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a Construcgao Teorica Pedagogiae & Educagao Social FORMAGAO DOGENTE AMPLIADA E PEDAGOGIA DA CONVIVENGIA: ELEMENTOS PARA A REFLEXAO SOBRE PRATICAS EDUCATIVAS NAO ESCOLARES Arthur Vianna Ferreira Marcio Bernardino Sirino Patricia Flavia Mota Introdugéo capitulo tem como objetivo demonstrar a importincia da ampliagio do conceito de docéncia na formagio dos fucuros edu- cadores, dentro ou fora do ambiente escolar. Para esta discussio, trazemos a teoria da Pedagogia da Convivéncia, do autor cataléo Xestis Jares, como uma ferramenta relevante no campo tedrico da Pedagogia Social, para pensarmos as novas formas de organizagao didatica na formagio docente inicial ou continuada. Assim, concretamente, a partir das reflexes suscitadas por essa teoria, podemos dar sentido ao que se encontra reconhecido como importante na formacao docente para o inicio desse século XXI € que € apontado pela legislagio cducacional brasileira, tanto na LDB, de 1996, quanto nas Diretrizes Curriculares ¢ Planos de Edu- cago destinados & formago docente no pais. Por isso, as discussoes trazidas por este capitulo tem como in- tengo dar subsidios para as seguintes questdes que se apresentam fundantes para a organizacio de um conceito de docéncia ampliada para a formagao docente: a inclusio de teorias ~ ¢ tedricos con na formagio docente inicial de temporaneos — da Pedagogia So professores que mostrem a importincia das praticas ja existentes em espagos nao escolares; a Pedagogia da Convivéncia como exem- plo de uma teoria que possa ser utilizada como ferramenta para a no ambiente nao escolar que levem em organizagao de didai considerac4o, principalmente, 0 conflito como elemento central das Arthur Vianna Ferreira | Marcio Bernardino Sirino | Patricia Flavia Mota relagées interpessoais; € 0 desejo de buscarmos novas posturas dian- te da realidade educacional em que nos encontramos, o que refletir4 na construgao de uma identidade profissional docente diferenciada, Estes trés pressupostos parecem indicar que, a partir de nos. iar um proceso educacional que atenda sa formagao, podemos ini nio somente as demandas dos sistemas educacionais e &s politicas sociais impostas pelos governos, mas que, a partir da convivéncia entre 0s sujeitos educacionais, atendam as reais necessidades das ca- madas mais vulnerdveis de nosso pats ¢ das instituigdes sociais que os acolhem em todas as suas dimensées. Refletir sobre a formagio docente, de forma ampliada, ¢ a Pedagogia da Convivéncia, como possibilidade de formacéo para priticas educativas nfo escolares, é © ponto inicial para a nossa leitura em Pedagogia Social. ‘A convivéncia como elemento de priticas socioeducativas Para compreendermos a convivéncia como uma ferramenta eficaz para 0 proceso de educaséo em ambientes nao escolares, consultamos 0 minidiciondrio da lingua portuguesa ¢, nesta bus- ca, encontramos para o verbete “convivéncia” a seguinte defini- cdo: 1. “Agao ou efeito de conviver; convivio. 2. Trato didrio” (Ximenes, 2000, p. 255). Dando continuidade & pesquisa, no verbo “conviver” foi pos- sivel identificarmos a perspectiva de “Viver em comum, em graus variados de intimidade” (Ximenes, 2000, p. 255). Esses significados podem nos direcionar para uma compreensio da convivéncia numa esfera do senso comum como sendo 0 ato de “estar com 0 outro”, no entanto, faz-se necessério questionarmos, sempre, o que se faz no “estar com o outro” e como se estabelecem esses vinculos. Na certeza de que, na convivéncia com o outro, vamos cons- truindo conhecimentos ¢ estabelecendo espagos formativos, di- recionamos o nosso olhar, nesta escrita, sobre a convivéncia nao como um simples contato, mas sim como uma Pedagogia — para espacos nao escolares que, segundo Graciane (2011, p. 96), “propoe 10 Construcao tebrica no campo da pedagogia e ediucacio social reaprender a utilizar nossos espacos de interagao para melhor com- preender 0 outro ¢ suas intengées”. Neste contexto, a “Pedagogia da Convivéncia” foi criada pelo educador catalao Xestis Jares, no ano de 2008, enquanto uma forma de estrutura¢ao do trabalho educativo, perspectivando-se alcangar uma Educagao em Direitos Humanos ¢ uma Educagio para a Paz. Jates, quando criou a Pedagogia da Convivéncia, tendo como base uma experiéncia concreta de Educacao Social construida no espaco escolar, buscou organizar reflexes sobre préticas socioedu- cativas com as caracteristicas de trés tipos de contetidos, conforme disponibilizamos a seguir: contetidos de natureza humana: direito A vida e ao desejo de viver, & dignidade, & felicidade, & esperanga; contetidos de relagéo social: ternura, respeito, nao violéncia, acei- tagao da diversidade ¢ rejeigéo a qualquer forma de discriminagio, solidariedade, igualdade; e contetidos de cidadania: justiga social € desenvolvimento, laicismo, estado de direito, direitos humanos (ares, 2008, p. 29). Estes contetidos — de natureza humana, de relagao social e de cidadania -, ao serem trabalhados em espacos nao escolares, con- tribuem para a promogio de uma educagio em direitos humanos ¢ uma educagéo para a paz que, segundo Jares (2002, p. 129), (.) esto to intimamente interconectados que a realizacéo de uns exige realizagao dos outros. Atualmente, chama- do direito a paz, que faz parte da chamada terceira geracio de direitos humanos (Jares, 1999), inclui e engloba prati- camente todos 0s demais direitos humanos, visto que sua realizagio efetiva supe a afitmagao de todos os demais... A teoria da paz 6, desse modo, a teoria dos direitos humanos. No entanto, para melhor caracterizar estas duas grandes “teo- rias’, trazemos o entendimento de educasao em direitos humanos, como sendo aquela que “vai além de uma aprendizagem cognitiva, incluindo o desenvolvimento social e emocional de quem se envolve ‘no processo ensino-aprendizagem” (Brasil, 2007, p. 29) e, ainda, n nha foram sistematizados em um conjun 1 e organizam essa Pedagogia da Con! Pata sintetizar e melhor facilitar a compreensa fund 018) elaborou um quad ent Convivéncia”, que dispomy Supée a reciprocidade no trato € ne de cada pessoa. O didlogo é também um fator essenci melhorar a qualid ida das relacé Qualidade que nos leva a partilhar os dif PRM aspeccos da vida, ndo somente materia também os sentimento’ A violéncia é uma forma de encarar 0s con nio de resolvé-los, Principio fundamen A vivéncia dos direitos hu avida dos der aos principios dent das estratégias nao violentas de resolugao de con Representa a garantia da liberdade de conscié da igualdade juridica de todos os cidadios. A cultura é um processo dinamico ligado as 5 artes Hy ald ; : : vn 7 A afetividade é necessidade fundamental de toc x 60s seres humanos. fi a necessidade que nos to’ sen humanos, indispensivel 4 construgio equilibr personalidade Construgio tedrica no campo da pedagogia e educacao social Perdao nao significa impunidade. A condigao do ak perdio para quem o solicita é 0 reconhecimento da falta, 0 arrependimento eo compromisso de que nao voltar a cometer a mesma agao. Conviver significa conjugar a relagio de igualdade e diferenca. Em todo 0 caso, a diferenca ou diversidade é parte da vida e pode ser um fator de conflituosidad: A felicidade AOR MRT <>usiasmo pela vida. A esperanga e a capacidade de encantarse, de ter A ligada a0 otimismo e, neste sentido, facilta a convivéncia positiva, LSS FTE Ca PINE com cleo bendfico paraa autoestima, individual ENR e coletiva, e funciona como um antidoto fiente & passividade ¢ 0 conformismo diante dos desafios. Quadro 1. Elementos da Pedagogia da Convivéncia Fonte: Ferreira (2018). ‘Temos a clareza de que todos estes dez elementos so import tes e carecem an- de atengao especial no que tange 4 sua relacao com os contetidos — de natureza humana, de relagao social e de cidadania ~ apresentados anteriormente. Pois, quando nos deparamos com a aceitagao da “diversidade”, a pritica do “perdao” e a busca pelo “bem-estar”, encontramos conexées com os contetidos da natureza humana; de igual forma acontece quando problematizamos a “di- namica da cultura’, desenvolvemos a prétic de “ternura” ¢ o habito do “didlogo”, pois, percebemos encontros significativos com os con tetidos de relagio social e, por fim, quando exercemos o “tespeito”, desenvolvemos a “solidariedade”, buscamos pela “nao violéncia” e, ainda, valorizamos 0 “laicismo”, diretamente, identificamos uma telagao com os contetidos da cidadania — processos educativos estes que nao sao lineares, mas que se correlacionam © tempo todo, por meio da Pedagogia da também é educar”, onvivéncia, na certeza de que “conviver Como um exercicio de exemplificagao ¢ aprofundamento das reflexdes no que tange & temiti proposta para este capiculo, a par- 13 Arthur Vianna Ferreira | Marcio Bernardino Sirino | Patricia Flavia Mota tir do Quadro 1, temos a oportunidade de perceber, por meio do elemento da “néo violéncia” e a sua descri¢ao, uma correlagdo entre a violencia ¢ sua perspectiva de resolugao/mediacao de confitos, Aspecto to necessitio na contemporaneidade, uma vez que, em diferentes espagos socioeducativos, os processos conflituosos acontecem, cotidianamente, ¢, por vezes, “desagregam” a convi- véncia humana ~ trazendo, como consequéncia, solugées violentas atreladas & forma como 0 conflito é percebido pelos sujeitos. Neste sentido, reforgamos a importincia de buscar, a cada dia, solugées nao violentas para os conflitos apresentados nos diferentes espagos sociais, a comecar pela diferenciagao atribuida ao conceito de “violéncia” do prdprio conceito de “conflito”, conforme Xesiis Jares, citando Sémelin (1983), nos orienta. E necessério diferenciar a agressio ou qualquer respos- ta violenta de interven¢io em um conflito do préprio conflito. A confusio ocorre porque iguala-se violéncia a conflito. Quando a violencia ¢ apenas um dos meios de resolver 0 conflito, destruindo 0 outro. A violéncia tende iminagio do adversério. A violéncia é um meio, 0 conflito é um estado de fato. (Jares, 2002, p. 141) a suprimir 0 conflito, apontando para a Neste sentido, a convivéncia construida entre os sujeitos inseri- dos nos diferentes espacos socioeducativos estar contribuindo para uma relagdo social mais humanizadora ou promotora de menos vio- encia? Nas leituras de Jares, talvez, possamos entender o confiit como um termémetro do processo de convi éncia. A relevancia do conflito no processo da convivéncia educacional segundo Jares A par dos estudos de Xestis Jares (2002, 2005, 2007 e 2008) vimos observando uma perspectiva positiva para os conflitos 4 relaciond-los a um processo natural, necessario e, potencialmente, 14 Construcio teérica no campo da pedagogia e educagao social Positivo para as pessoas ¢ os grupos sociais. Desta forma, a Peda- gogia da Convivéncia se nos apresenta como uma forma ~ politico- -pedagégica — de trabalhar os conflitos por meio de uma educagao em direitos humanos, objetivando contribuir na materializagao de uma educagio para a paz. No meio de um terrorismo global, terrorismos locais e degrada- 40 social, 0 que podemos fazer para pensar os conflitos presentes nos nossos contextos e perceber a potencialidade que neles habita? Questio sine-qua-non nesta sociedade contemporinea, que carece de uma énfase maior no valor da vida humana, da dignidade de todas as pessoas e, ainda, da cultura da nao violencia, da paz e da solidariedade, como nos propée Xestis Jares (2005). Para respondermos esta questao é importante que, antes, d mizemos a compreensio sobre educagio para a paz — uma vez que com clareza desta concepgao de educacao, teremos condi¢ées de compreender o processo natural de construgio dos conflitos. Segundo Jares (2002, p. 148), educagéo para a paz é a um processo educativo, dinimico, continuo e permanente, fundamentado nos conccitos de paz positiva ¢ na perspec~ tiva criativa do conflito, como elementos significativos ¢ definidores ¢ que, mediante a aplicagao de enfoques socio- afetivos e problematizantes, pretende desenvolver um novo ipo de cultura, a cultura da paz. Educagao para a paz possui trés modelos sistematizados, a saber: técnico-positivista, hermenéutico-interpretativo e sociocritico, sinteti- zados, a seguir, a partir das contribuicdes de Jares (2002, p. 145-147). a) técnico-positivista, como uma perspectiva que trans- mite um ideal de educagéo neutra, sem conflito, ¢ que a educa¢4o para a paz tem uma materialidade observavel € mensuravel; b) hermenéutico-interpretativo, como um viés de educagao para a paz que evita — na mente ~ 0s conflitos como uma forma de criar um mundo utépico sem violencia; 15 ia Flavia Mota ‘Arthur Vienna Ferreira | Marcio Bernardino Sirino | Patri 0) sociocritico, um caminho que percebe de maneira critica ‘0 conflito, analisa suas diferentes dimensées formadoras, nao se impée “neutra”, pois esté relacionada com a trans- formacio das estruturas violentas justamente com resolu- gées nao violentas para os conflitos apresentados. Sobre estas trés perspectivas, Jares (2002, p. 147) destaca que: Nio € preciso dizer que, como em toda classificagao, exis- tem caracterfsticas que podem se enquadrar em diferentes categorias e, em segundo lugar, ocorrem outros fatores que costumam dificultar a classificagées anteriores, como a) a amplitude que se atribui a cada uma delas com relagéo a seus curriculos ou objetos de estudo - enfoques amplos ou restritos; b) a temporalizagao e c) prioridade dos objetivos — quais objetivos a curto prazo e quais objetivos a médio alongo prazos. Percebam que a compreensio de educacéo para a paz nao é uninime. Ela possui suas diferentes vis6es sociais ¢ formas de com- preensio que, inclusive, por vezes, aglutina caracteristicas comuns a diferentes categorias. De igual maneira acontece com o conceito de conflito. Anali- sando, novamente, as contribuicées do minidicionario da lingua Portuguesa, encontramos para este verbete a seguinte definicao: Luta, briga. 2. Guerra. 3. Choque, colisao (de interesses, ideias etc.). 4, Desavenga séria” (Ximenes, 2000, p. 241). Percebam que a definigao de “conflito”, insetida no minidicio- nario, se alinha a uma compreenséo do senso comum que iguala conflito a “qualquer resposta violenta” (Jares, 2002, p. 141). Entretanto, de acordo com Xesis Jares (2002), 0 conflito possui duas Petspectivas, tais quais: 1) perspectiva tradicional que con- sidera 0 conflito como algo negativo e associado a violéncia; ¢ 2) Perspectiva Positiva que, alicercado numa teoria critica da educagao © Pesquisa para a paz, se configura num processo natural, que e- 16 Construgao tebrica no campo da pedagogia e educagao social timula a criatividade, percebe 0 conflito como um novo desafio e, consecutivamente, est relacionado a mudangas nas relagoes. No que tange a perspectiva tradicional, Jares (2002, p. 132) sinaliza que 0 conflito é considerado como: Sindnimo de desgraca, de mé-sorte, conflito como algo patolégico ou aberrante; como disfungao; etc. A consequ- éncia desse estado de coisas é que o conflito é uma situacio a ser evitada ou pelo menos € algo nao-desejavel. Infeliz- mente, 0 conflito costuma ser percebido quase unicamente em termos negativos. Por sua vez, sobre a perspectiva positiva, Jares (2002, p. 135) destaca que conflito é percebido como: Em primeiro lugar, 0 conflito é consubstancial e inevité- vel & existéncia humana (p. 134). Em segundo lugar, é um. processo natural e necessario em toda a sociedade humana, é uma das forgas motivadoras da mudanga social ¢ um ele- ‘mento criativo essencial nas relagées humanas (p. 134). E, por fim, em terceiro lugar, 0 conflito é um desafio, tanto intelectual quanto emocional para as partes envolvidas. Mas, por mais que tenhamos o entendimento da perspectiva positiva do conflio como uma possibilidade de fortalecer a dimen- sdo estrutural ¢ individual dos sujeitos, temos a clareza do quanto é dificil dinamizar processos conflituosos, justamente, pelo con- flito, por vezes, focar na dimensio estrutural das organizagées € instituigdes, outras vezes, por percebermos um alinhamento com as condutas individuais dos integrantes do grupo social e, ainda, por combinar ambos enfoques, em espagos escolares € nio escolares, exigindo, por sua vez, uma compreensio mais ampliada sobre a estructura que sustenta o préprio conflito. Com as contribuicées de Jares (2002, p. 138-141), conseguimos identificar a seguinte estrutura do conflito, composta por quatro 7 Arthur Vianna Ferreira | Marcio Bernardino Sirino | Patricia Flavia Mota partes, a saber: 1- causas que 0 provocam; 2- protagonistas que in- tervém; 3- 0 processo que se seguiu; ¢, por fim, 4- contexto no qual se produz. Para melhor problematizar esta estrutura, apresentamos, a seguir, cada um destes alicerces. Sobre 0 primeiro — causas que 0 provocam — podemos conside- rar que 0 conflito se estructura, muitas vezes, por conta de oposigies pedagégicas, ideolégicas ou organizacionais, relacionadas ao poder, 4 estrutura ou, ainda, com questées pessoais e de relacao interpessoal, Referente 20 segundo alicerce — protagonistas que intervém —, € possivel afirmar que o conflito se estrutura por meio de dois protagonistas, tais quais: protagonistas “diretos” que possuem uma relagdo espectfica com as causas que provocam o conflito, ¢ prota- gonistas “indiretos” que, mesmo inseridos na origem do conflito, em algum momento intervém nele. No que tange ao terceiro ~ 0 processo que se seguiu —, convém destacar que diversas varidveis influenciam para o estabelecimento de um conflito. Pode ser a questéo dos valores de cada um, o tem- po disponivel ou vivenciado, as normas impostas pelos espagos, os interesses individuais ¢ coletivos e, dentre outras, as pressdes pelas quais vivem ou sofrem os sujeitos. Cada uma dessas dimensées vai contribuindo para esttuturar 0 conflito. Por fim, © quarto ¢ tiltimo alicerce ~ 0 contexto no qual se Produz ~ traz uma discussao necessdria sobre 0 conflito como uma conduta cultural, pois o conflito se estrutura num contexto socio- cultural determinado e este contexto produz o conflito, por sua dimensao cultural ali inserida. Neste contexto, ao pensarmos no conflito, educacional, poderemos tratar as praticas socio: menos pessoal e mais coletiva, Por si mesmas sio conflituosas, justamente, dentro do processo reducativas de forma entendendo que as relagdes sociais 18 Construcio tedrica no campo da pedagogia ¢ educacao social Contextos conflituosos nos processos educacionais néo escolares: o caminho para a convivéncia Apés introduzirmos os conceitos de convivéncia, expressos na teoria de Jares, ¢ 0 conflito, como parte do trabalho da utilizacao dessa ferramenta, cabe-nos entender de que forma podemos articu- lar essa teoria a nossos trabalhos sociopedagégicos ou, minimamen- te, pensarmos sobre eles a partir dessa perspectiva. Por isso, como caso exemplar, apresentamos de forma muito breve e esquemitica parte dos resultados de uma pesquisa desenvol- vida pelo nosso Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensio intitulado Fora da Sala de Aula da Faculdade de Formagao de Professores da Uerj Sio Gongalo e que busca pensar esse espaco socioeducativo como um espago de aprendizagem a partir dos seus sentidos e signi- ficados nos processos de convivéncia socioeducativa. Esse trabalho foi apresentado no Seminério Interuniversitario de Pedagogia So- cial em Palma de Mallorca, Espanha, em novembro de 2018. A investigagao levada a cabo no municipio de Sao Gongalo in- titulada “A relevancia da Pedagogia Social na formacao docente ini- cial ¢ continuada e seus reflexos na organizagéo de novas metodo- logias de agées socioeducativas no Brasil”, que teve como objetivo geral discutir sobre a inclusio do campo teérico da Pedagogia So- cial na formagao docente inicial e/ou continuada no ensino superior no Brasil, buscou trazer em consideragao a Pedagogia da Convivén- cia apregoada por Jares como um dos elementos fundantes para se pensar o papel do pedagogo e/ou docente em licenciaturas no pais. A valorizagao dos elementos da Pedagogia da Convivéncia (cf. Ferreira, 2018) para pensar o lécus de trabalho docente nao cur- ricular formal, estabelecido pelas diretrizes e curticulos minimos nacionais, se apresenta como fonte de novas metodologias e possi- veis praticas socioeducativas nos quais os educadores dedicados ao processo educacional nao escolar podem néo somente pensar na sua pratica, mas, também, nas demandas oriundas dos grupos sociais dade. em situagio de vulnerab 19 ‘Arthur Vianna Ferreira | Marcio Bernardino Sirino | Patricia Flavia Mota ‘Assim sendo, as principais estratégias utilizadas para a inclusig dos contetidos (e temas) da Pedagogia Social na formasao docente inictl foram articuladas da seguinte forma: nos trabalhos de exten. sdo universitéria que promoveram 0 encontro entre os estudantes ¢ 0s educadores socais que se encontram no campo de trabalho (entre 2017 e 2018 na Uer}), possibilitando, assim, a troca de experiéncias ¢ de inquietagées que a convivéncia sociceducacional tenciona no trabalho com os mais empobrecidos; ¢ a possibilidade de inclusio das discussées tematicas pertinentes a esse campo de estudo por meio de disciplinas do curriculo regular de licenciaturas a partir de 2017 (Didética, Psicologia da Educagao e Psicologia Social), trazen- do temas cotidianos em que se encontram a realidade social brasi leira e de que forma, a partir da especificidade dos fundamentos da educagio, 0 docente possa contribuir para esse trabalho. De fato, ao propormos a Pedagogia da Convivéncia como parte do processo formative docente regular, estamos entendendo a im- portancia do que Jorge Larossa (2002) entende como “hetero-auto- -bio formagao” dos individuos em seus processos educacionais. Ou seja, os processos formativos com os individuos sao introdu- tidos pelas relagées sociais ordindrias, por meio das diversas institui- G6es existentes (heteroformagio), deve levar a0 sujeito a uma autono- mia que o faa entender quais os melhores caminhos a serem tracados «em seu processo individual de formagao para que a realidade concreta fasa sentido para si mesmo e para os demais (autoformagio). ‘Tudo isso nao se desenvolve sem a presenga de um espago con- creto, real ¢ cheio de conflitos que obrigue o individuo a tomar Posicionamentos diante dele a partir do que foi construido tanto pela hetero quanto autoformasées, A bioformagao & um elemento fundamental no processo consti- tuinte do ser docente em qualquer espaco educacional e, de maneira ‘mais especial, em espagos socioeducativos. Neste contexto, os contetidos propostos por Jares (2008, p. 29) a serem trabalhados no processo da convivéncia educacional si importantes para o futuro docente. Os contetidos de natureza hu- ‘mana, expressos nas diferentes disciplinas de fundamentos dos cur- 20 Construcao tedrica no campo da pedagogia e educacao social sos de formagio professores, podem ser um conjunto de reflexdes valido para pensarmos, nao somente naquilo que é comum a todos 0s seres humanos, mas, também, o que se apresenta como necessi- dades basicas a um contingente populacional que se apresenta fora dos pardmetros minimamente accitdveis na sociedade contempora- nea e que se encontram a nosso encargo no ambiente educacional. Os contetidos de natureza relacional (Jares, 2008, p. 29), fruto da construgao formativo do ser humano, se apresentam como qua- se resultado final da teflexao sobre os contetidos da natureza. Ao pensar a humanidade em suas dimensées antropolégicas, filos6fi- cas, psiquicas, entre outras, o educador em proceso de formagao € convidado a questionar sobre elementos importantes ¢ constituintes do ser humano (como ternura, afetividade, didlogo, bem-estar, etc.) € que sao vivenciados somente em coletividade, ou seja, na relagao que estabelecemos nos pequenos ¢ grandes grupos sociais. Assim sendo, 0 trabalho clamado por Jares, na sua Pedagogia da Convivéncia, passa a ser uma das bandeiras da formagao docen- te inicial e continuada para o trabalho em ambientes educacionais escolares ou nio: a educacéo para os direitos humanos. Neste sentido, temos em Jares (2002) um dos seus maiores pro- pagadores, pois, para este autor, o projeto de educagao para a paz est totalmente pautado na possibilidade de entendermos as motivacdes histérico-sécio-filosdficas que nos comprometem a uma educacio para e nos direitos humanos, independente do que tenha sido feito daquela vida a qual temos diante de nés e que, por semelhanga biolé- gica, psiquica e, consequentemente, social, chamamos de “humanos”, ‘Ao trazer a Pedagogia Social para a formacao docente, reafir- ireitos humanos como um dos mamos 0 estudo aprofundado dos contetidos da relacdo social mais importante e que vai ser basilar para o terceiro, € continuo, contetido constituinte da construgéo da Pedagogia da Convivéncia que so os contetidos da cidadania. Na verdade, 0 que Jares coloca como contetidos da cidadania (ares, 2008, p. 29), presentes na Pedagogia da Convivéncia, j4 se encontra como elementos marcantes da nossa formagéo docente nesse pais. A Lei de Diretrizes e Bases da Educagio Nacional, Lei a ia Flavia Mota Arthur Vianna Ferreira | Marcio Bernardino Sirino | Patri 9.394, de 1996, as Diretrizes Curriculares de Pedagogia, de 2006, eas Diretrizes Curriculares de Licenciaturas, de 2015, trazem no conjunto de seus pardgrafos e dispositivos 0 conceito de cidadania, seus desdobramentos e a importancia da formagao docente té-1o bem articulado em seu conjunto de teorias a serem refletidas na sua formagéo inicial e continuada. ‘Além disso, 0 Brasil possui um Plano Nacional de Educagio ¢ Direitos Humanos (PNEDH), de 2007, que institui néo somente as diretrizes para esse tipo de educagio, promotora de paz, como recorda Jares (2002), nao somente para o sistema escolar, mas tam- bém para o sistema de educagao nao escolar (cf. Brasil, 2007, p. 43). ‘Ou sejaxos contedidos propostos pela Pedagogia da Convivéncia se configuram como elementos fundantes da formacao docente para além dos contetidos programiticos estabelecidos pelos curriculos mi- nimos formais. A convivéncia é 0 campo da relagao educacional, esco- lare ndo escolar, que se produz no cotidiano e que se transforma a par- tir das necessidades dos grupos envolvidos nos processos educacionais. Sendo dessa forma, a introdugéo da Pedagogia Social na for- magio docente pode contribuir para a reflexio de um elemento intrinseco & convivéncia: 0 conflito. Desta forma, a Pedagogia da Convivéncia, como organizada por Jares, nos auxilia na capacidade de formar os individuos responsaveis pela formacao docente de for- ma ampliada (ou seja, na escola ou fora dela) para compreender os conflitos intrinsecos nas relagGes de convivéncia, nao com o sentido de resolvé-los, porém, com o desejo de incorporé-los & pratica do- cente cotidiana que auxiliard 0 sujeito no seu processo, individual € coletivo, de ser-no-mundo por meio da educacao. Partindo deste pressuposto, a decodificagao dos conflitos exis- tentes no ambiente educacional (cf. Jares, 2002, p. 138) em quatro Partes (causas, protagonistas, processos e contextos) passa a ser uma ferramenta a mais para que o futuro educador ascenda 4 compreen- sao de como 0 trabalho da convivéncia est sendo organizado pelo grupo social no qual ele se faz responsavel (e, Por isso, também se encontra como parte crucial da convivéncia), se organiza e produz Conflitos entre os diversos sujeitos e seus grupos de pertenga. 2 Construgao tedrica no campo da pedaogia e edlucacao social Assim, o educador conseguird enfrentar os conflitos do proces- so educacional de forma um pouco mais consciente de suas poten- cialidades ¢ limitag6es ¢ articulando os fundamentos aprendidos go longo de sua formagao elou articulando redes de trabalho que possam ajudar, ndo a resolver os conflitos em si — pois esse no € 0 objetivo principal do trabalho da convivéncia ~ mas proporcionar uma educagao para a paz, que, para Jares (2002, p. 164-165), ser a possibilidade de vivermos as diferengas sociais ¢ pessoais, admi nistrando os conflitos existentes na convivéncia e promovendo os valores fundamentais que nao devem ser negados a nenhum dos seres humanos, independente da sua relagéo étnica, racial, sexual, social ou econdmica, ¢, por que nao dizer, educacional. Os resultados desta investigagao nos ajudam a desenhar um panorama de formagio docente ampliada (inicial ¢ continuada), a partir da introdugao desses elementos da Pedagogia Social como convivéncia nos estudos de Jares (2002, 2005, 2007). Escolar) Formaco dacente ampliada (Escolar e Contetidos da natureza humana, relacionale Pedagogia da cidadania Cconsvencia Direitos ares, 205) Cousas Deveres Protagonistas Contextos Processes Elementos da Consequencias Introdugao da Pedagogia Social na formacae inicial & continuada de educadores Esquema 1. O local da reflexao do conflito na organizagio da formagio docente inicial e continuada para trabalhos socioeducativos Fonte: Elaborado pelos Autores (2019). 23 Arthur Vianna Ferreira | Marcio Bernardino Sirino | Patricia Flavia Mota A introdugio da Pedagogia da Convivéncia € a reflexao, que deve ser aprofundada, dos conceitos entrelagados por esse autor, de- vem nos ajudar, primeiramente, a nos situar no ambiente educacio. nal nao escolar (ou escolar) de contetidos que nos levam a formacig do nosso ser como humanos que, ao viver os elementos minimos propostos pela convivencia entre os individuos € gtupos distintos, trazem 0 conflito como um dos elementos de sua chave. A partir da decodificagao deste elemento em destaque — nao pelo seu cardter desagregador, mas pela sua possibilidade de retroa- limentar os elementos préprios da convivéncia -, podemos dialogar, construir, negociar, demandar, articular ¢ criar todos os tipos de valores, culturas, direitos, deveres que sustentaram a nossa existén- cia humana em todas as suas dimensoes (biopsicossocial), princi- palmente, quando esses grupos se veem destituidos de condicées para, no conflito promovido pela convivéncia, serem destruidos, humilhados e até mesmo eliminados do convivio social. Concluindo parcialmente uma discusséo sobre a docéncia que precisa ser ampliada A docéncia deve ser pensada sempre de forma ampliada, Isso significa na sua diversidade de elementos a serem pensados no mo- mento da organizagéo didatica de seus contetidos, assim como nos locais de realizagao da educagdo. Pensar que a escola pode ser o nico local de exercicio da docéncia ¢ regredirmos aos conceitos es- colares medievais que tanto lutamos para que fossem derrubados na sociedade contemporanea. Pensar em formacao docéncia, apenas como sinénimo de “escola”, ¢ levantar muros em um tempo his- ‘rico no qual precisamos construir pontes. E os responséveis pela formagio de novos formadores devem levar em consideracéo essa tealidade na hora de organizar sua didética, que néo serd somente voltada para o que acontece dentro da escola, mas, também, deve levar em consideracao as outras instituig6es sociais que solicitam de 1nés, os especialistas da educagéo, uma postura sobre como organi 24 Construgao teérica no campo da pedagogia e educacio social zar as rotinas de aprendizagem necessdrias para a formagio do ser humano em sociedade. E por isso que este capitulo encontra seu sentido maior: sus- citar em cada dos leitores 0 desejo de se colocar nessa seara, A legislacao educacional brasileira, as diretrizes curriculares nacio- nais e os planos educacionais organizados até o presente momento mostram o reconhecimento, nas politicas publicas, de que 0 espago socialmente reconhecido como educacional nao pertence somente a escola (embora ela continue sendo o espago privilegiado e neces- sério de articulagao de conhecimentos cientificos ¢ de patriménio cultural no Ocidente). As instituigées € suas relagdes sociais sao locais veridicos de for- magao humana ¢ de educagéo que gera a convivéncia fundante de quaisquer priticas educacionais de origem académica e cientifica. Ocupar esse espaco é 0 desafio dos individuos que escolhem a docéncia como identidade profissional na sociedade brasileira. A relevncia do estudo de Xestis Jares pode se encontrar nesse as- pecto da formaséo: a partir da convivéncia entre os individuos, nos ambientes néo escolares, vamos acentuando a forma com a qual vamos construindo a nossa identidade profissional como edu- cadores, que no possuem mais a escola como o tinico espago de formagao dos individuos. Ao contrario, valorizamos a nossa formacao e os contetidos programaticos da formagao docente inicial ¢ continuada quando somos capazes de articulé-los com a realidade concreta fora do am- biente escolar, possibilitando os processos educacionais aplicaveis aos diversos espagos institucionais em que somos convidados a par- ticipar com nossas priticas educativas. ‘Até © presente momento, a partir dos estudos que estéo sen- do realizados, uma das contribuigdes importantes da Pedagogia da Convivéncia para a formagio docente, inicial ¢ continuada, é levar em consideragéo 0 conflito como parte do processo educacional, principalmente os que se referem As relacées interpessoais entre os educadores e educandos ~ téo valorizados pelos espagos educacio- nais nao escolares. Ao tentar decompor os conflitos em suas quatro 2B Arthur Vianna Ferreira | Marcio Bernardino Sirino | Patricia Flavia Mota partes, essa pedagogia busca dar mais subsidios para o profissio. nal da educacéo em formasao, inicial e continuada, para que possa entender melhor sua fungio identitéria em espagos nao escolares, assim como organizar a didética nesses mesmos espacos de forma ; atender as demandas dos seus educandos. O convite que se realiza ao trazermos a Pedagogia da Convi- véncia no campo da Pedagogia Social é continuarmos a construig possibilidades de reinvengéo das nossas praticas nos espacos socioe. ducacionais do pais. Os limites que matcam a educagéo em espacos no escolares nao se apresentam tio definidos como gostarfamos que estivessem em nosso contexto social. O que se apresenta para nds é tuma longa carta de intengio de praticas educativas nao escolares e, Consequentemente, a construgao da identidade docente nao escolar, Cabe a cada um_de nés, responséveis pela formagio docente, ampliarmos as potencialidades de nossa atuagao. Talvez, essa seja 0 ‘nosso primeiro conflito a ser enfrentado como profissionais da edu- cagao convencidos, ao longo da histéria da formacao docente brasi- leira: que 0 nosso local se restringe, apenas, ao ambiente escolar. Ou ior, que nao somos capazes de ocupar outros espacos sociais que reconhecem ~ e precisam ~ dos nossos conhecimentos na drea dos fundamentos da educaséo para articulé-los com a realidade socal de vulnerabilidade em que se encontram parte de nossos educandos. Referéncias BRASIL. Plano Nacional de Educ: agdo em Direitos Humanos. Bra- sili Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educasio, Ministério da Justica, Unesco, 2007. 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