso, a dificuldade de acolher estudantes, como
observado na escuta desses trabalhadores.
Também foi observado que os professores que mantinham um vínculo empregatício com
muitas fragilidades (por exemplo, contrato com carga horária elevada de baixo rendimento ou
vínculo com menos de um ano), manifestavam maiores sinais de ansiedade sobre a preocupação
de manter sua fonte de renda. Os serviços gerais e merendeiras traziam narrativas de sofrimento
socioeconômico e dificuldades em conciliar os cuidados à família e o trabalho. Szasz (1970)
e Sonntang et al (1980) afirmam sobre os problemas decorrentes do sistema de produção
predominante no trabalho que visa a materialidade e não o reconhecimento dos sujeitos em seu
fazer. As consequências incidem diretamente nos trabalhadores: os direitos vistos como privilégios,
metas e cargas horárias predominam, a objetificação dos funcionários. A Saúde Mental não está a
serviço do mercado e a Psicanálise vem questionar esse circuito (LAURENT, 1999).
Foi possível observar que as práticas de autolesão nos jovens correspondiam ao que
Dotlo (2010) chamou de processos “desnarcisantes”, porém com um prospecto a ser endereçado
externamente ou para o social (WINNICOTT, 1975). Ou seja, os caminhos que poderiam ser
percorridos levariam a uma direção diferente do sofrimento manifesto, desdobrando-o para uma
produção cultural, artística, esportiva, ou seja, práticas de expressão corporal – espaços onde “o
corpo pudesse falar de várias formas, sem perigos” (WINNICOTT, 1975). Dolto (2010) também
coloca a importância da relação do corpo como forma de organização dos sujeitos: “o narcisismo
é necessário para defender a coesão do sujeito em sua relação com seu ‘Eu’ (seu corpo)” (p.134).
Porém, como explanado acima, estes pontos de cultura estão inacessíveis aos adolescentes pela
barreira geográfica e, possivelmente, a barreira da gestão pública atenta ao território.
O corpo na Psicanálise é singularizado, diferente do corpo biológico da ciência; o que
singulariza o corpo do ser falante são os acontecimentos/discursos que deixam rastros e se
condensam nele, como ressaltou Freud (1969). “Pegadas que fazem sintoma” (MILLER, 1999, pg. 19).

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04


Se é nesse corpo que o sofrer se expressa, o corte representaria um corte no corpo ou no sintoma?
Ou como explanado acima, um corte como separação do Outro? Mas, por estar condensado (sofrer
e corpo) seria o corte uma forma de localizar isso que clama por “alívio”? Se matar seria morrer ou
matar uma imagem de si? (FREUD, 1969; DOLTO, 2010). Winnicott (1975) lembra que a tentativa de
suicídio perpassa um falso self, algo insustentável nas relações e no corpo, e é a ele que se deseja
matar.
A partir dessa constatação – o corpo como palco – foi planejado a Oficina de Corpos (CAMPS,
2004) com três encontros, mas que aconteceu apenas um. Durante o grupo com quinze jovens
(acolhidas no Plantão e com experiência de autolesão) foi realizada a leitura dramatizada de um
conto de Lya Luft (uma mãe enlutada do suicídio do filho) bastante emocionante. A partir dessa
dinâmica foi solicitado que as jovens expressassem o que estavam sentindo sem colocar em
palavras: espontaneamente, as jovens falaram com o corpo. No momento final da oficina, as jovens
compartilharam a experiência livremente.
As oficinas são encontros com uma problemática já definida, porém, “mesmo com foco no
enfrentamento de problemas específicos, as oficinas devem primar o estímulo às pessoas para
rememorar suas histórias de vida, vivências, sentimentos (...) na ênfase em escutar como cada
pessoa vivencia e enfrenta seus conflitos pessoais” (CARVALHO, 2007, p.5). Dessa forma, além
das oficinas serem espaços coletivos de trocas, a escuta de si e do outro para além do sofrimento
corrobora com a proposta da Psicanálise sobre escuta analítica. E como salientou Laurent (1999),
“os analistas não devem se limitar a escutar, também precisam transmitir a particularidade que está
em jogo” (p.10).
374
74A
Pensou-se na escola como esse lugar de vez e voz independente da oferta do Plantão e
também surgiu a proposta da gestão compartilhada: a Assembleia de Estudantes foi uma ideia
que surgiu durante a primeira Oficina, ideia vetada pela gestão educacional. Como o CAPS não tem
governança sobre o espaço escolar, só pudemos questionar a postura da gestão. Nesse desencontro,
não pudemos realizar os outros dois momentos da Oficina de Corpos.

Considerações Finais

Foi possível concluir, de forma impactante, a importância de investimento em Saúde Mental


dos Trabalhadores da Educação atreladas às questões trabalhistas. Fica a crítica das autoras frente
a repressão e cerceamento da gestão escolar frente aos desdobramentos dos desejos dos jovens,
como a Assembleia dos Estudantes. Por isso, encontramos muros das escolas riscados. Não se
silencia o inconsciente.
A importância de equipes multidisciplinares pertencentes à Educação com psicólogos e
serviço social, até mesmo terapeutas ocupacionais, é um convite a se pensar o quanto o espaço da
escola se tornou um mundo de possibilidades para todos e como a imagem do corpo permeia as
relações.
A Oficina de Corpos como prática expressiva necessária aos jovens com experiência de
autolesão foi uma oportunidade de tornar acessível uma outra via para além da queixa, engajada
pelo Plantão Psicológico.
Foi realizado apenas um encontro da Oficina, mas novamente fica a constatação de que a
disponibilidade de profissionais de saúde faz a diferença aos jovens: profissionais disponíveis a olhá-
los e escutá-los, reconhecer seu sofrimento e sua transformação. Na Oficina, os profissionais que
escutam e quem sofre fala. Como musicou Quinteto Violado, na mesma música que este artigo faz
referência e se fundamenta, “palavra quando acesa, não queima em vão”.
Ainda concluímos a importância da intersecção entre comunidade-serviço-ensino como
prática de Educação Permanente à equipe de saúde do SUS (CAPS) e aos graduandos voluntários.
Além disso, a oferta de uma clínica ampliada e humanizada à sociedade concretiza-se com esta
tríade.
Podemos afirmar que ações como essas enriquecem a escola, redimensiona a práxis do
serviço CAPS e contribui na formação desses graduandos, não para um mercado de trabalho, mas
para realidades que precisam ser cuidadas. As parcerias intersetoriais são expressões de como

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podemos fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) pela prática no território vivo (MERHY,
1997) e a Psicanálise tem muito a contribuir para essa efetivação (LAURENT, 1999).

Referências

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Unicamp, 2016.

CAMPS, Christiane. A hora do beijo: o teatro espontâneo com adolescentes. São Paulo: Casa do
Psicóloga, 2004.

CARVALHO, Gilson. Participação da comunidade na saúde. Passo Fundo: IFIBE, 2007.

DAHER, Ana Claudia; ORTOLAN, Maria Lúcia; SEI, Maíra;VICTRIO, Kawane. Plantão psicológico a
partir de uma escuta psicanalítica. Semina: ciências sociais e humanas. Londrina, vol. 38, n.2, p.
147-158, jul/dez. 2017.

DOLTO, Françoise. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva, 2010.


375
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FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira. Volume XII (1911-1913). Rio de Janeiro: Imago, 1969.

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educadores. Genebra, 2019. Disponível em: WHO_MNH_MBD_00.3_por.pdf;jsessionid=DF7ED85
F664C2AAEC4AFC48D6F28E5A3 Acessos em: 22 de agosto de 2018 e 13 agosto de 2022.

OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde. Suicide worldwide in 2019: Global Health Estimates.
Genebra, 2021. Disponível em: Suicídio em todo o mundo em 2019 (who.int) Acessos em: 22 de
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QUINET, Antonio. As 4+1 condições de análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

SOLANO, Stela. 1ª Conferência: Qual o real em questão no momento da adolescência? Qual o real
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WINNICOTT, Donald. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

376
76A
A TRANSFERÊNCIA E O SUJEITO SUPOSTO SUSPEITO

TRANSFERENCE AND THE ALLEGED SUSPECT SUBJECT

Fídias Gomes Siqueira 1

Resumo: Este trabalho busca apresentar aos leitores a pesquisa teórica realizada pela autora sobre o conceito psicanalítico
de transferência. No livro, a autora retoma esse princípio conceitual na teoria de Freud e Lacan e o atualiza a partir dos
efeitos recolhidos na clínica e nas políticas públicas, oferecendo importantes coordenadas para a respectiva aplicação na
clínica contemporânea.

Abstract: This review seeks to present to readers the theoretical research carried out by the author on the psychoanalytic
concept of transference. In the book, the author takes up this conceptual principle in the theory of Freud and Lacan and
updates it from the effects collected in the clinic and in public policies, offering important coordinates for its application in
contemporary practice.

1 Pós-doutor pela PUC Minas (2021). Doutor e Mestre em Psicologia (Estudos Psicanalíticos) pela UFMG, Especialista pela Fundação João Pinheiro e
Graduação pela PUC Minas. Coordenador do Programa de Extensão Já É do Núcleo PSILACS/UFMG. Professor Adjunto I do Curso de Especialização
Lato Sensu em Psicologia Jurídica da PUC Minas. Psicanalista. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6593784384852680 ORCID: http://orcid.org/0000-
0003-3669-9282 E-mail: fidias.siqueira@gmail.com
Em sua obra “Da interpretação: ensaio sobre Freud”, Paul Ricoeur1 (1977) se interessa por
uma reflexão em relação ao pensador Freud, mais do que por uma discussão ou crítica à psicanálise.
Mesmo destacando o lugar da teoria psicanalítica e a reflexão que esta exerce sobre a cultura, o
interesse dele é o de situar Freud entre aqueles pensadores que questionaram a razão ocidental.
Por esse motivo, o definiu como o “mestre das suspeitas”.
Pode-se dizer, então, que a suspeita encontra lugar no cerne do pensamento psicanalítico
desde os seus primórdios. Mas, na atualidade, o que a diferencia no interior dessa teoria é o lugar
que passa a ocupar. E é em torno disso que o livro de Andréa Guerra se desenvolve, tendo em
um dos conceitos fundamentais – a transferência – o ponto de partida para uma investigação que
oferecerá novas coordenadas para operar no campo clínico-político.
A autora encontra uma possibilidade de indagação e atualização do conceito de transferência
na psicanálise, uma vez que, como analista, se faz também presente nos diversos espaços da cidade,
atenta aos deslocamentos necessários à aplicabilidade da psicanálise em um mundo revirado pelos
movimentos que resistem à herança hegemônica deixada pelo mundo colonial.
Se o livro dela integra uma coleção sobre psicanálise e decolonização, é porque a autora
toma esse conceito fundamental e o articula ao aspecto geopolítico atual que interroga sobre os
efeitos da colonização e sobre as possibilidades em torno da decolonização. Encontrando o ponto
de partida na suspeição, a autora propõe uma investigação e atualização acerca da transferência,
articulando-o à lógica da suspeita que, nos tempos atuais, orienta o laço social e nossas vidas. Como
chave de leitura de sua atualização teórica, também remete e articula as consequências e resquícios
da colonização, da escravização, do patriarcado, das relações opressivas de gênero, raça e sexo.
Situando a suspeita em relação à subjetividade contemporânea e ao que se colhe das lógicas
societárias neoliberais, identifica-se a contribuição da autora para ampliar o debate no interior da
psicanálise. As indagações e questões levantadas, e endereçadas ao leitor, tornam o livro provocativo
e inquietante. E não seria diferente vindo de uma autora que se dispôs a correr riscos e produzir
deslocamentos com a teoria psicanalítica. Pode-se dizer que acertou na estruturação e articulação
lógica do livro, realizando um trabalho que não poderia mais ser adiado no interior da psicanálise.
O texto é denso, complexo e coloca o leitor a trabalho. A perspectiva de atualização conceitual
causa uma expectativa no leitor afeito às questões com as quais nos deparamos na clínica, nas
instituições e na política, a saber: racismo, machismo, misoginia, sexismo, transfobia, homofobia,
segregação, branquitude e tantos outros.
Trata-se de um texto que descortina as condições geopolíticas do mundo e apresenta o

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04


abismo que separa e entrelaça o Norte e o Sul global. Frente a essas linhas abissais, a autora é
enfática ao indagar a universalidade do inconsciente sob a ótica da razão moderna e do processo
de colonização que estruturou a dominação, o aniquilamento, o poder, o controle dos corpos e a
distribuição do gozo.
O livro é recheado de questões inquietantes e convoca a clínica psicanalítica a responder de
outro lugar, sem perder o rigor teórico que é peculiar à autora. Por isso, organiza a apresentação
do conceito de transferência a partir do que foi estabelecido por Freud e depois por Lacan,
estabelecendo uma leitura atual da teoria, articulando-a aos (des)compassos do nosso tempo e às
mudanças geopolíticas.
Se o livro é fruto de um desassossego, cabe ressaltar que suas questões inquietarão o leitor
em busca da novidade encontrada na proposição e formulação de um giro subversivo no interior da
teoria. Ele permite ler e enfrentar as lógicas discursivas dominantes da atualidade. Nesse trabalho,
também se destaca um método de pesquisa orientador para a clínica e para a ética do psicanalista.
No capítulo I, denominado “sobre o amor... de transferência em Freud: como tudo começou”,
a autora percorre o texto freudiano e indica o passo a passo da construção conceitual, situando
o lugar do amor como motor do tratamento àquela época, trazendo também as atualizações do
retorno de Lacan a Freud. Cabe destacar que a autora extrai também a sutileza e a delicadeza
de alguns recursos de que se valeu Lacan para atualizar a teoria psicanalítica, de modo que ao
apresentar um trabalho tão denso, confere leveza sem perder o rigor conceitual.
Caberá ao leitor ficar atento à constituição das trilhas que levam à revisão teórica precisa e
1 Ricoeur, Paul. (1977). Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora.
378
78A
sustentada em um método, pois poderá extrair muitas consequências para sua prática. Ao organizar
metodologicamente a revisão conceitual, a autora apresenta importantes dicas clínicas para operar
na clínica e na política, reafirmando o lugar da psicanálise como importante ferramenta para lidar
com as formas hegemônicas de normatização do gozo.
Ao recuperar e realocar o conceito em uma revisão precisa, a autora também se apresenta
sem medo. Enfrenta e expõe as condições a serem enfrentadas pela psicanálise frente à hegemonia
do poder, inclusive do psicanalista em relação ao poder que a transferência lhe confere. Desse
modo, as questões apresentadas provocam os psicanalistas que resistem atrás do front teórico. Ao
enfrentar o temor de colocar em questão um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, a
autora não se esquiva e aponta o que a transferência vela e desvela, indicando como esse conceito
se torna uma lente que amplifica as condições de leitura da herança colonial e das consequências
no empreendimento capitalista neoliberal que acossa o Sul desde o Norte global.
O leitor encontrará a novidade na possibilidade de operar em relação às consequências do
patriarcado, da misoginia, do sexismo, da transfobia, da homofobia, do racismo e na possibilidade
de escutar e considerar esses aspectos na clínica privada. Depois dessa leitura, não é mais possível
tapar os ouvidos para questões urgentes que pareciam não surgir nas nossas clínicas.
Esta atualização realça a importância da transferência hoje como recurso clínico e também
político. Este livro indica sem receio que, advertidos dos efeitos da colonização no Sul global, torna-
se difícil operar sob transferência e tapar os ouvidos. O psicanalista atento às questões de sua época
deve considerar o real e o gozo devastadores que engendram políticas fascistas, segregatórias,
racistas e sustentam lógicas de extermínio, levando em conta aquilo que poderá extrair com o giro
decolonial.
No segundo capítulo, intitulado “da metáfora bélica como estrutura da direção do
tratamento”, a autora constrói seu método de pesquisa a partir da existência de diversas maneiras
de ler um tema. E, por mergulhar na complexa trama conceitual da psicanálise, justifica-se o recurso
para a atualização conceitual a partir de Freud e Lacan.
Estes últimos, enquanto construíam ou reformulavam suas teorias, estiveram cara a cara
com o contexto de duas guerras mundiais, colhendo seus efeitos no mundo e formalizando suas
concepções teóricas. Por isso, o paradigma da guerra formulado por Carl von Clausewitz serviu
a Lacan na formulação de orientações acerca do manejo da transferência na clínica. Mas o leitor
também encontrará os recursos táticos do manejo freudiano da transferência a partir do jogo
de xadrez e o manejo lacaniano pautado no jogo de bridge como importantes indicações que
equivalem o campo da clínica a uma batalha.

Revista Humanidades e Inovação - ISSN 2358-8322 - Palmas - TO - v.10, n.04


Essa articulação é o que possibilita novos deslocamentos. Por isso, este livro nos apresenta o
novo paradigma da guerra e sua aplicabilidade em articulação com uma nova lógica transferencial
que nos permite ler e interpretar os efeitos clínicos e políticos, acima e abaixo das linhas que separam
o Norte e o Sul global, nesse contexto de globalização, neoliberalismo e suas novas tecnologias de
poder.
A análise da aplicabilidade da metáfora bélica e os desvios na transferência hoje são
proposições atentas à letra de Freud e Lacan. Por isso, o recurso à atualização do paradigma de guerra
proposto por Grégoire Chamayou compõe o novo nesse estudo. Se há uma mudança no âmbito da
guerra, trata-se da passagem do duelo à caça. Mudança que é acentuada pelo desenvolvimento
tecnológico, sendo o drone o equipamento que modifica completamente a perspectiva da luta.
O que apreendemos neste novo paradigma é que o inimigo se torna explícito, marcado,
difuso e se encontra por toda parte. Assim, a dimensão da vigilância e da suspeita encontram
terreno fértil para dominar, segregar, controlar e exterminar. Instaura-se uma nova lógica que funda
a suspeição e organiza o laço social, apresentando novos desafios para o campo transferencial.
Na composição do capítulo 3 – “agalma e deslocamento na transferência desde o banquete
de Platão” –, encontra-se uma revisão do termo “agalma” a partir do seu aparecimento na filosofia
grega e de suas atualizações na psicanálise a partir de Lacan. Nesse capítulo, o leitor é brindado
com um retorno a Platão e à discussão sobre o amor, juntamente com as elucidações deixadas por
Lacan.
Além disso, encontra-se também uma análise do esquema óptico lacaniano como recurso
operacional clínico-político, que permite investigar o mal-estar da herança colonial e identificarmos
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as vias essenciais para operar com a transferência, na atualidade, em relação à subjetividade
colonizada, dando-os as coordenadas quanto à interpretação e desmontagem das defesas. Trata-
se de uma perspectiva inédita que leva o leitor a não desconsiderar que a dimensão transferencial
atravessa os séculos e se apresenta sob nova roupagem.
Já no capítulo 4, “o sujeito suposto: saber e gozo”, a autora se ocupa da relação com a
verdade e o saber, apresentando a dupla vertente da transferência, as mudanças e os avanços feitos
por Freud e Lacan. Atenta às atualizações que o conceito recebeu no interior da psicanálise “freudo-
lacaniana”, conduz o leitor a seguir o fio de sua investigação apontando orientações precisas e
rigorosas com o último ensino de Lacan, tomando as concepções de falasser, a língua, corpo e gozo,
a fim de ampliar as possibilidades de operação para o psicanalista e os deslocamentos necessários
da teoria frente ao que o mundo contemporâneo nos confronta.
A autora ainda apresenta de modo muito preciso a estrutura lógica da transferência, o que
permite ir além da clínica e operar sobre os efeitos da colonização a partir do recurso teórico. Essa
perspectiva permite interrogar os impactos da lógica neoliberal que incidem também na figura do
psicanalista hoje, principalmente quanto aos efeitos tecnológicos que tomaram a clínica de surpresa
a partir da pandemia de Covid-19. Portanto, interessa-nos essa atualização, uma vez que o lugar do
psicanalista também foi deslocado da lógica do saber para a lógica da suspeição.
No capítulo 5, “a dimensão real e decolonial na transferência: anos 1970”, encontram-se os
articuladores conceituais da teoria lacaniana, com seus novos aportes que favorecem outros modos
de pensar a clínica. A autora formula questões complexas para o leitor, aponta o deslocamento
do lugar de saber do psicanalista para o lugar daquele que interroga o real que nos confronta.
Com essas mudanças de paradigmas, persiste a necessária interrogação quanto aos processos de
dominação e subjugação aos ideais que nos colocam face a face com o gozo do dominador.
Ainda nesse capítulo, o leitor encontrará o esquema de montagem do poder, identificando
como a psicanálise pode operar em relação a essa estruturação. Soma-se a isso uma nova chave de
leitura dos efeitos do processo de colonização e dominação que nos anima com a identificação de
fissuras que tornam esse processo não-todo, permitindo a criação de novas formas de resistência
a esse poder.
A partir do último ensino de Lacan, partindo da perspectiva da incidência do traumatismo
da linguagem sobre o corpo, somos orientados a operar com a transferência em um novo esquema
interpretativo que não visa ao sentido, mas indica a leitura da marca que já estava lá. Algo novo
para o trabalho do psicanalista. Há no texto uma organização didática quanto aos novos modos de
operar com a interpretação em relação ao equívoco e não ao sentido.

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Finalmente, no capítulo 6, “o sujeito suposto suspeito de nossa época e suas inflexões clínicas”,
a autora remete o leitor ao contexto de guerras e de mortes em massa que sempre estiveram no
horizonte da psicanálise. Porém, naquela época, o amor, a hostilidade e o saber compunham a
matriz estrutural da transferência. Mas, hoje, este livro nos permite afirmar que a indiferença se
soma à matriz transferencial, impulsionada pela lógica neoliberal e necropolítica.
Desse modo, o leitor verificará o que a transferência revela em cada época e perceberá que a
lógica constitutiva do inimigo se estrutura em relação aos novos modos de gozo, fazendo com o que
o próximo se torne um suspeito. Assim, a proximidade do gozo do próximo ganha matizes de horror
e justifica sua eliminação. Isso é confirmado na concepção de “necropolítica” de Achille Mbembe.
O sujeito tornado suspeito é aquele que poderá ser caçado, morto. E o laço orientado pelo
ódio revela o gozo exterminador. O que nos anima é a possibilidade de subversão e oposição a essa
lógica. Algo que precisa ser inventado cotidianamente.
A evidência do deslocamento do lugar do saber no campo da transferência mostra-nos que
essa matriz já não é suficiente. Não penso que se trata de um trabalho de retorno ao saber. No
tempo em que vivemos, se a suspeita se torna uma nova matriz lógica para o campo transferencial,
do psicanalista é esperada uma nova forma de operar com a transferência, pois para ele também
surge um novo lugar. O que o livro de Andréa Guerra nos faz pensar é que talvez seja pelo avesso
que poderemos operar com essa nova lógica, ainda que sob suspeita. Cada um poderá recolher os
efeitos disso e dar indicações em prática.

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Referência

GUERRA, Andréa Máris Campos. Sujeito Suposto Suspeito: a transferência psicanalítica no Sul
Global. – São Paulo: N-1 edições, 2022.

Recebido em 16 de Janeiro de 2023.


Aceito em 08 de fevereiro de 2023.

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ENTREVISTA – DR.* THAMY AYOUCH PSICANALISTA NA
FRANÇA*

INTERVIEW – DR. THAMY AYOUCH PSYCHOANALYST IN FRANCE

Andréa Máris Campos Guerra 1


Janilton Gabriel de Souza 2

* Psicanalista, Professeur des Universités (Professor titular) na Université Paris-Cité. Foi Professor Visitante no Instituto de Psicologia da USP.
É Doutor (Université Paris VII), Mestre em Filosofia (Université Paris XII) e em Psicopatologia (Université Paris VII), e Graduado em Filosofia
(Université Paris XII), Psicologia Clínica (Université Paris VII e Literatura Inglesa (Université Paris IV). É também aluno antigo da École Normale
Supérieure de Fontenay/Saint-Cloud. Trabalha atualmente sobre as hibridações da psicanálise e as suas interações com a filosofia, os estudos
políticos, os Feminist, Genderand Queer Studies, e os estudos pós-coloniais. A sua prática clínica e a sua pesquisa abordam os efeitos psíquicos
das discriminações de raça, gênero, sexualidade e classe. É autor de numerosos artigos e dos livros “Folies contemporaines” (L’Harmattan,
Paris, 2009), “Merleau-Ponty et la psychanalyse. La consonance imparfaite” (Le Bord de l’Eau, Paris, 2012), “Generos, cuerpos y placeres. El
psicoanálisis más allá de la diferencia sexual” (Letra Viva, Buenos Aires, 2015), “Psicanálise e homossexualidades: teoria, clínica, biopolítica” (CRV,
Curitiba, 2015), “Psychanalyse et hybridité, hybridations. Genre, colonialité, subjectivations”, (Louvain, Leuven University Press, 2018). É o autor
da tradução desse último livro em português (Psicanálise e hibridez. Gênero, colonialidade, subjetivações. São Paulo : Calligraphies, 2019) e em
espanhol (Psicoanálisis e hibridez. Género, colonialidad, subjectivaciones. México : Ediciones Navarra, 2020).

* Entrevista gravada em 20 de fevereiro de 2023 por Andrea Guerra e Janilton Gabriel de Souza. A transcrição foi feita por Dúnia Ferreira Maia
(Integrante do Interfaces em Psicanálise – Núcleo de Pesquisas e Estudos e aluna da Psicologia Unis-MG) e a edição final de Janilton Gabriel de
Souza com revisão técnica de Andrea Guerra.

1 Psicanalista e Psicóloga. Doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora adjunta do Departamento
e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5327-0694. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/2401031591125949. E-mail: andreamcguerra@gmail.com

2 Psicanalista e Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São João Del-Rey/MG (UFSJ), Coordenador do Interfaces - Núcleo de
Pesquisas e Estudos em Psicanálise. Colaborador do Instituto Internacional de Psicanálise – IIP. Professor do Centro Universitário do Sul de Minas
(UNIS MG). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3965-0564. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1126366899756942. E-mail: janilton.gabriel@unis.edu.
br.
Andrea Guerra: Thamy Ayouch, agradecemos sua generosa participação nesta entrevista.
Como questão inicial, queremos ouvi-lo a respeito de sua percepção sobre a presença da
psicanálise em países europeus e latino-americanos. Ou seja, resgatamos a ideia de Derrida
da Geopsychoanalysis: “...and the rest of the world”, da psicanálise e o resto do mundo, a
geopsicanálise e o resto do mundo. Na sua visão, a psicanálise possui algum impacto na teoria
e na prática, ao redor do mundo? Como você experimenta, testemunha e percebe as diferenças
globais frente a este saber?

Thamy Ayouch: Agradeço esse encontro com vocês e fico lisonjeado pelo convite. A primeira
pergunta é excelente e muito ampla, pois trata da interface da psicanálise com o mundo. Sendo
sincero, não havia pensado nesta questão, contudo, embora a Europa/Viena, de forma específica,
seja o berço dessa teoria, não podemos deixar de pensar na psicanálise em sua amplitude, que
engloba o mundo e, obviamente a América Latina.
Passa-me a ideia de um movimento dialético. Digamos de uma dialética entre o fato de que a
psicanálise foi uma invenção europeia, que obviamente se inscreveu dentro de coordenadas sociais
políticas europeias no final do século XIX. Uma invenção que é masculina, ou seja, androcêntrica,
além de burguesa e branca. A difusão da psicanálise no mundo acarretou, também, aspectos
mais conservadores, mesmo tendo ela uma perspectiva revolucionária, ou seja, sua questão de
subversão, do inconsciente totalmente subversivo.
A proposta de Freud foi subversiva e revolucionária. Quando ele viajou para os Estados
Unidos com Jung, com Abraham e Jones, falou que ia levar a peste para a América, porém quando
digo América, obviamente, refiro-me a toda ela, não só aos Estados Unidos. De igual forma pode-se
dizer que essa é a dialética, que hoje está funcionando na difusão da psicanálise de forma mundial,
na Europa e no resto do mundo. Essa dialética entre um aspecto mais conservador e outro mais
subversivo. A vitalidade da psicanálise fica relacionada a essa dimensão subversiva, que toda vez
tem que ser definida em função de coordenadas locais, especialmente, para aqueles(as) que não
estão na Europa.
Vou citar três países para pensar a difusão da psicanálise, ainda que não tenha muita formação
em história da psicanálise: a Argentina, o Brasil e o Marrocos. Este último é o país do qual venho. A
Argentina, porque na difusão da psicanálise, na América Latina, ela foi central. É interessante essa
história, pois parece-me que os primeiros divulgadores da psicanálise na Argentina foram imigrantes
europeus e europeias, que pretendiam afastar-se da prática psiquiátrica europeia e refugiaram-se
na Argentina por razões sociais de raça, em função da perseguição dos judeus durante o Terceiro

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Reich. Foram esses imigrantes, que tinham nascido na Europa, que fundaram uma das primeiras
sociedades psicanalíticas na América Latina, a APA, Associação Psicanalítica Argentina. Gente como
Enrique Pichon Rivière, como Raskovsky, Marie Langer, Ángel Darma.
Primeiro, então, essa geração de imigrantes europeus. Depois, nos anos 1960, uma geração
de psicanalistas locais formados e formadas, retomando um termo decolonial, como “criollos”.
Retomo, não fortuitamente, esse termo no sentido de que “los criollos”, afinal, não sei, são os latino-
americanos descendentes dos colonos brancos e brancas, mas que nasceram localmente, e assim
se diferenciam dos(as) espanhóis e portugueses. Assim, ao mesmo tempo que vão dissociando-
se da metrópole e da Coroa Espanhola, na Argentina e, ou da Coroa Portuguesa, no Brasil, vão
acarretando essa branquitude e esse tropismo, esse relacionamento com a Europa e obviamente
todas essas relações sociais de poder que atravessam a sociedade, como a raça, obviamente. Por
mais locais e independentes que fossem, - afinal se separaram da Coroa, - não deixaram de ter em
sua constituição homens brancos, porém locais.
Isso tem, me parece, uma certa função na difusão da Psicanálise na Argentina. Nos anos
de 1960 foram “los criollos”, que retomaram essa tradição psicanalítica em função de condições
locais e de um certo tropismo para a Europa. O que é interessante na Argentina, ainda, é a
grande democratização da Psicanálise, no sentido de sua difusão em muitos âmbitos: hospitais,
universidades, instituições e, inclusive, na vida cotidiana.
Hoje em dia, a Psicanálise é muito presente na Argentina, como tópico, como chiste. Eu me
lembro, por exemplo, de um dia em que estava em Buenos Aires num táxi e um carro ultrapassou
o táxi de uma forma um pouco violenta e o taxista exclamou: “¿Quien es este piloto de mierda que
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83A
no está castrado?” (Quem é esse maldito piloto que não é castrado?).

Andrea Guerra: Uma difusão popular.

Thamy Ayouch: É! Tem essa especificidade e ela se refletiu na relação da Psicanálise com o
Marxismo, como, por exemplo, com Bleger e Marie Langer, que refletiu na discussão da Psicanálise
com relações sociais de classe e discriminação de classe. E depois, nos anos 1970, aconteceu uma
coisa particular que foi, ao mesmo tempo, uma forma de independência da sede europeia da IPA
na Argentina, mas, também, uma pegada totalmente lacaniana que era um contramovimento. Em
outras palavras, separavam-se da IPA como associação internacional, basicamente articulada na
Europa e nos Estados Unidos. Nisso, entrou o “Cavalo de Tróia” Lacaniano e reforçou uma certa
forma de neocolonialidade, por mais que fosse totalmente emancipatória essa criação de uma
nova Psicanálise. A forma com que Jacques-Alain Miller considerava a Argentina como um anexo da
França para divulgar a sua Psicanálise é muito representativo dessa neocolonialidade. E, também,
todas essas lutas que existiram em vários países entre escolas, que parecem igrejas Lacanianas, cuja
finalidade era a de saber quem teria o(a) melhor exegese do pensamento Lacaniano.
Apesar desse tropismo mais europeu, também acho que na Argentina a Psicanálise, nas
últimas três ou quatro décadas, foi usada em contestações fundamentais, por exemplo, de gênero
e sexualidade. Há grandes psicanalistas argentinas, por exemplo, como Martha Rosenberg, uma das
primeiras feministas, que lutou para a libertação do aborto há 40 anos atrás e que trabalhou muito
com a questão do gênero e o feminismo.
Hoje, há toda uma vertente de psicanalistas LGBTQIA+ na Argentina, que desenvolvem uma
Psicanálise focada em questões de gênero e sexualidade. Uma Psicanálise emitida e teorizada por
aqueles monstros, como diria o Paul B. Preciado: monstros gays, lésbicas, trans, pessoas como Jorge
Reitter, como Deborah Tajer, que trabalhou muito com o feminismo, Facundo Blestcher, Marina
Calvo. Marina é maravilhosa e retoma também todo o pensamento da Silvia Bleichmar. Marina
Calvo é a filha da Silvia Bleichmar. E há outros e outras, como Verônica Cardoso, Jéssica Ramirez,
Narela Caten que é uma mulher Trans psicanalista, que vai ter um blog sobre os psicanalistas rancios
(rançosos), ou seja, psicanalistas muito conservadores, muito reacionários.
Então, existe a tônica sobre as questões sociais de poder, sobretudo de gênero e sexualidade
que se desenvolveu bem. No entanto, no que diz respeito à raça, isso foi menos trabalhado na
Psicanálise e pela História da Argentina que se “embranqueceu”. Mesmo porque a Argentina ainda
pretende ser o país mais europeu, como se isso fosse uma vantagem na América Latina. Houve

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toda uma história de embranquecimento através das migrações do final século XIX e século XX,
além de um recalque das questões da raça da população afrodescendente, que em grande parte foi
massacrada na guerra com o Paraguai. A Argentina praticamente não tem negros e negras.
Existe a população indígena e mais do que psicanalistas, antropólogos, que vão trabalhando
essas questões, por exemplo, a antropóloga Rita Segato. Foi ela, a meu ver, uma das primeiras a
introduzir essas questões de raça. Em “Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia
por demanda”, trabalha a questão do Édipo negro. Rita Segato é um dos exemplos dessas
comunicações entre Argentina e Brasil.
Acho bom poder dizer sobre o Brasil. Eu não pretendo ter essa posição colonizadora do
“pseudoeuropeu”, que fala do Brasil para brasileiros e brasileiras. Acredito, porém, que houve
toda uma imigração de psicanalistas perseguidos, argentinos e argentinas, para o Brasil, durante a
ditadura, que fundaram coisas no Brasil. Não que o Brasil necessitasse, mas tiveram um papel, um
rol interessante no desenvolvimento da Psicanálise no Brasil. Em São Paulo, me parece que uma
parte da criação do Sedes Sapientiae foi fomentada por psicanalistas argentinos e argentinas.
No Brasil, há toda uma evolução. Durval Marcondes teria realizado a introdução da
Psicanálise com uma história similar ao Tropismo para a Europa. A criação da Sociedade Brasileira
de Psicanálise - na verdade me parece que, inclusive, foi a primeira sociedade de Psicanálise da
América Latina -, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, que foi bastante conservadora.
Ultimamente, tive a grande honra e o prazer de participar de seminários na Sociedade Brasileira
de Psicanálise de São Paulo, em um grupo que foi fundado em 2010, por Osvaldo Leite Neto, sobre
homossexualidade e Psicanálise.
384
84A
A história do Brasil teve uma primeira época de recepção, de fusão de ideias europeias e depois
nos anos 1940 e 1950, a formação das primeiras gerações locais, seguida da institucionalização nos
anos 1960 da Psicanálise no Brasil. O que foi interessante nessa história foi um aspecto: a pegada da
medicalização da Psicanálise no Brasil, usada como uma forma de eugenismo e de biopolítica. Essa
Psicanálise médica, servia tanto para gerir o corpo individual quanto o social, além dos movimentos
entre os grupos sociais.
Lélia Gonzalez, outros e outras, falam de todo o embranquecimento do Sul do Brasil com
a imigração europeia a partir do final do século XIX até os anos 1940. A Psicanálise acompanhou
isso, ou seja, não deixou de ser uma ciência branca e da elite branca. O que me interessa é que
nesses países: Brasil, Argentina e outros, acontece uma contestação de relações sociais de poder, de
gênero, sexualidade e de raça. Vocês brasileiros estão na vanguarda do pensamento da Psicanálise
com raça, na vanguarda! Ou seja, mundialmente! Isso é maravilhoso! É uma forma de pensar a
Psicanálise de um jeito totalmente definido a partir das questões locais, deixando de olhar para a
Europa como um modelo e tentando se repensar a partir da realidade local. Isso destoa da tradição
de colonização, de escravidão, do sistema patriarcal.

Andrea Guerra: Se posso interferir brevemente nessa sua colocação, a Lélia Gonzalez é
uma referência mesmo. O modo que o livro dela apresenta os sintagmas que colocam a gente a
trabalho, a própria ideia da amefricanidade e de como pensar essa especificidade brasileira - não
é apenas ela, mas ela é uma das grandes referências. Acho que há uma juventude nesse momento
no mundo inteiro, sendo que no Brasil temos essa marca antirracista, decolonial, feminista que
não aceita mais um modelo imposto. São jovens que buscam por onde caminhar, no sentido do
que afirmar e do que abrir mão e que já querem repensar a formação em Psicanálise, questionam
conceitos fundamentais, fazem uma prática nas ruas, quilombos, nas praças, nos hotéis de
prostituição. Isso está muito vigoroso e evidentemente indica um movimento de quebra de
paradigma! Mas continuo a escutá-lo, estamos adorando!

Thamy Ayouch: Exatamente, isso é uma arejada na Psicanálise fundamental. Essencial


essas questões de raça. Bom essas pessoas como você, Andrea, que desenvolve essas questões
de Psicanálise e Raça, Psicanálise e Colonialidade, pessoas como Miriam Debieux Rosa. Você me
enviou esse livro muito legal (mostrou o livro “Tornar-se negro devir sujeito” de Cristiane Ribeiro.)
Muito obrigado, eu adorei esse livro.

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Andrea Guerra: Ela fez a defesa do Mestrado dela em um terreiro de umbanda, quem
abriu a sessão foi a matriarca do quilombo Manzo. Foi dentro de um território sagrado. Ela fez
uma defesa online, porque ocorreu no período da pandemia, uma parte lá e outra na academia.
Foi muito subversivo e radical. Eu nunca tinha presenciado nada assim!
Se pudermos entrar um pouco em outro ponto geopolítico que não estava previsto
em nossa conversa, agradeço! Gostaria de ouvir a respeito da Psicanálise em Marrocos. Seria
importante porque a história que não está escrita aqui também nos interessa. Temos buscado,
em uma das pesquisas do Psilacs, reler o pensamento social brasileiro construído oficialmente
pelos grandes pensadores do Brasil. E aqui também a tradição acadêmica e universitária é uma
tradição de registro escrito, enquanto a tradição popular, os saberes tradicionais, são orais. Daí é
preciso recorrer a outras fontes. A Psicanálise tem uma vantagem, porque ela está entre o oral e
o escrito: Como escrever a pulsão de morte e/ou a de vida em um texto que não é exatamente
de papel.
Então, falando nisso, no que você está abrindo sobre o pensamento historicamente datado
nos séculos XX e XXI no território da Psicanálise, tanto como teoria como praxis, mas também
como episteme e como ética, estética e política de mundo, como você tem visto, historicamente,
essa mudança, especialmente, com os nomes emergentes jovens – pois ainda não se sabe quais
serão os nomes que irão ficar, mas estamos escutando emergir. Eu vejo colegas do Norte Global,
da Bélgica, da França, dos Estados Unidos e de outros distintos países falando de uma mesma
onda, que atravessa a Psicanálise com leituras contemporâneas, que resgatam pensadores não
ocidentais ou não europeus, que vão se tornando fontes como Frantz Fanon, o próprio Aimée
385
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Césaire, a própria Lélia Gonzalez e a Rita Segato, que você trouxe, entre tantos outros. Como você
vê nessa linha histórica, o que e como a Psicanálise é afetada em termos conceituais e, também,
em relação a sua práxis? Vocês na Europa têm experiência com os imigrantes, por exemplo, muito
intensa, que me parece ser uma experiência com o resto do mundo, com a borda, com aquilo que
fica de fora.
Nós, no Brasil, trabalhamos com a própria população periférica, com a(o) brasileira(o),
porque atendê-la(o) é atender a borda da economia, do que resta um pouco fora do escopo do
consultório, onde antes a Psicanálise ficava encastelada. Como você vê teoricamente e na prática,
esse avanço histórico ou essa dialética? Porque este não é um movimento simples, não é uma
linha contínua. É uma linha descontínua e dialética. Obrigada por essa reflexão que nos ajuda a
pensar a Psicanálise. Como você vê esse avanço no século XXI, o recuo, o avanço, a dialética da
Psicanálise?

Thamy Ayouch: Então, com o risco de romantizar um pouco, eu acho que a Psicanálise nessa
dialética entre conservadorismo, renovação, emancipação e subversão, eu diria que o Sul Global
é muito mais bem posicionado para repensar uma Psicanálise arejada, uma Psicanálise aberta a
questões sociais de poder, uma Psicanálise mais política. Acho que no Sul Global essas questões
surgem com muito mais intensidade e autenticidade. Isto é fundamental em realidades locais, ou
seja, no Sul Global e no seu relacionamento com o Norte Global, essa emancipação decolonial do
Sul Global que separa do Norte Global. Eu acho isso importante. No que eu saiba, na França, por
exemplo, o tema da Psicanálise e gênero começou a ter um pouco de impacto recentemente. Nas
duas últimas décadas que psicanalistas começaram a falar de gênero e há vários psicanalistas hoje
em dia, não muito numerosos e numerosas, que falam dessas questões. Agora, Psicanálise e raça,
minoritariamente, ou seja, existe a Sophie Mendelsohn, que você conhece. Porém, que eu saiba na
França são muito poucos e poucas, muito poucos e poucas.
[Andrea Guerra mostrou o livro “Mais qu’est-ce que e’est done un Noir?”, Jeanne Wiltord]

Thamy Ayouch: Ah! Tem Jeanne Wiltord, claro!

Andrea Guerra: E Livio Boni com Sophie e o Colectif de Pantin (Andréa mostrou o livro “La
vie psychique du racisme”, de Livio Boni e Sophie Mendelsohn).

Thamy Ayouch: Lívio e Sophie, claro! A Jeanne é interessante, mas a Jeanne traz certa

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fidelidade à teorização Lacaniana. Para mim, a Jeanne é muito interessante, pois vai pensando
em uma continuação de Fanon, mas também ela não tem a ousadia e a coragem de vocês, por
exemplo, quando vai pensar a raça, e o que essa coragem implica. Será que podemos desconstruir
paradigmas habituais da Psicanálise, também, e não necessariamente ficar erigindo um panteão
de divindades psicanalíticas que são intocáveis? Vocês fazem isso. Na França, é com mais hesitação
de certa forma, pois fica aquela figura tutelar do Lacan. Acho que há mais jogo de cintura no Sul
Global, no Brasil, por exemplo, uma pessoa que trabalha muito o Fanon, que está fazendo uma tese
de doutorado muito interessante é a Priscila Santos.

Andrea Guerra: Sim. Está passando uma temporada aí. Morando aí.

Thamy Ayouch: Chegou à França há uma semana. Bom, também, em toda essa tradição,
falamos de Lélia Gonzalez, Neusa Santos Souza, que está sendo relida, e da Isildinha Batista, que foi,
me parece, uma das primeiras a trabalhar sobre o corpo negro na Psicanálise.

Andrea Guerra: Isso.

Thamy Ayouch: E, também, da Cida Bento, coisas mais politicamente engajadas, me parece,
coisas menos desejosas de ficar cuidando de uma certa sacralidade da Psicanálise.

Andrea Guerra: Sim.


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Thamy Ayouch: Isso me interessa mais, pessoalmente.

Andrea Guerra: Acho que isso faz do Brasil quase que um projeto em curso, um programa
de trabalho com muitas linhas, porque você tem as clínicas públicas ou as clínicas de borda,
que estamos discutindo, escrevendo e mostrando como elas acontecem. Há clínicas públicas
ou clínicas psicanalíticas de borda, que questionam a própria formação em Psicanálise, o que é
muito denso e muito tenso. Há programas de pesquisa conceituais, que se perguntam pelo Édipo
e pelo falo: Por que o Édipo, por que o falo? Existem linhas de investigação e experimentação
acerca da prática e da teoria, que se deixam afetar por questões de raça, classe, gênero, pelo
pensamento feminista, pelo pensamento antirracista, ou pelas teorias pós, contra e decolonial.
Tudo isso começa a interferir no próprio programa clássico da Psicanálise.
Então, isso que você traz é muito forte. Vejo que, na França, existem essas aberturas,
mas acho que há uma aura de guardiões do espaço e até dos fundamentos psicanalíticos. O que
você abriu a entrevista falando em termos de dialética me pareceu muito rico, porque acho que
existe um temor e quase um imaginário de que se você desmontar alguns grandes elementos
estruturais da Psicanálise, ela vai desmontar toda junto. Ela não vai desmontar, ela não vai
morrer, ao contrário se você se aferrar a eles, talvez aí sim, ela não sobreviverá.
Então, escutar o que vem do sofrimento colonial, isso que queria te perguntar na
sequência. Da sua escuta, do seu trabalho, o que você extrai? Pois você roda o mundo e para nós
é uma referência, assim como também o são seus livros já traduzidos sobre a homossexualidade
(Psicanálise e Homossexualidade: teoria, clínica e política), sobre a hibridez (Psicanálise e
hibridez), e mesmo o material que está em francês - como o belo artigo sobre a clínica menor
- que conseguimos acessar, eles nos orientam. Especialmente, estou me lembrando de quando
você retoma uma leitura do Freud para mostrar como existe algo do hibridismo na própria teoria,
ainda que marcada por um olhar e uma época, não tem como não se estar sempre atravessado,
não é? Ser contemporâneo e estar ao mesmo tempo dentro e fora disso que nos marca, não é
fácil, mas acho que você consegue fazer isto. Em termos do que vem de fora da Psicanálise: os
movimentos feministas, os movimentos antirracistas, os movimentos contra ou pós-coloniais,
como você acha que eles afetam o corpo psicanalítico?

Thamy Ayouch: É muito importante essa questão, porque o que é o fora e o dentro e como
a Psicanálise define a relação com as suas supostas exterioridades, no livro sobre hibridez propus

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duas hipóteses: a primeira que a hibridez é o motor da Psicanálise e do seu pensamento. Essa
figura da hibridez é central na forma com que a Psicanálise pensa não ter nada de pureza, pois isto
é sempre uma ameaça de narcisismo, de necrotização e de pontos cegos. Assim, há hibridez no
fato de que o próprio discurso psicanalítico se difunde com Freud e depois com outros psicanalistas
emprestando elementos de vários, havendo precisamente uma multiplicação das discursividades.
Freud, por exemplo, tomou emprestado modelos da termodinâmica, da biologia, da literatura, da
filosofia, que, ao serem colocados em perspectiva, foram substituindo precisamente os modelos
originários e criando uma coisa nova.
É a própria definição da hibridez pós-colonial dada por Homi Bhabha, de uma repetição que
subverte. Já existe um mandato colonial, que tenta fazer com que a(o) colonizada(o) seja como o
colonizador. Isso retorna e, ao mesmo tempo, acrescenta uma coisa que subverte e cria outra nova.
Acho que isso está no centro do pensamento psicanalítico: a hibridez.
A segunda ideia é a de que a hibridação advém do fato de a Psicanálise se relacionar com
outros discursos disciplinarmente definidos como não psicanalíticos: da sociologia, da filosofia, dos
estudos culturais, de gênero, pós e decoloniais, dos estudos críticos da raça. O fato dela se relacionar
com estes discursos é uma necessidade para a Psicanálise ficar psicanalítica, para ela não se engessar
num discurso único. Isso é uma proposta mais teórica, mas que insiste nos consultórios. Assim, se
continuarmos escutando com esse eixo só psico-psicanalítico, com essa fantasia da pureza de que
vamos salvar o Freud, o Lacan, a prática psicanalítica tal qual engessada, etc., “desescutamos” as
questões mais contemporâneas e políticas. Isso parece absolutamente fundamental, pensar a partir
de uma postura subjetiva. Tenho que reconhecer uma postura sumamente subjetiva, pois sou um
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87A
bastardo da minha história pessoal, ou seja, no sentido de hibridez, tanto quanto aos aspectos
culturais, quanto de formação. É a minha forma de pensar.

Janilton Gabriel de Souza: Aproveitar o que você disse no começo sobre a questão de ter
a Psicanálise nessa interdisciplinaridade. Você coloca uma questão da escuta: se não levamos
em conta essa pluridisciplinaridade que a psicanálise deve dialogar deixamos de escutar,
principalmente ao se aferrar a um conceito sob o argumento de ser um fundamento, o qual não
pode ou precisa ser questionado, ao fazer assim transformamos a teoria e, consequentemente,
a prática em um dogma. Acho que esse é o risco, que se corre. A Psicanálise se alimenta dessa
conversa.

Thamy Ayouch: Exatamente! É próprio à relação da Psicanálise com sua teorização, como
dizia Freud: a teoria é um andaime, não um prédio; é uma construção e uma aproximação. Nessa
dialética entre conservadorismo e subversão, o lado conservador é aferrado a uma fetichização da
teoria, que ignora ela ser uma aproximação temporal, provisória e a toma como se fosse a palavra
de Deus. Ou seja, tem que ficar lá, precisando repetir fórmulas formais, que necessitam submeter
a clínica ao mesmo. Isso parece absolutamente anti-psicanalítico. A Psicanálise na forma em que
Freud imaginou, inventou e delirou estava vinculada a essa dialética de ser científica e legitimada
como produção científica, como uma seriedade e rigor teórico. Ao mesmo tempo, não acreditemos
tanto nessas construções teóricas. É preciso essa relativização da teorização da metapsicologia, da
teorização, pois são modelos e aproximações.

Andrea Guerra: Não à toa a Psicanálise não coube dentro da universidade na época do
Freud.

Thamy Ayouch: Exatamente!

Andrea Guerra: Pensei, ouvindo o comentário do Janilton e a sua continuidade na


conversa, Thamy, em duas frases, que eu escuto muito e que estariam nas duas pontas desse
conservadorismo e dessa liberdade, ou desse respeito acerca daquilo que escutamos. De um
lado, é uma frase que se repete muito quando são trazidas as questões locais, políticas, éticas e
estéticas para o centro da discussão da Psicanálise. A frase é: “Isso não é Psicanálise”. Acho que
é o auge do conservadorismo, afinal quem tem poder para dizer o que é a Psicanálise? Porque a

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questão de fundo é: “Eu não te autorizo, eu não te qualifico”. O ponto, porém, é: quem é que está
dizendo isso ou aquilo e por que que pode ou não dizer isso?
E de outro lado, uma fala que emergiu quando começamos a trabalhar o antirracismo de
forma declarada e decidida, que foram frases de psicanalisantes que revelavam: “Eu tive que
mudar de psicanalista, porque a minha analista dizia que as questões de racismo que eu sofria
não eram questões clínicas, que aquilo não era uma verdadeira questão subjetiva”. O que seria
uma verdadeira questão, senão a que o sujeito traz? Como o analista pode dizer isso: “O que você
diz não é uma verdade sua”, mesmo que não toda, mas algo que diz do teu real, do teu corpo.
Isso tem nos feito pensar em como operar no cotidiano da clínica com essas transversalidades
e sua ideia da hibridez é muito forte. Torna-se necessário teoricamente, para podermos pensar
a prática psicanalítica a partir das muitas transversalidades, inclusive materiais, que impactam a
clínica e a teoria. Trago uma fala referente a uma intervenção que fizemos na moradia estudantil
da Universidade Federal de Minas Gerais, onde estão os alunos que entraram com cotas de ação
afirmativa ou social ou racial. A equipe nos convida para trabalhar o antirracismo, o sofrimento
que vem do racismo institucional, que no Brasil é velado. Kabengele Munanga nomeou de
racismo à brasileira. Você deve conhecê-lo, pois é um grande teórico do racismo no Brasil da
área da antropologia. E a fala que me chamou a atenção e presentifica esse nível de interdito
ocorreu em uma conversação com a equipe clínica de saúde mental da moradia. Perguntamos:
Como o racismo aparece aqui, como os alunos falam para vocês do racismo? O psicólogo, branco,
falou: “Não falam, essa questão não aparece”. A assistente social, negra, levantou a mão e disse:
“Todo dia alguém vem me contar uma história de racismo que sofreu, do porteiro, do amigo, do
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professor, do departamento, do colegiado”. Então é muito radical, porque há algo que portamos
indispensavelmente e que é interditor da palavra: um corpo branco.

Thamy Ayouch: Absolutamente.

Andrea Guerra: Pois é, mesmo que o psicanalista opere como objeto causa de desejo,
ele vai com seu corpo masculino, branco, cis, o que for, para a cena clínica. E essa dimensão
não é apenas imaginária, já que ela estrutura um discurso. Não dá para reduzir uma discussão
do identitarismo, das identificações e do lugar do analista e da autorização que se constitui no
campo clínico e teórico, sem considerar essas transversalidades.

Thamy Ayouch: Absolutamente! Isso que você está apontando é uma questão absolutamente
essencial nesses movimentos. Trata-se da subalternidade de quem pode falar no divã e em que
termos. Entretanto, no divã, deveria poder-se dizer o que quiser. Mas, em termos que não sejam
hegemônicos, ou seja, uma não gramática hegemônica, que acaba traindo a singularidade que
insiste em ser falada, que precisa ser dita. Obviamente quem fala e quem escuta, como se faz isso, é
fundamental. Venho trabalhando essas questões da raça, pensava em falar disso mais à frente, como
se escutam as questões de como você acabou de falar do racismo, do psicólogo branco dizer não
escutar nada de racismo. Exatamente é esta a questão: quem e como um analisando ou analisanda
se autoriza a abordar essas questões e para quem estão endereçadas, como são consideradas as
questões psicanalíticas, da realidade psíquica e não só como a maioria dos psicanalistas dizem,
questões da realidade exterior, que não tem nada a ver no consultório.
Você sabe, tem uma passagem muito interessante que comentei no livro sobre a hibridez,
que estou retomando nesse livro que estou escrevendo sobre a raça, uma passagem do Lacan que
nos anos 1960 escreve, que recebeu nos anos 1940, uns analisandos médicos do Togo. Ele fala esses
“mediquinhos”, que vem falar no meu divã e paradoxalmente não falam de realidades tribais deles,
eles vão falando do Édipo, tal qual conhecemos o Édipo. Ele vai apontando uma coisa importante,
que o efeito psíquico da colonização obviamente é esse embranquecimento desses analisandos,
inclusive nos seus próprios inconscientes, ou seja, o que deixam de lado e para quem se dirigem.
Esses analisandos, que são médicos do Togo nos anos 1940, vêm para a metrópole francesa. O
Togo era uma colônia nessa época em que eles vêm para a metrópole. Eles, que são negros, vão se
dirigindo ao “bam-bam-bam” da Psicanálise para falar no divã dele. O que é que eles se autorizam
a falar dentro dessa relação social de poder de raça e colonialidade? Não lhes resta mais opção

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do que aquilo que falou Fanon: se embranquecer ou desaparecer. Então, o que há nessa relação
com a transferência, não imaginária, mas simbólica com o Lacan, o que é que está em jogo? O que
autoriza consciente e inconscientemente esses analisandos a falarem de aspectos racializados ou
da colonialidade? O que que faz com que esse processo de se analisar com um analista francês
nessa época não desautoriza a falar, desautoriza! E são questões totalmente contemporâneas, hoje
em dia.

Andrea Guerra: E Lacan, nessa passagem, tem uma afirmação contundente. Ele fala assim:
“O inconsciente que tinham vendido a eles, junto com as leis da colonização”, ou seja, como
você disse, há uma matriz inconsciente que reage ao modo discursivo. Lacan está falando disso
em referência à teoria dos discursos. Mas acho que você ainda abre um ponto que é novo, acho
que é importante essa entrevista, que é muito rica, Thamy! Muito obrigada! Porque você está
dizendo algo que não está dito ali! Você interpreta a passagem que é a quem se dirige, quem
pode falar. E isso não é foucaultiano, isso é psicanalítico, não é? Eles precisaram fabricar algo para
ser escutado, para caber na norma imperial, para caber em um texto colonizador.

Thamy Ayouch: Exatamente! Por mais que Lacan tenha apontado a dimensão da colonização
do inconsciente, ele ficou cego quanto ao seu posicionamento na transferência simbólica. Teve uma
transferência simbólica, que é isso que me interessa, o que acontece na transferência simbólica em
termos de raça e que continua acontecendo hoje, que não são só questões imaginárias, não se trata
da coitada culpa branca, de ter privilégio branco etc. Não é uma questão de culpa, é uma questão
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de responsabilidade. É dizer de onde eu escuto, de onde respondo ao discurso do analisando ou da
analisanda. No livro que estou escrevendo, a minha hipótese é que a transferência simbólica não
retoma as familiaridades afetivas, ou seja, uma repetição da família, ela repete as relações sociais
de poder.

Andrea Guerra: Perfeito!

Thamy Ayouch: Isso tem que se analisar na transferência simbólica, não só imaginária,
mas simbólica. Tentar escutar o que se repete nas relações sociais de poder de forma totalmente
interseccionalizada. Nesse dispositivo, onde essa analisanda está se endereçando a essa psicanalista,
localizando cada uma na realidade de relações sociais de poder e na fantasia que cada qual tem e
como se posiciona à outra. Isso, que são captações imaginárias, são regidas por uma transferência
simbólica e por um dizer e uma forma de intercâmbio de troca que está definida. Essa é a minha
hipótese, precisamente pelas relações sociais de poder politicamente.

Andrea Guerra: Quando que esse livro sai? Nós o queremos em português!

Janilton Gabriel de Souza: Queremos ler já.

Andrea Guerra: Thamy, você falou do Marrocos, para nós é muito interessante ter
conhecimento de algo que fica sempre secundarizado. Não sei se dá tempo, ainda, de avançar um
pouco mais. Você falou no início da história da Psicanálise no Marrocos, o que nos conta? Estou
recebendo, na UFMG, para um ano de estudos sabáticos um professor malasiano da Universidade
de Nottingham-Malaysia, Ahmad Fuad Rahmat, que está recuperando algumas psicanalistas que
não aparecem na história da Psicanálise, dado que a Psicanálise é muito contada pelos grandes
nomes e recontada na mesma linha depois. E o Marrocos? Seria interessante saber um pouco
dessa história, porque, também, é um país que diretamente sofreu um modo de integração
colonial peculiar e isso tem incidências e consequências. Fico curiosa, o que você nos conta dessa
experiência da Psicanálise no Marrocos, que você tinha dito no início da entrevista?

Thamy Ayouch: Não que saiba muita coisa da história da Psicanálise no Marrocos, mas o
pouco que sei é que primeiro a Psicanálise foi introduzida de forma obviamente colonial, durante a
colonização francesa no Marrocos entre 1912 e 1956. A Psicanálise foi introduzida na prática de um

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psicanalista francês Laforgue em Casablanca, mas se pegou e lá ficou relacionada a uma realidade
local marroquina. Também o Marrocos, vocês sabem, é um país pós-colonial, ou seja, um ex-país
colonizado em uma área pós-imperial, referente às ex-metrópoles. Mas, à diferença do Brasil e dos
outros países da América Latina, que foram frutos da primeira onda da colonização europeia; no
Marrocos, não há “criollos” (primeira geração de descendentes europeus colonizadores nascida
no território colonizado). Não considero que haja “criollos” da primeira colonização, que foi feita
por árabes no século VIII, depois da conquista da Espanha pelos reis católicos dos árabes e judeus,
que foram para o Marrocos, para a África do Norte. Não há “criollos” da colonização francesa, da
colonização europeia, colonização ocidental, ou seja, quando o colonizador foi embora, quando o
Marrocos teve sua independência, não ficaram populações descendentes dos colonizadores, os
“criollos”.
Isso é importante, porque as relações sociais de raça são definidas diferentemente. Ficou
o Tropismo para a Europa, que era o modelo da França, sobretudo, mas a divisão da população,
ou seja, os grupos étnicos, étnico-raciais, não foram definidos pela presença ocidental, como na
América Latina. Existem grupos étnico-raciais bem diferentes no Marrocos. Temos a população
autóctone, os berberes, que são uma civilização antiga do tempo do império romano. Os romanos e
os berberes eram politeístas. Houve uma grande presença judia berber no Marrocos, uma população
judia importante de berberes. Depois vieram os árabes no século VIII e depois da conquista, eu
não falo reconquista, eu acho que é conquista, depois do final do século XV. E houve também a
presença, no final do século XIX, de espanhóis, portugueses e franceses que colonizaram o país.
Estudei o lugar, a realidade cultural múltipla no Marrocos, ou seja, linguisticamente é muito
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interessante, porque é um país de várias línguas. Existem as línguas berberes - há três línguas
berberes - tem o árabe, mas a língua árabe como em todos os países árabes é uma língua definida
pelo que se chama linguisticamente de diglossia. Isto quer dizer que existe a língua falada, o dialeto
diferente em cada país árabe: o dialeto do Marrocos não tem nada a ver com o do Líbano, do Egito
e da Arábia Saudita. Existe também a língua comum, que é só escrita e que não é falada, ou se é
falada é um pouco artificial, mais em congressos. É o árabe primeiro, clássico, que hoje em dia se
revolucionou e se chama o árabe mediano. Ele é também o que está nas mídias, mas não é falado,
é artificial falar esse árabe. Pelo menos há essa “trilingualidade”. Berbere, árabe dialetal e árabe
mediano, depois tem o francês muito presente obviamente, como herança da colonização, como
dizia: a língua francesa “est un butte de guerre”, é um prêmio de guerra.
O francês está presente e um pouco do espanhol no norte do Marrocos, porque o norte
foi colonizado pelos espanhóis. Então tem essa realidade plurilinguística que é muito importante,
porque define uma pegada da Psicanálise a partir dessa forma de fluidez linguística definida por
muitas línguas marroquinas. Há uma tradição de terapias clássicas no Marrocos, com toda uma
mitologia, que tem efeitos presentes na verdade, além de ter toda a tradição médica, psiquiátrica
e de medicalização da Psicanálise. Foi nos anos 1970, creio, que a Psicanálise começou a ser mais
presente na geração marroquina. Não de psicanalistas marroquinos diretamente, em termos de
prática foram psiquiatras médicos que utilizavam modelos psicanalíticos, sobretudo intelectuais,
antropólogos, sociólogos, escritores e escritoras de romance que se referiam a modelos
psicanalíticos.

Andrea Guerra: A literatura.

Thamy Ayouch: A literatura teve muito a ver com Psicanálise. A literatura dos anos 1960,
inclusive antes dos anos 1950 e 1960, era nesse bilinguismo francês-árabe, que um escritor
marroquino como Driss Chraïbi, um escritor que escreveu em francês e associou a Psicanálise a
movimentos de emancipação decolonial, das mulheres, do patriarcado, sair do patriarcado. Ele tem
dois romances muito interessantes, um que se chama “Le passé simple”?, que seria literalmente
“O préterito”. Ele fala sobre a figura tutelar do pai, totalmente patriarcal e como se emancipa
disso a partir de um pensamento bastante psicanalítico. E possui outro livro que se chama “La
civilisation, ma mère”, a civilização mãe, no qual ele imagina a emancipação da mãe dele, que
entra nos movimentos feministas dos anos 1960 no Marrocos. E é também a partir de uma pegada
psicanalítica. A Psicanálise foi presente nesse sentido.

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Agora institucionalmente foi bem recentemente que foram criadas sociedades psicanalíticas.
Nos anos 1990, foi criada a sociedade psicanalítica marroquina, “Société de Psychanalyse Marocaine”.
Ela tem um dispositivo interessante e ambivalente, que trazia para serem ouvidos psicanalistas do
exterior para oferecer formações locais, que duravam tipo uma semana, duas semanas, etc. Os
psicanalistas estrangeiros ficavam duas semanas no Marrocos e a cada mês vinham e voltavam.
Essa relação com o exterior fez com que a Psicanálise também repensasse aspectos locais, no
sentido de que vários desses psicanalistas estrangeiros, especialmente, árabes, porque na verdade
no mundo árabe há três países com desenvolvimento mais ou menos importantes de Psicanálise:
Egito, Líbano e Marrocos. Eles desenvolveram e hoje possuem suas sociedades psicanalíticas. Como
em todos os países e em todas as sociedades psicanalíticas, houve obviamente conflitos dentro
dessas sociedades, guerras internas, dissociações, ou seja, da “Sociedade Psicanalítica Marroquina”
foi criado “Le cirque psychanalytique”, que é um círculo dissidente.
Então, a Psicanálise está presente de certa forma com duas vertentes ou praticada por
psiquiatras e dentro de uma abordagem mais médica, de reconhecimento administrativo, a
questão da Psicanálise leiga, etc. Em outra vertente está presente através de intelectuais literários e
desenvolvimentos sociais atuais que fazem mais pedido de um espaço para se dizer, para falar, que
não seja um espaço familiar, do grupo social. Porque essa, como dizia Foucault, essa aberração de
falar de si, de se dizer, que é uma aberração totalmente ocidental. Temos um período de globalismo,
de hibridação de todas essas culturas do mundo, mas esse espaço tem sido aberto no Marrocos com
pensamentos que foram ligados primeiro à emancipação das mulheres, que foi muito importante.
Hoje em dia estou descobrindo isso com novos analisandos aqui, imigrantes ou relacionados
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com realidades do Marrocos, pessoas muito jovens com 20 anos que estão fundando movimentos
LGBTQIA+ no Marrocos com criações muito interessantes! Que não são obviamente percebidas
pela Psicanálise majoritária, mas que estão sendo combinadas, também, com uma outra escuta
psicanalítica. E que é uma tentativa de libertação LGBTQIA+, que pretende também pensar a
decolonialidade, ou seja, que não vai na pegada do homem nacionalista ou do branco que vem
libertar os sujeitos racializados do Sul Global, e pensar, ao mesmo tempo, isso, e questões de
colonialidade, e como podemos pensar uma fluidez, de uma multiplicidade de postura de gênero e
sexualidade, sem necessariamente se remeter a uma salvação a partir do Ocidente. Isso vai sendo
pensado pela nova geração de psicanalistas no Marrocos. É pouco, mas...

Andrea Guerra: Mas, já é uma grande história, porque essas histórias apagadas, ou não
diria apagadas, porque elas estão lá, mas que não são publicizadas, hoje queremos saber delas,
pois são elas que estão nos formando. Conhecer esses movimentos nos informa e nos forma.
Compartilhar essas historicidades, mesmo que parciais, pois sempre serão parciais, é de uma
riqueza ímpar. Eu não sei se Janilton quer colocar uma nova questão ou se Thamy gostaria de
acrescentar algo. Eu penso que atravessamos as questões que tínhamos planejado e fomos muito
além com a transmissão de Thamy! Mas é tão rico que dá vontade de não parar, não é? Não sei o
que você pensa, Janilton , se quer colocar um ponto.

Janilton Gabriel de Souza: Na verdade, é agradecer, estou aqui, assim, em êxtase, porque
é muito bom ouvi-lo.

Thamy Ayouch: Obrigado.

Janilton Gabriel de Souza: É uma bela entrevista.

Andrea Guerra: Uma aula!

Janilton Gabriel de Souza: É uma aula.

Andrea Guerra: Acho que é uma formação, Thamy, o que você nos oferece! Tudo que
temos acompanhado de sua produção, o que você vem produzindo, tem uma dose de rigor com
ousadia, que é uma combinação muito criativa. Porque você não deixa o que escuta ficar de

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lado. Ao contrário, isso te orienta e também ajuda a pensar com a ideia fulcral da hibridez como
avançar. Você nos ajuda a pensar como fazer com a teoria no ponto em que ela é subversiva,
como poder usar essa dimensão? Porque a Psicanálise é datada, mas o Inconsciente não. A teoria
tem o seu ponto geopolítico, mas se trata de verificar na clínica como o inconsciente aí emerge.
Queria te agradecer, especialmente, porque você nos transmitiu algo de muito valioso: como
conseguir pegar o que interessa, o que não cede e deixar cair o resto. Porque, afinal, temos que
seguir na caminhada, não é?

Thamy Ayouch: Andrea, eu fico muito lisonjeado pelo que você disse. Tenho que te dizer,
vocês me ensinaram muito. Tive grande sorte de viver, de morar no Brasil, aprendi muito no Brasil
e eu acho que o país está na vanguarda. Hoje em dia, nessas questões tanto no que diz respeito
ao gênero, sexualidade, quanto e, sobretudo, no que diz respeito à raça. Eu fui lendo produções
brasileiras, que me permitiram me descentrar. Foi essencial! Foi conversando e trocando dentro
da dinâmica de intercâmbio com brasileiros e brasileiras, que de repente a Europa me pareceu tão
provinciana, tão provinciana! Obrigado!

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