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FAO, ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL CUJOS AVANÇOS EM SEGURANÇA

ALIMENTAR SÃO FREADOS PELO NEOLIBERALISMO ECONÔMICO:


A DICOTOMIA ESQUERDA-DIREITA NO BRASIL COMO EXEMPLO

Francisco Sena Barbosa de Almeida1

INTRODUÇÃO
O artigo a ser apresentado a seguir, com base na conjuntura brasileira a partir da
redemocratização, pretende discorrer acerca de como as expectativas da Organização das
Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) por resultados positivos na área de
Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) deparam-se com limitações impostas pelo
neoliberalismo econômico. Para tanto, após abordagem do contexto histórico justificável e da
Ideologia da Nova Direita, a qual servirá como sustentação para os argumentos desenvolvidos,
serão analisados os períodos dos mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002), Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Jair Messias Bolsonaro (2018-2022).
Com isso, objetiva-se expor e reforçar a hipótese de que a FAO conseguiu assistir a
importantes avanços colaborativos quando esteve à frente da República brasileira um chefe de
Estado inclinado mais à esquerda (Lula); em contraste com os resultados obtidos durante
governos de líderes políticos de centro-esquerda e de extrema-direita, mais íntimos do modelo
neoliberal (FHC e Bolsonaro, respectivamente). Além disso, em vista da reeleição de Lula em
2022, na seção final será apontada a expectação geral quanto ao desempenho do novo governo
em relação à SAN e à atenuação da pobreza nos próximos 4 anos.
Por fim, vale ressaltar que não há compromisso deste trabalho com possíveis aplicações
da referida hipótese em um caso de observação generalizada, visto que concepções de
“esquerda” e “direita” diferem-se quando dadas as concepções ideológicas difusas em
determinado país, continente ou subcontinente.
1. Contexto Histórico:
Após uma série de conferências realizadas durante os acontecimentos da Segunda

1
Graduando do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP).
Guerra Mundial2, tem-se como resultado de discussões levantadas na Conferência de Hot
Springs (1944) o nascimento da Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura (FAO), em 16 de outubro de 19453. O grande conflito mundial, iniciado em 1939,
foi capaz de alterar completamente a maneira como a comunidade internacional lidava com
assuntos relativos à alimentação e à fome. Dado o contexto de extremo caos causado pela
guerra, começou-se a reconhecer que uma alimentação apropriada poderia garantir às
populações resultados positivos em questão de saúde. Concluiu-se, portanto, que seriam
necessários empenhos voltados ao alinhamento da produção e da distribuição de alimentos, a
fim de evitar e combater a desnutrição. Em consequência dessa visão inédita, governos de todo
o mundo imergiram em uma fase de implementação de políticas em que a comida ocupava
posição central (Dodd, 1949).
Nesse caminho, nos Estados Unidos da América, foi pioneiro Franklin D. Roosevelt,
32º presidente da grande potência. Em janeiro de 1941, apresentou suas “Quatro Liberdades”;
dentre as quais estava a “liberdade de querer”4, o que representa o compromisso de os
mecanismos econômicos garantirem “um tempo de vida saudável e pacífico para os habitantes
de todo o mundo”. Em vista disso, Roosevelt forneceu luz à ideia de “casamento” entre dieta
saudável e produção agrícola eficiente. Também em 1941, a reunião de 900 delegados na US
Nutrition Conference for Defense direcionou à conclusão de que a erradicação da fome deveria
constituir as metas das democracias de todo o planeta5 6.

Entretanto, se por um lado os desencadeamentos pós-Segunda Guerra contribuíram


para a consolidação de organizações como a FAO; por outro, influenciaram movimentos
político-ideológicos contrários à promoção do chamado “Estado de Bem-Estar",
principalmente a partir da década de 1970. Como explicitou Pereira (2016) em sua tese de

2
As referidas conferências são as seguintes: Moscow Declaration of the intent of the Big Four (1943); The
Dumbarton Oaks Conference (1944) e The San Francisco Conference (1945) (Dodd, 1949).
3
Em outubro de 1945, 42 governos ratificaram a Constituição da FAO. Três anos depois (em 1948), o número de
Nações-membro era de 58 (Dodd, 1949). Atualmente, segundo a Organização, são 194 Estados Membros.
4
Influenciado pelas ideias de Roosevelt, o economista australiano Frank McDougall expôs a proposta de criação
de um programa das Nações Unidas para a “liberdade de querer comida”.
5
No entanto, não mais se considerava apenas a “fome óbvia”, mas igualmente a “fome oculta”, desvendada graças
aos avanços da ciência contemporânea no tocante à nutrição (Dodd, 1949). Em vista disso, afirma-se que, a partir
da virada do século XX, a análise dos fatores qualitativos da alimentação começa a servir como guia para os
projetos desenvolvidos a fim de erradicar a desnutrição.
6
Quanto aos objetivos atribuídos à performance das nações-membro da FAO, espera-se que sejam aumentados
os níveis de nutrição dos povos sob jurisdições nacionais. A garantia de melhorias na eficiência produtiva e na
distribuição de alimentos e produtos agrícolas deve ser almejada. A elevação da condição de vida das populações
residentes em áreas rurais deve ser uma prioridade. Por fim, visa-se que todos os meios indicados possam
contribuir com a expansão da economia mundial.
doutorado7, a Ideologia da Nova Direita8 surge em decorrência de um cenário econômico de
instabilidades no Ocidente capitalista, as quais têm relação direta com o alarmante período de
recessão enfrentado. Consequentemente, passou-se a investir em tentativas de extrair do
Estado a responsabilidade por ações sociais, a fim de reduzir gastos e garantir total prioridade
às manutenções da economia (com base nos preceitos neoliberais). Por conseguinte, a Nova
Direita tem se posicionado, desde o princípio, contra o modelo de intervenção estatal proposto
às democracias capitalistas no pós-guerra. Inserido nisso, sabe- se que se encontra o contexto
histórico da FAO.

Nas raízes dessas concepções difundidas pelos representantes da Nova Direita, de


acordo com George e Wilding (Id.), está uma “crença quase religiosa” de que a realidade das
sociedades é resultado de uma “ordem espontânea”, a qual não deve se tornar alvo de tentativas
de alteração pelas políticas sociais promovidas pelo Estado. Portanto, seguidores da ideologia
neodireitista consideram os defensores do Estado de Bem-Estar como “lamentavelmente
ignorantes em economia” (GEORGE, WILDING, 1994, p.18), ao defenderem a ideia de que
os gastos sociais são geradores de impactos negativos sobre as economias das nações9.

No Brasil, de acordo com Castro (1984), a economia encontra-se subordinada aos


interesses do capital estrangeiro desde os tempos coloniais. Tal cenário teria evoluído,
portanto, até a conjuntura atual. A fome seria, então, um produto do período de selvageria dos
processos econômicos fomentados pelos colonizadores portugueses; contexto no qual a
exploração de riquezas naturais e matérias-primas serviu tão somente para o enriquecimento
das potências indutriais europeias.

A partir da década de 1990, inicia-se no país a implementação da liberalização


financeira e comercial e a adoção de postura subordinada como receptor de investimentos
externos (TAVARES & MELIN, 1998, p. 51). O Consenso de Washington configurou-se
como motivador principal da decisão estatal de limitar o campo de ação do próprio Estado e
abrir o espaço da economia (TEIXEIRA, 1998, p. 225). Quanto a essa fase, considera-se
Fernando Collor de Mello, 32° presidente da República brasileira, como ator principal da
pesada investida neoliberal no Brasil. Desde então, deu-se continuidade à preservação do

7
PEREIRA, Camila Potyara. Proteção social no capitalismo: crítica a teorias e ideologias conflitantes. São
Paulo: Cortez, 2016.
8 A Ideologia da Nova Direita caracteriza-se pela combinação de princípios neoliberais e neoconservadores.
9
O que se choca com tal concepção é a defesa por parte da FAO de políticas formadoras de redes de proteção
social, onde esteja inclusa a segurança alimentar; como transferência de renda e a criação da ponte entre escolas
e produtores locais de alimentos (Graziano e Takagi, 2010).
projeto neoliberal, principalmente durante o governo FHC.
2. A influência das concepções da Nova Direita no contexto político brasileiro de
combate à fome e à pobreza:
De acordo com a pesquisadora Mariana Santarelli, membro do Fórum Brasileiro de
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), partidos de centro e de direita
tendem a negligenciar a problemática da segurança alimentar no Brasil. Existe um empecilho
frente à possibilidade de se enxergar o combate eficiente à fome como necessário: uma visão
restrita e insuficiente em relação a essa questão. Em contraste, candidatos e políticos de
orientação esquerdista ou de centro-esquerda costumam empenhar-se na elaboração e
apresentação de propostas relativas ao combate tanto à fome quanto à desigualdade social.
Segundo Mariana, tal inclinação se deve ao histórico de maior “escuta e diálogo” desses
partidos com vozes representantes de camadas socialmente vulneráveis aos flagelos oriundos
da estrutura capitalista. A pesquisadora, no entanto, enxerga como urgente a
“despartidarização” da fome, posto que alimentação trata-se de um direito defendido pela
Constituição Federal10. Portanto, necessita-se que a pauta esteja englobada na política de
Estado; não atrelada somente a governos de determinados momentos e ausente de outros.
No que concerne a ideologias políticas, faz-se pertinente expor a visão de Antunes
(2018, p. 267) acerca da extensão mundial do projeto neoliberal. Segundo o autor, mesmo os
governos que se apresentam como praticantes do “social-liberalismo”11 preservam os
pressupostos fundamentais do neoliberalismo econômico em seu fazer político. Um exemplo
próximo são os próprios governos do Partido dos Trabalhadores (PT), os quais, segundo
Antunes, exerceram uma dinâmica bem-sucedida de conciliação dos interesses da classe
burguesa com os programas e políticas sociais voltados ao atendimento das camadas pobres
da sociedade; desse modo, realiza-se o encobrimento das causas estruturais do fenômeno das
desigualdades sociais (FILGUEIRAS E GONÇALVES, 2007).
A seguir, serão analisados o cenário e as políticas de segurança alimentar em governos
de distintas posições no espectro político-ideológico (FHC, Lula e Bolsonaro); assim como
será apontado o envolvimento da FAO 12 em cada período.

10
O Artigo 6° da Constituição de 1988 diz que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma da constituição."
11
Aqui, no contexto político brasileiro, encaixar-se-iam governos de esquerda e de centro-esquerda.
12
As principais operações da FAO são: a coleta de informações no campo de estudo ou atuação; oferta de
assistência técnica aos governos e promoção de ações desempenhadas no país, as quais podem ser
governamentais, individuais e coletivas; tanto nos campos de tecnologia quanto no plano econômico (Dodd,
1949).
3. A questão da SAN em FHC:
No dia 1º de janeiro de 1995, Fernando Henrique Cardoso13 assume o cargo de
presidente da República. Durante seus dois mandatos, atuou como ferrenho promotor dos
princípios neoliberais. Esse alinhamento aos interesses do neoliberalismo data de 1991, ano
em que FHC assume o controle do Ministério da Fazenda e garante usufruto de vasto
reconhecimento devido à sua posição à frente da consolidação do Plano Real de 1994
(FILGUEIRAS, 2000). No mesmo ano, Cardoso (supostamente) pediu aos grupos de
empresários que o apoiavam para que esquecessem o que havia escrito em suas obras
anteriormente; as quais foram fortemente influenciadas pelas teorias de Karl Marx.
Suas estratégias como presidente caracterizaram-se pelo afastamento do Estado de
assuntos e iniciativas considerados pouco essenciais. A primeira movimentação concreta no
que tange às políticas sociais de Segurança Alimentar Nacional (SAN) foi a substituição do
Plano de Combate à Fome e à Miséria pelo Programa Comunidade Solidária (PCS)14, fundado
em 12 de janeiro de 1995. Houve também a extinção do Conselho de Segurança Alimentar e
Nutricional (CONSEA)15 16
, implementado durante o mandato de Franco, seu antecessor.
Segundo Cruz (2017), o Comunidade Solidária atribuía à sociedade civil a corresponsabilidade
de atuar no combate à fome; com o discurso movido pela ideia de solidariedade. Portanto, a
participação requerida exigia o investimento de recursos financeiros da própria população; o
que distanciava o Estado de um papel determinante. Além disso, de acordo com Yabek e
Giovanni (2007), o PCS tinha caráter conservador, visto que concentrava o fluxo de suas ações
em direção a municípios considerados mais pobres. À vista disso, comprova-se que a
efetividade do programa foi pouco significante, pois sua área de ação também era
geograficamente limitada. De acordo com Del Grossi, Graziano da Silva e Takagi (2001), no

13
FHC é sociólogo e exerceu os cargos de ministro das Relações Exteriores e da Fazenda no governo de Itamar
Franco.
14
Nessa empreitada, a FAO atuou em parceria com a Secretaria-Executiva da Comunidade Solidária em torno da
criação do Comitê Técnico de Segurança Alimentar e Nutricional, cujos encontros aconteciam bimensalmente (o
primeiro deles realizado em 1995). Constituíam esse comitê técnicos representantes de vários ministérios,
detentores de experiência em assuntos de SAN. Acerca dos objetivos centrais do Comitê, buscava-se o trabalho
voltado à preparação do Brasil para a Cúpula Mundial de Alimentação; o que resultou na elaboração, em tempo
recorde, do documento a ser apresentado pelo país-líder da região sul-americana. Também pretendia-se fomentar
tecnicamente a articulação de políticas públicas referentes à SAN.
15
O CONSEA rendeu alguns avanços importantes como: a introdução da pauta da fome na agenda política
brasileira; a mobilização participativa da sociedade civil em discussões relativas à temática de SAN e a
compreensão de que eram necessárias políticas de caráter estrutural, além do recurso às medidas emergenciais
(IPEA, 1996).
16 A linha do tempo do CONSEA evidencia o argumento central deste artigo: o Conselho foi idealizado pelo

“governo paralelo” do PT (partido do qual estava à frente Lula) em 1991. No mesmo ano, a proposta de sua criação
foi apresentada a membros do governo Collor, os quais a recusaram; mais tarde, é concretizado, já sob posse de
Itamar Franco; nos governos de FHC (1995-2002) e Jair Messias Bolsonaro (2018-2022), foi descontinuado.
período de 1995 a 1999 os níveis de pobreza e risco à insegurança alimentar aumentaram em
todas as regiões metropolitanas a uma taxa anual de 5%; em contraste com os dados divulgados
pela equipe técnica ligada ao governo federal.
Segundo Silva et al. (2010), a limitação a políticas emergenciais ou assistenciais
contribui para a perpetuação da pobreza dentro de uma sociedade, posto que, dessa forma,
deixa-se de levar em consideração as causas enraizadas da fome e da miséria17. Ehrman (Id.)
ressalta que, em um contexto influenciado pelo neoconservadorismo, a proteção social por
parte do Estado, embora não sofra exclusão integral, caracteriza-se por ser temporária e
disposta a garantir somente o mínimo, além de limitada aos considerados miseráveis. Ainda,
espera-se que esses indivíduos, após a recepção da ação solidária, “possam se reerguer com
suas próprias forças”18 19.
4. O Efeito Lula no combate à insegurança alimentar:
Graças às políticas experimentadas durante o período de 2003 a 2010, o mundo passou
a ver o Brasil como uma referência a nível global no que tange ao combate à insegurança
alimentar, à redução da pobreza e ao desenvolvimento das áreas rurais do país. Luiz Inácio
Lula da Silva, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT) e eleito como 35º presidente da
República, foi a figura provedora do combustível necessário para o impulsionamento de ações
voltadas à erradicação dos efeitos da desigualdade social no Brasil20 21. Para Graziano et al.
(2010), três razões tornaram essa realidade possível. Primeiro, considera-se o enquadramento
central dos objetivos de erradicar a fome e a pobreza no espaço da agenda nacional. Segundo,
deve-se à organização da política macroeconômica brasileira, desenhada com base na

17
Segundo Graziano e Takagi (2010), por trás da fome há um modelo de desenvolvimento perverso responsável
pela geração de uma realidade em que as desigualdades só tendem a se acentuar. Sabe-se que donos de grandes
empresas e indústrias, como as de cigarros e bebidas, por exemplo, usufruem de isenções tributárias bilionárias
anualmente (Graziano et al, 2010). São valores que, se fossem arrecadados pela União com a finalidade de
combater os efeitos da miséria, garantiriam crescentes avanços e elevariam o reconhecimento internacional do
Brasil em termos de SAN.
18
Em seu segundo mandato, FHC criou o Programa Comunidade Ativa (PCA), o qual dava autonomia para que
as próprias comunidades de municípios pobres desenhassem toda a estrutura e os planos necessários para o
desenvolvimento local. No entanto, os resultados foram pífios, visto que os indivíduos marginalizados
precisavam de desdobramentos para conquistar parcerias “de boa vontade” que colaborassem com seus projetos.
Inicialmente, o PCA prometia premiar os municípios que obtivessem os melhores resultados (Lima, 2006, p. 90).
19
“[...] e quando um indivíduo não é capaz de satisfazer suas necessidades por meio de seus mecanismos, então
deve confiar na bondade dos demais, em sua caridade, enquanto o poder político deve abster-se de toda
intervenção” (HAYEK apud PISÓN, 1998, p.189).
20
Lula (2001) afirma que a garantia de segurança alimentar trata-se de uma verdadeira revolução, posto que é
capaz de gerar impactos modificadores da estrutura de uma sociedade, cujos esteios são os mecanismos de
dominação política. Como se observa nas regiões ao longo do país, a perpetuação de poder das elites
conservadoras depende também da inércia das condições de pobreza dos mais vulneráveis.
21
Em julho de 2010, o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas entregou ao líder brasileiro o nobre
prêmio de Campeão Mundial no Combate à Fome.
priorização dos referidos objetivos. E, finalmente, foram fundamentais a elaboração e a
solidificação de uma política e de um sistema nacional voltados à questão da SAN; sustentados
por mecanismos institucionais e, igualmente, pela revisão e renovação do conjunto de políticas
públicas já existentes.
Um mês antes da posse, em dezembro de 2002, o diretor-geral da FAO atendeu ao
pedido do presidente eleito para a formação de uma equipe de técnicos especializados da FAO,
do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial (BM) para trabalho
conjunto com uma equipe nacional em torno de revisar as propostas e o conteúdo geral do
Programa Fome Zero. Essa iniciativa, portanto, foi essencial para a identificação de possíveis
desafios e também para manter a FAO à parte das movimentações relacionadas ao grande
projeto, mesmo antes de seu lançamento; o que demonstra a credibilidade atribuída por Lula
à Organização.
Aos projetos do Programa Fome Zero (PFZ) atribui-se o enorme sucesso observado no
que se refere à expansão da segurança alimentar no Brasil22 23
. O programa, lançado em
outubro de 2001 através do Instituto Cidadania (criado pelo então presidente Lula), representa
a priorização direcionada à questão da Segurança Alimentar, o que garantiu a atuação decisiva
do Estado brasileiro24 através de ações planejadas e complementadas pela participação da
sociedade civil (Graziano et al, 2010).
Entre 1990 e 2005, as iniciativas incansavelmente desenvolvidas possibilitaram a
redução da extrema pobreza à metade no país; e era essa, exatamente, a primeira das metas
dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio da Organização das Nações Unidas (ONU).

22
No total, O PFZ abarcou 31 programas complementares. Os maiores e mais visíveis foram os seguintes: Bolsa
Família, programa de transferência de renda voltado ao atendimento de famílias em vulnerabilidade social, o qual
tinha como um dos critérios o comparecimento assíduo das crianças à escola; O Programa Nacional de
Alimentação Escolar, o qual promoveu como obrigatória a garantia de alimentação nas escolas, oferecida tanto
para crianças e adolescentes quanto para adultos, durante todo o período de formação; O Programa Nacional de
Agricultura Familiar (PRONAF), forte apoiador da produção agrícola em pequena escala, por meio de “serviços
técnicos e créditos subsidiados”; O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), garantidor da compra de
alimentos oriundos de pequenos produtores locais, a fim de contribuir com o estoque alimentar de instituições
públicas como escolas e hospitais. E, por fim, o Programa de Cisterna, contribuinte em prol da coleta e do
armazenamento das águas da chuva em vista de atender às necessidades da população das áreas áridas
nordestinas. De acordo com Graziano et al. (2010), a prioridade dada à distribuição de renda é essencial para o
êxito dos programas assistenciais. Inserem-se dentro dessa essencialidade também a geração de mais empregos
e a aumento do salário mínimo (em vista do aumento do poder aquisitivo da população).
23
Em consonância com os ideais transmitidos pela FAO, o Fome Zero objetivava-se à luz da necessidade de que
a população pudesse estar diariamente envolta, com dignidade, por alimentos saudáveis e de qualidade, em
quantidades suficientes para preservar o adequado funcionamento do corpo e evitar eventuais problemas de saúde.
24
Ainda de acordo com Graziano et al. (2010), o reconhecimento de que a alimentação é um direito inserido nos
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais automaticamente insere o Estado em uma posição de
responsabilidade no que concerne à segurança alimentar de toda a população.
Um feito surpreendente, visto que o prazo para o cumprimento findava em 2015. Desde então,
a experiência brasileira tornou-se inspiração para outros países em desenvolvimento,
compromissados com a realização de feitos parecidos, principalmente através da elaboração,
junto à FAO e com suporte de cooperação técnica advinda do Brasil, de programas relativos à
SAN.
A título de destaque, por fim, importa comentar sobre a III Conferência Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional, convocada em 2007 pelo CONSEA. Durante o referido
evento, foi explicitada a ideia de que a segurança alimentar e nutricional depende de correções
estruturais para tornar-se efetiva, as quais necessitam do fortalecimento do Estado como
interventor. Fala-se, portanto, da subordinação de projeções de desenvolvimento econômico
às metas tanto de bem-estar social quanto de sustentabilidade ambiental. Nesse bojo, incluem-
se também a reforma agrária, o aceleramento da garantia de emprego e renda à população e a
prática de ações específicas e locais (BRASIL, 2007).
5. Retrocesso: Brasil retorna ao Mapa da Fome durante gestão de Bolsonaro
De acordo com dados divulgados pela ONU em 2022, o Brasil retornou ao Mapa da
Fome25. Segundo a Organização, o número de brasileiros que apresentavam estados moderado
e leve de insegurança alimentar era de 28,9% do total populacional; 0,8% acima da média
mundial, de 28,1%. Sabe-se que, definitivamente, a pandemia da COVID-1926 atuou como
fator decisivo para a intensa desestabilização observada dentro da sociedade brasileira,
principalmente no que se refere à SAN. Aliados a essa força, também contribuíram o
desmantelamento da rede de proteção social que englobava políticas públicas com o objetivo
de promoção da segurança alimentar; extremamente necessárias dado o contexto pandêmico
(Bortoletto e Campello, 2022).
Apesar do cenário extremamente preocupante, em 2019, o presidente brasileiro Jair
Bolsonaro (Partido Social Liberal) chegou a dizer que a “fome no Brasil é uma grande
mentira”27. Em 2022, ano em que concorria à reeleição presidencial, voltou a afirmar que no
Brasil “não existe fome”. Entretanto, dados de uma pesquisa realizada pela Rede Brasileira de
Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) mostram a

25
A volta ao Mapa ocorreu 8 anos após a saída histórica de tal cenário, ainda durante o primeiro mandato de
Dilma Rousseff (PT), eleita como presidenta da República nas eleições de 2010.
26
Vale mencionar, no entanto, o fato de que dois anos antes do fenômeno do coronavírus, o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) já havia divulgado dados (coletados na Pesquisa de Orçamentos Familiares
2017-2018) que apontavam a provável volta do país ao Mapa de famintos.
27
Em resposta, José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO, chamou o chefe de Estado de “mal informado”.
verdadeira realidade, negligenciada por Bolsonaro. Foi constatado que, entre o fim de 2021 e
o início de 2022, havia no Brasil 33,1 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar
grave, o que configura a fome. Além disso, foi mostrado que 58,7% dos lares brasileiros
(equivalente a 125,2 milhões de pessoas) eram afetados por qualquer um dos graus de
insegurança alimentar.
O histórico de Bolsonaro expõe o inegável alinhamento com as concepções da Nova
Direita a respeito de programas de assistência às camadas pobres da sociedade. No ano de
2000, quando exercia mandato como deputado federal, foi o único parlamentar a votar
contrariamente à criação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Bolsonaro, em
discurso na Câmara, expressou orgulho pelo voto contrário, com a justificativa de que
programas assistenciais destinados à população pobre apenas contribuíam com o aumento da
natalidade; o que, segundo ele, deveria ser combatido a fim de erradicar a fome e a pobreza.
Em 2011, já durante o governo Dilma, discursou contra o Bolsa Família (BF) no plenário da
Câmara, com o argumento de que “pobres coitados e ignorantes tornam-se eleitores de
cabresto do PT ao receberem o BF”. No entanto, meses antes das eleições de 2022, que
poderiam consolidar sua reeleição, Bolsonaro apostou pesado na narrativa de que havia
governado para os “mais humildes”, em vista do auxílio emergencial de 600 reais liberado aos
brasileiros cadastrados no Programa Auxílio Brasil (PAB) durante a estagnação causada pela
pandemia. No entanto, sabe-se que se posicionou contra a proposta do referido valor,
defendido principalmente por parlamentares de partidos de esquerda e centro-esquerda.
Boschetti (2022) classifica o PAB como um programa “populista, casuístico, eleitoralista,
clientelista, forjado para manter-se no poder.”
Diante do exposto nesta seção, importa refletir sobre os contextos que propiciam a
ascensão de líderes de extrema-direita e como as consequências chegam, inevitavelmente, ao
estado de segurança alimentar de uma nação. Segundo Bruno Cautrès, professor do Centro da
Vida Política Francesa da Sciences Po, figuras ou grupos carismáticos aproveitam-se de
cenários de crise e instabilidade política para a obtenção de apoio e voto popular. Em
decorrência disso, governos direitistas autoritários conseguem espaços para consolidar-se no
mundo todo, visto que seus discursos convencem as massas populares insatisfeitas com
determinado contexto político ou econômico. São exemplos deste século os ataques terroristas
às torres gêmeas em setembro de 2001, a crise financeira global de 2008 e a crise migratória
de 2015 (Cas Mudde & Kaltwasser, 2017); todos agitaram os campos de articulação política
da extrema-direita e atribuíram-lhes maior credibilidade discursiva. No contexto brasileiro,
Bolsonaro articulou-se com base na conjuntura de sua campanha eleitoral, na qual estavam
evidentes, além de pautas relacionadas a ideologias e valores, a crise econômica, trâmites
relativos a casos de corrupção, a insatisfação com partidos e figuras políticas de esquerda, etc.
6. O retorno de Lula à presidência
Nas eleições presidenciais de 2022, o tema da fome se fez notavelmente presente, tanto
nos debates entre os presidenciáveis quanto nas discussões dentro da sociedade civil. Liderou
a pauta o então candidato à presidência, Lula da Silva, eleito com mais de 60 milhões de votos
em 30 de outubro de 2022. A sua vitória, portanto, desperta expectativas tanto de seus eleitores
quanto da comunidade internacional por um futuro promissor quanto ao combate à pobreza e
à insegurança alimentar. Entretanto, sabe-se que há muitos desafios pela frente. Por exemplo,
foi exposto que o Brasil pode perder o direito de voto na FAO em 2023 devido ao não
pagamento da contribuição obrigatória, desde 2019 (segundo ano de mandato de Bolsonaro).
Deve-se mencionar também a reatividade do mercado financeiro em relação a políticas sociais.
Para se ter noção, em novembro de 2022, o Brasil assistiu à reação do mercado em resposta
aos discursos de Lula em defesa de investimentos abundantes direcionados à população pobre
e faminta. Observou-se a valorização do dólar americano e queda da bolsa de valores.
Em vista disso, a volta à República de um presidente compromissado em atuar
ativamente com o objetivo de erradicar a fome no país mais uma vez constitui algo que merece
celebrações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como apresentado, uma variedade de autores e especialistas em políticas públicas com
a finalidade de promover a segurança alimentar concebem a intervenção do Estado como
fundamental e decisiva para a obtenção de eficiência em projetos assistenciais voltados a
combater a fome e os efeitos da pobreza. Portanto, conclui-se que a FAO, limitada pela intensa
presença da Nova Direita neoliberal em todos os cantos do mundo, necessita de governos que
se oponham a esses imperativos, enquanto não se atinge a ideal despartidarização de questões
sociais específicas.
A FAO, embora tenha surgido em um ambiente com configuração capitalista,
encontra-se limitada frente à presença de governos fortemente conectados aos preceitos do
neoliberalismo econômico. Em vista disso, este artigo buscou mostrar que a Organização
depende da ascensão de políticos enquadrados mais à esquerda do espectro político-ideológico
para que, assim, suas idealizações sejam perseguidas e eficientemente praticadas. No Brasil,
atualmente, partidos de centro e de direita distanciam-se dessa demanda; geralmente, com a
justificativa de que os recursos investidos em benefícios sociais podem trazer efeitos
prejudiciais à economia.

Palavras-chave: Direita; Esquerda; Neoliberalismo econômico; Pobreza; Segurança


Alimentar e Nutricional.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, R.O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital.


SãoPaulo: Boitempo, 2018.

BOSCHETTI, I. “Há perigo na esquina”: Auxílio Brasil e propostas de esquerda para direitos
e políticas sociais. Esquerda online, Rio de Janeiro, 27 abr. 2022. Disponível:
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