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A todos que acreditaram em mim...

E aos que não acreditaram também.

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Sumário
Prólogo ............................................................................................. 10

Capítulo 01....................................................................................... 12

Capítulo 02 ....................................................................................... 23

Capítulo 03 ....................................................................................... 29

Capítulo 04 ....................................................................................... 32

Capítulo 05 ....................................................................................... 40

Capítulo 06 ....................................................................................... 45

Capítulo 07 ....................................................................................... 47

Capítulo 08 ....................................................................................... 49

Capítulo 09 ....................................................................................... 51

Capítulo 10 ....................................................................................... 56

Capítulo 11 ....................................................................................... 62

Capítulo 12 ....................................................................................... 65

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Capítulo 13 ....................................................................................... 69

Capítulo 14 ....................................................................................... 76

Capítulo 15 ....................................................................................... 79

Capítulo 16 ....................................................................................... 83

Capítulo 17 ....................................................................................... 91

Capítulo 18 ....................................................................................... 97

Capítulo 19 ..................................................................................... 101

Capítulo 20 ..................................................................................... 107

Capítulo 21 ..................................................................................... 112

Capítulo 22 ..................................................................................... 115

Capítulo 23 ..................................................................................... 119

Capítulo 24 ..................................................................................... 125

Capítulo 25 ..................................................................................... 129

Capítulo 26 ..................................................................................... 132

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Capítulo 27 ..................................................................................... 136

Capítulo 28 ..................................................................................... 139

Capítulo 29 ..................................................................................... 143

Capítulo 30 ..................................................................................... 149

Capítulo 31 ..................................................................................... 155

Capítulo 32 ..................................................................................... 159

Capítulo 33 ..................................................................................... 166

Capítulo 34 ..................................................................................... 169

Capítulo 35 ..................................................................................... 172

Capítulo 36 ..................................................................................... 178

Capítulo 37 ..................................................................................... 182

Capítulo 38 ..................................................................................... 184

Capítulo 39 ..................................................................................... 187

Capítulo 40 ..................................................................................... 191

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Capítulo 41 ..................................................................................... 195

Capítulo 42 ..................................................................................... 202

Capítulo 43 ..................................................................................... 206

Capítulo 44 ..................................................................................... 213

Capítulo 45 ..................................................................................... 217

Capítulo 46 ..................................................................................... 221

Capítulo 47 ..................................................................................... 226

Capítulo 48 ..................................................................................... 230

Capítulo 49 ..................................................................................... 236

Capítulo 50 ..................................................................................... 240

Capítulo 51 ..................................................................................... 249

Capítulo 52 ..................................................................................... 253

Capítulo 53 ..................................................................................... 262

Capítulo 54 ..................................................................................... 269

7
Capítulo 55 ..................................................................................... 278

Capítulo 56 ..................................................................................... 283

Capítulo 57 ..................................................................................... 292

Capítulo 58 ..................................................................................... 297

Capítulo 59 ..................................................................................... 303

Capítulo 60 ..................................................................................... 307

Capítulo 61 ..................................................................................... 312

Capítulo 62 ..................................................................................... 318

Capítulo 63 ..................................................................................... 325

Capítulo 64 ..................................................................................... 329

Capítulo 65 ..................................................................................... 340

Capítulo 66 ..................................................................................... 344

Capítulo 67 ..................................................................................... 347

Capítulo 68 ..................................................................................... 361

8
Capítulo 69 ..................................................................................... 367

Capítulo 70 ..................................................................................... 372

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Prólogo

Ele desligou o telefone, dando permissão à


secretária para que ela deixasse os dois homens entrarem,
a porta se abriu após dois toques na madeira, ofereceu-
lhes um café que um deles insistiu em recusar, já o outro
pegou uma xícara antes de dizer boa-tarde. Em menos de
dez minutos de conversa já deixaram claro o motivo da
visita. Não havia escolha.
Hesitou um pouco antes de tomar aquela decisão.
Ele olhava para aqueles dois, de ternos bem alinhados,
sentados do lado oposto de sua mesa. Sabia que se tentasse
fugir eles o impediriam. Ambos foram com a mão em
direção à cintura. “Com certeza sacariam armas”, pensou.
Tomou sua decisão.
Empurrou a mesa para frente e correu em direção
à imensa janela panorâmica atrás de si. Um tiro
estilhaçou a janela antes do choque. Nesse momento, o
tempo pareceu passar mais lentamente, os cacos de vidro
pareciam diamantes brilhando ao seu redor sob a luz do
sol. Seu corpo girou no ar. Ele viu a janela quebrada se
afastando rápido, as balas passavam ao lado do seu corpo,
que já poderia ser considerado sem vida a essa altura.
Aquela dor no seu peito ainda incomodava
bastante, nem mesmo a adrenalina da queda conseguia
anestesiá-la. O vento lhe cortava o rosto, as mãos
pareciam flutuar, a velocidade aumentou bruscamente à

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medida que o solo se aproximava. Um baque forte nas
costas foi sentido dezesseis andares abaixo.
A dureza do asfalto foi transmitida para as suas
costas. Suas cordas vocais tremeram com o último ar que
havia em seus pulmões. A voz saiu arrastada sem
conseguir formar palavras. A alta temperatura do chão
fluiu pela sua pele por breves momentos, não o suficiente
para sentir dor. Ele viu a luz do céu claro se apagando
lentamente enquanto suas pálpebras desciam.

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01

Os sons das buzinas e dos motores eram seu


despertador, além do celular que tocava o tema de abertura
de sua série favorita. O som do trânsito, composto pelos
xingamentos, freadas, e a gritaria dos motoristas seriam os
sons que Dave mais ouviria durante todo o dia. Bermuda,
tênis, capacete, mochila, cadeado, corrente, luvas e
bicicleta: estes eram seus instrumentos de trabalho. Um
beijo na testa de sua namorada e saía sem acordá-la.
Dave não acordava ninguém por dois motivos:
acordava muito cedo e não queria que sua vizinha o visse
saindo, por motivos de evitar perda de tempo e ter de ouvi-
la falar sobre seus gatos. Enquanto os outros moradores do
prédio despertavam em torno das 7h, ele acordava por volta
das 5h30. Com o quadro no ombro, descia correndo as
escadas e pedalava na rua em direção ao trabalho. Andar de
bicicleta era a vida, a paixão e o emprego de Dave.
Partindo de casa era um caminho relativamente
longo até à Central, que se encontrava a algumas quadras
de distância dali, no bairro vizinho. A Central nada mais era
que a garagem do proprietário da empresa. Roberto, após
perder o emprego, resolveu abrir uma empresa de entregas,
e já que o aluguel de um ponto comercial estava fora de seu
orçamento, trabalhava na própria garagem com seus
empregados: os ciclistas. Foi uma alternativa inteligente e
rápida para fugir do trânsito das grandes cidades. Mesmo

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com a possibilidade de ficar rico com uma ideia inovadora,
a concorrência barateia qualquer prestação de serviço.
Roberto era apenas mais um a oferecer esse serviço.
Roberto era um homem casado de meia-idade, meio
calvo no topo da cabeça e calças presas com cinto acima do
umbigo. Tinha a mania irritante de chamar a todos de “meu
peixe”, o que era irritante para quase todos os seus
funcionários. Dave estava na Central por volta das 6h45,
Roberto e alguns colegas de trabalho que já haviam chegado
estavam tomando o café.
A garagem não era muito grande, mas cabia o
necessário. Havia uma mesa dobrável na porta da garagem
com leite quente, biscoitos de polvilho, café sem açúcar,
bolachas de água e sal e pão de queijo para os funcionários,
tudo recém-comprado em uma padaria próxima. Mais ao
fundo, uma mesa de escritório onde Roberto ficava sentado
com um headset para atender as ligações do PABX e ter as
mãos livres para anotar os endereços das entregas, os locais
de coleta, etc.
No canto oposto funcionava quase como uma oficina
de bicicletas. Várias caixas de ferramentas com dezenas de
chaves, parafusos, porcas, correntes, peças sobressalentes e
um calibrador de pneus. Nesse mesmo canto, pendurados
nas paredes com pregos, havia várias câmaras de ar, aros de
rodas para bicicletas e pneus. Em cima de uma pesada mesa
de madeira estava fixado um desempenador de rodas. Este
último talvez fosse o objeto mais usado pelos ciclistas, uma
vez que a rotina incluía tombos e choques com os veículos.

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— E aí, Dave? — Marcelo o cumprimentou. —
Assistiu ao jogo ontem?
— Já sei, te devo 20, pago depois. — Dave sempre
arrumava um jeito de tentar ganhar um dinheiro extra,
mesmo quando o fazia perdê-lo.
— Pode apostar que eu vou cobrar, meu querido! —
disse o amigo, dando uma gargalhada alta. — Não sabe que
nunca vai ganhar de mim, você nem sabe para qual time
você torce.
— É! Não ligo mesmo!
— E por que continua apostando comigo? — Marcelo
riu.
— Pelo dinheiro, óbvio. Não importa o que seja, vou
sempre apostar contra você!
— Só pelo dinheiro? E onde fica a diversão?
— Diversão? É o dinheiro que move o mundo, não a
diversão! Eu preciso de muito dinheiro e não de diversão.
Entrou na garagem.
— E aí, Roberto, o que tem pra mim hoje?
— Bom dia, meu peixe! Você não parece muito bem.
— Não dormi bem essa noite.
— O que houve? — Aquela não era uma preocupação
genuína.
— Tive uns sonhos estranhos, não dormi muito bem.
— Dave notou que Roberto não prestava atenção nele.
— Mesmo? — dizia enquanto mexia em alguns papéis
e arrumava o fone na orelha.

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— E também eu tive que escalar o Everest ontem,
arrastando um carrinho de pipoca, cheio de caixinhas de
fósforo. Por isso tô meio cansado.
— Bom... Melhoras. Sua caixa está lá na estante —
disse, sem ouvir o que ele dizia.
— Valeu.
Dave foi em direção a uma parede onde estavam
diversas caixas gradeadas com os nomes de vários dos
entregadores. Dave puxou a sua e havia diversos envelopes
dentro. Colocando a caixa sob a longa mesa que ficava em
frente à prateleira, começou a organizar suas encomendas
por ordem de entrega, de forma a facilitar seu trabalho. Por
mais que fosse uma empresa pequena, existia uma
hierarquia muito bem delimitada entre os ciclistas. De
baixo para cima, havia: os carregadores, que eram os
responsáveis por encomendas maiores, geralmente pacotes
grandes e pesados assim como suas bicicletas; os
organizadores, que são os que trabalham como Dave, que
podem organizar as entregas pela manhã, e quanto mais
cedo saírem melhor, pois ganham por produção (se
entregarem toda a caixa, ganham todo o pagamento; se não,
ganham proporcionalmente ao que conseguiram entregar),
por isso Dave não perdia tempo com o café da manhã; os
exploradores são ciclistas que ficam em pontos estratégicos
da cidade cobrindo uma determinada área, esperando
serem acionados via celular por Roberto; e finalmente, os
socorristas, que são os responsáveis pelas entregas
urgentes. Com o GPS sempre funcionando, estão prontos

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para serem acionados a qualquer momento já que não têm
rotas definidas. São os velocistas da equipe com as
bicicletas mais leves, passam quase o dia todo livre e são
acionados esporadicamente.
Dave tinha a ambição de se tornar um socorrista.
Apesar de Roberto pagar por entrega, os socorristas tinham
um salário fixo que era relativamente alto para a função que
desempenhavam, o que fazia com que todas as entregas
fossem como extras. Dave só precisava de uma chance para
provar que podia subir na hierarquia.
— Ei, Roberto, quando vai me promover a
socorrista? — perguntou Dave em tom de brincadeira.
— De novo essa piadinha, Dave? Entregue a sua caixa
até o fim do expediente e talvez eu te dê uma chance —
Roberto respondeu em tom de ironia. Dessa vez ouviu o que
Dave disse.
Dave sempre foi o mais rápido dos organizadores,
pois tinha um segredo que os outros não sabiam. Dentro de
sua mochila havia uma pasta sanfonada que facilitava
muito a organização e contribuía para a sua velocidade de
entrega. Dave chegava mais cedo que os outros
organizadores, ou pelo menos começava a se organizar
antes deles. Enquanto os demais saíam após o meio-dia,
Dave conseguia ir para a rua antes do almoço, já que
também abria mão deste de vez em quando.
Dave usava um quadro de fibra de carbono,
extremamente leve, o mesmo usado por muitos dos
socorristas. A pintura laminada confundia a quem olhasse,

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e como não se toca na bike de outro ciclista, seu segredo
estava seguro. Quadros de fibra de carbono não são nada
baratos, mas não pagou muito caro pelo seu. Existe uma
história engraçada a respeito de como esse quadro chegou
até Dave...
***
Dona Henriqueta, de cerca de 80 anos, morava
sozinha em um bairro afastado do centro da cidade. Era
uma senhora forte, ainda lúcida, a saúde não ia tão bem,
mas era de se esperar de alguém com essa idade. Ela
recebeu Dave com chá e rosquinhas de milho. O chá estava
aguado, como se tivesse saído da torneira direto para a
xícara, sem nada de açúcar, o que fez Dave concluir que a
velhinha era diabética.
A casa era impecavelmente limpa, o que deixou Dave
um pouco envergonhado de entrar com os sapatos sujos.
Um forte odor de gato dominava todo o ambiente
incomodando-o um pouco. O cheiro ácido não combinava
com a limpeza do lugar. Ele se sentou entre as almofadas de
crochê colorido, travando as mãos entre os joelhos para não
desarrumar o sofá.
Dona Henriqueta contou, de forma demorada e com
a voz trêmula, o motivo de estar vendendo uma bicicleta, já
que era óbvio que ela não andava há muitos anos:
— Meu filho, eu vim pra essa cidade, você com
certeza nem era nascido, vim da roça expulsa de casa, eu,
meu “véio” e nossa filhinha de colo. — Dave notou que havia
a foto de um senhor de barba branca na estante de madeira.

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— Sem nenhum centavo no bolso. A capital nem existia
ainda, meu filho, isso tudo aqui era mato. Todo mundo se
foi, meu filho, hoje em dia eu só tenho a Tiana.
Foi quando uma gata cinza-claro de olhos amarelos
pulou no braço do sofá. E foram-se longos minutos de
história após história. Dave só balançava a cabeça
positivamente, a fim de não dar mais brecha para novos
assuntos, até que a velhinha, com muito esforço, se
levantou da poltrona e levou Dave até os fundos. Lá estava
uma bicicleta velha, de pneus murchos, alguns raios
enferrujados e o quadro um pouco amassado. No geral, o
quadro estava em bom estado. O restante das peças viria de
sua antiga bicicleta. O importante estava no preço, e esse
não era muito caro.
— Meu neto morreu nessa bicicleta, ele fazia entrega,
de envelope, de pacote, de um monte de coisa, e foi
atropelado por um táxi. Ele era o último que ainda me fazia
companhia.
Dave engoliu em seco e viu uma lágrima correr pelo
rosto de Dona Henriqueta. A pobre velhinha queria se livrar
da bicicleta do neto, para tentar esquecer ou amenizar a
perda. A senhorinha não fazia ideia do que tinha nas mãos
ou quanto dinheiro poderia ganhar, enfim, o fato é que
Dave pagou muito barato por ele. Saiu carregando a
bicicleta no ombro dando adeus para uma velhinha, que
dizia, com um envelope de dinheiro na mão:
— Vai com Deus, meu filho.
***

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Dave zarpou da Central em direção a sua rota. Para
ele, não estava pedalando na rua, estava pedalando num
campo de batalha. Não respeitava a calçada, nem os
pedestres. Em compensação, não era respeitado pelos
carros da via, menos ainda pelos taxistas.
A rotina era sempre muito bem definida: Dave
parava em frente ao endereço do destinatário, procurava o
poste ou bicicletário mais próximo, tirava a corrente
cruzada no peito, prendia a bike e entrava para efetuar a
entrega. Dentre as habilidades que a maioria dos ciclistas
desenvolveu ao longo dos anos, Dave tinha uma da qual se
orgulhar, além da velocidade. Ele conseguia pedalar sem
segurar o guidão, o que lhe dava tempo de olhar a sua
prancheta de endereços sem parar a bicicleta. Não é tarefa
fácil pilotar uma bike em meio ao trânsito, mais difícil ainda
é fazer isso sem olhar a movimentação dos carros,
confiando apenas em seus ouvidos, em sua visão periférica
e em seus instintos.
Dave parou no sinal vermelho. O cruzamento logo à
frente era movimentado, e seguia na mesma direção dos
pedestres que passavam apressados. Ele voltou a encarar
sua prancheta, pois sabia exatamente quanto tempo o
trânsito permanecia parado. Assim que as linhas de tráfego
ao seu lado começassem a se mover era hora de pedalar
novamente.
Um grito chamou a atenção. Uma mulher, parada na
faixa de pedestres, berrava e apontava em direção ao
tráfego de veículos. Uma criança que mal completara dois

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anos corria a passos cambaleantes em direção ao centro do
cruzamento, perseguindo uma bola inflável colorida.
Os gritos da mãe se misturaram aos ruídos das
buzinas e freadas de carros. O desespero, junto à
adrenalina, fez as pernas de Dave se moverem. O pé
apoiado no meio-fio foi o primeiro passo, o segundo deixou
a bicicleta para trás, que tombou sem nenhum apoio. Dave
se movia sem tempo em direção ao garoto. Passou a mão
pelo topo da cabeça, tirando o capacete. Antes que o
capacete tocasse o chão, Dave já tinha desviado do primeiro
carro. Logo atrás um caminhão buzinava alto enquanto os
pneus soltavam fumaça. Dave saltou em direção à criança.
O impulso foi forte o suficiente para que ele planasse
no ar por alguns segundos. Forte demais, na verdade. Dave
planou por cima da criança, algo que só seria possível pelas
panturrilhas de um ciclista. Enquanto estava no ar, ele
agarrou a gola da camisa do menino que agora alçava voo
junto a Dave, tirando a criança da frente do caminhão, que
não conseguiu parar a tempo. Ele girou o corpo no ar para
receber o impacto do chão antes do menino. O baque foi
forte, mas Dave o segurou firme, graças às suas luvas,
recebendo todo o impacto do asfalto.
A criança chorava em seus braços. Dave, sentado no
meio da rua, olhou para a direita e viu o para-choque branco
de um caminhão frigorífico vindo em sua direção. Ele
estava perto demais para se levantar, rápido demais para
desviar. Dave teve a única reação possível nesse momento,
advinda do próprio instinto de proteção. Com uma das

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mãos, apertou forte a criança contra o próprio peito. Com a
outra, abriu a palma na tentativa de segurar o para-choque.
Para a sorte dos dois, o caminhão freou a poucos
centímetros da mão aberta de Dave.
Dave abriu os olhos lentamente e sentiu o cheiro de
borracha queimada. De alguma forma, encontrou forças
para se levantar.
— Meu filho! — disse a mãe, abraçando a criança e
agradecendo a Dave. — Eu não sei como posso agradecer.
Ele voltou onde estava sua bicicleta caída e se sentou
na calçada. Recuperou seu capacete e jogou a água de sua
garrafa sob a cabeça. Respirou fundo, tinha muita entrega
para fazer. A vida de ciclistas nas ruas era formada por altos
e baixos. Talvez esse seja um dos altos.
***
Na hora do almoço, que na maioria das vezes nunca
era no mesmo horário, ele comprou um cachorro-quente e
se sentou na calçada para comer. Quando sua boca estava a
centímetros do pão, seu olhar desviou para a criança à sua
direita. Olhando para a comida de Dave com olhos
famintos, o rosto sujo marcado por lágrimas, os pés
descalços e segurando um cobertor surrado. Dave fechou a
boca e estendeu o braço, virou o rosto. De um lado, segurava
as lágrimas, do outro, sentiu a comida deixar sua mão. Dave
só teve tempo de ver o garoto correr. Perdeu a fome, odiava
conviver com a miséria alheia, a sensação de ajudar como
pôde vinha acompanhada da impotência de não poder
ajudar mais. Mesmo com fome, a energia tinha que ser

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suficiente para pedalar. Esse com certeza era um dos pontos
baixos do trabalho.
Ele geralmente atendia prédios comerciais ou
condomínios, então, quase, nunca passava da recepção ou
da portaria. Uma vez dentro do estabelecimento, a rotina
continuava, era sempre o “bom dia, assine aqui, por favor!”.
Havia um espaço de tempo em que o recebedor conferia os
endereços e os destinatários, e foi em um desses hiatos de
tempo que Dave conheceu ela. Com certeza, esse dia foi um
dos pontos altos.

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02

Aconteceu três anos atrás, quando Dave ainda era


um carregador. Lembrava-se daquele dia todas as vezes que
passava pela Av. Rimenes, mais especificamente em frente
ao Winnie Palace, um dos hotéis mais caros da avenida. Era
um pacote quadrado, relativamente leve, embrulhado em
papel pardo. Ao chegar à recepção, teve uma surpresa ao
não reconhecer a recepcionista:
— Bom dia, onde está a Beth? — disse Dave em
direção à nova recepcionista.
— Ela não trabalha mais conosco, mas talvez eu
possa ajudá-lo — falou a jovem que escrevia em um papel,
levantando a cabeça e sorrindo.
A jovem em questão causou um efeito sobre Dave
que não se presencia com muita facilidade nos dias de hoje.
A cabeça dele se inclinou um pouco para o lado quando viu
o sorriso dela e seu lábio superior subiu um pouco,
formando um sorriso bobo e breve.
O uniforme do hotel não favorecia suas curvas, mas
o que mais chamou a atenção de Dave foi o seu sorriso
branco e largo com duas covinhas em ambos os lados do
rosto. Os cabelos muito lisos divididos ao meio com um tom
de mel-escuro, nariz pequeno, um furo muito discreto no
queixo, olhos castanhos e pequenos, com uma maquiagem
leve que o emprego exigia.

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— Ah... é... — Dave quase engasgou, as ideias
formavam em sua cabeça, mas as palavras não saíam.
Então, resolveu se apresentar. — Sou o Dave. Faço as
entregas dessa região... Muito prazer!
— Prazer! Sou a nova recepcionista — disse, abrindo
um novo sorriso. Em seu crachá, lia-se: “Em treinamento”.
Silêncio.
Dave ainda estava paralisado com o pacote debaixo
do braço.
— Então, Dave... Tem algo para mim? — disse ela,
estendendo as palmas das mãos.
— Ah... Sim, sim, aqui está. — Dave destravou. —
Está endereçado a Wilson Nunes, acho que é um de seus
hóspedes.
— Vou verificar. — E voltou-se para a tela do
computador.
— Er... — Dave estava tentando vencer a timidez. —
Me perdoe, moça, mas não sei seu nome.
— Eu te perdoo, não se preocupe. — E abriu mais um
intrigante sorriso.
Dave pensou consigo: “Ela terá de assinar o
protocolo de recebimento, mesmo que ela não queira me
dizer, eu vou saber seu nome!”.
— Sim, ele é um de nossos hóspedes — respondeu a
recepcionista, por fim.
Dave entregou o pacote e em seguida abriu a bolsa
para pegar a prancheta com o protocolo e entregou a ela,
triunfante, dizendo: “Por favor, assine na linha pontilhada”.

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A recepcionista tomou a prancheta nas mãos e tocou duas
vezes a sineta da recepção. De uma porta lateral, um senhor
calvo e baixo com o crachá escrito “gerente” veio para
assinar o protocolo.
— Precisa de ajuda, querida?
— Chegou uma encomenda aqui para um hóspede, e
tem que assinar.
— Ah, claro, sem problemas.
O gerente rubricou a folha, segurando a caneta com
a ponta dos dedos, com uma classe muito acima do que a
situação exigia.
— Prontinho, minha querida. Caso precise de mais
alguma coisa, basta chamar — falou o gerente, voltando-se
para sua sala com uma meia-volta.
— Lamento, Dave, ainda sou novata aqui, não posso
assinar em nome do hotel — disse ela, olhando para Dave,
mas dessa vez com o sorriso meio sem graça.
Dave despediu-se com um aceno de cabeça e um
sorriso mais sem graça ainda.
***
Durante as próximas semanas, Dave encheu a
paciência de Roberto para que ele fosse designado a
entregar todas as encomendas destinadas ao Winnie
Palace. Todos os dias era a mesma coisa: “Roberto, o que
tem para o Winnie?” Roberto já estava uma pilha de nervos
quando resolveu chamar Dave para uma conversa:
— Escute aqui, meu peixe, eu não sei qual o seu
interesse nesse hotel, também não me importo, mas tenho

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uma novidade que com certeza deve te agradar. A partir de
hoje você será um organizador.
— Sério? — Dave demonstrava surpresa no sorriso.
— Uau! Obrigado, Roberto!
— A partir de amanhã você terá sua própria caixa e
vai ficar responsável pela Av. Rimenes e pela Maracanã, e
suas paralelas, obviamente.
— Eu realmente não sei como te agradecer.
— Pela sua cara, tem mulher na jogada.
— Pode apostar!
Agora as coisas mudaram. Dave não entregaria mais
pacotes avulsos e pesados, agora tinha de entregar dezenas
de envelopes. Em sua mente ele demoraria mais tempo na
recepção do hotel e de alguma forma ele poderia descobrir
o nome da recepcionista misteriosa já que seriam vários
recebimentos para assinar, e nesse tempo poderia, quem
sabe, talvez desenvolver alguma conversa. Esse era seu
plano.
— Bom dia! Aqui estão as correspondências de hoje
e o protocolo. — Deu bastante ênfase na última palavra.
— Bom dia, Dave! Seu amigo saiu agora a pouco
trazendo os pacotes que você costumava trazer.
— Não faço mais esse tipo de entrega. — Ele se
surpreendeu, sem demonstrar, ao perceber que ela
lembrava seu nome.
Dave notou que a moça já fazia o movimento para
tocar a sineta. Ele agarrou o objeto e o colocou do outro lado
do balcão, ela se deslocou para tentar acionar a campainha

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e Dave a retornou para o mesmo lugar. E quando ela tentou
pela terceira vez, Dave colocou a sineta no bolso e disse:
— Agora você vai ter que assinar... — Estendeu a
caneta. — Você não tem mais o crachá de treinamento.
— Pois é... Meu crachá ainda não ficou pronto.
— Então, se ele estivesse pronto, eu saberia seu
nome...
A moça pegou a caneta de sua mão e, para a surpresa
de Dave, deixou a recepção e levou a prancheta dos
protocolos para a sala do gerente. Dave viu-se sem saída,
seu plano para descobrir pelo menos o nome da moça não
dera certo. Estava envergonhado e furioso. Recolocou a
sineta no lugar, decepcionado. Após alguns minutos, a
recepcionista retornou com o protocolo assinado. Dave
nem conferiu as assinaturas, pegou a prancheta e a caneta,
virou as costas e saiu prendendo a cinta jugular de seu
capacete, e pensando consigo mesmo: “O que custava ela
me dizer o nome ou ao menos assinar?”.
Já na calçada, Dave abriu o cadeado, prendeu-o ao
tronco, abriu a mochila para guardar a prancheta, e foi
quando notou algo diferente: colado ao grampo que segura
as folhas havia um papelzinho de recados cor de rosa
escrito: “Pela sua atitude — Maritza 5589-6125”.

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Dave ganhou o dia.

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03

Rolamentos raspando o asfalto fazem um som tão


nostálgico... Qualquer um da rua podia ouvi-los passar. Só
quem viveu a transição tecnológica se lembra de como era
brincar na rua. Se você misturar um pouco de madeira
velha, alguns pregos e três rolamentos terá o primeiro dos
ingredientes. O segundo ingrediente é uma ladeira bem
íngreme. A combinação dos dois é uma sensação que Dave
conhecia bem, e se apaixonou por ela na primeira vez que a
sentiu.
A velocidade aumentava gradativamente, o vento no
rosto fazia os cabelos voarem para trás. Mesmo que não
fosse tão rápido, a sensação era a mesma de segundos antes
de uma decolagem. Se a cena pudesse ser vista em câmera
lenta, no meio da descida você veria que Dave e seu primo
sorriam de olhos fechados, e por poucos segundos se
transportavam para um local pacifico, onde o pensamento
voava mais rápido que o carrinho deslizando.
As férias do meio do ano eram sempre as melhores.
Dave passa na capital, no apartamento de sua tia. O garoto
ao qual ele considera seu primo era apenas o filho de um
morador da mesma rua. Sua tia não tinha filhos. Mesmo
que se vissem uma vez ao ano, Paulo e Dave eram unha e
carne. Na grande maioria das vezes, mais carne do que
unha, já que sempre davam um jeito de arrancá-la quando
jogavam bola no asfalto.

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Quando os dois garotos, já suados, empurravam o
carrinho de volta para o topo da ladeira, Dave encontrou
sua tia na calçada. Com o celular em mãos, ela parecia
inconsolável. Tudo indicava que acabara de receber uma
notícia não muito boa.
— Vamos entrar, meu filho!
— Mas, tá cedo ainda... E o Paulo e eu...
— Agora! — disse, aumentando a voz.
***
Quando Dave fez 17 anos, ainda não tinha digerido a
notícia que recebeu. As coisas que acontecem em nossa vida
geram consequências que só nós mesmos somos capazes de
conter. Mas às vezes não conseguimos.
Um trauma muito forte traz atitudes que não se teria
caso ele não acontecesse. Em sua mente, Dave tinha a
mania de substituir a ausência das coisas com outras. Foi o
que fez com a morte de seus pais. Na lacuna deixada pela
única família que ele conheceu, entraram as drogas. Ele
ainda se lembra nitidamente como sua tia lhe contou,
lembra-se como se fosse agora a sensação que sentiu. Sua
amizade com Paulo se rompeu e ele se isolou por muitos
anos.
Com 18 anos, ele comprou sua primeira bicicleta. Ele
era rápido como nunca houve outro nas mesmas condições.
Dave olhava o sucesso alheio e se culpava por estar tão
atrasado. Seu próprio vício era uma barreira difícil de
transpassar. Em sua mente, ele só precisava de dinheiro.

30
Com grana suficiente ele poderia fazer o que quisesse. Esse
era seu único objetivo e pensamento.
Cada centavo que recebia era sugado pela droga. Sua
única alternativa foi trabalhar no tráfico para sustentar seu
vício. Em cima de sua bicicleta, ninguém ousava ser mais
rápido que Dave. Sua movimentação e seu conhecimento
das ruas o levaram a ser o “aviãozinho” mais rápido que já
existiu.
Demorou muito para perceber o futuro incerto que
se apresentava à frente. Dave trabalhava com um
condenado e seu pagamento nem era em dinheiro. Apenas
duas moedas o sustentavam: a certeza de que não seria
morto por dívidas e o relaxamento que a droga lhe trazia.
Ser pago em “bagulho”, como ele mesmo definia, foi uma
barreira que ele demorou a superar. Um dia, enfim,
percebeu que jamais ganharia dinheiro daquela forma, mas
ele tinha um talento que podia ser explorado. A sua
velocidade.
Ele largou as drogas e se tornou entregador. O mais
rápido da cidade. Ele teria muito sucesso nos esportes, se
não fosse sua brutal incompetência em intoxicar seu corpo
ainda jovem. Seu foco agora era em uma nova droga. A
única que assola a humanidade há séculos: dinheiro!

31
04

O dia do primeiro encontro pareceu planejado. Ela


entrou no bar dos motociclistas de vestido florido, cabelo
preso e óculos de armação preta. Em meio ao barulho do
bar, com seus ouvidos treinados pelo trânsito, Dave
conseguiu ouvir a sineta da porta quando ela entrou, e
mesmo que não tivesse ouvido, aquele perfume era
inconfundível. Ainda que dezenas de mulheres usassem a
mesma fragrância, a mistura com o cheiro dela acelerava a
pressão sanguínea de Dave.
Ele, sentado em uma das cadeiras mais altas do bar,
dava um gole em sua cerveja, ignorando a porta. Logo que
sentiu o perfume se intensificar, dois dedos com unhas
pintadas em esmalte azul tocaram seu ombro. O toque
acionou todas as terminações nervosas de seu braço,
fazendo-o arrepiar até a ponta dos dedos.
— Oi, Dave.
Ele se virou, e viu a si mesmo no reflexo daqueles
olhos profundos e castanhos.
— Oi — disse, dando um beijo no rosto dela. — Você
quer sentar?
— Claro.
— Roger... — Ele ergueu a mão para o bartender,
sinalizando que iria procurar uma mesa.
Foram para uma das pequenas mesas de dois
lugares, bem aos fundos. Dave puxou a cadeira para que ela

32
sentasse. A mesa de armar, feita de madeira preta, ainda
possuía resquícios de bebida do usuário anterior.
— Você sempre costuma vir aqui?
— Quase sempre. Venho mais em dias de jogo,
encontrar com os parceiros de pedal.
— Já encontrou com algum deles hoje?
— Com todos, na verdade.
Ela olhou para trás, e diversas cabeças desviaram o
olhar quando ela se virou. Um desconforto lhe tomou o
peito, fazendo-a encarar Dave.
— Você quer comer alguma coisa? Eles servem uma
batata frita maravilhosa com...
Maritza fitava Dave com tal intensidade que ele não
conseguiu terminar a frase. Uma conexão tão forte foi
criada que ele entendeu apenas pelo olhar que ela queria
sair dali. Mais tarde ele descobriria que aquele olhar era seu
pior ponto fraco. Se ela soubesse o poder que tinha, poderia
controlar Dave como um cão preso em uma coleira de
espinhos. ele sabia o que responder.
— Eu... entendi. Já resolvo.
Ele foi em direção a um de seus conhecidos no bar.
Um rapaz baixo gritava para a televisão durante o jogo de
futebol, arremessando amendoins na tela. Dave
aproximou-se de seu ouvido e cochichou algumas palavras
inaudíveis para nós devido ao barulho. Alguns instantes
depois, voltou à mesa de Maritza segurando uma chave.
Estendeu a mão a ela e disse:
— Vem comigo!

33
Ela abriu um largo sorriso e saíram de mãos dadas
do bar. Na calçada, Dave abria a corrente de uma bicicleta.
Depois de apoiá-la num poste, prendeu a cinta jugular de
um capacete na cabeça de Maritza.
— Você sabe pedalar, não é?
— Acho que me lembro como se faz. — Ela parecia
empolgada.
— Relaxa! Dizem que andar de bicicleta a gente
nunca esquece.
— Como a noite de hoje? — Dave sentiu a indireta.
— Prometo que farei o possível — respondeu
sorrindo.
Dave a ajudou a subir na bicicleta de seu amigo, deu
um pequeno empurrão nela pelo asfalto. Ela seguiu em
ziguezague até se estabilizar.
— Você conseguiu! — gritou Dave ao longe.
Ele correu até à própria bicicleta, e pedalou para
alcançá-la. Não foi difícil. O trânsito já estava leve naquela
hora da noite. O frescor noturno lhes tocava a pele tornando
o passeio muito mais agradável, mas não tanto quanto pela
companhia um do outro.
— Você tá indo bem!
— Você não viu nada. Olha! Sem as mãos! — Maritza
soltou o guidom da bicicleta por alguns segundos enquanto
Dave passava ao seu lado de braços cruzados ainda
pedalando. — Exibido! — exclamou.
Dave se aproximava e se afastava dela, fazendo
menção de tocar roda com roda, sempre atento ao baixo

34
fluxo de carros. Priorizando a segurança de seu par, ele
rodava em torno dela enquanto passeavam pela rua deserta.
Dave, numa demonstração de extrema destreza, derrapou a
bike se posicionando de frente à Maritza e começou a
pedalar para trás, na tentativa de impressioná-la.
Ele projetou o tronco para frente até que os narizes
estivessem bem próximos, ela avançou o restante da
distância que faltava e o beijou. Dave correspondeu, como
já era esperado, pois esse já era o plano desde o início.
Ambos param de pedalar, a inércia conduzia as
bicicletas na leve descida da rua. O som das catracas
rilhando era a única trilha sonora daquele beijo. Pena que
ele foi interrompido por um pequeno buraco no asfalto,
nada maior do que um disco de vinil, mas foi o suficiente
para desequilibrá-la. Maritza gritou e, num reflexo de se
manter de pé, agarrou o braço de Dave, levando-o para o
chão junto consigo.
Por sorte, estavam próximos à calçada de um parque.
Um arbusto muito macio e florido de ipomeias amorteceu a
queda de ambos. Em meio a gargalhadas bem altas, ele a
ajudou a se levantar. Dave prendeu as bicicletas em um
poste e decidiram caminhar o resto do tempo.
O braço de Dave já circulava a cintura de Maritza. Ele
mal notara o novo ralado no cotovelo, e ela, sem nenhum
arranhão, se apoiava no ombro de seu parceiro. Dave a
levou até à barraquinha de cachorro-quente onde ele
costumava almoçar de vez em quando. Para a surpresa dos
dois, ainda estava aberta a essa hora da noite.

35
— Caramba! Isso é muito bom!
— Não é? Eu como direto aqui. O Robson é muito
bom nisso!
— Sua rotina deve ser legal. Pedalar todo dia, passar
pela cidade, sentir o vento no rosto...
— Não é tão glamouroso quanto parece, corro perigo
o tempo todo.
— Mas pelo menos você pode comer essa porcaria
deliciosa.
Ambos riram, de boca cheia e aberta.
— Nem sempre foi assim. — Dave olhou para baixo.
— Pedalar, para mim, além do meu emprego, é minha
terapia.
— O que aconteceu?
Dave hesitou, sem saber se era o melhor momento de
dizer aquilo.
— Já teve a sensação de que falta algo em sua vida?
— Não sei, talvez.
— Como vou explicar? É uma coisa que vem de
dentro, como se fosse um buraco vazio e infinito.
— Nossa! O que você está falando?
— Meus pais. Eu já tive uma família “tradicional”, se
é que podemos dizer assim. Eu não lembro a idade que eu
tinha, só me lembro da minha tia na calçada com o celular
na mão quando ela recebeu a notícia — disse, com o olhar
perdido.
— Pode me contar. — Ela tocou a coxa de Dave, na
intenção de confortá-lo.

36
— Foi um acidente, não me lembro de muitos
detalhes. Eu fui o único que escapou. Já faz quase 26 anos
que eu não entro em um carro.
— Não sei o que dizer.
— Não precisa dizer nada. Eu era muito novo. Depois
disso vim para cá, morar com a minha tia.
— Olha só. Eu também vim do interior para morar
com a minha tia.
— Sério?
— Sim.
— A minha não mora mais comigo, faleceu ano
passado.
— A gente devia mudar de assunto.
— Claro, claro.
O clima estava meio pesado. Ele deu uma olhada
para ela enquanto mordia seu cachorro-quente, viu de
relance a oportunidade de mudar o clima. Ele limpou uma
gota de mostarda do canto da boca dela, e levou o dedo à
própria boca. O resto do ketchup no canto da boca de Dave
Maritza preferiu tirar com a própria boca. Os dois se
entreolham, sem graça. E daí surgiu outro beijo, e depois
mais um e um bem longo depois.
— Onde você mora? — Maritza respirava ofegante.
— Bem ali! — Apontou para o prédio habitacional
próximo ao parque.
— Hoje eu não quero voltar pra casa da minha tia.
— Você não vai precisar.

37
Os dois deixaram os guardanapos na primeira lixeira
no caminho até o apartamento de Dave. Atravessaram a rua
correndo, e subiram as escadas se pegando e batendo nas
paredes a cada curva. Uma pena é que eles trancaram a
porta antes que pudessem entrar.
***
Um relacionamento surgiu depois daquele dia. E
vários outros encontros se seguiram, tornando-se mais
agradáveis à medida que aconteciam. Passeios no parque,
pedaladas, cinemas, restaurantes, mas nunca, nunca
monotonia. Durante o dia sentiam a falta um do outro, e
algumas vezes se pegavam sorrindo sozinhos olhando para
o nada, lembrando-se do último encontro, ou de algum
momento entre os dois.
Depois de certo tempo de relacionamento com Dave,
Maritza mudou-se para o apartamento dele, onde poderiam
ficar mais à vontade. Com quase quatro anos de namoro, o
relacionamento entrou em crise. A falta de sexo os irritava
constantemente e brigavam por qualquer motivo. Dave
estava quase sempre cansado, chegava mais tarde do que o
de costume, sob a desculpa de ter feito entregas a mais para
ganhar um extra. O que não era desculpa e sim verdade. E
ela sempre preferia estar deitada, já que passava a maior
parte do dia de pé na recepção.
Mesmo com os percalços de um relacionamento
normal, Dave tinha um objetivo em mente: casar-se com
Maritza. Para isso, precisava de uma quantidade
considerável de dinheiro, era difícil explicar isso, mas para

38
ele eram sacrifícios necessários para um bem maior. Ela,
mesmo compartilhando dos mesmos objetivos, tinha
dificuldade em compreender os sacrifícios de Dave.
Havia ainda mais uma coisa que incomodava
Maritza no prédio de Dave: a presença da vizinha dele. Uma
senhorinha viúva de uns 75 anos, aposentada, que ficava
quase o dia todo na varanda observando a vida alheia. Nela
havia duas características que chegavam a quase ser
insuportáveis. A primeira era que assim que ela via Dave
entrando no prédio ia para o corredor e se sentava numa
cadeira de balanço e fingia que estava ali desde sempre. A
outra era cuidar de Dave como se fosse um filho.
Toda vez que ele passava, ela sempre tinha algum
tipo de comida para oferecer, e na maioria das vezes era
algo natureba como sopa de repolho orgânico, ou lasanha
de beterraba com abobrinha ou até mesmo leite de castanha
com canela. Dave não sabia o nome da senhorinha, mas
inventou um apelido. Dona Finha.

39
05

Dave mal dormiu na noite anterior, estava ansioso


para o dia de hoje, era um dia importante. Para adiantar o
serviço, Dave levara a caixa de encomendas para casa. Ele
se adiantou o máximo que pôde e por mais cedo que
chegasse, só poderia começar a distribuição às 8h, mas já
estava pronto para sair.
Deu um beijo na testa dela e começou a pedalar.
Só havia um pensamento na cabeça de Dave: na data
de hoje completariam quatro anos de namoro, era a ocasião
perfeita para uma surpresa e um certo pedido... Mas não era
hora de pensar nisso, precisava focar nas entregas a fim de
terminar um pouco mais cedo para aproveitar o tempo com
sua futura noiva, não tinha como as coisas darem errado.
Seu relógio de pulso despertou 7h50, e Dave se pôs a
pedalar. Daqui para frente, a mesma rotina de sempre.
Dave se encontrava em piloto automático, só conseguia
pensar em como faria o pedido. O anel de noivado também
já havia sido encomendado, nada muito caro. Dave havia
pegado escondido um anel na caixa de joias de Maritza e
mandou fazer um do mesmo tamanho, no dia em que fez
uma entrega para uma joalheria. Sua intenção era pegá-lo
hoje no dia do aniversário de namoro.
Dave foi até uma barraquinha de cachorro-quente no
caminho e parou alguns instantes para “almoçar”. Sentou-
se no meio-fio e sentia suas panturrilhas latejando. Só aí

40
percebeu que estava exagerando na velocidade e ria
sozinho, pois adorava velocidade e sabia que era para um
bem maior. Era próximo do meio-dia e as entregas estavam
quase terminando, faltava pouco até ele tentar agradar
aquela que era a única que conseguia fazê-lo sorrir.
Quando Dave passou em frente ao Hotel Winnie,
deixou na recepção um bilhete que havia escrito na noite
anterior com os dizeres: “Eu não me esqueci do nosso dia”.
Só para deixar Maritza com mais expectativa.
— Vai ter alguma coisa hoje?
— Uma surpresa, quem sabe... — disse, beijando-a.
— Tá, mas o que é?
— Você conhece o conceito de “surpresa”?
— Conheço.
— Então, não queira estragar.
Eram 17h32. Já estava atrasado, nos seus cálculos
era para ter terminado às 17 horas da tarde, então resolveu
acelerar o ritmo e ignorar os sinaleiros. A última entrega foi
feita e Dave voou para a joalheria, quando estava a duas
quadras do destino seu telefone tocou, Dave sempre andava
com fones de ouvido para atender ao telefone sem precisar
para de pedalar, era Roberto.
— Alô.
— Dave, meu peixe, aqui é o Roberto! Preciso da sua
ajuda.
— Não vai dar, Roberto! Tô ocupado.
— Estou com uma encomenda aqui, preciso de você,
cara.

41
— Encomenda? Não vai dar, meu expediente já
acabou. Chama um dos socorristas!
— Estão todos na rua, lembrei de você que é um dos
meus entregadores mais rápidos. Escuta só: isso é coisa
grande, vale uma nota preta, só por essa entrega, e se
conseguir entregar até às 18h, eu promovo você a socorrista.
— Parece que a coisa é séria mesmo.
— Sim, sem contar que você ainda vai receber o valor
da sua caixa.
Agora Dave passava por um dilema mental, o que era
mais importante? Sua futura esposa, seu emprego, o dia
especial de hoje, ou o futuro? Pensando bem, com dinheiro
extra ele podia levá-la para jantar em um lugar melhor do
que havia planejado, mas talvez corresse o risco de não
chegar em casa a tempo. Pensando melhor, se fosse
promovido a socorrista seu salário aumentaria e teria as
condições necessárias para assumir um casamento... O que
fazer? O que mais lhe intrigava era se Maritza poderia
entender.
— Tô passando aí na porta!
Arrependeu-se algumas vezes durante o caminho
por ter dado aquela resposta. Ele tinha consciência de sua
velocidade, achava possível fazer a entrega a tempo. Bom...
Ele tinha certeza, e era a hora de levar sua velocidade ao
limite. Decidindo aceitar a entrega, Dave virou a esquina da
rua de onde ficava a Central sem nem utilizar os freios, de
longe avistou Roberto com uma das mãos erguidas com um
pequeno envelope.

42
Dave nem freou, soltou o velcro que prendia a
mochila no peito e arremessou para dentro da Central
assim que passou pela porta, estendeu a mão e pegou o
envelope da mão de Roberto, nesse momento pensou: “O
que haveria de tão importante nesse envelope tão
pequeno?”, enfim, sua conduta não permitia que ele
bisbilhotasse suas encomendas.
— Até às 18 horas, hein! — berrou Roberto vendo
Dave virar a esquina.
Após dois minutos de pedalada, Roberto ligou para
dar o endereço.
— Dave, meu peixe. Você lembra do supermercado
onde eu costumava comprar pão lá pra Central?
— Sei.
— Então, o destinatário está hospedado num
pequeno hotel bem em frente, chamado Cardoso Hotel,
quarto 456.
— 456! Copiei!
— Antes das 18, não esquece.
— Qual é! Confia!
Dave conhecia o lugar e estava quase lá. Muito
provavelmente passou os 40 km/h. A pressa estava sentada
na garupa e a cada curva ele dava uma olhada no relógio. E
foi em uma dessas olhadas que Dave viu o mundo girar em
câmera lenta.
Ele atingiu uma velocidade absurda, estava em uma
descida e mesmo assim ainda continuava pedalando. Um
táxi parado em frente ao hotel, em fila dupla, próximo à

43
esquina. O passageiro abriu a porta do lado esquerdo do
carro, já que a outra estava bloqueada pelo veículo
estacionado. Dave não teve tempo de reagir ou frear,
acertou em cheio a porta de trás do táxi amarelo. Ele foi
arremessado por cima da porta, e voou em direção ao
cruzamento logo à frente.
Um caminhão de lixo que passava por ali pegou Dave
em pleno ar, arremessando-o mais longe em direção ao
vidro traseiro do carro da frente. O impacto foi tão forte que
o vidro se partiu. Antes de cair com a cabeça no chão e bater
as costas. Alguns cacos de vidro lhe cortaram seu rosto.
Um acidente tão feio que fez com que os pedestres
que testemunharam levassem as mãos aos lábios e
arregalassem os olhos. Dave viu o céu se apagando, e os
vultos das pessoas à sua volta desaparecendo levemente.
Desmaiou.

44
06

Como se fosse uma cabeça flutuante, Dave não sentia


nenhuma parte de seu corpo. Ao abrir os olhos não
reconheceu o local onde estava. Tudo ao seu redor era
escuro, não sabia se era uma sala ou o próprio espaço
sideral. Ele movia os pés e não tocava em nada. Ainda
detinha todos os movimentos corporais e enxergava o
próprio corpo claramente em meio à escuridão, mas nada
em volta.
Em meio à escuridão ao seu redor, eram visíveis tons
claros de verde e vermelho misturados ao preto. Seus
movimentos deixavam um rastro claro que se dissipava
logo em seguida, deixando-o um pouco tonto.
Como se um imenso projetor estivesse ligado, Dave
viu ao longe algumas cenas que desconhecia a origem.
Momentos de seu trabalho, momentos com Maritza, e
outros que ele não lembrava que tivessem acontecido.
Sua desorientação crescia à medida que o tempo
passava. Não tinha noção de espaço, de direção, ou de
tempo. Sentia um gosto metálico na boca, ferro puro, como
sangue talvez. A sensação de confusão era constante. Seu
corpo girava sem tocar em nada, a sensação de suspensão
era indescritível e desconfortável. Dentro das cenas que
passavam, Dave conseguiu pescar alguns detalhes e notou
flores, besouros, cachorros-quentes, máquinas de prêmios,

45
toca-discos, ferros de passar roupas, máquinas de lavar, e
outras coisas que não sabia definir.
As imagens se sucediam de forma rápida, mas
mesmo assim ficaram gravadas na mente de Dave.
Repentinamente, a sensação de leveza foi substituída pela
de queda. O frio no estômago percorreu todo o externo até
a garganta, a respiração diminuiu o ritmo e Dave
despencou. Caiu no nada, sem enxergar para onde ia, sem
perspectiva. Sem motivo.

46
07

Dave foi acordando aos poucos, lentamente foi


abrindo os olhos e recuperando os sentidos, sua visão ainda
estava desfocada e os ouvidos com som abafado. Nesse
momento, a única coisa que conseguia discernir eram as
cabeças das pessoas à sua volta. A única coisa que ouvia era
um silvo agudo no ouvido e ouviu abafado:
— Rapaz, rapaz, tudo bem aí? Alguém ligue para uma
ambulância!
A visão se tornara nítida agora, Dave via um homem
de meia-idade com um chapéu coco verde-limão e um terno
da mesma cor, com uma gravata-borboleta vermelha,
estava de joelhos ao lado da sua cabeça.
— Quem é você? — Dave perguntou.
— Ei, ele está acordando — disse o homem para a
multidão. — Calma, rapaz, você sofreu um acidente, a
ambulância deve chegar em alguns instantes.
Dave se perguntou como fora parar ali, lembrava-se
do táxi e do impacto do asfalto, mas não se lembrava que
tinha sido nesta rua, algo estava errado. Olhou em volta e
nem sinal de táxi ou do passageiro, menos ainda do hotel
ou do supermercado. Fez força para se levantar. O senhor
de chapéu verde tentou impedi-lo, mas foi em vão. As
pessoas o olhavam assustadas: “Como estava de pé após um
tombo como aquele?”, pensavam.

47
A primeira coisa que Dave pensou foi que deveria
avisar Maritza sobre o acontecido, e a Roberto também,
dizendo que não poderia terminar a entrega. Levou as mãos
aos bolsos, procurando o celular.
— Alguém viu meu celular?
O homem de chapéu coco disse “está aqui seu
celular...”, e tocou o ombro de Dave, que se sentiu um pouco
tonto. “Vai ficar tudo bem”, completou o senhor. Dave
sentou-se na calçada, sentiu uma leve dor nas costelas e no
braço. Ele sentiu uma dor latente em suas têmporas, mal
conseguia abrir os olhos devido ao aperto lateral que sentia,
meio desnorteado, ali ficou até a ambulância chegar, olhou
em volta e não viu mais nenhum senhor de verde.
Algo estava errado, depois de um tempo Dave já não
sentia quase nenhuma dor, apenas uma pequena
dificuldade de respirar. A ambulância estacionou próximo
ao local e o paramédico se assustou, não parecia que o
acidente que foi descrito pelo telefone foi sofrido por aquele
rapaz. Ainda sentado na calçada, Dave passou por uma
avaliação de cognição e orientação, com muito custo o
paramédico conseguiu convencer de que ele deveria
acompanhá-los até o hospital para fazer outros exames, e
assim foi Dave, mancando até a ambulância.

48
08

Dave desceu da ambulância amparado pelo


paramédico, e se surpreendeu com o que viu na recepção.
Maritza estava debruçada sobre o balcão gritando com a
atendente, virando o pescoço viu Dave entrando pela porta
e saiu correndo para abraçá-lo:
— Meu amor, você tá bem? Eu vim assim que soube.
— Ai, ai, vai com calma, não aperta que dói! Eu já
estou melhor, amor. Como você sabia que eu viria pra cá?
— Eu recebi um telefonema, um homem disse que
você sofreu um acidente e viria pra cá… Tentei ligar no seu
celular ninguém atendia então vim para o hospital. Aqui
nessa joça ninguém sabia notícias de você — disse cruzando
os braços.
— Entendi. Amor, me desculpa, eu estraguei nosso
aniversário.
— Cala essa boca, o importante é que você tá vivo.
— Desculpa — disse beijando a testa dela.
— O Roberto também está aqui. Ele me falou que
recebeu a mesma ligação, foi buscar uns cafés para nós.
— Dá licença, moça. Agora ele vai ter que fazer alguns
exames. Me acompanhe, por favor — interrompeu o
paramédico.
— Que nada! Eu já disse que estou bem.
— Isso o médico vai dizer, meu amor! A propósito,
feliz quatro anos de namoro! — disse, beijando-o.

49
— Feliz quatro anos — falou com a convicção de um
vaso quebrado.
O paramédico colocou Dave sentado em uma cadeira
de rodas e o empurrou pelas portas duplas.
Um frio correu pela espinha de Dave, tinha
esquecido de pegar o anel de noivado na joalheria, na
verdade não esquecera, não teve como. Mais à frente no
corredor viu Roberto trazendo dois copos de café.
— E aí, cara, como você tá? — perguntou Roberto.
— Tô de boa, esquece isso. Cara, eu não consegui
entregar a encomenda.
— Não preocupa com isso! A gente resolve tudo
depois.
Roberto parecia muito calmo, a respeito de algo que
ele disse ser de extrema importância. Dave não insistiu.
— Eu quero um favor seu — sussurrou.
— Fala.
— Preciso que vá até a Lors, dê o meu nome e pegue
um anel que encomendei lá! Tem que ser rápido!
— Relaxa, meu peixe, pega aqui no meu bolso. —
Roberto se curvou para frente segurando dois copos de café.
Dave estendeu a mão em direção ao bolso da camisa
social de Roberto próximo ao peito e de lá tirou uma
caixinha de anel preta. Sem entender nada, foi puxado pelo
paramédico. “Vamos logo, rapaz”. Dave virou o corredor,
olhou para trás e viu Roberto sorrindo e piscando um dos
olhos. “Mas como?”, pensou.

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09

Dave foi levado para um consultório inteiramente


branco, ficou até constrangido de estar ali devido à limpeza
do lugar. “Espere aqui o médico já vai te atender”, disse o
paramédico fechando a porta.
Dave se levantou da cadeira de rodas que foi levada
pelo paramédico. No consultório havia uma maca no canto
da sala, uma mesa e três cadeiras, duas na frente e uma
atrás da mesa para o médico, em cima da mesa havia um
porta-retratos com a foto de uma mulher e duas crianças,
havia um enfeite em formato de microscópio, uma placa
preta que se lia “Dr. Runemberm” e na parede atrás da mesa
um diploma emoldurado e logo abaixo havia um outro
quadro menor que o diploma onde haviam três números:
456.
Longos minutos se passaram, e Dave não criou
coragem para sentar-se, então o médico entrou:
— Sente-se, rapaz. — Dave sentou-se em uma das
cadeiras brancas. — Pela sua ficha aqui, você sofreu um
acidente bem feio, hein?
O médico usava um jaleco branco, com o próprio
nome bordado em verde na entrada do bolso na altura do
peito ao lado de uma caneta preta, era bem velho de cabelos
grisalhos em tom prateado, usava um estetoscópio em
torno do pescoço e óculos pequenos na ponta do nariz.

51
— Ficha? Não fiz ficha alguma, não dei meu nome a
ninguém. Como isso é possível?
— Bem, aqui diz que seu nome é Dave Martins da
Costa, sofreu um acidente por volta das 16h. Descia a
5°Avenida sentido Praça Marques quando colidiu com a
porta de um táxi e foi arremessado cerca de 6 metros...
Enfim, rapaz, posso dizer até a placa do táxi se quiser.
— Foi isso mesmo que aconteceu — disse Dave numa
mistura de surpresa e dúvida.
— Não se preocupe com isso, rapaz, vamos cuidar de
você.
Dave ouviu a voz de Maritza e pensou por um
momento que ela estivesse presente. Olhou em volta e
notou que era um delírio em sua cabeça.
— Você está sentindo alguma dor?
— Um pouco na lateral do tronco.
— Sente-se aqui. — O médico apontou para a maca
na lateral da sala.
Dave sentou-se na maca e o médico tocou seu
abdome.
— Dói aqui? E aqui?
— AAI, AI, AI.
— Respire fundo… Sente alguma dor ou algum
desconforto?
— Sim, do lado direito.
— Bom, provavelmente, deve ser fratura de costela,
mas vou pedir uma radiografia, e já que você teve uma
pancada muito forte com a cabeça, vou pedir uma TC. Você

52
ainda tem risco de uma concussão, então vamos ficar
atentos.
— Sinto dor no dedo da mão também, doutor.
O dedo anelar de Dave estava torto, e só percebeu a
dor quando apoiou o braço na maca para subir, já que era
um pouco alta.
— Bom... Esse dedo você quebrou, com certeza.
Saindo do consultório com uma mão segurando as
costelas, e na outra os pedidos dos exames, passou pela
recepção. Roberto já tinha ido para casa, então deu mais um
beijo em Maritza e foi fazer seus exames.
Ver Dave se distanciar daquela maneira era como
uma despedida. Os dois com os braços esticados e as mãos
dadas para prolongar o que poderia ser o último toque. As
palmas das mãos deslizaram uma sobre a outra até se
soltarem.
Maritza foi invadida por uma sensação desconhecida
que a incomodava como nunca. As palmas de suas mãos
brilhavam devido ao suor que as umedecia, tão
contraditório em relação à temperatura de seus dedos frios.
Sua caixa torácica se comprimia e apertava os pulmões,
dificultando a respiração, o ar entrava e cortava sua
traqueia como se ele fosse feito de pequenas lâminas de
barbear.
Sua angústia se baseava em uma dúvida: “Será que
Dave vai sair andando lá de dentro?” Essas palavras se
repetiam dentro da sua cabeça em sequência, sem dar
intervalo para que ela pensasse em outra coisa. Existia uma

53
falta de perspectiva imensa em saber o que viria depois.
Como seria a vida sem Dave? Depois de conhecê-lo, ela não
sabia mais como viver sem ele. Era quase como caminhar
em direção à borda de um penhasco. Era evidente a certeza
da queda, mas impossível de prevê-la ou saber como
proceder.
No segundo em que se jogou em uma das cadeiras da
sala de espera, diversos pequenos arrependimentos
atingiram seu peito simultaneamente. Coisas do cotidiano
que não tinham a menor necessidade de acontecerem. As
reclamações que jogava em cima de Dave, por não ter
lavado um copo usado na pia, ou guardar os tênis sem as
meias dentro. Coisas pequenas que ela usava para
extravasar seu cansaço e estresse do dia a dia. Dave não
tinha culpa.
Foi depois de tudo isso que a pior sensação de todas
chegou, o conhecimento. Maritza não se lembrava ao certo,
mas já havia lido ou visto na tv sobre vítimas de acidentes
que se consideram “bem”. Dave estava consciente e
andando sem ajuda depois de um impacto forte.
Subitamente as pessoas morriam em acidentes parecidos,
devido alguma complicação interna que não causa dor.
Dave poderia estar fazendo um café e cair repentinamente.
A melhor opção era encerrar os pensamentos por ali e
aguardar os exames.
***
Deitado na maca, entrando naquele imenso tubo de
metal Dave pensava: “Maldito taxista, por que fugiu? E

54
aquele passageiro? Que maluco! O que custava olhar antes
de abrir a porta?”.
De volta ao consultório, já com os exames em mãos,
o médico estava olhando a radiografia do tronco de Dave.
— Bom, meu amigo... Vou ser bem direto, você
quebrou a quarta costela e o quinto dedo da mão, que é o
mesmo que seis semanas de repouso, você vai fazer o
seguinte: vai tomar esse analgésico para aliviar a dor —
disse ele, assinando uma receita e entregando para Dave. —
Vá até o quarto andar na sala 56 onde uma enfermeira vai
fazer curativo nessas escoriações, vai colocar um colete para
imobilizar a costela quebrada e engessar seu dedo. Agora,
se me der licença, estou sendo chamado na sala de cirurgia.
— Levantou-se e foi em direção à porta, e, antes de fechá-la,
disse: — Ah! quase me esqueci, faça compressas geladas,
pode ajudar também. Mais uma coisa: pela sua ressonância
seu cérebro parece ótimo.
Dave nem teve oportunidade de questionar o doutor,
então ainda ficou na sala por um tempo pensando e lendo a
receita, se surpreendeu ao ver o carimbo onde o doutor
assinou e lá estava “CRM — 0456”.

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10

Seis semanas parado em casa, para quem vive com


pressa, pode ser a maior das torturas. Nem mesmo de
repouso em casa havia liberdade, ela foi tirada pelo gesso
que imobilizava todo o braço, Dave pensava: “Pra que
imobilizar todo o braço? Eu só quebrei um dedo”. O maior
trabalho que tinha era alternar as bolsas de gel que colocava
no congelador, enquanto uma estava lá debaixo do braço na
costela, a outra estava lá em cima da lasanha para micro-
ondas.
Dave sempre estava de pé antes de Maritza, só para
vê-la se arrumar e sair. Despediu-se dele com um longo
beijo na boca e foi para o trabalho, as brigas ainda
continuavam, mas já sabiam como administrá-las e no final
tudo acabava bem. As noites eram longas e os dias se
tornavam ainda mais, nada para fazer, a não ser esperar e
ouvir um único pensamento que não saía da sua cabeça:
“Como vou pedir Maritza em casamento de uma forma
especial? Ela merece que seja inesquecível, não posso pedi-
la nessas condições, pois mal consigo segurar a caixa do
anel, quanto mais me ajoelhar… Eu não tenho escolha:
tenho que me recuperar!”.
Já fazia uma semana que estava em casa e o fato de
ainda faltarem cinco era perturbador. O telefone tocou.
— Pois não?
— Dave, meu peixe, é o Roberto! Tá podendo falar?

56
— Posso sim, cara! Que bom ouvir sua voz! Como
estão as coisas por aí?
Dave tomou um susto e olhou em volta, pensou ter
ouvido a voz de Maritza chorando, mas estava sozinho.
— Mais ou menos, a notícia que eu tenho para você
não é das melhores. — Dave estava tenso e sentiu um aperto
no peito. — Cara, tenho que desligar você da empresa.
— O que? Como assim? Por quê?
— Dave, me dói ter que fazer isso, mas eu não posso
esperar que você volte, eu tenho centenas de entregas pra
fazer, você é um dos mais rápidos que eu já contratei, mas
infelizmente eu não posso contar com a sua presença nesse
momento.
— Tudo bem, eu... entendo o seu lado — dizia Dave,
triste, mas conformado.
— Só me resta te desejar sorte, no mercado de
trabalho. Eu mandei o Virgílio entregar seus documentos,
estão na sua caixa de correio.
— O que... Mas como? Minha carteira de trabalho
está comigo. — Dave estava muito confuso.
— Não, todos os seus documentos foram entregues
pra você hoje cedo.
— Deixa eu te perguntar uma coisa: como foi que
você soube do meu anel de noivado?
— Bom... No dia do seu acidente eu recebi um
telefonema de alguém que me dizia para passar lá na
joalheria antes de ir para o hospital, eu só entendi tudo
quando cheguei ao hospital. — Silêncio.

57
— Olha, Dave, fica bem, cara! Não é pessoal, são
negócios...
Dave nem quis esperar para ouvir a explicação,
Roberto não era mais seu chefe, não lhe devia mais nada,
muito menos respeito, colocou o telefone no gancho, pegou
o celular e discou o número de Maritza. Estava preocupado,
não era normal ouvir a voz de alguém do nada. Com o
celular na orelha, desceu as escadas em direção à caixa de
correio para pegar seus documentos. Maritza atendeu:
— Oi, meu bem!
— Tá tudo bem com você, meu amor?
— Tá sim… O que houve? Você nunca me liga nesse
horário.
— Nada de mais… Te conto quando chegar em casa.
Eu queria ouvir sua voz.
— Oh meu bem, me desculpa, mas não posso ficar
atendendo celular no serviço, conversamos quando eu
chegar em casa, ok?
— Tudo bem! Só queria me certificar de que estava
tudo bem. Bom trabalho, meu amor, e não esquece que eu
te amo!
— Obrigada! Também te amo, meu amor. Beijos.
Inseriu a pequena chave na fechadura da caixa de
correio e de lá tirou um grande envelope branco, parecia só
haver papel e pesava um pouco. Ele ia subindo as escadas,
quando ouviu:
— Meu filho, como você tá magrinho!

58
— Oi, Dona Fi... É... Como vai a senhora? —
disfarçou.
— Eu tô bem, mas você parece que não vai bem, não,
menino. Vem comer uma coxinha de jaca. Acabei de fritar.
— Não, obrigado, fica para próxima — disse Dave
subindo as escadas.
— Menino, onde você machucou esse braço?
— Não foi nada, estou bem. — E virou o corredor.
De volta ao apartamento. Dave rasgou a boca do
envelope. De lá tirou a própria carteira de trabalho que não
fazia ideia de como saiu de suas coisas, os outros papéis
eram a rescisão e a homologação do sindicato. Tudo
correto. Dave não comparecera ao sindicato para assinar
nada, mas mesmo assim lá estava sua assinatura. No fundo
do grande envelope havia um menor com os dizeres
“Rescisão”. Ao abrir, Dave notou diversas notas de
dinheiro.
Ele precisava esfriar a cabeça, já era quase hora do
almoço, resolveu sair para caminhar um pouco, olhando
pela janela do apartamento viu uma barraquinha de
cachorro-quente, um pequeno carrinho de metal com um
guarda-sol listrado de amarelo e vermelho. Pegou o
envelope, tirou uma nota de cinco, colocou no bolso
esquerdo, passou pela cômoda, pegou sua carteira, e as
chaves do apartamento e colocou no bolso direito. Dave não
era acostumado a comer muito, porque nunca teve tempo
para isso, então um cachorro-quente era mais que
suficiente. Descendo as escadas, ouviu uma voz:

59
— Tá com fome, meu filho?
— Tô sim. Mas vou comer na rua! Obrigado. — E
desceu correndo para não ouvir mais nada.
Dave foi se perguntando o que faria da vida, agora
sem emprego, como um desempregado poderia pedir
alguém em casamento? Ele pretendia sair do aluguel, ter
filhos com ela diversos fatores que agora pareciam mais
distantes, era hora de refazer o currículo e pôr os pés na rua.
Não queria pensar naquilo nesse momento, só queria
comer, atravessou a rua e pediu um cachorro-quente com
milho, batata-palha e molho de tomate, e para beber pediu
uma lata de Coca-Cola.
— Quatro e cinquenta, amigo — disse o rapaz que o
atendeu.
Dave pagou-o com a nota de cinco e prontamente
recebeu uma moeda de cinquenta centavos de troco. Ele
colocou a moeda no bolso direito e foi procurar um lugar
para se sentar, já que não podia segurar o lanche com as
duas mãos. Havia uma pracinha próxima, sentou-se num
banco, comeu, e pensou, pensou, pensou... e pensou que era
o melhor cachorro-quente do mundo. Não que a comida
fosse boa, mas concluiu que a fome é sempre o melhor
tempero.
Um mendigo que passava por ali pediu um pouco de
dinheiro, Dave lhe deu a moeda de cinquenta centavos. Já
estava quase na hora de Maritza chegar em casa, resolveu
voltar. Chegando em casa, Dona Finha não estava nas
escadas, talvez pelo horário. Dave foi tomar um banho, mas

60
antes esvaziou os bolsos e colocou tudo no criado mudo ao
lado de sua cama. As mãos de Dave começaram a tremer,
estava boquiaberto com o que via. No criado estavam a sua
carteira, as chaves do apartamento, uma nota de cinco e
uma moeda de cinquenta centavos.

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11

A cabeça de Dave estava girando, mas que droga


estava acontecendo? Ele tinha certeza de que pagou pelo
cachorro-quente e mais certeza ainda que deu a moeda ao
mendigo, mas a nota e a moeda estavam ali bem diante dos
seus olhos, será que havia esquecido dinheiro no bolso da
bermuda? Seria sua mão? Seria sua bermuda? Algo estava
errado. Colocou lentamente a mão no bolso e havia outra
nota de cinco, o teto começou a ficar escuro, os olhos foram
se fechando, desmaiou.
— Acorda, amor. — Dave sentiu uns tapinhas na
bochecha.
Maritza já havia chegado do trabalho e se deparado
com a cena de Dave estirado no chão. Ele começou a abrir
os olhos e ver Maritza num tom embaçado.
— Tá tudo bem, amor?
— Tá, sim, meu bem.
— Você exagerou nos analgésicos ou o quê? — Ela
parecia exaltada.
— Não, não — disse Dave, olhando para a cômoda
onde estavam a nota e a moeda. — Não foi nada, meu bem,
só um pouco de tontura.
— Ótimo! Espero que seja mesmo… Vou tomar um
banho. — Beijou Dave no rosto, se afastando.
Dave sentou-se na cama lentamente, sua cabeça
estava a mil e olhando para a nota de cinco teve uma ideia.

62
Depois do banho, Maritza estava na cozinha,
esquentando uma lasanha congelada para o jantar já que
não costumavam cozinhar em casa, Dave ouviu uma oração
na voz de sua namorada.
— Meu bem, você disse alguma coisa?
— Não — respondeu com a boca cheia de muçarela,
que iria jogar por cima da lasanha assim que estivesse
quente.
***
Uma semana depois do acidente, os analgésicos de
Dave haviam acabado, resolveu tomar um banho e sair para
comprar mais, foi até o banheiro e com cuidado soltou o
velcro da cinta que lhe prendia o braço com medo da dor,
mas não sentiu nada, levantou o gesso acima da cabeça e
olhou para a região das costelas e nem vermelho estava.
Resolveu arriscar um pouco e deu uns tapinhas na costela,
não sentiu nada também, estava surpreso, aumentou a
força dos tapas e percebeu que estava curado, não sentia
mais dor, resolveu arriscar ainda mais, foi até a cozinha
pegou uma faca de serrinha e tentou cortar o gesso, depois
de meia hora serrando conseguiu removê-lo.
Seu queixo caiu, não sentia dor alguma, seu dedo
estava como se nunca tivesse sido quebrado. Conseguia
abrir e fechar a mão sem o menor problema, como podia ter
se recuperado tão rápido? Perguntava a si mesmo. O
médico havia dito seis semanas, e em uma ele já estava bem,
pelo menos não ia precisar comprar mais analgésicos.

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Assim que terminou seu banho, imediatamente ligou
para Maritza.
— Meu amor, tenho uma novidade pra você.

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12

Dave sentia um forte odor de éter, abrindo os olhos


lentamente ouvia vozes exaltadas e passos apressados, as
luzes no teto passavam rapidamente uma após a outra, ele
ouviu a voz de Maritza em choro, estava deitado em uma
maca que era empurrada apressadamente pelos corredores
brancos do hospital. Ao chegar no centro cirúrgico, viu o
médico pronto de máscara e luvas com uma motosserra e
mãos ensanguentadas, dando uma gargalhada estridente.
— AHHHH! — Dave acordou ofegante em seu
quarto, passou a mão no rosto retirando um pouco do suor.
Maritza dormia ao seu lado, estava tão cansada que
nem acordou com seu grito. Olhou o relógio e eram 4h56.
Foi até à cozinha tomar um copo de água gelada, voltou para
a cama e não conseguiu mais dormir. Durante a manhã
manteve os olhos fechados e fingiu estar dormindo quando
Maritza deu-lhe um beijo de despedida. Levantou-se assim
que escutou a porta fechar, era a hora de testar a sua ideia.
Eram pouco mais de 6h, Dave estava na despensa do
apartamento revirando coisas à procura de caixas de isopor.
Ele comprou algumas há muitos anos, quando ainda
frequentava a praia. Depois de ter feito uma imensa
bagunça achou uma pequena caixa térmica de
aproximadamente 30 litros, jogou-a na direção da cozinha
e continuou a busca. Enfim, encontrou o que realmente
procurava, um cooler azul de rodinhas, tinha quase 70 litros

65
e seria útil ao seu plano. Não queria perder tempo
arrumando a bagunça, então começou a chutar e empurrar
tudo de volta para o quartinho onde funcionava a dispensa,
vassouras, panos de chão, produtos de limpeza,
literalmente socou tudo lá dentro e fechou a porta com um
pouco de dificuldade.
Correu até a janela da sala, e seu alvo ainda não havia
chegado, voltou para a pia da cozinha onde com uma bucha
e sabão esfregou o interior das duas caixas térmicas na
tentativa de tirar o mau cheiro e a poeira. Com as caixas
limpas e secas pegou um pouco de papel alumínio e forrou
as duas.
Havia uma alça azul feita de nylon na caixa menor e
um puxador na caixa maior que deslizava pelas rodinhas,
eram quase 8 horas da manhã, estava perto do horário que
seu alvo costumava chegar. Era a hora de Dave tentar mais
uma vez, foi até a sua carteira e pegou a nota de cinco que
havia usado para comprar um cachorro-quente alguns dias
atrás.
Formando uma pinça com os dedos polegar e
indicador segurou a nota com as duas mãos, fechou os olhos
e se concentrou. Afastou as mãos, abriu um dos olhos e o
outro lentamente, boquiaberto percebeu que havia uma
nota de cinco em cada mão, “que coisa maluca”, pensou.
Tinha o dom de multiplicar as coisas, imaginou que
talvez pudesse funcionar com outros objetos, foi até a mesa
de onde ficava o telefone ao lado do papel para anotar os
recados, pegou uma caneta e fez da mesma forma, fechou

66
os olhos e se concentrou profundamente, e quando separou
as mãos, nada, só havia uma caneta na sua mão esquerda,
pelo visto só funcionava com dinheiro, voltou para a nota
de cinco, tentou de novo fazendo um movimento de como
se fosse rasgá-la e deu certo mais uma vez. Dave repetiu o
processo diversas vezes até que houvesse diversas notas em
torno de seus pés, recolheu todas, passou um elástico
amarelo em torno delas e as colocou no bolso, em seguida
pegou um pote com tampa e colocou um exemplar de cada
moeda existente, para o caso de precisar de troco.
Dave estava pronto, só precisava esperar mais um
pouco, precisamente às 8h30, como havia previsto seu alvo
chegou, lá estava o vendedor de cachorro-quente chegando
à esquina empurrando seu carrinho, Dave correu pelas
escadas carregando a caixa de isopor menor e puxando a
maior:
— Bom dia, meu filho!
— A senhora já tá acordada? — Dona Finha era a
última pessoa que ele queria encontrar naquele momento.
— Eu acordo cedo pra respirar o ar puro da manhã,
onde você vai com isso?
— Um amigo vai viajar, vou emprestar essas caixas
para ele — inventou.
— Leva uma sopa de quinoa e broto de feijão, bem
energética pra aguentar a viagem.
— Não precisa, não! Obrigado — disse, se afastando.
— Você volta a tempo para o almoço?

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Ele já tinha virado o corredor. Chegou à esquina
atrás do carrinho, um rapaz de meia-idade e blusa vermelha
tinha o nome “Robson” bordado em linha dourada logo
acima do bolso em seu peito. Dave tirou o bolo de notas de
cinco e entregou ao vendedor dizendo:
— Quero comprar todos os seus cachorros-quentes!

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13

Esse era o sonho de todo vendedor: despachar toda


a mercadoria no primeiro minuto de expediente. E foi essa
graça que Dave proporcionou. A cada cachorro-quente que
o vendedor montava, Dave acomodava cuidadosamente na
caixa grande, estava quase cheia.
— Acabou o molho e as salsichas, deu 182 cachorros-
quentes, a um e cinquenta cada dá... — Pegou uma
calculadora para fazer os cálculos — Duzentos e setenta e
três… Vou fazer duzentos e setenta pra você.
O vendedor soltou o elástico, molhou o dedo nos
lábios e começou a contar as notas.
— Vai sobrar dinheiro aqui, rapaz!
— Não tem problema, o que sobrar você me dá de
refrigerantes.
Foi o suficiente para quase encher a segunda caixa de
isopor. Dave foi direto para a praia da Barra da Princesa,
que estava lotada. Era surpreendente o quanto estava
lotada a praia em um dia no meio da semana, mas para
Dave isso era uma vantagem, sua intenção era revender os
lanches por um preço mais caro, estava pensando em algo
em torno de quatro.
Mas que loucura Dave tinha na cabeça? Vender
cachorro-quente na praia… O próprio nome já dizia:
“cachorro-quente”. É impossível vender um alimento

69
quente no lugar onde mais faz calor na Terra, mas mesmo
assim insistiu na ideia.
— Boa tarde, gostaria de comprar um cachorro-
quente?
— Sim! Adoraria! — respondeu uma gorda vermelha
de sol e um biquíni verde-abacate com bolinhas marrons.
Aquilo assustou um pouco Dave. Era a sua primeira
venda e ganhou um “sim”. Isso serviu-lhe de motivação. A
timidez de Dave o impedia de gritar pela praia dizendo
“Olha o cachorro-quente!”. Isso ele não queria fazer.
O sol estava a pino, muito calor, muito calor mesmo,
não foi difícil vender os refrigerantes saíram antes de
esquentarem, os cachorros-quentes demoraram um pouco
mais para vender, Dave comeu um na hora do almoço.
Enquanto andava pela praia pensou novamente ter
ouvido a voz de Maritza, mas ignorou. Dave retirou os
chinelos para andar na areia, prendeu os dois no cinto da
bermuda, e se arrependeu logo em seguida, a areia quente
castigava a sola dos pés, por isso resolveu andar mais
próximo às ondas, estava mais confortável com os pés
molhados, mas a cabeça não tinha como cobrir, deveria ter
trazido um boné ou chapéu, qualquer coisa do tipo, o único
alívio que havia era quando parava debaixo dos guarda-sóis
dos banhistas para oferecer seu produto, foi aí que chegou
à conclusão de que a vida de ambulante não era para ele.
A praia estava tão lotada que começava a se tornar
difícil andar entre as pessoas com duas caixas térmicas. Na
praia havia diversos ambulantes, mas o único que vendia

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cachorro-quente era Dave, isso o fez se sentir um pouco
idiota, mas o incrível é que não ganhou nenhum “não” todas
as pessoas a quem ofereceu aceitaram e pagaram sem
maiores reclamações.
Eram 15 horas da tarde, e Dave já estava em casa
contando o dinheiro das vendas, com todo o dinheiro
espalhado na mesa de centro do apartamento. Pelo jeito, as
notas só se multiplicavam quando ele queria. Foi quando de
repente Dave pensou consigo mesmo por que vendeu todos
aqueles cachorros-quentes? Se queria ganhar dinheiro, era
mais fácil pegar uma nota alta do seu acerto trabalhista e
fazer como fez com a nota de cinco. Estava se perguntando
por que teve todo aquele trabalho, a resposta veio em
seguida, não podia ficar parado, multiplicando dinheiro e
vendo a vida passar, precisava ocupar a mente de alguma
forma, e essa era a forma perfeita, enfim... O importante é
que agora tinha dinheiro e foi conseguido com trabalho.
Dave guardou o dinheiro em um local seguro, o
montante ainda não era suficiente para um pedido de
casamento decente, resolveu tomar um banho, tirar a areia
dos pés e descansar um pouco, logo, logo seria a hora de
colocar em ação a segunda parte de seu plano. Após o
banho, Dave resolveu assistir um pouco de TV.
No dia seguinte, ele resolveu fazer o mesmo que no
dia anterior. Prontamente, às 8 horas da manhã, aguardou
até às 8h30 na esquina onde o vendedor de cachorro-
quente ficava com suas caixas térmicas. O vendedor vinha
chegando e, ao ver Dave, abriu um largo sorriso.

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— Bom dia, meu rapaz!
— Bom dia.
— Eu estava me perguntando o que você fez com
tanto cachorro-quente.
Dave um pouco desconcertado, não sabia o que
dizer, precisava pensar rápido em uma resposta, pois não
queria dizer que estava revendendo, ou pior dizer que a
clientela na praia pagava mais caro, a única desvantagem é
ter que andar no sol quente, e Dave não possuía um guarda-
sol como o do vendedor, nem um carrinho. Disse a primeira
coisa que lhe veio à cabeça:
— Uma festa! Chamei alguns convidados e dei uma
festa, foi isso! — respondeu com um sorriso amarelo.
— Bom, e o que vai ser hoje?
— Quero comprar todos eles de novo.
— Eu já esperava essa resposta, então eu trouxe mais
dessa vez. Vai ter outra festa hoje? — disse sorrindo.
Dave lhe entregou o bolo de notas de cinco meio sem
graça, sem uma desculpa convincente para levar todos os
cachorros-quentes novamente.
— Meu rapaz, você tem uma fábrica de notas de cinco
em casa? Ou será que roubou um banco ou algo assim? —
falou o vendedor, dando algumas gargalhadas. — Nem vou
conferir isso aqui, vou confiar em você.
— Minha namorada trabalha num banco — mentiu.
Dave deu de ombros e não se importou, não ligava
para aquelas notas, nem se estava passando dinheiro a mais
ou a menos, não fazia a menor diferença. Virou-se para trás,

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de súbito, pensando novamente ter ouvido a voz de Maritza
em tom de choro dizendo:
“Não vá onde eu não possa segui-lo”.
Mas, mais uma vez, não era nada.
Estava com as caixas cheias, e elas pareciam mais
pesadas dessa vez. O vendedor original de cachorros-
quentes retornou para casa feliz da vida. Dave se dirigiu à
praia da Princesa, dessa vez mais lotada que no dia anterior.
Mais um dia de sol quente, porém as vendas foram várias
vezes mais rápidas que na tentativa anterior.
As rodinhas da caixa marcavam fundo a areia. Se
caso vendesse tudo, o que era muito provável, o lucro seria
alto se comparado ao dia anterior. O sol lhe castigava a testa
e a nuca, bebeu dois refrigerantes e uma garrafa de água
antes do meio-dia. Na hora do almoço foi o ápice das
vendas. O suor pingava do queixo de Dave enquanto as
pessoas formavam uma imensa fila na sua frente.
— PESSOAL! ACABOU, NÃO TEM MAIS NADA! —
gritou, batendo palmas.
A fila se dispersou quase na mesma velocidade em
que foi formada.
Dave chegou muito cansado em casa, mais cedo
dessa vez, tudo que queria era um banho gelado para
refrescar o calor e limpar o suor, guardou as caixas térmicas
e sentou-se no sofá para contar o dinheiro rapidamente,
ainda se perguntando por que fazia aquilo, ele não
precisava ganhar dinheiro, podia “ter” a quantidade que
quisesse. A melhor resposta para fazer aquilo era a de

73
trabalhar para ganhar dinheiro, sua consciência parecia
mais leve sabendo que o dinheiro vinha do trabalho, e não
de um inexplicável “superpoder”. Vender cachorros-
quentes parecia mais digno do que multiplicar dinheiro.
Ele resolveu lavar a louça suja na pia e fazer o jantar,
apesar de não saber cozinhar muitas coisas, o que fazia era
bem feito, estava com saudade de Maritza e queria fazer
algo especial para sua namorada.
Depois de tomar banho, desceu até o mercadinho da
esquina para comprar macarrão e carne moída para o
jantar, no caminho de volta, resolveu passar na locadora e
alugar alguns DVDs, pensou em alugar o primeiro filme de
romance que encontrou pela frente, mas a dúvida pairou
sobre três títulos para ser mais exato: Onde habitam as
estrelas, Janelas da Alma, e Pra quê mentir? Maritza ia
gostar de qualquer um, pois todos eram de romance e
tinham algum ator bonitão que com certeza ia aparecer sem
camisa, com o tempo Dave aprendeu a não ligar para isso.
Chegando ao apartamento Dona Finha o esperava na
porta de casa.
— Já jantou, meu filho?
— Não, hoje vou cozinhar em casa.
— Vem comer minha salada de rabanete, acabei de
fazer.
Subiu correndo e fechou a porta mais rápido que
pôde. Ele encheu uma panela de água e colocou a massa
para cozinhar, resolveu fazer almôndegas ao invés de
misturar a carne moída com o molho de tomate, o trabalho

74
repetitivo de fazer bolinhas de carne o fez pensar em sua
situação. Será que logo arranjaria um emprego ou viveria o
resto da vida multiplicando dinheiro? Não chegou a
nenhuma conclusão. O extrato de tomate, que a muito
aguardava no armário da dispensa, fervia agora na panela
onde antes só havia azeite e alho, e no fim uma folha de
manjericão, para dar sabor.
Dave foi assistir um pouco de televisão, depois do
jantar pronto, para esperar sua namorada chegar. Foi
passando os canais, novela, filmes, seriados, programas de
auditório, resolveu deixar no jornal, nas notícias locais. Um
apresentador de terno, de pé num estúdio sem bancada,
andava de um lado a outro conversando com a câmera:
“Uma Barbaridade!”, gritava e comentava as notícias. Cinco
minutos depois, o apresentador leva uma das mãos ao
ouvido dizendo:
— Mostra lá nosso link ao vivo, mostra o
supermercado!
Nas letras na parte de baixo da tela, intitulavam a
notícia: “PRESO HOMEM ACUSADO DE TENTAR
COMPRAR SALSICHAS COM DINHEIRO FALSO”.

75
14

— Oi, Manuel... — A imagem mostrava agora uma


repórter com fones de ouvido, em frente a um
supermercado onde a polícia estava algemando um rapaz
de blusa vermelha. — Estamos aqui em frente ao mercado
da Dona Eleonora onde está sendo preso um rapaz que
estava tentando passar dinheiro falso, é isso mesmo, Dona
Eleonora?
— Foi isso mesmo, minha filha — dizia a senhoria
com lágrimas nos olhos, tremendo um pouco, já tinha a
cabeça bem branca por volta dos 70 anos e os óculos presos
a uma cordinha em volta do pescoço.
— A senhora parece nervosa.
— Eu tô, sim, minha filha. Tô muito assustada.
— A senhora conhecia o falsário?
— O Robson? Conheço desde criancinha, nunca
pensei que ele pudesse fazer uma coisa dessas comigo, todo
mundo sabe aqui da região que ele é honesto, a gente não
pensava que ele pudesse fazer isso. Eu vi esse menino
crescer jogando bola aqui na minha rua.
— Muito obrigado, Dona Eleonora, vamos conversar
agora com a caixa que recebeu o dinheiro falso. Como foi
que tudo aconteceu? Quando você percebeu que o dinheiro
era falso? Conta pra gente.
Uma jovem morena com um piercing de argola fino
no nariz, mascando um chiclete respondeu:

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— Foi “tipo assim”: ele chegou falando que tinha
muito dinheiro trocado, que ia ajudar a gente a fazer troco,
e não sei mais o quê, aí ele comprou um monte de salsicha
congelada e uns pão — ela falava enquanto enrolava a ponta
dos cabelos. — Aí a conta dele deu uns trezentos conto, aí
ele me entregou um bolão de nota de cinco, aí né, eu tive
que contar uma por uma, aí quando eu tava contando as
notas eu vi que os número tava tudo igual. Aí quando eu
percebi eu olhei pra pastelaria aqui da frente tinha dois PM,
aí gritei, eles veio, veio a Dona Eleonora também e aí foi
isso.
— Vai lá, Mariana, tenta falar com o bandido! — disse
a voz do apresentador no estúdio.
— Vamos tentar falar com ele aqui… Tudo bem,
rapaz?
Silêncio, Robson estava algemado em frente para
uma parede, de costas para a câmera.
— Você sabia que o dinheiro era falso?
— Não, senhora.
— E por que você estava passando pra frente?
— Eu não fazia ideia que eram falsas, sou vendedor
de cachorro-quente, eu compro aqui há anos, quem vai
sustentar minha família agora? Um dia eu vou achar o cara
que me passou essas notas!
— Manuel, eu estou aqui com o Cunha, ele é capitão
da Polícia Militar. Cunha, ele vai passar a noite na cadeia?
— Positivo! O meliante será encaminhado para a
49.º Delegacia de Polícia para prestar depoimento e se for

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confirmado o delito ele pode pegar até 12 anos de cadeia por
crime de moeda falsa. A polícia agora vai iniciar uma
investigação para descobrir onde fica o laboratório de
falsificação, pois em anos de corporação este oficial nunca
tinha visto uma cópia tão bem-feita. A nota é perfeita, até
os dispositivos de segurança foram clonados, o material foi
apreendido e vai ser encaminhado para mais análises.
— Bom, como vocês puderam ver, ele é um rapaz
conhecido aqui da região, tinha a fama de ser muito
honesto, e parece que todo mundo aqui está muito surpreso
com o que aconteceu. É com você aí no estúdio, Manuel.
— É uma vergonha um negócio desses, como pode?
Um vagabundo desse querendo passar a perna em todo
mundo, pelo amor de Deus!
Dave estava boquiaberto do outro lado da tela, com
o braço estendido segurando o controle, não conseguia
trocar de canal, nem abaixar o braço e menos ainda fechar
a boca.

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A campainha tocou quatro vezes até que Dave


reagisse e saísse do sofá para atendê-la, no caminho até a
porta, decidiu que não ia pensar mais sobre o assunto do
rapaz que foi preso “por sua causa”, resolveu deixar sua
consciência pesar mais tarde, agora queria se concentrar
totalmente em Maritza. Abriu a porta.
— Qual o seu problema? Eu trabalhei o dia todo, tudo
bem que eu esqueci a chave...
Maritza foi interrompida por um beijo, que Dave lhe
deu na boca, foi longo, passou as mãos em torno da cintura
dela, ela fez o mesmo em torno do seu pescoço, as mãos de
Dave desceram devagar deslizando até chegar aos glúteos,
o aperto forte simultâneo com as duas mãos causaram duas
reações em Maritza morder o lábio inferior de Dave e subir
em seu colo abraçando-o com as pernas, então ele entrou de
costas e fechou a porta do apartamento.
Foi em direção ao banheiro e sem parar de beijá-la
começou a desabotoar-lhe a blusa azul de uniforme
começando pelo pescoço e descendo até o umbigo, a blusa
de uniforme de Maritza foi virada para trás com violência,
prendendo seus braços e revelando seu sutiã rendado em
preto com vermelho, os beijos saíram da boca e começaram
a descer pelo seu pescoço até o ombro esquerdo, a blusa
caiu e ela voltou a abraçá-lo, Dave com as mãos nos quadris
de sua namorada abriu o zíper lateral, ela mesma desceu a

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calça até os calcanhares, revelando também a calcinha que
fazia par com o sutiã, igualmente rendada com alças
finíssimas de seda.
Dave fechou a porta do banheiro, desceu as mãos até
a parte de trás das coxas de Maritza, erguendo-a e
colocando-a sentada na pia, a mão esquerda de Dave
apertava a cintura dela com firmeza e não com força
enquanto a outra mão subia pelas costas em direção ao
fecho do sutiã que foi aberto apenas com um breve clique, e
descendo a alças começou a beijar seu colo até chegar aos
seios fartos e opulentes, onde seus lábios se divertiram mais
ainda.
Dave já estava completamente nu e Maritza ainda de
calcinha indo em direção ao box do chuveiro, Dave a
abraçou por trás e deslizou os dedos para dentro da
calcinha, na parte da frente estimulando Maritza a ponto de
fazê-la curvar o pescoço para trás e segurar a nuca de Dave
com a mão.
Ele continuou a empurrar a calcinha de Maritza para
baixo até que ela se descolasse do corpo, a calcinha desceu
e a deixou nua, finalmente, o dedo de Dave voltou a
estimulá-la. Os dois entraram no box do chuveiro e ele
fechou a porta atrás de si e deu um tapa forte nas nádegas
de Maritza que ecoou pelo banheiro e marcou o contorno da
mão de Dave em vermelho.
Ela adorou e inspirou profundamente mordendo os
lábios. Maritza estava debaixo do chuveiro, molhou os
cabelos colocando-os para trás, Dave também entrou

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embaixo do chuveiro. Ele com o sabonete e ela com a
esponja ambos se beijando e acariciando as costas um do
outro. O “banho” terminou e ambos foram para o quarto,
sem nem mesmo enxugar o corpo, mas dessa vez, fecharam
a porta conosco de fora, tudo que podemos fazer é ouvir o
som do balanço da cama, o barulho de pele contra pele dos
picos de orgasmos de Maritza.
O jantar de macarrão com almôndegas estava
delicioso, com molho cremoso e bem temperado, o
macarrão talvez tenha sido retirado da água antes do ponto,
mas as almôndegas macias compensavam esse fato. Uma
Coca-Cola estatelando de tão gelada terminava de
arrematar um jantar magnífico, não muito romântico, mas
gostoso. Maritza elogiou o prato de Dave e disse que poderia
fazer o jantar mais vezes se quisesse, só para poupá-la do
trabalho, disse também que poderia transar com ela
daquela maneira mais vezes também, se quisesse. Os dois
riram e terminaram de jantar, Maritza fez questão de lavar
a louça, já que não tinha feito o jantar, os papéis se
inverteram neste dia.
— Meu bem, tenho uma surpresa.
— Mais uma? — perguntou Maritza.
— Aluguei uns filmes, vem aqui dar uma olhada.
— Ah! — Um largo sorriso. — Eu estava louca para
ver esse filme, esses outros dois eu já tinha visto.
Dave foi até o aparelho, colocou o DVD de Onde
habitam as estrelas. O filme tinha um enredo clássico, um
casal de universos diferentes, que briga no meio do filme e

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no final fica junto. Para Dave, todos eram iguais. Em alguns
momentos do filme, quase cochilou, ficou atento apenas
para poder responder aos comentários de Maritza.
O filme se passava em uma época aparentemente
contemporânea, contava a história de uma jovem que se
mudou para o interior do país para morar com a tia, pois a
mãe havia falecido e lá conheceu um domador de cavalos, e
o resto todo mundo já conhece.
Maritza foi em direção ao quarto de mãos dadas com
Dave, enfatizando o quanto as últimas horas tinham sido
maravilhosas, agradeceu diversas vezes antes de se deitar,
foi até o guarda-roupa pegou um babydoll rosa, Dave
retirou a camisa e vestiu uma bermuda, Maritza deixou em
seu ombro, desejaram-se boa-noite com um longo beijo na
boca. Ela apagou em cinco minutos. Dave não conseguia
dormir, então resolveu fazer companhia a própria
consciência pesada.

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16

Dave demorou a pegar no sono naquela noite, estava


se sentindo mal pelo pobre vendedor de cachorro-quente,
de onde viria o sustento da sua família agora? Se ele pelo
menos tivesse pensado em deixar alguns cachorros-quentes
para o rapaz vender, talvez ele tivesse passado várias das
notas clonadas para frente através de troco e talvez não
tivesse sido preso. Esse foi o seu pensamento até conseguir
pregar o olho.
Acordou no meio da noite, escutando barulhos na
cozinha. Olhou para o lado e Maritza não estava na cama,
isso o deixou mais tranquilo. Esperou por longos minutos e
sua namorada não retornou, resolveu levantar-se para ver
o que estava acontecendo. Passou pelo corredor e olhou
devagar para a curva que dava para cozinha e viu alguém
que não era Maritza com a cara enfiada na geladeira.
Dave voltou vagarosamente até seu quarto e sem
fazer barulho pegou o seu taco de baseball que estava
embaixo da cama e retornou com mais calma ainda para a
cozinha. O homem que mexia na geladeira agora estava de
pé em frente à bancada de mármore que ficava próximo ao
fogão com um prato comendo um sanduíche. Um rapaz
negro, alto, com um terno de cetim preto impecável, blusa
interna e gravata igualmente negras, luvas e óculos escuros,
sapatos tão bem engraxados que seria possível até ver o
próprio reflexo neles.

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— Quem é você? — disse Dave empunhando o taco
na altura da orelha.
— Ah! Oi, Dave, tudo bem aí? Eu sei que não. Que
bom que você acordou! Eu já estava indo lá pra fazer isso.
— O homem de preto se virou e Dave notou que era muito
parecido com o ator de filmes de Hollywood, mas não
conseguia se lembrar de quem era.
— Como você entrou aqui?
— Eu entrei? Foi você quem me trouxe aqui!
— Eu nem te conheço, cai fora da minha casa, não
tenho dinheiro. Você tá armado? — Dave parecia um pouco
desesperado.
— Calma, Dave, vamos sentar ali, temos bastante
coisa pra conversar.
O homem largou o sanduíche em cima da bancada
sem terminá-lo, passou por Dave tranquilamente e sentou-
se perto da janela, em uma poltrona igualmente negra, em
seu terno, que Dave não se lembrava de ter em casa. Sentou-
se no sofá com o taco de baseball pousado em seu colo.
Ficaram ali se olhando num espaço de tempo onde Dave
esperava que aquele homem explicasse o que fazia ali na sua
casa de madrugada comendo um sanduíche. E sem sinais
de arrombamento, como havia entrado ali.
— Quem é você? — Dave rompeu o silêncio.
— Como vou explicar de uma forma que você
entenda? Eu sou... sua consciência — falou com os dedos
entrelaçados e pernas cruzadas revelando meias brancas

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que combinavam unicamente com os cabelos igualmente
brancos.
— Hein? — Dave fez uma careta.
— É, tipo grilo falante.
— Ok! — Dave tentava processar as informações na
sua cabeça. — E o que você tá fazendo aqui?
— Na verdade, eu venho te ver todas as noites, com
exceção daquelas em que você está muito cansado. A
diferença é que hoje você conseguiu me ver. Me deu até
fome, olha só! — disse surpreso.
— E por que eu não consegui ver você nas outras
vezes que você veio?
— Essa é fácil de você entender. Me parece que a sua
consciência nunca esteve tão pesada quanto hoje estou
certo? — Dave confirmou com um aceno de cabeça. —
Então, hoje eu estou pesado, estou denso, denso a ponto de
me personificar e poder inclusive conversar com você.
— Então minha consciência pesada gerou você? —
falou pausadamente.
— Não, na verdade, ela não gerou, “ela” sou eu. É
confuso, eu sei.
— Tá bom, tá bom! Mas por que você tem a cara do
Morgan Freeman? — Esse era o nome que estava tentando
lembrar.
— Porque você não gosta dele.
— Ah! Essa foi bem fácil de entender.
— Acho que você não devia se preocupar muito, já
ouvi relatos de personificações de consciências com

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obesidade mórbida e que ainda subiam em cima de seus
donos. Se pensar bem eu estou sendo até gente fina com
você, gente fina, entendeu? — disse, dando um sorriso
discreto. — Nós só vamos ter uma conversa amigável, por
enquanto.
— Por enquanto? Não foi só pra conversar comigo
que você veio? — Dave apertou forte o taco de baseball.
— Ah Dave! Você não é tão inocente assim. Não vejo
nenhuma inocência aqui entre nós, ou sentada no sofá, ou
fazendo um sanduíche na cozinha, francamente, não seja
ingênuo!
— O que você vai fazer comigo?
— Vou fazer o que vim para fazer.
O Consciente projetou o tronco um pouco para frente
e olhou para Dave um pouco mais de perto. Retirou os
óculos escuros. Dave tomou um susto que quase o fez ter
uma parada cardíaca. Os olhos do Consciente eram também
negros e brilhantes como seus sapatos, todo o globo ocular
era escuro, sendo impossível diferenciar íris ou pupila.
Os olhos do Consciente prenderam Dave, por mais
que tentasse não conseguia desviar o olhar. O apartamento
parecia girar, causando-lhe náuseas e enjoo. Quase como se
tivesse voltando no tempo. Dave se viu em frente ao
carrinho de cachorro-quente com a mão estendida e um
enorme maço de notas de cinco. Ele viu o pobre Robson
contando o dinheiro e pensou que podia ser sua chance de
impedir, queria poder impedi-lo.

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Por mais que tentasse, por maior que fosse sua força
de vontade, ele via Robson molhar o dedo na língua e passar
uma a uma as notas clonadas. Logo em seguida, Dave viu a
reportagem, o link ao vivo em que o rapaz era preso, não
pela TV, mas presencialmente. Testemunhou o momento
que as câmeras não mostraram, a primeira lágrima de
Robson ao ouvir a voz de prisão, viu ali pessoas tratando um
homem honesto tal qual a um bandido, o sentimento de
impotência ia tomando conta de Dave deixando-o cada vez
mais frágil. A sensação era um misto de arrependimento
com impotência, algo em seu tórax lhe apertava as costelas,
dificultando a respiração. Ainda que tentasse fechar os
olhos continuava a enxergar.
Tudo à sua volta começou a girar novamente e Dave
se viu mais uma vez na frente do carrinho de cachorro-
quente comprando mais e em seguida no supermercado. As
imagens iam passando cada vez mais rápido e mais rápido.
O equivalente há meses se passara naqueles breves
segundos. Dave já não estava mais conseguindo manter os
olhos abertos, e a respiração estava cada vez mais difícil.
Subitamente, Dave estava de volta ao seu apartamento, de
joelhos no chão com um mal-estar enorme no estômago.
Vomitou no tapete.
— Bom, era isso que eu vim fazer aqui, espero que
você não esteja bem! — disse o Consciente com um sorriso
sarcástico.
— O que você fez comigo? — Dave não estava nada
bem, de joelhos no chão de frente para uma enorme poça

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de vômito com um melado vermelho que parecia ser
sangue.
— Relaxa! Tudo a seu tempo — disse levantando-se e
indo em direção à bancada para terminar o sanduíche. —
Lembre-se apenas de uma coisa: eu sou o pior dos juízes.
Dave se levantou e deitou no sofá para tentar
amenizar a dor que sentia.
A campainha tocou.
— Eu atendo! — empolgou-se o Consciente. — Mas
quem será uma hora dessas? — perguntou, irônico, já
sabendo de quem se tratava.
Dave inclinou o pescoço em direção à porta para ver
quem era, o homem de preto girou a chave e a maçaneta.
— Olá, minha querida! Entre. Estávamos te
esperando.
Pelo umbral da porta havia uma mulher tão alta que
não era possível ver o seu rosto. Forte como Dave nunca
havia visto uma mulher se tornar. Devia pesar uns 190
quilos e ter mais de dois metros de altura. A mulher abaixou
a cabeça para passar pela porta. Usava uma bandana branca
com caveiras estampadas, um macacão que um dia fora
branco e hoje estava completamente sujo, amarelado e com
algumas manchas vermelhas, uma regata, essa sim branca,
mostrando os enormes braços tatuados. O Consciente
prosseguiu:
— Dave, essa aqui é minha amiga Culpa. Parece que
ela tá bem grande, geralmente a gente anda junto, mas hoje
ela atrasou, enfim... Minha função aqui acabou, agora é com

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ela. — O Consciente desapareceu como vapor e ressurgiu ao
lado da cabeceira do sofá onde Dave recostava a cabeça e
disse bem baixo:
— Ela não costuma conversar como eu fiz. Boa sorte!
O Consciente correu em direção à porta de saída e a
fechou. Aquele ser gigantesco foi andando na direção de
Dave. Cada passo parecia tremer todo o apartamento. Ele
tentou se levantar para correr, mas a dor em seu diafragma
era imobilizante, não conseguiu se mover. Os dedos da
Culpa envolveram seu pescoço, dedos grossos o levantaram
no ar, ele tentava se desvencilhar e recuperar o fôlego, mas
o esforço era inútil.
Dave berrava com o pouco ar que ainda tinha nos
pulmões e tentava se soltar. Foi quando o braço direito da
Culpa soltou seu pescoço e se recolheu para trás com o
punho fechado, voltou com toda velocidade em direção ao
estômago de Dave, tirando-lhe o que restava de fôlego. As
dores se misturaram em sua barriga criando um novo nível
de sofrimento, em seguida se recolheu mais uma vez
voltando em direção aos seus dentes. Os lábios de Dave
incharam no mesmo instante e sua boca explodiu
ensanguentada, um dente voou no segundo soco.
— AAAAAH!!! — Dave gritava e se debatia.
— Calma meu amor, tá tudo bem!
Dave acordou ofegante e suado com uma dor no
estômago e no nariz inexplicável.
— Meu bem, o que você tá fazendo deitado no sofá?
Eu vou pegar um copo de água para você.

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Dave não sabia explicar. Lembrava-se de ter ido se
deitar na cama e acordara no sofá da sala. O relógio de
parede marcava 4h56. Ele estava um pouco desnorteado,
confuso entre sonho e realidade. Dave teve um pouco de
dificuldade para se sentar no sofá, devido a dores no peito,
pescoço, costelas e estômago. As dores estavam presentes,
mas os ferimentos não. Maritza voltou com um copo de
água gelada.
— Bebe, meu amor, foi só um pesadelo — dizia
acariciando as costas de Dave. — Quer que eu faça outro
sanduíche pra você?
— Outro?
— Sim. Não era você que estava comendo aquele ali
em cima? — disse, apontando para a bancada de mármore.
— E que mancha nojenta é essa no tapete?
Dave, mais uma vez, sem palavras.

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17

Dave acordou tarde naquela manhã, mesmo


dormindo a noite toda, seu corpo parecia pesado.
Obviamente, Maritza já havia saído para o trabalho e Dave
nem chegou a vê-la nesta manhã. Caminhou até a geladeira
para comer algo, bebeu duas garrafinhas de iogurte. A
ausência de sanduíche na bancada o fez voltar a acreditar
no sonho, ou pesadelo, da noite anterior. Na sala, viu a
mancha seca de vômito no tapete, o que o fez novamente
desacreditar que tudo tivesse sido um sonho, seu estômago
ainda doía um pouco. A voz de Maritza ecoou pelo
apartamento, ou por sua cabeça.
“Amor!”
— Meu bem? Você está aí? — disse Dave.
Estava sozinho em casa. E era hora de alguma
atitude ser tomada. Tinha coisas a fazer, planos a terminar
e já estava passando da hora. Dave foi até o guarda-roupa
de seu quarto, para o esconderijo do dinheiro da venda de
cachorros-quentes atrás de uma das gavetas. Ali, além de
suas meias, estava grudado com fita isolante um envelope.
Tudo estava lacrado. Dentro deste envelope continha: o
motivo do peso da sua consciência, a culpa, até mesmo suas
dores, físicas ou não, mas que por outro lado poderia ser
também o motivo de sua felicidade. Talvez não só a sua.
Voltou para a sala e sentou-se em frente ao
computador, abriu uma planilha, fez alguns cálculos,

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recontou o dinheiro, abriu a gaveta da escrivaninha pegou
seu pen-drive vermelho conectou-o na porta USB do
computador, abriu um documento em branco e editou seu
próprio currículo, salvou no pen drive. Voltou até o guarda-
roupa e recolocou o envelope no mesmo esconderijo, calçou
um par de tênis, pegou seu capacete, a mochila e por fim a
chave do seu cadeado. Seu celular tocou:
— Oi, meu amor. Acordou agora?
— Oi, meu bem, acordei há pouco tempo.
— Liguei rapidinho só pra te dar um recado.
— Diga.
— Minha tia ligou e ela convidou a gente para jantar
lá porque ela quer te conhecer.
— Seus pais vão estar lá?
— Não, amor, eles não poderão desta vez.
— Pode confirmar com ela.
— Ok, vou ligar pra ela, amor. O que você vai fazer
hoje de bom?
— Vou levar o tapete da sala para lavar e deixar
alguns currículos por aí.
— Ah! Que ótimo, meu amor, o cheiro estava
horrível.
— Amor, eu disse alguma coisa enquanto dormia
ontem? — Coçava a cabeça embaixo do capacete.
— Não sei, eu só acordei com você gritando na sala.
— Tudo bem então… Bom trabalho, te amo.
— Também te amo, tchau.

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Foi até a sala e viu a mancha do tapete que começava
a cheirar mal, enrolou o tapete e o colocou em sua mochila.
Achou melhor levá-lo a uma lavanderia ou ao lixo, se fosse
necessário. No bicicletário do prédio, destravou o cadeado
de sua bike. Um sentimento de saudade acabara de morrer,
encostada na parede em meio a várias teias de aranha, lá
estava ela esperando por Dave. Um tanto quanto
empoeirada e talvez o pneu dianteiro precisasse de uma
calibração, o garfo ainda estava um pouco torto devido ao
acidente, mas Dave não se importou.
Ele estava de volta à rua, sob pesadas e repetidas
pedaladas. Foi onde mais uma saudade foi morta. Dave ia
cortando os carros, como se tivesse uma encomenda
urgente, aquele trânsito pesado aumentava sua euforia e lhe
dava prazer que era pena que essa euforia abaixava quando
se lembrava do fato de estar desempregado, de que aquele
risco que estava correndo em meio aos veículos não seria
remunerado, mesmo assim, seu maior pagamento era o
vento no rosto e a adrenalina no sangue.
A oito quadras de seu apartamento havia uma
lavanderia chamada “Top brilho”. Na propaganda, diziam
que não havia mancha que a Top Brilho não removia.
Aquele parecia ser o lugar certo para destruir aquela “obra
de arte” que Dave tinha feito no tapete. Parando na calçada
bem em frente ao estabelecimento, Dave prendeu a bicicleta
em uma placa de trânsito de “proibido estacionar e parar”.
Era um prédio comercial baixo, com uma pintura branca e
azul-claro impecável. Ao lado da fachada escrito “Top

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Brilho” em amarelo e roxo, algumas bolhas de sabão
adornavam o nome. Quando empurrou a porta da
lavanderia um sininho tocou anunciando sua entrada:
— Boa tarde — disse a atendente.
— Boa tarde — respondeu Dave para moça atrás do
balcão. — Quanto vocês cobram para lavar esse tapete?
Ele reparou que a moça de cabelos curtos, acima dos
ombros, possuía a ponta dos cabelos azulados, e um
perfume que espancava o nariz de Dave. Ele desenrolou o
tapete sobre o balcão e o cheiro fez a jovem recuar e tapar o
nariz. Dave também se afastou e revirou um pouco os olhos.
O perfume doce da jovem foi engolido pelo cheiro ácido que
vinha do tapete.
— Meu Deus! Acho melhor o senhor deixar aqui com
a gente que o meu responsável pode fazer um orçamento
assim que ele chegar.
Dave concordou e tratou logo de enrolar novamente
o tapete. A moça fechou a sacola com um nó e levou o tapete
para os fundos da loja. Quando ela se virou, ele notou uma
borboleta de asas azuis tatuada na nuca.
— Vou só preencher seu cadastro, senhor.
A atendente pegou um bloco de anotações com um
papel carbono entre duas folhas, uma branca e uma
amarela. Começou a preencher os dados de Dave, colocou a
data, o tecido do tapete, assinou seu nome e perguntou:
— Qual o nome do senhor?
— Dave Martins da Costa.

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— O senhor pode preencher aqui, por favor, seu
endereço e telefone?
A moça da lavanderia destacou a folha copiada e
entregou a Dave.
— O senhor tem que deixar um sinal inicial com a
gente. De qualquer valor, como garantia. No mínimo vinte.
— Mas vai ficar mais caro que isso?
— Vai ser sim, talvez por volta de quarenta a
sessenta.
Dave concordou e pegou sua carteira do bolso, não
havia notas de vinte, apenas uma nota de dez, mas ambos
sabemos que para Dave foi fácil pagar os vinte. A atendente
guardou as duas notas dentro de uma gaveta e colocou o
tapete dentro de um cesto. Dave estava girando a maçaneta
quando a atendente chamou sua atenção:
— Pera aí, acho que conheço você.
Dave voltou a fechar a porta.
— Você é o Dave que fazia entregas para o Roberto?
— É, sou eu mesmo.
— Você é famoso, dizem que nem as motos entregam
mais rápido que você.
— É o que dizem? As pessoas exageram — disse, meio
tímido.
— A gente tá precisando de entregador, para pegar as
encomendas nas casas dos clientes e entregar as roupas
limpas também. Você não teria nenhum currículo aí com
você pra eu passar para o meu chefe?

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Dave tocou no bolso, lembrou que sua próxima
parada seria uma copiadora ou uma papelaria para
imprimir currículos e distribuir. Ele já estava se
desculpando com a moça, dizendo que voltaria mais tarde
com uma cópia do seu currículo. Quando Dave abriu a
mochila para guardar o recibo do tapete, viu uma pasta que
não estava ali quando pegou a mochila mais cedo. Uma
pasta de cor escura, com seu currículo dentro, igual ao que
tinha editado pela manhã.
— Tenho um aqui.
Entregou o currículo para a moça como se aquilo não
fosse tão estranho. Agiu com naturalidade e deu um sorriso.

96
18

Ainda um pouco surpreso com o fato de seu currículo


surgir na sua mochila, Dave saiu dali em direção ao próximo
destino de sua lista mental, pulando a parte em que ele teria
que imprimir seus currículos. Seguiu pela avenida até a
sexta esquina da próxima quadra, onde havia uma
floricultura chamada Olinto Flores. Dave fez como de
costume, prendeu a bicicleta em qualquer barra de ferro
que encontrou na rua e entrou no estabelecimento, ouvindo
o sininho da porta de entrada. Será possível que todo
mundo nessa cidade tem que colocar esse maldito sininho
em todas as portas? Pensou.
A loja não era muito grande, mas sua variedade era
imensa. Dave empurrou a porta pivotante de vidro, e o ar
perfumado invadiu-lhe o nariz. As flores exalavam um odor
atordoante e mesmo assim agradável. O balcão do fundo da
loja estava vazio. Começou a caminhar e apreciar as flores
violetas, buquês de rosas, coroas de flores, girassóis,
camélias, lírios, hortênsias, margaridas, tulipas e até
mesmo orquídeas.
“Eu trouxe chá, eu sei que você gosta do cheiro.”
Ele olhou em volta, e constatou que permanecia
sozinho, apenas na companhia das flores. Nas prateleiras
perto das paredes, cestas de café da manhã com ursinhos de
pelúcia das mais diversas cores com os mais variados
produtos, em sua maioria chocolates, doces e biscoitos,

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todos embrulhados com papel celofane com laços coloridos
nas pontas.
No centro da loja havia uma mesa de mármore preto
com um vaso branco e uma única flor. A rosa de pétalas
completamente negras, parecia exalar alguma aura mágica,
como se algo vibrasse em torno dela, atraindo Dave.
Hipnotizado por sua beleza, tudo ao redor pareceu
desaparecer, o único foco de seu olhar era o núcleo negro da
rosa, tão escura quanto o céu noturno. Dave já estava bem
próximo e quando estava prestes a tocar suas pétalas,
ouviu:
— Posso ajudá-lo, senhor? — disse uma voz delicada
de uma moça jovem de cabelos ruivos e traços irlandeses.
— Claro! Que flor é essa? — disse apontando para a
mesa no centro da loja.
A atendente deu a volta no balcão e começou a
explicar:
— Esta é a dália negra, chegou para nós do México
recentemente. Muito rara, creio que seja a única no planeta.
A atendente possuía uma verruga no lábio superior
ao lado do nariz. Um ponto que Dave tinha dificuldade de
desviar o olhar.
— Quanto custa?
— Infelizmente, não está à venda, senhor. Ela faz
parte da coleção pessoal do proprietário da loja, está
exposta somente para apreciação.

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— Eu poderia pagar uma quantia bastante alta — ele
se questionou mentalmente se deveria cometer o mesmo
erro novamente.
Dave olhou mais de perto e notou que a flor não era
negra e sim avermelhada. Um tom de vinho tão profundo e
escuro que dava a impressão de ser preto, como sangue de
fígado. Ao chegar perto sentiu um perfume doce e viciante,
ele diria familiar, poderia jurar que já havia sentido aquele
perfume em algum lugar.
— Eu gostaria muito de comprar esta flor, será que
eu poderia conversar com o proprietário?
— Você está falando com ele. Ou melhor, com ela...
Prazer, meu nome é América — disse dando um sorriso de
canto de boca fazendo a verruga se mexer.
— Então, não tem nenhuma chance de eu conseguir
comprar este vaso, não é?
— Nenhuma chance mesmo. Me desculpe, mas ela
foi muito difícil de cultivar, e mais difícil ainda de
encontrar. Seu perfume encanta quem o sente, e é um dos
segredos de fazer meus clientes voltarem.
— Você acabou com as minhas esperanças de
conseguir uma dessas.
— Essa planta é única. Só podem existir mudas deste
exemplar — prosseguiu a atendente.
— Pode conseguir uma pra mim?
— Impossível, fora de negociação. De que adianta
uma flor única se existirem diversas mudas?
Dave suspirava só para sentir o perfume daquela flor.

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— Tudo bem — desistiu. — Eu estou aqui para fazer
um orçamento.
A atendente proprietária da loja pegou um bloco de
notas.
— Então o que vais ser? Casamento? Velório?
Debutante?
— Na verdade, eu quero saber quanto fica para
encher um apartamento com flores.

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Na noite do jantar com a tia de Maritza, ela chegou e


arrumou-se de uma forma que Dave tinha visto poucas
vezes. Decidiu fazer o mesmo. Vestiu uma roupa que
demonstrasse sua satisfação em conhecer a tia de Maritza.
O melhor a se fazer era pedir um táxi, já que ir de bicicleta
não era a melhor maneira de causar uma boa impressão.
No carro, ouvindo um som, Dave tocou a coxa de
Maritza que estava coberta por um vestido de seda azul
royal, que brilhava a cada poste de luz:
— Meu bem, qual o nome da sua tia?
— Tia Mara, por quê?
— Só pra saber. E se levássemos alguma coisa?
— Como assim, amor?
— Alguma coisa para o jantar, um suco, refrigerante,
ou uma sobremesa, não sei.
— Não, amor, não precisa se preocupar com isso, ela
é muito simples.
— Eu faço questão, meu bem.
O motorista fez uma parada no caminho a pedido de
Dave, ele comprou dois refrigerantes e um pote de sorvete
de creme. Pagou com o dinheiro de um certo envelope que
ficava atrás de uma de suas gavetas.
Estavam quase chegando ao destino.
— É ali, naquela casa amarela. — E sinalizou ao
taxista.

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O toque da campainha fez o som de pássaros
cantando, dois minutos depois o portão se abriu, uma
senhora de meia-idade os recebeu:
— Oh! Minha querida, como você tá bonita, tá um
pouco magrinha! — disse tia Mara, abraçando Maritza. — E
quem é esse rapaz bonito?
— Tia, esse é o Dave, meu namorado. Amor, essa é
minha tia Mara.
— Muito prazer — falou Dave com as mãos ocupadas
de sorvete e refrigerante. Foi abraçado sem poder retribuir.
“Você vai adorar o que eu trouxe para você.”
— Vamos entrar, gente — convidou tia Mara.
— Disse alguma coisa, meu bem?
— Eu? Nada — respondeu Maritza.
Dave adentrou o portão da garagem e passou por
uma área de piso cor de mármore repleta de samambaias.
Subiu o único degrau que dava na sala de estar, Maritza ia
à frente, e Dave ia logo atrás, carregando as sacolas.
Limpou os pés em um carpete felpudo antes de
cumprimentar um senhor que estava sentado em uma
poltrona assistindo a um jogo de futebol. Com os pés
apoiados em uma mesa de centro com um forro bordado cor
de café, onde repousavam dezenas de esculturas de vidro
em forma de bichinhos. O senhor que acabara de abraçar
Maritza, agora apertava firmemente a mão de Dave, seu
olhar parecia de alguém que estava satisfeito em recebê-lo,
seus olhos eram bem escuros e seu bigode era tão espesso
quanto o carpete em que limpara os pés.

102
— Muito prazer, meu nome é Mario, fica à vontade.
— Dave. Obrigado! — Soltando a mão dele.
— O jantar tá quase pronto — anunciou tia Mara.
— Vem, meu amor, vou te mostrar meu quarto.
Maritza pegou Dave pelo pulso e subiu as escadas
correndo. No quarto, que parecia ser de criança, uma cama
bem arrumada, coberta com uma colcha de retalhos
coloridos. Do lado oposto uma penteadeira alta com
espelho e vários vidros de perfume. Dave observava a rua
pela janela, enquanto Maritza estava sentada na cama.
— Meu primo fica nesse quarto quando vem visitar
minha tia.
— Era aqui que você morava?
— Era, sim.
— E por que você me trouxe aqui?
— Só pra te mostrar mesmo, e é melhor a gente ficar
aqui até o jantar, minha tia fala demais.
Dave olhou de relance para Maritza e não conseguiu
se controlar. Sentada na cama apoiada pelos braços e de
pernas cruzadas. Dave foi atraído como um ímã. Passou a
mão por baixo do vestido em direção à coxa, e um beijo na
boca a fez deitar-se na cama, enquanto a mão dele
avançava, Maritza ia ficando sem ar com o beijo. Sua
calcinha de renda azul já estava à mostra, enquanto ela se
excitava ofegante. Infelizmente, como um balde de água
fria, o tesão foi cortado com as palavras “a janta tá pronta”
vindo do andar de baixo.
— Droga! — Foi o uníssono dos lábios de ambos.

103
No jantar, tia Mara serviu a comida sobre um forro
bordado por ela, uma lasanha de carne moída e frango com
molho de tomate e presunto, os refrigerantes que Dave
trouxera estavam sob a mesa ao lado de panelas. Dentro
delas, havia arroz, feijão, coxa de frango e milho cozido. O
tio de Maritza colocou a mão na panela e pegou uma coxa
de frango, quando tomou um tapa nas costas da mão.
— Depois da oração — disse tia Mara. — Maritza,
minha filha, você faz pra nós?
— Faço, sim, tia.
Mario levou os dedos à boca encarando a esposa.
Dave sentiu um pouco de receio em dar-lhe a mão no
momento da oração. Todos fecharam os olhos Dave segurou
na mão coberta de gordura de tio Mario, Ele notou tia Mara
repetindo baixinho em tom de cochicho o “Pai nosso” que
Maritza recitava. No fim da oração, tio Mario resgatou a
coxa que havia tocado anteriormente.
A conversa na mesa se resumia a perguntas sobre a
vida de Dave e Maritza. Ele contou como perdera o emprego
e o mistério que cercava seu acerto, muitos papos sobre
futebol que as mulheres preferiam não opinar, e muitos
papos sobre novelas que os homens não entendiam nada
até que Tia Mara chamou Dave na cozinha:
— Pode me ajudar com a sobremesa?
— Pois não, tia? Posso te chamar de tia?
— Pode sim, meu filho! Abre aqui pra mim?
Tia Mara segurava um pote de vidro de doce de leite
que seria servido com queijo minas para a sobremesa, Dave

104
forçou a tampa e somente com um pano de prato foi
possível abrir o pote de vidro.
— Pronto!
— Meu filho — disse pegando o pote aberto e tocando
o antebraço de Dave. — Suas intenções com a minha
sobrinha são sérias mesmo?
Dave não estava preparado para aquela pergunta,
mas já tinha a resposta pronta.
— Claro, tia! A senhora quer saber se eu pretendo me
casar com ela?
— É, quase isso, meu filho, eu sou de outra época,
esse negócio de ficar, de namorar muito tempo, é coisa de
jovem e eu sou das antigas, você me entende? — Dave só
balançou a cabeça positivamente. — E como a mãe dela
mora no interior, eu me sinto na responsabilidade de fazer
esse papel, entende?
— Eu pretendo pedir ela em casamento essa semana.
— Tentou surpreender. E conseguiu.
— Nossa, que orgulho de vocês, eu sinto que você é
um bom rapaz, meu filho — disse tocando o rosto de Dave.
— vocês vão ser muito felizes.
— Amém, tia Mara. — falou de braços dados com ela
voltando em direção à sala de jantar.
Uma noite tão agradável como foi essa é bem difícil
de igualar ou mesmo de repetir. Enquanto Maritza ajudava
Mara com a louça, Dave e Mario ainda na mesa de jantar,
tocavam as garrafas de cervejas recém-abertas. Mesmo que
o momento de estar sozinho com o “pai” da futura noiva

105
devesse ser constrangedor e desconfortável, Dave estava à
vontade e tranquilo como a muito tempo não esteve.
Os sorrisos e a felicidade desta noite tardariam a se
repetir.

106
20

Na manhã seguinte, Dave acordou antes de sua


namorada e fingiu estar dormindo, com os olhos fechados e
os ouvidos abertos. Ficou atento ao som da porta sendo
trancada e assim que Maritza saiu para o trabalho levantou-
se da cama e teve certeza de que a viu da janela passando
pela rua, e mesmo longe pensou novamente ter ouvido sua
voz.
Indo em direção à mesa de cabeceira, pegou seu
próprio celular, teclou alguns números e disse ao fone:
— Tudo ok! Podem vir.
Dave tomou seu café da manhã e esperou dez
minutos até a campainha tocar. Do outro lado do olho
mágico estava América.
— Bom dia, pode entrar.
— Bom dia, Dave.
América entrou no apartamento segurando um
embrulho em papel pardo grande e alto, logo atrás dela
havia dois rapazes vestindo macacões com o logo da Olinto
Flores. Um trazia uma madeira circular e o outro trazia dois
cavaletes. América deu-lhes a ordem de montarem a
pequena mesa no centro da sala de Dave onde ela pousou o
embrulho.
— O que é isso?
— Isso é um presente — respondeu América. — Um
agrado pelo valor que você gastou na loja.

107
Dave se aproximou do laço e começou a rasgar o
papel, ao ver seu conteúdo, quase caiu de costas no chão.
Sobre um aparador recém-montado em sua sala estava a
dália negra, a rosa impossível de se conseguir. Assim que
rasgou o papel, seu cheiro inundou todo o recinto.
— Mas você disse que ela jamais seria minha — dizia
boquiaberto.
— É, eu disse. Mas eu posso comprar dezenas de
outras plantas com o seu dinheiro. — Sorriu. — Seu
apartamento não é muito grande, eu acho que trouxe flores
suficientes, podem começar a descarregar rapazes —
enquanto os carregadores desciam as flores do caminhão,
América ia decorando o aposento, Dave acompanhava a
decoração de perto, dando palpites no que não gostava, em
poucas horas o recinto já estava irreconhecível.
A sala de estar deu lugar a uma floresta composta
apenas por flores coloridas. Todos os móveis e o chão
estavam cobertos por pétalas de todas as cores, sendo quase
impossível andar sem pisar em alguma. O balcão da cozinha
americana possuía arranjos em vasos baixos e enfeitados de
papel celofane. Na luz da sala, América pendurou visgo e
salgueiro, ambos de plástico para que não murchassem até
a chegada de Maritza. O contorno das janelas era circulado
por vinhas e pequenas frutinhas vermelhas. Uma guirlanda
de rosas repousava sob a mesa de centro com diversos
bombons no meio.
Após o término do serviço, América se foi, desejando
boa-sorte ao casal.

108
Todo o apartamento já estava decorado e pronto
para Maritza. Ela chegaria em duas horas, e após o banho,
Dave foi até seu guarda-roupa decidir o que iria vestir nesse
dia especial. Com a toalha amarrada na cintura, começou a
passar os cabides à procura de algo que fosse condizente
com a situação.
Não demorou a notar um cabide que não era seu. Viu
uma embalagem para terno no fim do canto esquerdo. Dave
deslizou o zíper e notou que havia roupas ali dentro, mas de
quem era aquilo? Seria um presente que Maritza havia
escondido? Mas por que ela esconderia logo na sua parte do
guarda-roupa? Nenhuma das respostas em que pensou
fazia o menor sentido. Como quase todo o resto, nada vinha
fazendo sentido em sua vida.
Jogou a embalagem na cama. Lá dentro havia uma
camisa social de um azul muito escuro, quase preto, uma
calça preta, um cinto com fivela de prata, um relógio de
pulso e uma caixinha de anel. A mesma que Roberto lhe
entregou no dia de seu acidente. Parecia que tudo aquilo
estava pronto para ele, como se o guarda-roupa soubesse o
que ele ia fazer hoje.
Dave resolveu experimentar a roupa e acredite ou
não ela era do seu tamanho e lhe serviu tal qual fosse feita
sob medida. Estava muito elegante de frente ao espelho,
quando ouviu a voz de Maritza, e ela parecia chorar. Dave
correu até a porta para atender sua amada, mas não era ela,
e ao olhar para o relógio viu que era muito cedo e concluiu
ser mais coisa de sua cabeça.

109
Dave nem se surpreendia mais com certas coisas que
andavam acontecendo consigo, para alguém que descobriu
como multiplicar dinheiro, ou que conversou com a própria
consciência, o que teria demais em encontrar uma roupa
que ele nunca compraria? Nada.
Indo até a sala do apartamento para conferir se
estava faltando alguma coisa o perfume da dália lhe invadiu
os pulmões. Teve uma ideia, resolveu levar a dália negra
para o quarto, queria que Maritza a visse por último para
ter uma grande surpresa. O aparador foi remontado no
quarto próximo à cama. Dave também trouxe alguns
buquês, arrancou as pétalas das rosas e as espalhou pelo
lençol da cama para enfeitá-la. Ligou o som com algumas
músicas selecionadas na tentativa de criar um clima
romântico.
Aguardou na sala, ficou vigiando a janela para saber
o momento exato que Maritza ia chegar em casa, a mão no
bolso apertava a caixinha com o anel de noivado, enquanto
a outra formava um punho para que Dave não tirasse os
olhos do relógio. O nervosismo lhe consumia por dentro
fazendo sua perna tremer inquieta.
Maritza vinha dobrando a esquina. Era chegada a
hora. Dave apagou as luzes e pegou o controle remoto do
aparelho de som. Ouviu o barulho da chave entrando na
fechadura.
— Oi, amor, cheguei...
Dave apertou o play e começou a tocar Bryan Adams
— Heaven, uma das músicas favoritas de Maritza.

110
Ela acendeu a luz, as palavras não couberam em sua
boca, o coração ficou pequeno para sensação que sentia. Se
tinha algo nesse mundo que Maritza amava mais que
lasanha congelada eram flores, rosas principalmente, e ela
nunca tinha visto tantas. A mão contra o peito tentava
controlar a respiração, havia rosas nas paredes, pelo chão,
na mesinha de centro, floreiras com tulipas, margaridas, e
girassóis, vasos com gardênias. Para onde quer que olhasse
via flores, variadas espécies de flores.
Dave surgiu em meio àquela floresta colorida, com
um buquê na mão, ajoelhou-se e abrindo a caixinha com o
anel perguntou:
— Maritza... Meu amor, quer casar comigo?

111
21

Um estrondoso “SIM” foi ouvido dos lábios de


Maritza, mal Dave havia levantado e ela já estava em seus
braços, experimentou o anel e o fitou por longos minutos
admirando seu brilho:
— Vou te levar a um lugar especial hoje.
— Onde?
— No mesmo lugar do nosso primeiro encontro,
lembra? Mas vai ser diferente dessa vez. Prometo.
— Meu amor, eu não quero jogar um balde de água
fria, mas será que não estamos nos equivocando? Não seria
melhor esperar, você tá sem emprego e...
O telefone de Dave começou a tocar e ele atendeu.
— Alô... Eu mesmo... Sim... Ok, combinado então.
— Bom meu bem voltando ao assunto... —prosseguiu
Maritza.
— Antes de você continuar — disse Dave,
interrompendo-a. — era da lavanderia, onde eu deixei
nosso tapete. Deixei meu currículo lá e querem que eu
comece na quinta-feira. Agora pode terminar o que você
estava dizendo.
Maritza só conseguia sorrir.
Chegaram ao bar dos ciclistas, e preferiram não sair
dessa vez. Nesse mesmo lugar, alguns anos atrás, Maritza e
Dave tiveram seu primeiro encontro. Dessa vez parecia tão
bom quanto na primeira, a alegria da descoberta que

112
outrora fora excitante dava lugar a alegria de ter encontrado
alguém para a vida inteira. Os sorrisos eram simultâneos, a
felicidade se tornaria plena, por que seria compartilhada a
partir de agora.
A insegurança de um casamento parecia que não era
relevante nesse momento. Ainda havia aquelas arestas que
faltavam aparar, questões de comportamento, etc. Os dois
já moravam juntos há algum tempo, já se conheciam
melhor do que talvez os próprios pais. Aqueles dois queriam
um ao outro, muitos podem achar que o casamento nada
mudaria na vida dos dois, mas ambos queriam aquela
assinatura.
Curtiram o show de música ao vivo, pediram
hambúrguer e batata frita, beberam algumas cervejas até o
ponto de ficarem “alegres” e começarem a rir um do outro
sem motivo.
Na volta para casa, caminharam pela noite
refrescante, olhando as estrelas e fazendo planos. Dez
minutos depois já estava escancarando a porta do
apartamento, se agarrando como dois animais na época de
acasalamento, trombaram em algumas flores, pisaram em
outras e derrubaram alguns arranjos.
— Meu amor, você não chegou a entrar no quarto,
ainda tenho uma surpresa pra você.
— Hummm, o que será?
— É uma flor.
— Você é ótimo em estragar surpresas. Não acha que
já não me deu flores o suficiente hoje? — disse sorrindo.

113
— É uma flor especial, diferente das que você já viu.
Dave a levou nos braços até o quarto do casal. Ao
entrar, Maritza vislumbrou a dália negra de longe e
assustou-se com a beleza da flor, desceu do colo de Dave e
foi hipnotizada em direção ao vaso da planta. Não foi dita
nenhuma palavra assim que ela bateu o olho na flor. O
cheiro da rosa já havia tomado todo o recinto. Dave sorria
ao ver a reação de sua noiva.
Maritza aproximou o nariz da flor e inalou o
perfume, caiu inerte no chão.

114
22

— Meu amor! Fala comigo, por favor, pelo amor de


Deus. SOCORRO! — berrava Dave com Maritza em seus
braços, chamava pela amada, sacudia e nenhuma reação,
correu até o aparador da sala onde estava o celular, teclou o
número da emergência, e antes que pudesse discar viu a
porta do apartamento ser arrombada por dois paramédicos,
com um deles carregando uma maca alaranjada. Um misto
de surpresa e alívio tomou conta de Dave. “Dane-se a lógica
nesse momento”. Pensou.
Um deles foi em direção à Maritza enquanto o outro
tentava impedir Dave de se aproximar:
— Calma, senhor! Ele vai ajudá-la.
O paramédico fazia manobras cardíacas no tórax de
Maritza, mas nada parecia ajudar. Dave acompanhava tudo
sem entender, com lágrimas nos olhos. O paramédico olhou
no relógio, e começou os procedimentos para imobilizar
Maritza na maca. A aparência dela não parecia ser das
melhores, os lábios estavam arroxeados como os de uma
pessoa com muito frio, as pálpebras fechadas e profundas,
demonstravam um tom quase negro. Dave estava em
choque, imóvel e catatônico.
Na calçada em frente ao prédio, dezenas de
moradores e curiosos se aglomeravam em torno das luzes
vermelhas e azuis que iluminavam os muros em volta. Entre

115
eles estava Dona Finha envolta num xale cor de carne. Dave
passou por ela sem dizer uma palavra. Ela fez o mesmo.
Dave entrou na ambulância, trancaram as portas
duplas. Não ligaram a sirene.
***
Maritza foi levada para o Osmar Oliveira, o hospital
de urgências da cidade. Aguardando na sala de espera do
hospital, Dave criava expectativa de uma notícia diferente
da que sabia que teria. A grande verdade é que ele não
estava pronto para perder a noiva. Dave estava com a bexiga
a ponto de estourar, bebeu muito e não foi ao banheiro. Não
quis perder nenhum segundo enquanto aproveitava com
Maritza, talvez essa tenha sido a melhor decisão da noite.
De onde estava sentado podia ver ao longe o símbolo do
banheiro masculino pendurado em uma porta branca.
Junto com a vontade de ir ao banheiro, um
tremendo sono tomava conta do corpo de Dave. Ele olhava
para as portas duplas de onde saíam médicos com jalecos
brancos e estetoscópios em torno do pescoço, macas com
pacientes respirando com a ajuda de balões de oxigênio. Ele
pensou consigo mesmo, poderia ir rapidamente ao
banheiro, e até a lanchonete que ficava no segundo andar
para comprar um café grande.
— Senhor Dave Martins? — disse um médico
conferindo dados em uma prancheta de metal.
— Sim, sou eu.
— Me acompanhe, por favor.

116
O médico levou Dave para o corredor após as portas
duplas, virou à direita onde parecia mais deserto. O médico
que tinha bordado no bolso do peito com linha azul os
dizeres Wilson Nunes, tocou o ombro de Dave.
— Senhor Dave, não existe uma forma melhor de
dizer isso, a sua esposa...
— Noiva — Dave corrigiu Nunes.
— Sua noiva, ela faleceu, às 04h56. Uma enfermeira
vai acompanhá-lo para reconhecer o corpo, se assim desejar
— disse apontando para a moça de branco que se
encontrava atrás de Dave — eu sinto muito pela sua perda.
DOUTOR WILSON NUNES, FAVOR
COMPARECER À SALA DE CIRURGIA 03/ DOUTOR
WILSON NUNES, COMPAREÇA À SALA DE CIRURGIA
03 — anunciou o alto-falante.
— Me acompanhe, por favor, senhor — disse a
enfermeira.
Dave foi atrás da moça sem dizer uma palavra. Ela
usava um vestido acima dos joelhos, num tom de azul-claro,
quase branco. O cabelo preso em coque segurava um
pequeno chapéu branco com uma cruz vermelha bordada.
Seus saltos altos e brancos ecoavam pelo corredor a cada
passo. Por breves momentos, Dave se perguntou se aquele
era o calçado mais adequado para uma enfermeira. Mas a
realidade bateu à porta de sua mente e a irrelevância
daquele questionamento o afastou.
Durante o caminho Dave percebeu que sua vontade
de ir ao banheiro desapareceu, sua bexiga lhe parecia vazia,

117
e um gosto familiar era sentido em sua língua, algo parecido
com café. Foram cruzando os corredores, até chegar a uma
porta onde havia a inscrição “Necrotério”. A enfermeira
abriu com a chave, e sobre a mesa de metal em um quarto
amplo e frio, Dave viu um corpo de robe branco com uma
etiqueta presa no dedão do pé direito. Ele não conseguiu
passar da porta, e apenas uma lágrima correu do lado
esquerdo do rosto.

118
23

Dave disse apenas “é ela”. A enfermeira pegou um


saco preto e entregou a ele:
— Aqui estão as roupas que ela estava usando, e isso
também... Eu sinto muito.
A moça entregou o anel de noivado na palma da mão
de Dave. Mais uma lágrima caiu. Ele tomou o caminho de
volta da recepção, com um saco preto debaixo do braço e
com um punho fechado com um anel dentro. Um aperto
forte sentido no peito lhe acompanhou também.
Caminhando calmamente, Dave tentava se convencer do
que aconteceu, em casos de falecimento, a dor sempre
chega antes da certeza, e pelo visto ela não viria hoje. Ele
percebia um sentimento de culpa se formando, por ganhar
uma planta que nem mesmo havia comprado. Como se
culpar do que está além do seu controle?
Já na recepção, no mesmo lugar onde ele tinha
sentado, havia um copo de café, com o nome “DAVE”
escrito com marcador permanente. Dave tirou o copo para
se sentar e notou que este estava vazio, tinha coisas mais
importantes para se preocupar nesse momento, do que
alguém com o mesmo nome que o seu. Na verdade, agora
não havia mais nada com que se preocupar.
Indo em direção à saída do hospital, como se a noite
já não estivesse saturada de coisas estranhas, Dave passou
pela porta do banheiro, e se viu saindo lá de dentro. Não

119
parecia ser uma alucinação, era tão nítido que parecia estar
olhando para um espelho, a mesma roupa, os mesmos tênis,
até os mesmos olhos vermelhos de choro. Foi a última coisa
que viu antes de sua visão começar a embaçar, longo antes
de um desmaio.
Dave acordou lentamente, seus olhos demoraram a
focar, e ver Nunes apontando uma lanterna para os olhos
dele.
— Fale comigo. Você está bem?
— O quê? — perguntou desorientado.
— Você teve uma queda de pressão. Mas parece bem
agora. — Tirou o estetoscópio do ouvido.
— Era eu... ali — Apontou para o banheiro.
— Não tem ninguém ali. Vá para casa, rapaz! Você
teve uma noite muito cheia...
***
Dave não se lembrou de como chegou em casa,
acordando em sua cama olhou para o teto e se sentiu
bastante confuso, ao virar-se, olhou para o topo da
escrivaninha e viu uma caixinha de veludo preta onde jaz o
anel de noivado de Maritza. Isso o fez chorar e rolar na
cama, a ponto de cair no chão do lado oposto.
Sabe aqueles dias em que se acorda, com vontade de
voltar a dormir? E isso se mistura com a vontade de não
querer acordar, não querer enfrentar a realidade que a vida
lhe apresenta. Foi assim que Dave acordou nessa manhã,
com aquela sensação pessimista de que nada vai dar certo,
olhando para o teto o peso da culpa martelava sua mente tal

120
qual uma marretada em uma estaca. A sensação de
impotência o invadia e fazia seu corpo pesar mais ainda sob
o tapete ao lado da cama. O filme que passava em sua
mente, o condenava a rever tudo de ruim que passou nas
últimas horas. Um disco de vozes com maldizeres estava
furado na vitrola de sua mente.
Nesse dia, o corpo de Dave estava no automático,
fazendo tudo o que tinha de ser feito, mas seu pensamento
e cérebro estavam muito longe dali. Durante o velório, Dave
teve um lapso de consciência e se perguntou como chegara
até ali, não soube responder, a única certeza era o porquê
estar ali. O corpo demorou a ser liberado do necrotério. Os
legistas nunca tinham visto nada parecido. No atestado de
óbito constava “causa desconhecida” para a causa da morte.
O corpo saiu por volta das 17h, e era impossível que o corpo
chegasse a tempo do sepultamento no cemitério, seria uma
longa noite.
Dave recebia as pessoas próximo ao caixão, na sala
de velório. Perdeu a conta de quantas mãos apertou ou de
quantos abraços recebeu, ou quantos “meus pêsames”
durante toda a madrugada. A tia de Maritza estava
inconsolável, com a pressão baixa desmaiou várias vezes.
Os minutos mais longos da sua vida se seguiram adiante, de
alguma forma tentando convencer a si mesmo de que estava
vivendo uma mentira. Em seus ouvidos, a voz de Maritza
ainda ecoava:
“Meu amor? Fala comigo!”

121
Se não mais uma das invencionices de sua cabeça.
Podia ouvi-la claramente, pois ao olhar para o caixão ainda
aberto não podia acreditar em seus próprios ouvidos, ou
olhos.
Para Dave até como cadáver Maritza era linda, mas
um detalhe o fazia lembrar constantemente do acontecido.
As profundas manchas negras ao redor dos olhos dela não
desapareceram nem sob as pesadas camadas de
maquiagem, tornando a cena muito mais macabra do que
deveria ser. As bochechas, agora fundas, traziam mais ainda
a impressão de um esqueleto cadavérico.
Somente uma coisa foi capaz de desviar a atenção de
Dave do caixão, os pais de Maritza que acabaram de entrar
no recinto. Mesmo sendo noite, ele ainda usava óculos
escuros, não para a luz, mas para as pessoas. Seus óculos
lhe serviam como uma barreira para distanciar a todos de
seu mundinho de tristeza.
Um senhor e uma senhora com roupas pretas e de
braços dados cruzaram a entrada e se aproximaram do
caixão, Dave não teve coragem de se apresentar, ao senhor
careca de óculos na pontinha do nariz em cima de um
espesso bigode. Na mulher Dave podia ver as lágrimas
escorrerem por baixo de um chapéu de aba bem longa, a
boca lembrava em muito a de Maritza. Ele viu nela o futuro
de sua ex-esposa. “Então é assim que ela seria no fim dos
nossos dias”.
Eram 3 horas da manhã, as pessoas se acomodavam
como podiam, já que o cemitério só abriria às 8 horas da

122
manhã, Dave era o único que não saía do lado do caixão, e
foi quando a tia de Maritza, Dona Mara tocou seu ombro:
— Você precisa descansar, meu rapaz, está muito
tenso.
— Obrigado, tia Mara, mas eu vou continuar por
aqui. A culpa foi minha! — disse chorando.
Tia Mara o abraçou e o consolou.
— Calma, meu filho, você não tem culpa de nada,
calma.
— O que vai ser da minha vida agora?
— Vai dar tudo certo. Eu tenho algumas pessoas para
te apresentar. Vem comigo.
Ela pegou Dave pelo braço e o levou para onde os
pais de Maritza estavam sentados. O senhor dormia
profundamente, enquanto a senhora enxugava os olhos
com um lenço dourado:
— Essa é a minha irmã, Marlucia. Marlucia esse é o
Dave o namorado da Maritza. E aquele é meu cunhado
Marcio. Ele dormia com a cabeça recostada no banco e com
a boca aberta abaixo do espesso bigode.
— Muito prazer, Dona Marlucia. — Dave retirou os
óculos.
— Oi, meu filho, até que enfim nos conhecemos, pena
que teve de ser em um momento como esse, perdoa meu
marido, ele tá cansado. — Abraçou Dave.
— Tudo bem.
— Eu sei que você cuidava bem dela. Minha irmã e
ela falavam muito bem de você.

123
— Não, eu não fui forte o suficiente, a culpa foi
minha, Dona Marlucia — falou chorando.
— Não se culpe, meu filho. — Apertou ambas as mãos
de Dave. — Você fez tudo o que estava ao seu alcance. Você
só estava tentando fazê-la feliz.
Mal sabia ela que Dave ainda se culpava por insistir
em comprar aquela maldita rosa.

124
24

Hoje é uma quinta-feira, o dia em que Dave deveria


começar em seu novo emprego na lavanderia. Não havia
saída, sua vida deveria continuar, mesmo sem ela. Sob o
aparador ainda estava o vaso com aquela maldita rosa, mas
sua beleza era tanta que Dave não sabia o que fazer, ela o
fazia lembrar-se da dor, mas mesmo assim lhe faltava
coragem para se livrar dela.
Alguma coragem encontrou Dave e fez seu corpo
levantar. Era por volta das 6h50. Desligar o chuveiro foi
proposital, talvez a água fria lhe causasse algum choque que
lhe apagasse algumas memórias. Mas tudo que essa água
fez foi despertá-lo. A fome caiu sob seu estômago. Assim
que terminasse o banho, tomaria seu café da manhã, que,
como de costume, sempre foi um copo de leite e um
sanduíche com peito de peru.
O banheiro ficava no corredor do apartamento, Dave
saiu de lá com a toalha enrolada na parte de baixo do corpo
e recebeu de si mesmo um prato com sanduíche de presunto
e peito de peru:
— Toma aí, o leite eu já bebi.
Dave pegou o prato e se viu indo para o quarto e
fechar a porta. Sem entender nada foi em direção à sala. Na
poltrona, uma figura que ele conhecia muito bem de
algumas semanas atrás, de pernas e dedos cruzados com
óculos escuros:

125
— Bom dia, Dave.
— Ah não! Você de novo?
— Surpreso em me ver?
— Não! De forma alguma. Você não trouxe aquela
amiga sua não né? — Olhou em volta.
Na poltrona, estava a figura personificada de sua
consciência.
— Não, desta vez ela não precisou vir. Eu estou aqui
por uma necessidade sua.
— Então não fiz nada de errado dessa vez?
— Me diga você! Você ainda não se questionou sobre
quem é esse que está lá no seu quarto vestindo as suas
roupas?
— Bom, seria minha próxima pergunta.
— Estou aqui para te ajudar com isso. Diga-me: como
está se sentindo sobre a morte da sua noiva?
— Você deve saber.
Dave fechou o semblante e sentiu um aperto no
peito, não era o assunto que queria tratar, ainda mais
vestido somente com uma toalha.
— Não precisa dizer nada. Eu sei exatamente o que
você pensa e o que está sentindo.
— Se você já sabe tudo isso deve saber minha
próxima dúvida também.
— Você quer saber por que está se vendo por aí.
— Isso mesmo!

126
— Eu acredito que seja pela falta que você sente da
sua ex-noiva. Você sente tanta falta dela que você acabou
por compensar a ausência dela com outros “vocês”!
Dave caminhou até a janela, numa tentativa de
absorver a informação recebida, virou-se e disse:
— Mas...
Ao virar-se, estava sozinho na sala, olhou para o
prato em sua mão e deu uma mordida no sanduíche. Foi
devagar em direção ao quarto, abriu a porta e viu sua
silhueta de costas ficando transparente até desaparecer por
completo.
Dave sentou-se na cama e começou a se achar meio
louco. “Será que estava acontecendo de novo?”, perguntou
a si mesmo. Seria outra “habilidade”, por assim dizer? Não
queria prejudicar ninguém com ela desta vez. Talvez fosse
mais fácil controlar assim como fez com o dinheiro. Não
custava tentar.
Levantou-se da cama, foi até onde deixara suas
calças na noite anterior, do bolso tirou uma moeda de
cinquenta centavos e a fechou na palma da mão, fechou
também os olhos e quando os abriu, havia em sua mão duas
moedas, perfeitamente iguais. Pelo menos ainda se
lembrava de como fazer.
Sentou-se novamente na cama, fechou os olhos e se
concentrou, pensou em si mesmo como estava, sem camisa,
somente com a toalha enrolada em torno da cintura tentou
sustentar a mesma sensação que há pouco multiplicara a
moeda.

127
Desconcentrado, o pensamento correu solto e o foco
se perdeu. Pensou já estar atrasado para o seu primeiro dia
no novo emprego, foi quando tomou um susto e ouviu a
porta do guarda-roupa se abrir. Ao olhar para frente, viu a
si mesmo mexendo em sua própria gaveta de cuecas e
dizendo:
— Anda logo aí, maluco, ou a gente vai se atrasar —
disse a Dave, jogando em seu colo uma cueca vermelha.
Dave estava ofegante e assustado, mas sua fome estava
saciada.

128
25

Descendo as escadas, Dave ainda se confundia em


seus pensamentos, pensava na nova habilidade que acabara
de ganhar, como poderia usá-la, como controlar, como pôr
em prática sem prejudicar as outras pessoas? Perguntava-
se também se realmente precisava dela, por que ter outros
“eus” por aí? Desistiu de responder essas perguntas.
No caminho para o trabalho, Dave pode dizer que
realmente experimentou o sentimento de nostalgia. Já fazia
bastante tempo que não andava de bicicleta, quando se
tratava de ir ao trabalho, era ótimo cruzar pelos carros,
ouvir algumas buzinas e cutucar alguns retrovisores. Era
tão bom sentir o vento no rosto novamente, nada melhor
que os velhos tempos, pois neles residia Maritza.
Chegando à lavanderia, havia um bicicletário
enferrujado no beco à esquerda, perto da porta dos fundos.
Entrou pela porta da frente e sentiu um perfume forte, deu
bom-dia para a atendente que em outra ocasião recebeu seu
tapete:
— Bom dia, Dave! Entra aí. Melhor dar a volta pelos
fundos, ou pode pular o balcão se quiser... — disse rindo.
— Eu vou dar a volta. — Dave estava tímido com a
proposta.
A porta dos fundos estava aberta, ao entrar em um
cômodo completamente branco, onde diversas máquinas
de lavar roupa batiam e giravam freneticamente. Ao lado,

129
dezenas de cabides com roupas prontas para serem
embaladas, algumas já envoltas em plástico. Ao fundo um
rapaz com feições asiáticas, óculos grandes estava de frente
uma tábua de passar roupas segurando um ferro a vapor
preso ao teto, passava uma camisa social branca. O rapaz
era tão magro que era fácil confundir seu braço com o cabo
do ferro de passar.
— Bom dia — cumprimentou Dave.
O rapaz respondeu apenas com um aceno de cabeça,
e prosseguiu com a sua função, Dave foi até a recepção.
— Oi, meu nome é Marisa. Já que você vai cuidar das
entregas, pode sentar e esperar um pouco, estou
terminando de organizá-las.
— Ok, eu espero.
Dave sentou-se em uma cadeira atrás do balcão,
enquanto observava Marisa preencher as fichas com os
endereços e grampeá-las nas embalagens das roupas, no
cabideiro à esquerda. Ele parecia ter uma queda por
recepcionistas. O “scanner” de Dave percorreu toda a
extensão do corpo de Marisa.
— Como hoje é o seu primeiro dia, é melhor você
falar com o chefe, mas ele só chega mais tarde.
— Tudo bem, vou ficar por aqui.
— Os boatos que correm por aí dizem que ninguém é
mais rápido que você.
— Bondade sua, ou de quem disse. — Dave estava
meio sem graça. — Mas ainda pretendo vencer esse tal de
“ninguém”.

130
— Não entendi.
— Você disse que ninguém é mais rápido que eu.
— Ah! — Marisa abriu um sorriso. — Verdade.
— Mas eu acho que isso é só boato mesmo, eu acho
— disfarçou.
— Não sei não, já ouvi histórias de que o expediente
é longo demais para você.
— É, eu sempre terminei antes dos outros. Sou
apaixonado por velocidade.
— E por que você parou?
— Eu tive um acidente. — A imagem do mundo
girando ao seu redor veio à mente de Dave.
— Muito grave?
— Não tanto, algumas costelas quebradas, algumas
semanas em casa... Nada de mais.
— Bom... com a velocidade, parece questão de tempo
um acidente — disse, sorrindo.
— É preciso cuidado e reflexos rápidos. O que te
disseram sobre mim?
— Que você era mais rápido que as motos, é verdade?
— A verdade é que o quadro da minha bicicleta é...
Ouviu o bater de portas de carro no beco.
— Ele chegou — disse Marisa
— Quem?
— O chefe.
O ranger da porta ecoou no recinto, e Roberto entrou
na lavanderia.

131
26

— Dave, meu peixe!


Levantou-se para cumprimentar Roberto, surpreso,
Dave não encontrava palavras para preencher o ar naquele
momento.
— Quanto tempo, cara? — Foi só o que conseguiu
dizer.
— Vamos ali no meu escritório.
Roberto o conduziu em direção às escadas. Subiram
sem trocar uma palavra, Dave não sabia o que dizer. Uma
porta escrito “gerência” os aguardava. A sala não era muito
grande, havia apenas uma mesa de escritório e três
cadeiras.
— Senta aí.
— Nossa, cara, minha ficha não caiu ainda. Você é
dono dessa lavanderia também?
— Também não! Agora eu só trabalho aqui.
— Mas, e a Central?
— Meu peixe, apesar de eu não pagar aluguel na
minha própria garagem, aquilo dava mais prejuízo que
lucro. As pessoas preferem uma empresa que ofereça
seguro para as mercadorias.
— Entendo.
— Só acionavam a gente quando a entrega era muito,
muito urgente, porque por mais inseguro que nosso

132
transporte fosse, ele sempre foi o mais rápido. Ainda mais
quando você fazia parte da equipe.
Dave balançou a cabeça sorrindo.
— E aí você pensou em mudar totalmente, abrindo
uma lavanderia? — disse Dave em tom irônico.
— Não, não — respondeu Roberto depois de uma
risada. — Eu resolvi aliviar minhas preocupações. Isso aqui
não é meu, isso é uma franquia, eles fornecem os materiais,
o treinamento, a marca, só tenho que preocupar com a
porcentagem para a matriz e contratar os funcionários.
— Saquei, e você decidiu me contratar...?
— Meu peixe... eu estava precisando de um
entregador, e quando a Marisa me mostrou seu currículo,
não pensei duas vezes. Você é o entregador mais rápido que
eu já vi.
— Sério?
— Claro! Antes do seu acidente, rolava um bolão na
Central para ver quando você ia cair. Marcelo ganhou uma
bolada no dia do seu acidente.
— Mas que filho da p...
— Calma, era só uma brincadeirinha interna. Se você
pensar bem, é até um elogio.
— De boa.
Roberto pegou a garrafa de café no canto da pequena
sala, e serviu dois copinhos descartáveis.
— E as coisas com a Maritza? Como estão?
— Você não soube? Ela faleceu.
— Minha nossa. Não sabia! Meus pêsames.

133
— Relaxa. Ouvi um comentário, vou fazer as entregas
numa moto? — Tentou mudar de assunto.
— Sim, vamos lá dar uma olhada.
Dave o acompanhou pela escada.
— Você tem carteira A?
— Tenho, mas eu pensei que ia fazer as entregas de
bike.
— Não, meu peixe, a matriz exige que a gente use a
moto, porque ela tem um lugar pra você colocar as roupas.
Se não, você acaba com o trabalho do nosso amigo Hiro
aqui. — Bateu no ombro do rapaz que passava as roupas. —
Vamos ali fora pra eu te mostrar.
No caminho, Dave ouviu:
“DAVE! Meu amor, não me deixe agora!”
— O que foi, meu peixe? Tá tudo bem?
— Ouviu isso?
— Não! — disse, olhando em volta.
— Não deve ter sido nada.
Roberto abriu a porta para que Dave passasse,
tirando um pequeno controle do bolso, uma porta de
garagem com a logo da lavanderia abriu-se no beco. Dentro
havia uma motocicleta branca adaptada com três rodas, o
eixo traseiro era largo para acomodar algo que parecia com
um armário de duas portas. Roberto entregou a Dave um
chaveiro com duas chaves, uma da ignição e outra do
compartimento de carga.
— Aqui está seu cavalo, meu peixe — falou em tom de
brincadeira.

134
— Onde você já viu peixe montado em cavalo? —
Ambos deram uma risada.
— Lá atrás você coloca as roupas, tem um suporte
para pendurar os cabides — disse abrindo o compartimento
vazio. — Por enquanto você pode ficar tranquilo até a
Marisa terminar de preparar as entregas.
— Eu não posso garantir uma entrega rápida
dirigindo esse trambolho aí. Você sabe como tá o trânsito
ultimamente?
— Relaxa, meu peixe, eu confio em você.
— Justamente por essa confiança e que vai me deixar
usar minha bicicleta.
— Meu peixe, eu não posso desobedecer às regras,
corro o risco de perder a marca.
— Cara, confia em mim, vai ser bom para o seu
negócio ter a entrega mais rápida da cidade. Fora a
economia de combustível que pode ser reinvestido ou
adicionado ao meu salário — disse sorrindo e piscando o
olho.
— Tá ok! Vamos fazer uma semana de teste, se você
conseguir entregar sem amarrotar as roupas, pode usar a
bicicleta.
— Não vai dar tempo nem de amarrotar... Garanto.

135
27

O trabalho na lavanderia continuava monótono, pela


manhã Marisa já deixava as entregas preparadas, Dave
fazia todas ou a maioria delas até o meio-dia. Almoçava em
um restaurante próximo, geralmente com Roberto ou com
Hiro. Com algumas semanas de trabalho, Dave conseguiu
convencer Roberto que usar a bicicleta para enfrentar o
trânsito em certos horários era a melhor opção. Nesse meio
tempo quebrou o gelo com Hiro.
— E aí, Hiro? Já almoçou?
— "Zá” cara. — Hiro possuía dislalia, o que deixava
algumas sílabas com entonação diferente. Mesmo assim,
não havia dificuldade de entendimento entre ele e Dave.
— Onde? Não te vi no restaurante.
— Eu trouxe de casa. Mano, dá uma olhada nisso!
Hiro tirou o celular do bolso, foi até a galeria e
mostrou um vídeo onde uma ruiva tirava a roupa, e
rebolava para a câmera até ficar completamente nua. Dave
mostrou-se um pouco surpreso, não pela beleza da mulher
ali, mas por Hiro que se apresentava tão tímido, ter esse
tipo de vídeo no celular. E exibi-lo de forma natural.
— Me passa seu número aí que eu te mando.
— Hiro, na boa, nunca fui muito fã dessas paradas de
pornô.
— Pera aí. Você nunca viu pornô na vida?

136
— Não, não foi isso que eu disse. Que homem nunca
viu pornô na vida? — Deu uma risada. — O que eu tô
querendo dizer é que com o tempo eu fui enjoando,
entende?
— Não, não entendo como você pode ter “enzoado”
de mulher. — Guardou o celular.
— Eu não disse isso. Deixa eu te explicar. Depois que
você experimenta de verdade, as coisas mudam.
— Mesmo assim, eu não entendi ainda como você
pode ter “enzoado” de mulher. — Continuou a passar as
roupas.
— Eu não enjoei de mulher, caralho!
— Então o quê?
— Pensa só, quando você tá com vontade de passear
no parque você entra na internet e procura fotos de um
parque? Ou quando você tá com vontade de comer bolo
você entra em um site de confeitaria? A analogia não foi
muito boa, mas é mais ou menos isso que eu queria dizer.
— Eu entendi, cara, mas aqui entre nós, é bom
demais, e outra — abaixou o tom de voz. — eu sou “virzem”.
— Sério? — gritou Dave.
— Fala “baisso”, cara — Hiro ergueu os braços e o
ferro ficou sobre a roupa.
Ambos começaram a cochichar.
— Chama a Marisa pra sair.
— O quê? Ficou maluco? Droga, quase queimou aqui.
— Não, cara, por quê? Ela é bonita.

137
— Eu sei, mas, sei lá, se não der certo ou eu fizer
alguma besteira? Vou ter que encarar ela todos os dias!
— É nisso que você tá pensando? Se der errado? Por
isso que não dá certo.
“Vai dar tudo certo, meu bem.”
Dave ignorava a voz de Maritza, que ouvia,
frequentemente, a saudade podia justificar o início da sua
loucura.
— Você me confunde às vezes, sabia?
— Nós vamos marcar um dia pra dar um jeito nisso.
— Sei. “Zá” ouvi isso tantas vezes. E também, eu faço
faculdade a noite não dá tempo de sair.
— Que curso?
— Ciências da computação.
— O que eu ganho aqui mal dá pra “serocs”... quem
dirá pagar uma mulher.
— Você tá achando que vai precisar pagar? — Dave
ficou sem paciência.
— Não “vezo” outra alternativa quando você diz “dar
um ‘zeito” — disse formando aspas com os dedos.
— Tá bom então. — Dave foi até a calçada.
Precisava esfriar um pouco a cabeça ou acabaria
tendo uma resposta rude no pobre Hiro. É tão estranho
compreender o pensamento alheio. Dentro da mesma
realidade, ela é vista de pontos de vista completamente
diferentes. A empatia aliada à extrema paciência é o segredo
da boa convivência. “Um dia eu ainda ajudo esse garoto”.

138
28

As vozes de Maritza ficavam cada vez mais


constantes na cabeça de Dave. Ora em tom de desespero,
ora em tom de angústia, outras vezes em tom de
brincadeira, de acalanto, de carinho, de proteção, mas de
alegria estava difícil de lembrar a última vez. Poucas coisas
o distraiam, uma delas foi descobrir que Hiro era virgem,
seria legal conversar sobre a primeira vez dele, dar dicas,
saber como foi a experiência. Ver a felicidade de seu novo
amigo.
Era uma manhã de quarta-feira, Dave acordou
minutos antes de o despertador tocar, apertou o botão de
parar assim que a música começou. Mais uma noite de
saudade. A dor de olhar para o lado e não haver ninguém
era... indefinível. A lembrança que vinha toda vez que virava
para o lado e via aquela rosa negra era dolorosa. Dave não
lhe dava água há dias, e mesmo assim ainda se mantinha
forte e viva, nenhuma pétala sequer havia caído, sua
coragem de se livrar dela parecia diminuir a cada dia.
E foi o fato de lembrar-se de Maritza que o fez perder
a vontade de trabalhar. Não iria hoje, mas iria. Fechou os
olhos e se concentrando ouviu o clique da porta do banheiro
e de lá saiu seu outro eu, pronto para o trabalho, sem nem
ao menos se despedir, trancou a porta e partiu em direção
ao trabalho.

139
Foram longos minutos fitando o teto antes de
levantar-se definitivamente. O reflexo no espelho do
banheiro lhe mostrava profundas olheiras de uma noite mal
dormida, um sono leve que não matava nenhum cansaço.
Foi quando aquela luz de uma nova ideia pairou iluminada
sob a cabeça de Dave. Maritza morrera e ele não foi até a
polícia, os pais não fizeram nenhuma queixa, nem os tios,
Dave nem sequer voltou à floricultura para questionar a
dona sobre aquela maldita planta. Ele não se surpreendeu,
era apenas mais uma das coisas estranhas que vinham
acontecendo ultimamente na sua vida, mais uma das coisas
sem respostas.
Sem perder mais tempo vestiu a primeira roupa que
encontrou, e correu descendo as escadas ainda calçando os
tênis. Dona Finha disse alguma coisa que Dave insistiu em
ignorar. Ao chegar ao térreo lembrou-se que sua bicicleta
não estava no mesmo lugar de sempre. Seu clone mais
recente fora para a lavanderia, sem pensar muito, correu
em direção à floricultura.
Quase foi atropelado ao atravessar a rua sem olhar
para os lados, corria e trombava com as pessoas como se
não estivessem ali. Seus pensamentos estavam em Maritza,
e se poderia obter algumas respostas, Dave sabia que elas
não a trariam de volta, mas, quem sabe, poderiam acalmar
um pouco seu coração.
Estava perto, era na próxima esquina. Apertou o
passo, correndo com as últimas forças que lhe restavam,
virou a esquina a toda velocidade e bateu com o rosto em

140
cheio na caixa de correio caindo no chão. As pessoas em
volta olhavam assustadas, não sabendo se ele estava bem ou
se deveriam socorrê-lo. Dave levantou-se esbravejando e
xingando, muito nervoso com o rosto vermelho, o nariz
sangrava um pouco e doía bastante, cuspiu um pouco de
sangue e seguiu seu caminho andando até a loja de flores.
“Eu estou aqui com você, meu amor.”
A mão direita segurava o nariz para não pingar
sangue, a mão esquerda girou a maçaneta, trancada, girou
mais algumas vezes e a porta não abria por mais que
forçasse. Dave andou em direção à vitrine e viu a placa com
os dizeres “Aluga-se” e um telefone celular. Onde deveria
estar o letreiro ainda se via a sombra das letras de Olinto
Flores. Sem pensar duas vezes, discou o número, chamou
até cair na caixa de mensagens. Ele insistiu mais quatro
vezes até que alguém atendeu:
— Alô — dizia Dave ofegante.
— Pois não? — respondia uma mulher do outro lado
da linha.
— É a respeito do ponto comercial que você tem aqui
na rua Marechal Ferro.
— Sim, o senhor pretende alugar?
— Não, de forma alguma, eu preciso de informações
sobre seu último inquilino.
— Me desculpe, mas eu não forneço esse tipo de
informação.
— A senhora vai me fornecer, sim. — Dave começava
a perder a calma. — O seu último inquilino, a dona da

141
floricultura que funcionava aqui, tirou uma coisa de mim e
me deve respostas.
— No meu ponto, nunca funcionou nenhuma
floricultura, o senhor deve estar enganado.
— Como assim? Há algumas semanas eu comprei
flores aqui para minha noiva.
— Não, nesse local funcionava uma loja de pisos.
Dave olhou em volta. Conhecia a cidade como a
palma da sua mão. Tinha certeza de que estava no lugar
certo. Ele olhou para cima novamente em direção ao
letreiro e apertando os olhos leu “Olinto Floor”.
— Isso é algum tipo de palhaçada? Eu tenho certeza
de que era aqui!
— Eu lamento muito, Dave, mas não posso ajudá-lo.
— Ei, pera aí, como você sabe meu nome?
Telefone mudo... Sinal de ocupado...

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29

A bateria do celular de Dave acabou, de tanto ligar


no número da vitrine, sem sucesso. O dia já se aproximava
do fim, e foi só quando se sentou na calçada percebeu que
perdera o dia inteiro ali. Aquela saudade era inexplicável e
o sentimento de impotência era pior, o que mudaria se
soubesse o motivo de Maritza ter sido morta? O que
adiantaria encontrar alguém para repassar a culpa? No
momento o dono da culpa é quem deu o “presente”.
Com passos pesados, Dave se pôs de volta ao
caminho de casa, cabisbaixo como se procurasse pelo chão
um motivo para tudo aquilo. Suas decepções não eram
fáceis de justificar. O motivo não estaria no chão ou em
qualquer outro lugar que olhasse. Talvez olhar para dentro
pudesse resolver esse dilema.
Dave entrou em casa e lá estava seu outro eu,
catatônico sentado na poltrona próximo à janela olhando
para o nada. Era a hora de absorver as informações do dia.
Dave tocou o ombro dele, que foi desaparecendo aos
poucos, reabriu os olhos, se sentou na poltrona onde o clone
desaparecera, sentia-se cansado.
Roberto pediu sua ajuda e a de Hiro para subir os
novos móveis de seu escritório, Marisa não foi trabalhar
hoje e, portanto, atrasaram as entregas, o que significa que
no dia seguinte o trabalho será em dobro, isso não seria

143
problema. Dave tinha um exército para ajudá-lo, se
quisesse. Hora do banho.
“Oi, meu amor, tudo bem? Te amo muito, não
esquece.”
Malditas vozes, só aumentavam a saudade, e não se
calavam nem com o barulho da água quente na cabeça.
Dave saiu do banho com a toalha enrolada na cintura, e foi
em direção à cozinha e ao passar pela sala:
— Ah não! Você de novo aqui, não!
— Oi, Dave, há quanto tempo?
— O que eu fiz dessa vez?
— Me diga você, eu estou denso novamente por sua
causa — dizia sua consciência sentada na poltrona da sala
de óculos escuros. — Tem alguma coisa que está te
incomodando?
— Tem! O fato de você aparecer sempre que eu estou
de toalha. Isso me incomoda muito — disse irônico.
— Ah, por favor! — O Consciente se levantou. — Você
acha mesmo que tem algo aí embaixo que eu não saiba
como é?
Dave nada respondeu.
— O que, além disso, tem incomodado você que
justifique minha presença?
— Você não sabe!
— Quero saber se estou certo. — Cruzou os braços.
— Me sinto culpado pela morte da Maritza.
— Não se sinta culpado — disse pausadamente. — Ou
será que você quer receber a visita da nossa amiga

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novamente? Acho que você ainda não se culpou, mas está
com medo dela. Isso resume melhor o que você está
sentindo, estou certo?
— Tem razão. Talvez você possa me dar uma
explicação sobre o que aconteceu.
— Tenho algumas hipóteses, e posso afirmar que em
nenhuma delas a culpa é sua.
— Menos mal, mas ainda assim me sinto culp... Com
a consciência pesada...
O coração de Dave batia forte, estava nervoso, talvez
fosse o medo de saber a verdade, ou pior, saber a verdade e
ter a certeza de que ela o envolvia.
— Não se preocupe com isso, a dália negra é uma
maldição antiga, ela tem separado casais há décadas.
América é uma conhecida das antigas também.
— América? A dona da floricultura? Então não existe
a chance de ter sido um acidente?
— Claro que não! Ela mata por prazer na maioria das
vezes, mas ela pode ter seus motivos também. Quem sabe...
— Você não está ajudando muito!
O clima ficou um pouco tenso, o Consciente apertou
forte o pulso de Dave, virando o seu braço fazendo-o cair de
joelhos. Tirou uma agulha do terno e furou o dedo
mindinho de Dave, uma gota de sangue começou a escorrer.
Soltou o braço de Dave e ele levantou.
— O que significa isso? Seu maluco! — disse Dave,
assustado.

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Do dedo de Dave escorria uma gota de sangue, que
mudou gradativamente de vermelho para negro. O sangue
fluía para fora e parecia pertencer mais ao seu fígado do que
as veias de seus dedos.
— Tá aí sua parcela de culpa, você também foi
afetado. Seu moleque ingrato! Eu vim apenas para
responder suas dúvidas e você diz que eu não estou
ajudando?
— Desculpa. Mas eu não morri, não estou
entendendo.
— A maldição da dália negra só mata mulheres. Você
foi contaminado por ela quando sentiu o perfume da flor.
Não chegou a se perguntar por que ela era tão hipnotizante?
Ela dominou você para poder matar Maritza.
— Não faz sentido, eu desisti assim que ela disse que
não estava à venda. Eu não estava sob o controle da flor.
— Pode até ser, mas você não hesitou nenhum pouco
quando ela te deu uma coisa que não venderia tão fácil...
Não achou isso nenhum pouco estranho?
— Nem me atentei a isso...
— Pois é, e o que ela ainda faz no seu quarto? Você é
burro ou o quê?
— Eu já quis me livrar dela e não consegui!
— E você pretende ficar se lembrando do que
aconteceu toda vez que olhar para aquela merda no seu
quarto?

146
— Eu não consigo me livrar dela, você não entende.
— Dave estava com lágrimas nos olhos. — por mais dor que
me cause e o que me lembra dela.
— Você parece enfeitiçado. Vamos dar um jeito nisso.
Dave mal pôde piscar os olhos e viu que o Consciente
personificado não estava mais à sua frente. Ouviu a gaveta
da cozinha se abrir, ele pegou uma faca e, no segundo
seguinte, já estava frente a frente com Dave novamente.
— Vamos acabar logo com isso de uma vez por todas.
— Pegou Dave pela nuca e o jogou no chão em direção ao
seu quarto fazendo a toalha cair de sua cintura. Ele se
arrastou em direção ao vaso enquanto era seguido por sua
consciência personificada com uma faca na mão. Dave
estava de pé em frente ao vaso da planta maldita, a sua
direita uma mão estendida lhe oferecia a faca.
Dave foi tomado por um incontrolável frenesi. O
sangue de seu mindinho que antes pingava preto, agora
voltou a ser vermelho. Segurando a faca com as duas mãos
ele golpeava freneticamente o a rosa picando-a em dezenas
de pedaços, furando a terra e espalhando-a pelo quarto.
Esfaqueava a flor seguidas vezes até que largou a faca,
segurou o vaso e o arremessou contra a parede, sujando o
quarto de terra preta. Com lágrimas nos olhos e respiração
ofegante voltou para sua consciência. Sentiu uma tontura e
desequilibrou-se um pouco.
Seu consciente, que agora punha uma das mãos no
bolso interno do terno tirando um frasco de vidro com um

147
líquido verde fluorescente, amparou Dave para que não
caísse no chão.
— Calma, Dave, cheira isso.
— O que é? — disse, aproximando o nariz.
Dave sentiu uma forte queimação no nariz, o líquido
lembrava alguma coisa alcoólica, volátil e de cheiro forte.
Dave não teve tempo de ver o que acontecia, seus olhos
viraram e ele desmaiou no tapete. O Consciente foi se
dissipando e tornando menos tangível até desaparecer com
um sorriso de canto de boca.

148
30

O ar gelado entrava por suas narinas. Olhava em


volta não conseguia distinguir nada além do breu. Seus pés
descalços tocavam o chão de terra. O chão úmido grudava
as folhas nos calcanhares, a sensação de estar sendo
seguido confundia-lhe os sentidos fazendo a cabeça doer.
Sem direção, Dave continuava correndo enquanto ouvia
cascos de cavalo se aproximando. Casado de correr pelo
escuro, teve o instinto de entre as raízes de uma árvore
imensa e tentou diminuir o barulho do próprio fôlego, seus
pulsos doíam, mas não sabia explicar o porquê. As nuvens
de chuva se afastaram e a lua se acendeu. Mesmo assim, era
difícil enxergar qualquer coisa.
Os cavaleiros pararam próximo onde Dave estava
escondido. Usavam chapéus pontudos que lhes cobriam o
rosto até o pescoço. Os robes escuros, em tons diferentes,
indefiníveis na escuridão, possuíam as mangas rasgadas,
diversas tatuagens mais indefiníveis ainda adornavam os
antebraços. Eles não pareciam estar procurando alguém, na
verdade, eram batedores de uma carruagem, que vinha logo
atrás.
Uma carroça decadente, feita em madeira, com
grades enferrujadas, vinha marcando um caminho na terra
molhada. No canto havia um homem barbudo com trapos
imundos que lhe cobriam apenas a cintura e as pernas. O
prisioneiro estava sentado abraçando os joelhos, possuía

149
alguns ferimentos nas costas e nos braços. Assim que a
carruagem passou e Dave o encarou nos olhos e pensou
reconhecê-lo. O cortejo já estava distante quando decidiu
segui-lo.
Após alguns minutos de caminhada eles chegaram a
uma clareira na floresta. Dave começou a sentir um forte
calor que se intensificava à medida que se aproximava da
clareira. Uma luz alaranjada, cuja fonte ele desconhecia,
extinguia o breu da floresta. Ouvia vozes e batidas ritmadas
de tambor e ao virar o último arbusto notou uma fogueira
imensa como nunca tinha visto anteriormente. Com mais
de 10 metros de altura crepitando de uma forma
assustadora, o calor era tão intenso que Dave não conseguia
olhar diretamente para ela.
Em torno da fogueira havia dezenas de pessoas.
Todas com os braços abertos em formato de cruz, as mãos
dadas e o queixo apontado para cima, girando a cabeça
rapidamente. Recitavam algo repetidas vezes, palavras
distantes do vocabulário de Dave. As roupas eram escuras
em tons de marrom, preto e cinza-escuro, alguns
seguravam tochas, outros estandartes com símbolos que
Dave não conseguia discernir. Os círculos de pessoas
caminhavam em direções opostas. Uma espécie de
glossolalia era conduzida por um imenso tambor que era
capaz de tremer o chão a cada batida.
Próximo dali, dois homens abriram a porta de grade
da carroça enquanto outro liberou os cavalos assustados. O
prisioneiro foi tirado da cela com violência e jogado no

150
chão, os grilhões de seus pulsos batem na lama. Ele tenta
em vão manter as “calças” na altura da cintura, segurando-
as junto a pouca dignidade que ainda lhe resta. O olhar dele
era de alguém cujo sofrimento tinha se tornado rotina, o
olhar de quem não conheceu outra vida além dessa
encarcerada.
Dave reconhecia aquele olhar, ele se viu algemado
ali, se viu com a barba espessa e longa e anos de má higiene,
“Sou eu ali”, pensou. A cantoria o permitia fazer barulho
sem ser notado, tentou se aproximar para ter certeza. Dave
reconheceu os próprios olhos, pois o rosto estava perdido
em meio à sujeira. Ele podia até sentir os grilhões em seus
pulsos. O prisioneiro era tratado com muita hostilidade e
foi amarrado a uma árvore enquanto seus algozes se
dirigiam para a corrente para participar do ritual.
A cantoria continuou por incontáveis minutos. Com
o passar do tempo a fogueira não parecia dar sinais de
diminuição, o fogo se mantinha vivo e ardendo. Dave viu
uma chance de se libertar a si mesmo, mas hesitou assim
que percebeu que a cantoria parou. Silêncio total, todas as
atenções se voltaram para o homem preso à árvore. Três
indivíduos se destacaram na formação. Um deles, o mais
alto com ornamentos em suas vestes, parecia ser o líder dos
demais. Mandou que os outros dois soltassem o prisioneiro
da árvore. O líder ordenou que lhe trouxessem uma ânfora,
da qual ele arrancou a tampa e despejou o conteúdo sobre
aquele pobre acorrentado.

151
Litros de óleo banharam o corpo do condenado. Do
topo da árvore desceu uma corrente com um gancho na
ponta que foi preso aos grilhões. Ele foi içado de forma lenta
até um galho onde outro membro com os mesmos robes
escuros o aguardava. Lá embaixo o líder começou a bater
palmas, ritmadas e lentas, todos começaram a bater palmas
de forma sincronizada, o ritmo ia acelerando
vagarosamente, o tambor voltou a tocar. Lá de baixo Dave
via medo no olhar do prisioneiro, ou desespero, não soube
definir.
Quando as palmas e o tambor estavam em ritmos
alucinantes, o homem foi empurrado do topo da árvore. A
corrente que lhe prendia os pulsos se esticou e com um
movimento pendular passou por cima da fogueira por
várias vezes, a cada movimento os homens gritavam e
erguiam as mãos. Dave tentou fechar os olhos para não
presenciar aquele sofrimento, ao fechá-los via através dos
olhos de seu “clone”. Podia ver as pessoas gritando abaixo
de si e sentir o medo a cada aproximação da fogueira.
O óleo intensificava a dor, o prisioneiro berrava em
agonia. Os pelos do corpo foram os primeiros a serem
consumidos, logo em seguida foi a ponta dos dedos do pé.
Dave via bolhas se formando sobre o próprio corpo,
começou a gritar, pois sentia as mesmas dores, rolou pelo
chão na tentativa de afastar o calor que sentia.
Em meio a toda a balbúrdia, todos olhavam para
cima. Dave viu as bolhas de sua pele desaparecendo e a
vermelhidão dando lugar à carne viva. Ele podia ver por

152
todo o seu corpo e o sangue borbulhando, fervendo e
evaporando antes de escorrer. Já não conseguia mais se
mover enquanto via o pêndulo balançando cada vez mais
lento, até parar sobre a fogueira. O prisioneiro urrava e
tremia de dor sobre a fogueira, o vermelho deu lugar à carne
negra queimada, a corrente que o prendia já estava
iluminada e incandescente, os elos já quase se rompendo.
Quando o galho cedeu, uma balista arremessou uma
lança que perfurou o prisioneiro no peito ainda no ar, a
corrente arrebentou, a lança cravou o pobre homem no
tronco da árvore oposta. Dave sentiu seu pulmão sendo
perfurado, sua garganta encheu-se de sangue, começou a
tossir e antes de fechar os olhos conseguiu ver a si mesmo
empalado no topo da árvore. As pálpebras já não existiam
mais, o rosto era uma mistura de caveira com carne
queimada e pelos de barba. Sem uma das pernas com
diversas partes chamuscadas, os ossos à mostra estavam
completamente carbonizados. Um olhar vazio demonstrava
que a luz deixou aqueles olhos, e o mundo se apagou.
— Ahh!! — Dave deu um berro, e acordou no chão da
sala, deitado em uma poça de suor, ofegante e com sede.
Sentia uma forte queimação nas pontas dos dedos e no
nariz, sua pele estava sensível, mal podia se tocar sem sentir
dor, estava com febre alta. Agradeceu fervorosamente por
ser apenas um pesadelo.
No balcão da cozinha havia um bilhete de papel
preto, escrito em caligrafia desconhecida: “O que acontece
com eles, acontecerá com você, esteja preparado para fazer

153
sacrifícios”. O bilhete não estava assinado, e nem precisava
disso para Dave saber quem escreveu. Foi em direção ao
quarto e adormeceu antes que sua cabeça tocasse o
travesseiro.

154
31

Na manhã seguinte, Dave acordou alguns segundos


antes de seu relógio despertar. Desligou-o no primeiro bipe.
O quarto ainda estava imundo de terra, com um cheiro de
mofo e adubo nauseante. Depois do pesadelo que teve,
estava inseguro de mandar um de seus “eus” para o trabalho
enquanto ficava para limpar aquela bagunça. Medo de que
se algo acontecesse com ele isso refletisse em seu corpo.
Mesmo que ele fosse cuidadoso, faltar ao trabalho não era
um motivo forte o bastante para se arriscar.
“Como passou a noite, meu amor?”
“Bem, eu acho”, respondia Dave mentalmente para
ninguém.
O fim de semana estava se aproximando, a limpeza
podia esperar, e ele não se importaria de assistir televisão
até mais tarde e dormir no sofá mesmo. Dave se arrumou
depois do banho e foi para o trabalho de bicicleta. Ao chegar
tudo parecia atípico, Marisa navegava na internet com uma
cara de tédio monstruoso. O ferro de Hiro não foi aquecido
naquela manhã e pelo visto nem seria.
A máquina de lavar batia com uma única peça de
roupa lá dentro. Dave notou o tecido verde girando, em
meio à espuma pela janela circular.
— Bom dia! — Hiro estava com os fones de ouvido
mexendo no celular e não respondeu. Marisa disse:

155
— Bom dia, Dave, o dia tá meio parado hoje, a gente
só teve um pedido e parece que vai ser o único hoje. Hiro
liga o ferro que a máquina já tá centrifugando, Hiro, HIRO!
— gritou.
Dave cutucou o braço do amigo, para que ouvisse
Marisa.
— Dave, melhor você esperar até mais tarde para
fazer a entrega pode aparecer mais alguma coisa.
— Tranquilo, eu espero.
— Não vale a pena sair só por conta de uma peça de
roupa.
A máquina de lavar parou de bater. Hiro levou um
amontoado de roupas num tom verde-limão para a
secadora, enquanto ele aguardava o ferro aquecer Dave se
aproximou de Marisa.
— Marisa, avisa pro Roberto que eu vou dar uma
volta, qualquer coisa que precisar me liga no celular. —
Dave anotou o número nas costas de uma das folhas de
pedido e saiu para pedalar.
Andar de bicicleta sempre lhe fez bem. Longas
pedaladas faziam Dave pensar, refletir e chegar a
conclusões que jamais chegaria parado. Pegou a bicicleta e
se desafiou a chegar em menos de dez minutos até a praça
principal da cidade. Acelerou por entre os carros, cortando
o trânsito, furando sinais, sendo xingado por motoristas e
pedestres, arriscando a vida, por nada dessa vez. Como era
bom recobrar aquela sensação, era como matar a saudade
de momentos de adrenalina.

156
Chegando à praça, Dave apoiou a bicicleta num
banco e comprou um refrigerante em uma padaria próxima.
Em seu bolso, apenas uma moeda de cinquenta centavos,
era fácil fazê-los virar o preço da bebida. Sentado no banco
ele comia e refletia sobre todas as loucuras que tinha feito
quando vendia cachorro-quente na praia, os dos sonhos dos
últimos dias, da perda que teve, das vozes que ouvia. De lá
via uma idosa alimentando os pombos com pipoca.
“Te amo muito, meu bem.”
Já ignorando as vozes, só se preocupava em ter
alguns segundos de paz, ouvindo os pássaros vendo os
pombos voando com uma criança que corria. A praça estava
quase vazia, devido ao horário.
O celular de Dave tocou:
— Oi, Dave! É a Marisa.
— Pois não?
— Tem uma entrega aqui, melhor você vir, o Hiro tá
terminando de passar.
— Claro! Tô indo agora!
Dave terminou de engolir o que restava do
refrigerante, montou na bicicleta e pedalou de volta para a
lavanderia, foi fechado por um táxi e por pouco não caiu no
asfalto novamente. Chegou à lavanderia pelos fundos e, ao
entrar, viu todos inertes da mesma forma, curtindo uma
monotonia nauseante. Sobre o balcão havia um embrulho
em plástico transparente fosco com roupas verdes limão em
seu interior, junto a um bilhete com o endereço da entrega.

157
Roberto estava atrás do balcão de braços cruzados,
com cara de preocupado.
— Oh meu peixe, que bom que você chegou, entra e
tranca a porta. Pessoal, tenho algumas notícias para dar
para vocês. É o seguinte: hoje o nosso movimento foi muito
baixo, tudo o que tivemos foi isso. — Apontou para o pacote
sob o balcão. — Eu sei que não é culpa de vocês, mas, o preço
desse serviço não cobre nem a água que foi gasta na
lavadora, e eu lamento dizer. — Fez uma pausa e respirou
fundo. — Se as coisas não melhorarem eu vou ter que
atrasar o pagamento de vocês, infelizmente, mas estamos
torcendo para que tudo dê certo.
Virando-se e subindo as escadas Roberto voltou ao
seu escritório, deixando para trás um clima desconfortável.
Hiro, Marisa e Dave se entreolharam procurando algum
conforto nos olhos um do outro, Marisa quebrou o silêncio:
— Dave, tá aqui o endereço, fica na 4 com a Avenida
56, você vai achar fácil. Ele ficou de pagar na entrega, então
você vai ter que receber. O recibo está junto do pacote.
— Ok.
— Cuidado com essa peça, é um dos nossos melhores
clientes. Não pode amarrotar de jeito nenhum.
Dave releu algumas vezes, até se situar por onde
tinha que ir. Foi até o armário, pegou o capacete e as chaves
da moto, acomodou, cuidadosamente, o embrulho no baú e
seguiu viagem.

158
32

Dave estava parado no semáforo se perguntando por


que não veio de bicicleta. Ele até pensou em avançar por
entre os carros como os outros motociclistas, mas com o
baú na garupa, era impossível.
“Bom dia, meu amor, como passou a noite?”
Era frustrante não poder sentir o vento no rosto.
Naquela velocidade, jamais teria a sensação. Aquele
capacete atrapalhava até a respiração. Mas sua agonia não
duraria muito, o endereço estava próximo, mais algumas
quadras adiante selariam o fim da tortura.
Parado na esquina da rua 4 com a 56, Dave retirou o
papel do bolso e conferiu o endereço. Tinha certeza que
estava no lugar certo, afinal conhecia essa cidade muito
bem. Tirou do baú o pacote com as roupas, pendurou seu
crachá na camiseta e foi em direção à porta segurando pelo
gancho do cabide.
Era um prédio velho, com a pintura descascando,
num tom ocre e marrom. Dave tinha certeza de já passara
muitas vezes pela rua 4 e nunca tinha visto esse edifício. A
entrada ficava no alto de cinco degraus sem corrimão. No
topo da escada, uma porta de vidro com as inscrições:
“Antiguidades Wins” em letras douradas e descascadas.
Atrás do vidro havia uma persiana cobrindo-o até a metade,
o que impedia Dave de visualizar seu interior. Abaixo das
letras uma placa pendurada com os dizeres “Aberto”.

159
Quando Dave resolveu bater na porta, notou um
botão dourado na lateral, que parecia ser uma campainha.
Seu dedo afundou até quase a metade e não se ouviu
nenhum som, foi quando a maçaneta girou e a porta se
abriu um pouco, rangendo muito. Dave adentrou a loja com
o pacote na mão:
— Olá?
A porta parecia ter sido aberta sozinha, e se fechou
novamente atrás de Dave quebrando o silêncio. O cheiro
daquele lugar era nauseante, uma mistura de mofo velho
com umidade, tossiu algumas vezes e cobriu o nariz com as
costas da mão. Estava meio escuro lá dentro, mas conseguiu
identificar alguns objetos espalhados por pilhas de coisas
pelo recinto.
Cada passo erguia poeira que o fazia tossir
novamente. Havia poltronas, cômodas, estantes vazias e
estantes de livros, balcões de vidro com coisas que Dave
jamais saberia definir, estátuas de diversas formas, animais
empalhados, vitrolas velhas, vinis de bandas desconhecidas
ou velhas demais para que Dave as conhecesse, quadros
antigos pendurados nas paredes, bonecas de madeira,
carrinhos de bebê de outro século, de relance teve a
impressão de ter visto um sarcófago egípcio, mas estava
longe e escuro demais para ter certeza.
O chão de madeira rangia a cada passo, tudo o que
queria era entregar a roupa limpa, receber o dinheiro e ir
embora dali quanto antes, a sensação não era das melhores,
se sentia observado por toda aquela velharia.

160
— Tem alguém aí? Tenho uma entrega para... — Dave
notou que o espaço para o nome do cliente estava em
branco.
— Uma entrega para quem?
Dave escutou uma voz ecoando pelo imenso salão,
vinda de algum canto em meio aquele amontoado de coisas.
A madeira rangia com os passos de alguém, Dave engoliu
em seco. De trás de uma pilha empoeirada de coisas, um
homem muito bem-vestido de meia-idade usava um terno
sob medida muito bem cortado, impecavelmente passado,
num tom de verde muito chamativo. No pescoço uma
gravata-borboleta em vermelho-sangue muito vivo, nas
mãos uma bengala preta, na cabeça um chapéu coco no
mesmo tom do terno verde-limão. Aquele homem bem
alinhado não tinha como estar limpo em meio àquela
poeira, pensou Dave.
— Pra quem é a sua entrega, meu jovem?
— E... er... — Dave gaguejava, não sabia o que dizer,
perante a presença daquele homem. — Tá em branco o...
nome aqui.
O homem estava atrás de um balcão de vidro e nas
vitrines repousavam diversas caixinhas, com besouros
espetados e diversos insetos que Dave desconhecia.
— AHH! Claro! — disse, surpreso. — Você é da Top
Brilho, não é?
Dave assentiu com a cabeça
— Vem comigo, Dave...

161
Ele seguiu o homem se perguntando como ele sabia
seu nome:
— Como você sabe meu nome? — Encorajou-se.
— Está no seu crachá. — Dave abaixou a cabeça para
perceber o óbvio. — Wins não precisa ler para saber quem
você é.
— Como ass...?
— Vou colocar uma música — interrompeu.
O homem de terno foi em direção ao fim de um
corredor, à medida que ele caminhava as luzes se acendiam.
Dave notou que se tratava de uma jukebox muito antiga. Ele
viu o homem apertar alguns botões e dentro do vidro um
braço mecânico selecionou um pequeno disco de vinil e o
colocou sob a agulha. Dave não conhecia a música.
— Wins tem várias dessas máquinas, algumas
entulhadas por aí e outras lá no fundo, são muito boas,
talvez você se interesse! — Dave acenou negativamente com
a cabeça. — Não? Vamos aos negócios então, a propósito,
meu nome é Wins. — E estendeu-lhe a mão.
Dave o cumprimentou com um pouco de receio, teve
uma sensação estranha ao segurar a mão de Wins, nada de
ruim, mas algo diferente. Wins olhou nos olhos de Dave
franzindo um pouco as sobrancelhas como se olhasse para
o fundo de sua alma. Ele foi para trás de um balcão de vidro,
Dave colocou o pacote sob o balcão. Wins o abriu e conferiu
o seu conteúdo.

162
— Incrível! Vocês fazem um trabalho magnífico, está
impecável, eu não confiaria em ninguém além do Roberto
para cuidar dos meus ternos, quanto eu te devo?
Dave resgatou o recibo do bolso conferiu e disse:
— Ficou 46.
Wins tirou do bolso interno do paletó uma nota de
50. “Droga”, pensou Dave. Marisa não lhe havia dado
dinheiro para troco. Procurou nos bolsos pensando em algo
que pudesse dizer ou fazer. Encontrou em seu bolso
algumas moedas. Era fácil resolver o problema, bastava ter
quatro delas, e assim Dave entregou quatro moedas a Wins
em um único e natural movimento como se elas já
estivessem em seu bolso.
— Nossa que interessante, como você fez isso? Você
não tinha só uma moeda aí no bolso?
— Não eu... tinha quatro. — Tentou disfarçar.
— Se enganou, se pensa que pode me enganar. —
Wins deu um sorriso de canto de boca.
— Eu não sei do que você está falando.
— Eu não pretendo insistir. Há tempos que Wins não
via habilidades como essa.
Dave já estava ficando nervoso, ele decidira não usar
mais suas habilidades depois do incidente com os
cachorros-quentes a não ser que fosse necessário, como
neste caso. Dave pensou em sair dali antes que a situação se
tornasse mais constrangedora.

163
— Sr. Wins, assine aqui, por favor. — Wins tirou do
bolso interno uma caneta dourada e assinou. — Tá aqui o
recibo, eu já vou...
— Calma aí, rapaz, você não está se lembrando de
mim?
Aquele rosto era familiar, mas Dave não conseguia se
lembrar de onde já o tinha visto.
— Eu não lembro, senhor.
— Eu te entreguei seu celular no dia do seu acidente.
— Verdade! Sabia que conhecia esse verde de algum
lugar — fingiu.
— O que quer dizer? — Wins parecia incomodado.
— Não, nada. Agradeço pelo que você fez. — E tentou
mudar de assunto.
— Wins não fez quase nada. O que mais me
surpreende é como você se curou tão rápido — disse
olhando fixamente para Dave. — Você é especial, meu
jovem.
Dave mostrava no rosto uma expressão de espanto.
Nem Maritza sabia que ele se curou tão rápido, como aquele
cliente estranho poderia? A música que tocava na jukebox
mudou para uma ópera clássica.
— Eu não sou a primeira pessoa que adivinha coisas
sobre você, não é? — Wins calou-se por alguns instantes,
como se vasculhasse seus arquivos mentais. — Quando você
ligou na floricultura a mulher que atendeu sabia seu nome,
não é? — perguntou voltando a fazer contato visual.

164
A cara de Dave era uma mistura de diversos
sentimentos, não sabia o que dizer, ou o que fazer. Ele
estava incomodado com aquela maneira de falar, isso
confundia a cabeça de Dave. Ora falava em primeira pessoa,
ora em terceira e isso era irritante.
— Você parece nervoso.
— Não, não — disse Dave, suando frio.
— Bom... Podemos chegar a um consenso, não é? Nós
nos encontramos hoje por algum motivo, não foi por acaso.
Talvez algo nesse encontro possa ser útil para você, não
notou algo que possa ser útil para você?
Dave balançou a cabeça negativamente, enrugando
os lábios, e caminhando de costas em direção à saída.
— Volte aqui ou outro dia, quando perceber o que
realmente tem de fazer aqui. Mas venha você, não mande
um dos seus... dos seus... Como você os chama?
Agora Dave estava realmente assustado, sem hesitar
saiu correndo em direção à porta:
— Tenha um bom dia, senhor. A Top Brilho agradece
sua preferência — disse enquanto corria.

165
33

Dave chegou até a lavanderia um pouco ofegante,


entregou o dinheiro a Marisa, bateu seu ponto e foi
destrancar a bicicleta:
— Tá tudo bem com você, Dave? — Marisa estava
saindo com a bolsa no braço.
Dave se assustou e deixou cair a chave com o
cadeado.
— Tá, sim, só tô meio cansado.
— Você tá suando, tá tudo bem mesmo?
— Tô bem, não preocupa. Tá tudo ótimo — disse,
montando na bicicleta e pedalando para longe. Dave estava
tão imerso em seus pensamentos que resolveu fazer seu
caminho pela ciclovia. Poderia chegar em casa bem mais
rápido pela rua, mas estaria tão desconcentrado do trânsito
que isso seria perigoso, mais que o normal.
No meio do caminho Dave decidiu ir ao shopping,
comer alguma porcaria que o fizesse esquecer ou pelo
menos entender alguma coisa do que aconteceu. Dave
pediu um balde de frango frito com duas tigelas de molho
barbecue e um copo de refrigerante de 900 ml. Assim que o
pedido chegou, foi como um alívio. A gordura saturada e o
sódio corriam por suas veias, como uma droga, aquele era o
prazer que lhe aproximava da morte.
“...mas e o coração dele?”

166
Essa era nova. Dave ainda não ouvira essa frase em
sua cabeça, enfim. Nesse momento estava concentrado em
saber como um maluco de terno verde-limão sabia sobre
aspectos da sua vida que ninguém, absolutamente ninguém
sabia? Não importava muito, mas aquele frango empanado
estava maravilhoso, cada mordida era um “dane-se” para
seus problemas e para suas dúvidas. Dave arrancou a tampa
do copo de refrigerante arremessou o canudo longe e deu
goladas fartas:
— Bom esse frango, né, não?
Dave abaixou o copo para ver quem havia dito
aquilo, engasgou e cuspiu o refrigerante:
— Ei, calma aí! Eu acabei de mandar lavar esse terno
cara, qual é a sua?
Na cadeira em frente estava Wins. Com um balde de
frango igual ao de Dave com os lábios um pouco sujos de
molho:
— O que você tá fazendo aqui? O que você quer
comigo? Como você veio parar aqui?
— Calma, meu jovem, uma pergunta de cada vez.
— Tá bom! — Dave respirou fundo. — O que você tá
fazendo aqui?
— O mesmo que você: comendo um delicioso balde
de frango frito.
— Você tá querendo alguma coisa comigo?
— Wins, só tenho uma dúvida: como você consegue
comer um balde de frango tão gostoso como esse ouvindo
essa música?

167
— Hein? — Dave estava muito confuso.
— Foi uma pergunta simples — disse Wins. — A
música desse shopping é uma porcaria, nunca percebeu?
Dave pensou um pouco antes de responder alguma
coisa.
— Não! Não tô nem aí pra música. Que papo é esse,
cara?
— Você devia escutar músicas de vinil. Não existe
nada como os sons das antigas, a qualidade nem se
compara. — Deu uma mordida no frango com um sorriso.
— Música analógica é tudo.
— Ah, qual é, cara? Nunca peguei um vinil na minha
vida. — Dave estava gesticulando com uma coxinha na mão,
tentando encontrar algum argumento que o tirasse daquela
situação. Sem querer esbarrou no copo de refrigerante,
espalhando o líquido na mesa e derrubando o copo no chão.
Dave abaixou-se para pegar o copo do chão, e ao
retomar a mesa, Wins não estava mais sentado à sua frente.
Olhou em volta... Nada.

168
34

A confusão mental de Dave não podia ser explicada


por palavras. No caminho para casa uma dor de cabeça
latente o acometeu fazendo-o cair da bicicleta. Sentou-se na
sarjeta e deu um berro com as duas mãos na cabeça,
afastando as pessoas que passavam pela calçada. Ele
levantou e foi em direção à farmácia, comprou o primeiro
analgésico que encontrou, pegou um copo de água e sorveu
o líquido e o comprimido, em seguida sentou-se no banco
público que encontrou.
A dor não melhorou nenhum pouco, era melhor
deitar-se em sua cama do que permanecer ali largado
naquele banco, decidiu ir à para casa empurrando a
bicicleta. A dor lhe castigava fazendo lágrimas escorrerem
dos olhos,
“Que saudade eu tenho de você, meu amor.”
Enxugando as lágrimas nas costas da mão, Dave
entrou em seu apartamento e foi direto para o banheiro,
fechou a porta e olhou para o espelho. Seus olhos pareciam
fundos, meio escuros nas laterais, com as escleras quase
totalmente amareladas. A dor parecia algo que perfuraria
seu crânio, se movimentava pela sua cabeça, um zumbido
fraco, mas irritante, era ouvido internamente. Dave
começou a ouvir um barulho próximo a sua orelha e ao virar
o rosto notou uma mancha escura em seu ouvido interno,
um líquido espesso saía dali. Ele abriu o armário do espelho

169
do banheiro e por alguma razão havia ali dentro no lugar
das escovas uma pinça cirúrgica.
Sem hesitar Dave pegou a pinça e enfiou na orelha.
Começou a fazer alguns movimentos e sentiu o metal tocar
alguma coisa, algo escorregadio que escapava quando Dave
pinçava. Conseguiu segurar, e lentamente moveu a pinça
para fora. A dor aumentava à medida que Dave distanciava
a pinça de sua orelha. Ele sentiu o som de movimento
dentro de sua cabeça, parecia algo muito maior que o
buraco do ouvido.
Dave continuou puxando, ele começou a gritar e
pegou a pinça com as duas mãos. Puxou com toda a força,
se desequilibrou e caiu no chão. A dor começou a diminuir,
sangue fluiu para fora de sua orelha formando uma
pequena poça em torno de sua cabeça. Levantou-se um
pouco ofegante e voltou a olhar para o espelho e a partir da
sua orelha havia uma linha de sangue que escorria pelo seu
ombro.
Dave começou a escutar um zumbido, ao olhar para
o chão havia uma vespa presa na pinça. Uma vespa bem
maior que o normal, muito irritada zumbia freneticamente.
Dave pegou a pinça e olhou mais de perto. O animal estava
ensanguentado, esperneava e brandia as asas. Ela investia
seu ferrão na tentativa de perfurar o que estivesse em seu
caminho. A vespa era verde, num tom esmeralda com um
único ponto vermelho no meio do dorso, tão vermelho que
se destacava em meio às gotas de sangue. O inseto zumbia

170
no ritmo de uma música que para Dave soava familiar, mas
não conseguiu se lembrar de qual era.
Sem conseguir entender muito bem o que estava
acontecendo, Dave jogou o bicho no chão e pisou em cima
dele repetidas vezes. Nem queria pensar no que aconteceria
se ele fosse picado por aquilo. Ele piscou os olhos com força,
e já estava aliviado. Saindo do banheiro, ele escorregou em
uma poça de sangue que estava no chão e caiu batendo a
cabeça na pia.

171
35

Dave acordou de madrugada, por volta das 4 horas


da manhã, suado e ofegante com seu pesadelo. Sua cabeça
doía um pouco, e levando a mão a têmpora sentiu sua veia
pulsar muito. Ele aprendeu a não duvidar de certos sonhos,
correu para o banheiro, ele estava intacto, a pia não estava
quebrada, não havia pinça, não havia vespa, não havia
sangue... Só havia dor de cabeça. A dor parecia vir da lateral
perto do ouvido. Dave voltou para cama e tentou dormir.
O despertador tocou. Aquelas horas pareceram
segundos, da madrugada até a hora de levantar. Dave foi
para a lavanderia, e como era próprio de seu
comportamento, pedalar era refletir. No caminho notou um
detalhe ao qual não tinha se atentado. Em seu pesadelo, a
vespa era de um tom de verde muito familiar, exatamente
igual ao terno daquele cliente da loja de antiguidades.
Dave chegou à lavanderia e nem se deu o trabalho de
entrar. Deixou a si mesmo para o trabalho e foi em direção
à loja de antiguidades para conversar com Wins. Dave
prendeu a bicicleta num poste perto da esquina da rua 4
com a 56. O sino da porta soou quando ele entrou na loja,
aquele mesmo ar escuro e empoeirado ainda permanecia
naquele recinto.
Ao entrar, Dave encontrou Wins sentado atrás do
balcão com óculos em formato de meia-lua de hastes bem
finas. Sob a luz de uma luminária de mesa e uma lupa ele

172
espetava um besouro dissecado em um pedaço de isopor
com um alfinete. Um trabalho minucioso, feito com a
delicadeza de um mestre.
— Oi, Dave. Eu já estava te esperando.
— Oi! Hein?... Como assim?
— Wins sabia que cedo ou tarde você viria aqui. Deve
estar cheio de dúvidas. E, enfim, você apareceu… você
mesmo, o original. Você deixou “alguém” na lavanderia,
não foi?
Dave nada respondeu. Mas entregou a resposta com
a cara.
Wins olhou para Dave pela primeira vez por cima das
lentes dos óculos, bem em direção ao peito dele.
— Sente muita saudade dela?
Os olhos de Dave se apertaram e quase esboçaram
algumas lágrimas.
— É, eu imagino como deve ser difícil. É por isso que
existem tantos de você por aí. De alguma forma,
inconscientemente, você quer compensar a ausência dela,
mas já te disseram isso, não é? Você pelo menos destruiu a
flor?
Antes que Dave pudesse responder, Wins o olhava
fixamente apertando os olhos.
— Você já deve saber.
— Eu sei, mas não gosto de parecer alguém que sabe
das coisas.
— Acho que não preciso nem responder às suas
perguntas.

173
— Tem toda razão, meu jovem.
— Eu vim aqui na realidade por outros motivos, mas
pelo visto você pode me responder bem mais do que eu
esperava.
— Talvez eu possa. Comece... — Wins se ateve ao
besouro que limpava cuidadosamente com uma pinça —
...do princípio, e quando chegar ao fim... Pare!
— Eu tive um sonho ontem, um pesadelo. Uma vespa
estava dentro da minha orelha, ela era esverdeada,
brilhante igual à do seu terno. Ela tinha um ponto vermelho
no dorso, bem parecido com a cor da sua gravata. Eu senti
uma dor absurda como nunca havia sentido antes. E tinha
uma música também, ela zumbia num ritmo familiar.
— É... — hesitou. — Não foi sonho, não. — disse Wins,
girando o inseto contra a luz.
— Oi? — Dave franziu o cenho.
— Eu disse que não foi um sonho. Por acaso essa
vespa se parecia com alguma dessas?
Wins puxou uma gaveta, e algo que parecia uma
placa de mostruário coberto por um vidro. Abaixo do vidro,
dezenas de vespas iguais a que amedrontara Dave na noite
anterior. Todas parecidas com a que saiu de sua orelha, a
não ser por um pequeno detalhe: nenhuma delas estava
com o ponto vermelho no dorso.
— Falta uma coisa. No meu “sonho” elas tinham um
ponto vermelho nas costas.
— Você é muito observador, meu jovem, mas esses
são meros detalhes. — Wins tomou nas mãos o besouro sob

174
a lupa. Fechando-as uma sob a outra, como uma concha,
aproximou-as dos lábios e sussurrou algumas palavras que
Dave não conseguiu escutar. Um brilho fraco surgiu por
entre as frestas dos dedos de Wins, segundos depois o
brilho se apagou.
Wins abriu as mãos e lá estava uma vespa como a do
pesadelo de Dave, com ponto vermelho nas costas. Wins
ergueu a palma da mão e ela voou até sair pela janela. Dave
estava boquiaberto, mas tranquilo, ultimamente era difícil
algo lhe surpreender. Como ele fez o besouro se
transformar, ou pior, ganhar vida. As dúvidas que trouxe de
casa, agora se somavam às que acabam de surgir.
— Você vai me explicar o que são essas coisas, e por
que colocou uma delas na minha cabeça. — Foi a primeira
vez que Dave teve coragem de enfrentar Wins.
— Dave, meu jovem. Tenho tanto para lhe falar. Você
é um caso diferente dos demais.
— Pera aí! Então quer dizer que você anda colocando
essas vespas no ouvido das pessoas por aí? E eu fui só mais
um?!
— Não, eu não coloco nada no ouvido das pessoas, eu
acabei de dizer que você foi um caso especial. Dave, a vespa
que você matou, eu não a fiz igual para os outros, ela era
uma pequena larva quando eu a dei para você.
— Quando você fez isso?
— No dia do seu acidente. Você me reconheceu, não
foi? Foi naquele dia.
— Tá, mas... por que você fez isso ou faz isso?

175
Wins se levantou, passou a mão por cima do ombro
de Dave e se puseram a caminhar pela loja.
— Wins vai te explicar. Tudo o que você vê nessa loja
foi... de certa forma criado por mim. — Deu uma pausa
esperando alguma reação de Dave. Nada. — Entretanto, eu
não movi um dedo para fazer nada disso, mas pode-se dizer
que eu dei uma ajudinha aos inventores.
— Acho que saquei — falou, ainda confuso.
— Eu dedico a minha vida para ajudar as pessoas, eu
as ajudo a mudar de vida.
Dave e Wins chegaram até onde uma jukebox
brilhava seus neons e Wins deu o play em uma música
qualquer. Dave a reconheceu na hora.
— Era essa música que a vespa zumbia no meu sonho
quando eu a matei.
— Não foi sonho eu já te disse! Não estava me
ouvindo? — Wins levantou apenas uma sobrancelha.
— Desculpa.
— Dentro daquela vespa havia uma ideia que
desenvolvi especialmente para você.
— Uma ideia?
— Sim, é o que eu faço. Dou ideias para as pessoas.
— A troco de quê?
— É um serviço ao qual ninguém me paga. — Tocou
a aba do chapéu coco. — Mas existem remunerações
maiores do que dinheiro.
— E... do que se tratava, essa ideia?
— Vamos descobrir?

176
Wins encaminhou Dave de volta para o balcão, onde
abriu a gaveta e pegou o mostruário de vespas.
— Por que essas não têm o ponto vermelho?
— Porque são meras cascas ocas. Minhas vespas são
apenas as inoculadoras, seringas que carregam minhas
ideias, receptáculos de um mundo de possibili...
— Eu já entendi.
Wins calou-se sem graça. Circulou o indicador por
cima dos insetos, até se decidir por um deles. Pegando uma
das vespas, Wins a fechou entre suas mãos e sussurrou algo
O mesmo brilho dourado foi visto na mão dele. Abrindo a
palma da mão a vespa ganhara vida e começava a bater as
asas pairando no ar acima das cabeças dos dois.
— Está pronto, meu rapaz?
— Vai doer?
Wins deu um sorriso de canto de boca, e estendeu a
mão fazendo com que a vespa voasse em direção a Dave. Ele
também estendeu o braço enquanto o inseto pousava nas
costas de sua mão. A vespa caminhou pelo dorso da mão de
Dave, ergueu o abdômen, brandiu o ferrão e o cravou na
pele, fazendo-o contrair os dedos. Um brilho amarelado
caminhou por seus braços iluminando suas veias. Chegou
até o pescoço e tomou conta de seus olhos, fazendo
desaparecer suas pupilas.
— UAU! Que ideia genial! Como não pensei nisso
antes? — disse Dave, com os olhos brilhando em dourado.

177
36

Dave estava disposto a executar a nova ideia que


recebeu. Seria necessário dinheiro, tempo, investidores
talvez, nenhum deles seria problema. Saindo da loja de
antiguidades de Wins, Dave foi diretamente para a Top
Brilho falar com Roberto.
***
— Roberto, tenho um assunto meio sério para falar
contigo. Será que a gente pode ir lá para o escritório?
Olhando com uma cara meio desconfiada e, ao
mesmo tempo, com um pouco de preocupação, Roberto
concordou:
— Caramba! Já voltou? Meu peixe, tu é rápido
mesmo. Claro, vamos lá. — Provavelmente seu outro eu
tinha saído para uma entrega. Subiram as escadas, Roberto
destrancou o escritório e entraram:
— Então, meu peixe, no que eu posso te ajudar? —
Sentou-se atrás da mesa.
— Roberto é o seguinte, a gente já é amigo há muito
tempo. E eu tô precisando de dinheiro.
Roberto deu uma gargalhada:
— Meu peixe, todos estamos precisando, se eu desse
dinheiro para todos os que me pedem, eu estaria pobre. Se
eu tivesse o tanto de dinheiro que me pedem, eu estaria
muito rico.

178
— Você não entendeu, eu tive uma ideia genial, ou
melhor, recebi uma ideia genial. Eu sei um jeito de você
voltar a fazer entregas e revolucionar o mercado de entrega
de correspondências.
— Como?
***
Lá embaixo...
— O que será que o Dave tem de tão importante para
falar com o Roberto?
— Sei não, Marisa! Deixa de ser curiosa — respondeu
Hiro com falta de paciência.
— Nossa, tem alguém de mau humor aqui.
— Desculpa — falou envergonhado. — O que você vai
fazer mais tarde? — disse do nada.
— Vou trabalhar, Hiro — Marisa virou-se de costas.
— Em casa?
— Em qualquer lugar, longe de você. Seu sem
educação.
Nesse momento, Dave vinha descendo as escadas,
gritando e bufando:
— Eu não preciso trabalhar mais aqui nessa merda!
— Qual é a sua, meu peixe? Você tá me achando com
cara de banco? Essa loucura aí que você falou nunca vai dar
certo, abre teu olho.
— Vá pro inferno, tô indo, falou para você! — E bateu
a porta.
— O que aconteceu, Roberto? — perguntou Marisa.

179
— Não sei, esse moleque é maluco. Ele me pediu
dinheiro para investir num sonho doido sem sentido fora de
base, Deus me livre.
Dave saiu da lavanderia tão nervoso que em seu
pescoço a jugular pulsava. Ao menos iria pedalando para
casa, isso poderia acalmá-lo. Chegando ao apartamento:
— Boa tarde, meu filho, você aceita...
— NÃO! — berrou Dave e continuou subindo e
batendo os pés.
Dave entrou em seu apartamento e após trancar a
porta arremessou a chave contra a parede, de tanta raiva.
“Amor, tá tudo bem com você? Eu tô aqui tá!?”
Ele sentou-se no sofá, e se desanimou um pouco com
a ideia que tinha recebido. Se não poderia nem contar com
a ajuda dos amigos, como poderia colocá-la em prática?
Sem Maritza e sem apoio, como dar segmento à sua ideia?
Dave recostou-se no sofá, e se pôs a pensar em um plano de
ação.
— Que ideia?
Dois dedos tocavam-lhe o ombro direito. Uma figura
conhecida estava ali atrás do sofá, de terno, luvas e óculos
pretos.
— Me conta aí — insistiu.
— Pera aí! Você é minha consciência. Você sabe qual
ideia.
— Não é assim, se fosse uma ideia espontânea as
coisas seriam diferentes, mas pelo visto ela não partiu de
você.

180
— Eu vou voltar a entregar correspondências, de
uma forma inovadora.
— Como?
— Não importa. Quando eu expliquei a dinâmica pro
Roberto, ele disse que eu era maluco e que não ia dar certo.
— Dave põe uma coisa na sua cabeça, quando as
pessoas disserem que você está maluco, significa que você
está no caminho certo. Lembre-se disso.

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37

— Me explica como vai funcionar isso — insistiu o


Consciente.
Dave inspirou profundamente.
— Você já foi a um bar, ou alguma coisa assim, onde
tem aquelas… Não, você nunca foi, né! Enfim, existe uma
jukebox que ela tem diversos discos de vinil de 45 rotações
que são um pouquinho menores.
— Hum... Prossiga — disse, tocando o queixo.
— A pessoa chega, coloca uma moeda e aperta um
botão com o nome da música que ela quer ouvir. Então a
máquina move um braço mecânico, pega o vinil com a
música escolhida e coloca embaixo da agulha pra tocar. É
assim que funciona.
— E o que isso tem a ver com entrega de
correspondências?
— A minha ideia é a seguinte: e se eu trocar os discos
por envelopes?
— Aí você vai ter uma máquina que toca envelopes,
certo? É isso?
— Nossa! Será que eu sou tão burro assim?
— Ei, vai com calma.
— No lugar dos nomes das músicas estaria o nome
dos destinatários. Basta clicar no próprio nome e o braço
mecânico vai separar as correspondências daquele
destinatário, entendeu?

182
— Mas mesmo assim. Jukebox pelo visto deve ser um
trambolho enorme e pesado. Como isso vai fazer entregas?
— Logicamente, ela vai ser alimentada pelos
entregadores. Eu penso em fazer essas máquinas e vendê-
las para grandes empresas ou prédios comerciais, onde elas
ficarão em locais estratégicos ou uma em cada andar ou na
portaria, algo assim. Vai funcionar mais ou menos como
uma caixa de correio, só que um pouco mais sofisticada,
entende?
— Bem interessante, mas como você vai fazer isso?
— Bom... eu vou ter que fazer algumas adaptações
físicas nas máquinas, talvez até tenha que instalar algum
software ou coisa parecida
— E por que você não fez isso ainda?
— Eu preciso de dinheiro, uma jukebox não é barata,
foi por isso que acabei brigando com Roberto.
— Você multiplica dinheiro, meu filho! Não seja
burro.
— Eu pensei nisso também, mas essa vai ser a última
das minhas opções.
— Bem... se eu apareci aqui pelo visto você não
queria ter brigado com o Roberto...
— Não queria mesmo.

183
38

No dia seguinte, Dave resolveu caminhar um pouco


para refrigerar seus pensamentos. Foi até uma praça onde
outrora comprara um cachorro-quente pela primeira vez.
Passou longos minutos admirando os prédios em volta,
antes de retomar a caminhada. Dave não soube controlar
seus pés e quando percebeu já estava a dois quarteirões da
loja de antiguidades do Wins, por que não discutir alguns
assuntos?
O sino da porta tocou e Wins veio recebê-lo.
— Oi, Dave, eu estava esperando você... Já veio para
comprar algumas jukeboxes?
— Não, eu não tenho o dinheiro suficiente ainda.
— Achei que isso não ia ser problema, não para
alguém como você.
— Eu não pretendo fazer daquela forma, isso já deu
alguns problemas para mim uma vez, quase deu na
verdade, melhor não.
— Então o que o traz aqui?
— Eu preciso de ajuda. Será que eu podia levar uma
de suas máquinas para fazer alguns testes? Eu tenho que
fazer um protótipo para tentar conseguir alguns
investimentos.
— Vamos fazer um acordo então...
— Você quer uma parcela dos lucros — interrompeu
Dave. — Eu sabia que isso ia acontecer. Lógico que você

184
sabia que eu ia voltar aqui, você parece ser o único que
vende essas máquinas na cidade. Por isso você me deu essa
“ideia” para vender essas velharias! Agora tudo faz sentido.
— Calma, Dave, não é nada disso. Você vai trazer
uma coisa para mim, e eu vou te dar sua primeira máquina
para você fazer todos os testes que quiser. Esse é o acordo.
— Você tem que me dizer o que é primeiro.
— Eu já te mostrei o que eu faço. Inclusive você já foi
uma das minhas “vítimas”, e eu tenho uma ideia especial e
para isso, preciso de um “envelope” especial — disse,
movimentando os dedos em forma de aspas.
— Entendi, você quer que eu cutuque um vespeiro e
traga vespas para você? É isso?
— Você está meio intransigente hoje, meu rapaz,
vamos aumentar um pouco o combinado. Se você me
trouxer o que eu quero, eu vou te dar a máquina, e te ensinar
como ganhar dinheiro que você precisa honestamente! Que
tal?
Dave estava se sentindo um pouco babaca, e meio
sem educação. Mas essa era uma oportunidade que não
poderia deixar passar por culpa de besteira. Sentia-se um
ogro na presença de toda a polidez de Wins.
— Tá bom, desculpa, o que você quer que eu te traga?
— É um inseto especial. Acho que você não vai ter
muita dificuldade em encontrar.
— Que inseto?
— Um besouro de ouro.
— De ouro mesmo?

185
“Se caso achasse qualquer coisa de ouro, seria muito
mais fácil comprar uma máquina”, pensou.
— Não é de ouro de verdade. — A decepção se
estampou na cara de Dave. — Ele é apenas naturalmente
dourado.
— E onde eu encontro?
— Já ouviu falar de glória-da-manhã?
— Sim, é uma planta. Com uma flor muito bonita.
— Esse é o alimento preferido do besouro de ouro.
Você pode se informar melhor pela internet. Ele também é
conhecido como Charidotellasexpunctata, a primeira
camada de sua carapaça é transparente, e a de baixo é
dourada.
— Ok, vou te trazer seu besouro e você me dá uma
jukebox!
— Combinado, meu rapaz.

186
39

Dave passou pela porta e no mesmo instante correu


em direção à praça onde iniciara sua caminhada. A
motivação de Dave não o permitia perder nenhum segundo.
A praça estava cheia de gente caminhando, andando de
bicicleta, empinando pipa, jogando bola na pequena quadra
de terra, ou mesmo sentada nos bancos vendo os filhos
brincando no parquinho de areia. Todos olhavam com um
ar de desconfiança para Dave, que, nesse momento, estava
deitado na grama, se arrastando à procura de um besouro.
Quem passava por ali e o via no chão pensava: “minha
nossa, essa cara não tá muito velho para rolar na grama?”
ou “deve tá drogado”.
Percebendo os olhares das pessoas, Dave disfarçava
e tentava não lhes dar atenção. Em sua mente havia uma
ideia fixa, e esses talvez fossem os primeiros sacrifícios para
que ela desse certo. Depois de tudo que vinha passando nos
últimos tempos, passar um pouco de vergonha não seria um
desafio. Dave encontrou dezenas de outros insetos, grilos,
joaninhas, formigas, cigarras, abelhas e até vespas, mas
nenhum besouro dourado. Voltou para casa, meio
decepcionado.
“Oi, meu amor!”
Algo estava errado, Dave conhecia a glória-da-
manhã, tinha certeza que era a planta certa. Talvez o
besouro fosse muito, muito raro. Certamente, se fosse fácil

187
de encontrar, Wins já o teria pegado, e também não era de
se esperar que encontrasse o bicho no primeiro dia de
caçada. Dave fez uma pesquisa na internet, e descobriu por
que a planta se chamava glória-da-manhã.
“A glória-da-manhã recebe esse nome pois floresce
logo nas primeiras horas do dia...” Se ela floresce pela
manhã, provavelmente é mais fácil encontrar o besouro
nesse horário. “Não é para isso que servem as flores, atrair
insetos?”, pensou. Estava decidido, amanhã seria o dia de
acordar cedo. Dave imprimiu uma folha com a foto do
besouro e da planta. Colocou o relógio para despertar ainda
de madrugada, deixou a folha ao lado da carteira e foi
dormir.
***
Semanas se passaram e a sorte de Dave não mudou
muito. Acordando todos os dias antes do sol nascer, suas
roupas já estavam sujas e puídas pelo contato com a terra,
seu cheiro não era dos mais agradáveis e sua barba já cobria
o queixo e parte do pescoço. Não se lembra bem, mas leu
em algum lugar que existia a possibilidade de besouros
dourados com hábitos noturnos. Isso fez com que Dave não
voltasse para casa.
Sentado em meio aos arbustos de glória-da-manhã,
algumas pessoas que caminhavam pelo parque lhe atiravam
moedas, e uma senhorinha chegou a abordá-lo:
— Meu filho, eu comprei isso aqui pra você!
— Muito obrigado. — Pegou a sacolinha de
supermercado. — O que é isso?

188
— É uma marmita, menino. Tem quanto tempo que
você não come?
— Não sei... — Dave olhava para os olhinhos
pequenos da senhorinha atrás das lentes daqueles óculos e
teve a impressão de conhecê-la.
— Você tá morando na rua, menino?
— Não! Eu tenho uma casa.
— Ah claro que tem! — disse a velhinha acariciando
a cabeça de Dave. — Se você quiser tem um quarto na minha
casa, meu filho.
— Não, minha senhora, eu não moro na rua... —
insistiu.
— O que você fez com aquele pedaço da bicicleta que
você comprou do meu neto?
— Eu não... — A memória de Dave lhe presenteou
com alívio em se lembrar de onde conhecia aquela
senhorinha. — Ah sim! Eu estou usando ele.
Nesse mesmo momento, um zumbido passou pelo
seu ouvido lhe chamando a atenção. Um raio dourado
refletiu nos óculos da velhinha. Dave o seguiu com os olhos
em direção ao ombro daquela senhora. Enquanto ela falava,
Dave não tirava os olhos daquele besouro, tentou pensar em
alguma forma de pegá-lo sutilmente e nada vinha na
cabeça. “E se o besouro voasse?”, pensou. Semanas
esperando e a oportunidade poderia sumir como um
suspiro no vento.
Sem hesitar mais, Dave levou a mão com toda a força
em direção ao ombro da velhinha. Em seguida fechou a mão

189
bem forte, para que o inseto não escapasse, com bastante
cuidado para não esmagá-lo. Finalmente Dave tinha o que
tanto procurava, suas semanas de caçada e espera foram
finalmente recompensadas.
Quem via aquela cena de fora interpretou como um
mendigo dando um murro em uma velhinha, que nesse
momento estava gritando de dor no chão, respirando com
dificuldade. Os populares que estavam na praça correram
para ajudar a senhora, que provavelmente estava com o
ombro deslocado.
— É isso que a gente ganha por tentar ajudar as
pessoas — esbravejava a velhinha.
A senhora agora era amparada por algumas pessoas,
que passavam por ali. Sua visão estava meio embaçada, mas
ao longe pode discernir um louco correndo e gritando, com
o olhar fixo para o próprio punho fechado e na outra mão
uma sacolinha com uma marmita dentro.

190
40

O sinete da loja de antiguidades tocou, um homem


ofegante, suado e barbudo entrou com o punho fechado.
Wins estava atrás do balcão com um monóculo de ourives
olhando algumas joias brilhantes.
— Tá aqui, eu consegui! — disse Dave, estendendo o
punho. — E trouxe almoço também. — Colocou a marmita
no balcão.
Wins retirou lentamente o monóculo e olhou Dave
de cima a baixo lentamente.
— Você está... deplorável! — Com os dedos no nariz.
— Quanto tempo você não toma banho?
— Isso importa? Eu quero minha vitrola, jukebox
que seja...
— Calma, abra a mão, meu jovem, vamos ver o
espécime.
Dave abriu a mão lentamente, com cuidado para que
o bicho não fugisse, na mão havia um besouro marrom. Por
pouco uma lágrima não escorreu pelo rosto de Dave. Tanto
tempo de espera e pegou o bicho errado. Mas como? Ele
tinha certeza que viu a cor dourada passar diante de seus
olhos. Ele não poderia jamais voltar à praça, pois seria
linchado, ou preso, por espancar uma velhinha inocente.
Levou as mãos à cabeça em desespero. O besouro saiu
andando pelo vidro.

191
— Calma, é assim mesmo. Esse é o besouro certo,
olha!
Wins colocou a mão no caminho do inseto. Ele tocou
o bicho com o indicador e o besouro brilhou como se
houvesse um sol na palma de sua mão. Wins retirou uma
caixinha de anel de trás do balcão e virou a palma da mão
com muito cuidado, pousando o bicho na pequena
almofada. Dave se levantou com olhos vermelhos e um
sorriso de esperança.
— Obrigado, meu jovem.
— Ok, agora minha jukebox...
Wins saiu de trás do balcão e passou o braço por cima
do ombro de Dave:
— Vamos lá no fundo dar uma olhada no que eu
tenho. — Retirou o braço assim que sentiu o cheiro forte que
vinha de Dave.
Os dois foram caminhando em direção aos fundos da
loja, a madeira que cobria o chão rangia a cada passo como
se ninguém passasse por ali a muito tempo. Passaram por
um corredor com dezenas de portas, param em frente a que
estava escrito o número “46”.
Do bolso interno de seu blazer verde-limão, Wins
retirou uma chave cor de terra, meio enferrujada e
descascada. Destrancou a porta e girou a maçaneta, uma
imensa sala se revelou. Dezenas de máquinas empoeiradas,
amontoadas em pilhas altas, muito maiores que casas de
três andares. Do lado oposto, mais máquinas que pareciam

192
estar em bom estado, piscavam seus neons coloridos. Ao
fundo, ouvia-se uma suave música clássica.
Dave andava por entre aquelas máquinas, à procura
da que serviria melhor aos seus planos. Precisava ser uma
com vidro transparente, e com capacidade para muitos
vinis. Que tivesse a madeira mais robusta e de preferência
com todos seus recursos funcionando.
— Já se decidiu, meu rapaz?
— Espera aí... De onde vem essa música?
Wins virou a cabeça e convidou:
— Vem comigo.
Dave seguiu Wins por entre os corredores de
máquinas, a música aumentava a cada curva que faziam em
meio ao labirinto. Depois de alguns minutos de caminhada
chegaram a uma clareira em meio a toda aquela floresta
eletrônica. Lá havia um tapete, uma pequena mesa de
centro com uma caixa de charutos e uma garrafa de Old
Parr, duas poltronas de estofado vermelho estilo colonial, e
entre elas uma jukebox grande o suficiente para realizar a
ideia de Dave, tocando a música: Non, Je Ne Regrette Rien,
de Edith Piaf. Ao menos era o que dizia o botão que piscava.
— Amo essa música, às vezes venho aqui, beber e
fumar um pouco, alimentar meus vícios.
Dave parecia não ouvir uma palavra que Wins dizia.
Estava de olhos arregalados e vidrados nas luzes da
jukebox.

193
— Leve isso para sua vida, meu rapaz, nunca confie
em alguém sem vícios, sejam eles quais forem. A pureza
esconde segredos que ninguém quer descobrir...
— Tá bom, tá bom... Eu não ligo para isso, não quero
pensar sobre isso agora, tenho uma ideia para concretizar.
— Apressou-se.
— Eu tenho um carrinho de depósito aqui em algum
lugar. — Wins virou-se para procurar.
— Enquanto você procura, eu vou levar isso.
Dave passou por Wins empurrando a jukebox pelo
piso de madeira. O dono da loja deu de ombros, sentou-se
na poltrona, acendeu um charuto e se serviu de algumas
doses de Old Parr num copo quadrado.

194
41

Dave estava no tapete da sala de seu apartamento,


com uma jukebox e uma caixa de ferramentas. O trabalho
necessário para trazê-la até aqui, não caberia nestas
páginas. Em sua cabeça, o primeiro passo era entender o
funcionamento. Pegou uma extensão e ligou a máquina na
tomada. Diversas luzes coloridas se acenderam e piscaram
iluminando a sala, um som tocou indicando que a máquina
estava ligada, atrás do vidro havia uma pilha de discos de
vinil de 45 rotações.
Logo abaixo do vidro havia um painel com dezenas
de botões coloridos, cada um indicando um cantor e uma
música. Dave pressionou um vermelho que indicava “Tom
Petty — Wake up time”, e nada. Olhou em volta e havia um
espaço para colocar moedas. Procurou nos bolsos, só
precisava de uma, e se a tivesse poderia ouvir quantas
músicas quisesse. No fundo do bolso de trás encontrou uma
de 50 centavos e inseriu, apertou novamente o botão
vermelho. Um braço mecânico foi em direção à pilha de
discos na direita, selecionou um que estava em meio à pilha
e foi na direção oposta. Na esquerda havia um prato
girando, o braço mecânico pousou o disco e uma agulha se
moveu sobre ele quase que imediatamente.
A música entrava pelos ouvidos de Dave e era como
se ele pudesse tocar a música, ou será que ela o tocava por
dentro? Difícil responder. Já estava se distraindo quando

195
seu foco retornou. Ele não havia conseguido aquilo para sua
diversão, mas para ajudá-lo a concluir uma ideia que
naquele momento parecia mais uma necessidade.
Dave olhou em volta, procurou um botão de volume,
nada. “Interessante”, pensou. Assim que a música
terminou, o braço mecânico levou o disco de volta à pilha e
o colocou na mesma posição que se encontrava antes. Ele
estava atento à movimentação de todos os componentes. O
balé sincronizado era necessário para que o cliente ouvisse
a música, tudo em seu tempo, de forma harmônica para o
resultado final. Era hora de quebrar essa harmonia.
Olhando em volta, passou as mãos pelas laterais da
caixa até chegar a uma tampa na parte traseira. Com uma
chave de fenda, retirou os parafusos e teve acesso aos
componentes eletrônicos. Dezenas de fios coloridos e coisas
as quais ele nem imaginava para que serviriam. Precisava
agora, com muito cuidado, remover o vidro e mexer onde
talvez entendesse como as coisas funcionavam. Copiou uma
nova moeda e colocou a máquina para vê-la trabalhar
novamente, olhando mais de perto agora percebeu as
modificações que deveriam ser feitas.
Girou mais alguns parafusos e conseguiu remover o
braço mecânico, no lugar daquela agulha deveria haver
alguma coisa que fosse capaz de segurar e mover
correspondências, os discos deveriam ser substituídos por
envelopes. O prato que girava deveria ser trocado por um
buraco que deveria dar acesso a um túnel até onde os

196
clientes poderiam pegar os envelopes. Para isso, precisava
de ferramentas, pelo menos uma furadeira.
Celular no bolso, carteira com documentos e uma
nota de 50. Mais que o suficiente para comprar qualquer
coisa. Dave deixou a bicicleta em casa, e decidiu caminhar
até a loja de ferramentas mais próxima. O sol das 15 horas
machucava a nuca de quem se arriscava a andar pela
calçada das ruas naquela tarde. Pelo visto, dezenas de
pessoas decidiram se “arriscar” naquele dia. Dave não se
lembrava da última vez que viu as calçadas tão
movimentadas, nem mesmo em sua época de entregador.
“Fica comigo, meu amor!”
Na esquina havia um homem careca vestido com
roupas sociais, óculos de armação preta com lentes muito
grossas entregando panfletos. Dave desviou o olhar na
tentativa de que não fosse notado, mas mesmo assim o
homem o abordou:
— O senhor teria um tempo pra ouvir a palavra de
Deus?
— Não, agora eu não posso, estou atrasado.
O homem lhe estendeu um panfleto, Dave não
conseguiu evitar, como um reflexo involuntário, pegou o
papel e seguiu andando.
— Vai com Deus!
Em respeito, Dave deu-lhe um aceno com a cabeça,
olhou o papel. Havia algumas orações, trechos bíblicos,
capítulos e versículos. Dobrou o papel e guardou no bolso,

197
não queria jogá-lo na rua ou se livrar dele no campo de visão
do rapaz.
Virando a esquina estava a maior loja de materiais de
construção e artigos para casa que Dave já tinha visto, em
sua época de entregador passou por essa fachada várias
vezes, sem nunca ter entrado. No interior da loja, caminhou
pelo corredor das ferramentas, dezenas de prateleiras de
furadeiras, parafusadeiras, lixadeiras e outras coisas que
Dave não conseguia imaginar para que serviriam.
— Posso ajudá-lo? — perguntou um vendedor.
— Ah sim... Marcelo? É você, cara?
— Dave! Como vai? Quase não te reconheci por conta
da barba — disse, apertando a mão de Dave.
— Cara! Quanto tempo... — Precisava urgentemente
se barbear.
— Faz tempo, e o que você anda fazendo? Já tá
ganhando tanto dinheiro quanto você achava que
precisava?
— Não, ainda não! — sorriu sem graça.
— Fazendo entrega ainda?
— Cara, eu consegui outro emprego, trabalhei com o
Roberto numa lavanderia que ele tinha, mas a gente se
desentendeu e eu saí. E você?
— Eu fui um dos últimos funcionários do Roberto
antes dele fechar a... a...
— Central — complementou.
— Isso! Central.

198
— Não sabia que ele tinha fechado. — Disfarçou para
manter o assunto fluindo.
— Ele preferiu se dedicar mais à lavanderia. Mas logo
que eu saí de lá já arrumei esse emprego, e tô aqui desde
então.
— Legal, cara. Tá andando de bike ainda?
— Claro! Eu só venho trabalhar de bicicleta. Eu
jamais enfrentaria esse trânsito, tá louco! Mas, e aí, o que
você manda?
— Cara, tô precisando de uma furadeira,
parafusadeira, não sei ao certo.
— Me diz aí, o que você tá querendo fazer?
Dave levou um tempo pensando antes de responder.
Aquela ideia deveria ser mantida em segredo até a patente,
mas se mentisse talvez Marcelo não indicasse a ferramenta
certa.
— Eu tô numa sociedade com um amigo, e a gente
monta e desmonta móveis, sabe? Aí tô precisando de
alguma coisa para facilitar o serviço — mentiu.
— Sei. Olha... Eu te indicaria uma parafusadeira. Eu
tenho essas aqui — disse, apontando para a prateleira
longa.
— E qual delas você me indica? Não entendo nada
disso, cara!
— Bem... Como vendedor, eu te mostraria a mais
cara, com uma garantia mais baixa para tentar fazer você
vir comprar outra quando estragar e aumentar minha
comissão.

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— Sei, seu pilantra.
— Mas... Como amigo, posso tentar conciliar
qualidade com preço de um jeito que atenda às suas
necessidades.
— Não se preocupe com preço, me mostra o que você
tem de melhor.
— Nossa! Como eu queria ouvir isso de todos os meus
clientes.
— Não empolga, não.
Marcelo caminhou até o fim do corredor e pegou
uma ferramenta branca que parecia ter saído de um filme
de temática espacial.
— Essa aqui é uma das melhores mercadorias da loja,
ela é furadeira e parafusadeira, tem controle de velocidade,
mandril manual, rotação reversa, luz de LED na ponta que
te ajuda a enxergar o que está parafusando ou furando.
Display digital, martelete para paredes mais duras e mais
de 1000 rpm. Ela tem a empunhadura versátil que gira 180
graus pra ajudar nos trabalhos mais específicos.
— Uau, só isso? — disse Dave, em tom de ironia.
— Não, ela ainda acompanha essa maleta de
acessórios, com brocas para concreto, madeira e metal,
brocas chatas de vários tamanhos, kit de serra copo,
ponteiras e bits para parafusos. Ela vem também com duas
baterias, e já que você monta móveis, eu aconselho a andar
com as duas sempre carregadas. Aí você não precisa ficar se
preocupando com tomadas ou com extensões.
— Ela dá “bom-dia!” e faz café também?

200
Ambos gargalharam.
— E aí? Te agradou?
Por mais que o preço não fosse um problema, aquilo
era algo muito além do que Dave necessitava para seu
projeto e o fato de deixar algo tão moderno encostado num
canto era algo incômodo. Mas valeria a pena esse obstáculo
para a sua ideia ser concluída.
— Adorei, quanto custa?
— Ela tava em promoção, vou confirmar pra você. —
Marcelo foi a um terminal e digitou algumas coisas. — Cara,
o preço normal dela é novecentos e cinquenta e quatro e
noventa, mas na promoção, com um descontinho de
brother, fica por quatrocentos e cinquenta e seis e noventa.
Posso dividir até em 6 vezes pra você, que tal?
— Negócio tá fechado! — Dave apertou a mão de
Marcelo. — Passa lá para mim que eu só vou ao banheiro e
já volto.
— Dave, qual a forma de pagamento?
— À vista!
O pagamento podia ser à vista, mas o que ele ia fazer
agora não poderia estar à vista de ninguém. Ia cometer o
mesmo erro que em outra oportunidade levou um honesto
vendedor de cachorro-quente para a cadeia. Mas dessa vez
era a comissão de seu antigo parceiro de bicicleta que estava
em jogo. Para Dave era justificativa suficiente para cometer
o mesmo “erro”.

201
42
Dave estava em frente ao espelho, perdido em seus
pensamentos. Alguma coisa pescou sua atenção, olhou em
volta e mesmo estando sozinho, nada influenciou sua
decisão de entrar na cabine do banheiro. Girou a tranca da
porta e tirou do bolso a nota de 50 e em um minuto e
quarenta segundos havia um bolo de notas em suas mãos.
Dave foi ao caixa e entregou as notas contando-as para que
o caixa não precisasse conferi-las como consequência.
Pegou a nota fiscal e foi em direção ao pacote. Pegou a
sacola e saiu da loja:
— Valeu, Marcelo! Até mais!
— Espera, cara, só mais umas coisinhas. Não
estranha, mas ela já vem encaixada numa ponteira Philips
com cabeça de diamante extremamente dura, e as baterias
já vêm completamente carregadas, cortesia exclusiva da
nossa loja.
— Nossa! Que atencioso. Obrigado. — Despediu-se
com um aperto de mão e um toque no ombro.
Andando por aquelas calçadas lotadas, trombando
com um monte de gente, Dave sentiu uma sensação
familiar, um cheiro que invadiu seu nariz e lhe trouxe à
mente o barulho de um sininho de porta de loja. Como um
soco nas narinas, aquele odor lhe invadiu de forma
arrebatadora, como se após o “soco” a mão de gás que o
golpeava continuasse batendo na parte interna de seus
pulmões.

202
Aquele cheiro trazia uma mistura de medo, com
culpa e uma pitada de receio, mas uma imensa vontade de
descobrir do que se tratava. Forçou a memória, e dois
nomes vieram ao encontro de seus pensamentos. Olinto
Flores... América.
Dave olhou em volta procurando aquela mulher. Até
que sua atenção se deteve a um rabo de cavalo ruivo que
estava na calçada da esquina prestes a atravessar a rua.
Presa ao sinal para pedestres, rodeada de pessoas, Dave
pensou: “Não pode ser ela!”. A certeza de sua identidade
veio no momento em que ela virou o rosto para olhar o
semáforo, expôs aquela verruga no lábio superior, sem
pensar, Dave rumou em sua direção.
Sentindo uma estranha sensação de dormência nos
membros inferiores, as pernas de Dave travaram e ele não
conseguiu mais andar, seus olhos brilhavam em amarelo
vivo, piscando e voltando aos habituais castanhos. Depois
de fazer muita força ele conseguiu dar mais um passo na
direção de América. Seus olhos variavam de cor como se a
ideia dentro dele o estivesse impedindo de se desviar do
caminho para concluí-la.
O sinal abriu e os pedestres começaram a cruzar a
avenida. Dave viu América chegar ao outro lado. Cerrou os
dentes e fez uma força descomunal para dar um passo. Seu
esforço ia muito além de suas capacidades físicas. O brilho
amarelo que havia em seus olhos, agora estava ficando fraco
e se apagando tal qual uma luz que perde as baterias.

203
Dave seguiu caminhando com certa dificuldade,
cambaleando e sendo tachado de bêbado pelas pessoas da
rua, dentro de poucos segundos já conseguia correr. Viu
América virando a próxima esquina, aproximou-se da curva
e esgueirou-se para olhar a esquina na tentativa de não ser
notado.
Dave percebeu que América descia as escadas que
levavam ao metrô, ele também desceu as mesmas escadas e
a viu atrás da linha amarela aguardando o vagão. Quantos
anos não pegava um metro. Quando o trem parou na
estação, ele tomou o mesmo que América, mas por outra
porta.
Ficando a uma distância segura para não ser
percebido e nem levantar suspeitas de que estava seguindo
alguém. Dali ele a via de óculos escuros, mexendo no
celular. O ódio ardia-lhe no peito, de onde ele estava podia
sentir o cheiro daquele perfume único, que funcionava mais
como um combustível para sua raiva. Por algum motivo
algo o fazia agir com a cabeça naquele momento, esperava
pacientemente até que ela descesse, queria descobrir onde
ela morava.
Dave se atentou ao momento em que ela se
aproximou da porta fazendo menção de descer, ele fez o
mesmo longe dela. América desceu e Dave a seguiu. Suas
pernas ainda estavam falhando, não sabia se pela raiva de
rever aquela mulher ou se a ideia dentro de si o estava
tentando impedir de se desviar do caminho.

204
Ela saiu da estação de metrô em direção a um
conjunto habitacional que ele conhecia bem, em outros
tempos fizera diversas entregas pela região. Do outro lado
da rua a viu parar em frente a um portão alaranjado, tom de
ferrugem com algumas pichações, tirou uma chave da
bolsa, olhou em volta e entrou pelo portão. Dave sentou-se
no ponto de ônibus em frente e aguardou. Agora era só
esperar anoitecer.

205
43

O sol terminava de se pôr, em meio aquele tom de


laranja do céu que aos poucos ia dando lugar a um azul-
escuro. Já era possível ver algumas estrelas, mas não a lua.
Dave olhou no andar superior e notou a luz acesa, notou
sombras e movimento no que parecia ser o quarto. Sem ter
certeza parecia que ela morava sozinha. A iluminação
pública já havia acendido, parecia ser o melhor momento
de agir, olhou em volta e a rua estava completamente
deserta.
Dave atravessou a rua, procurou um interruptor de
campainha e não encontrou, bateu no portão... Sem
resposta, bateu novamente. Dave sentia-se ansioso, as
pontas de seus dedos tremiam, bateu de novo, mais forte
dessa vez. Suas mãos gelaram com o frio de seu nervosismo
quase se igualando a temperatura do portão de metal.
— Oi? Quem é? — Dave ouviu a voz de América ao
longe.
— Boa noite! A senhora teria um momento para
ouvir a palavra do senhor? — disse com a voz trêmula.
— Agora eu não estou podendo, volta outra hora,
pode ser? — Dave notou um aumento na voz, América
parecia estar bem perto do portão agora.
— Minha senhora, eu prometo que não vou tomar
muito o seu tempo. — Dave precisava apenas convencê-la a
abrir o portão.

206
Colocou a mão no bolso e retirou o panfleto que
pegou mais cedo e jogou-o por baixo do portão. Dave ouviu
passos e ela pegou o papel, alguns segundos se passaram e
um barulho metálico começou a soar. Uma chave entrava
pela fechadura e girava, Dave deu uma última olhada na rua
para ter certeza de estar deserta. América abriu
parcialmente o portão mostrando somente a cabeça. Dave
agiu:
— LEMBRA DE MIM? VAGABUNDA! — Empurrou
o portão com uma força advinda da raiva.
América caiu de costas no chão. Dave entrou na
garagem e bateu o portão com tanta força quanto o abriu e
foi em direção a ela. Tinha de agir rápido, seu grito e o
barulho do portão, em breve alarmariam a vizinhança. Ele
a pegou pela garganta e apertou com força.
— Você tirou tudo de mim! — falou com lágrimas nos
olhos. — O dinheiro que eu dei para você dava para você
abrir várias floriculturas, ou se aposentar. Parece que foi
isso mesmo que você fez! E voltei lá e não tinha nada!
Dave soltou a garganta dela, América caiu no chão
tossindo sem conseguir usar a voz, tentando se arrastar
para longe dele. Dave caminhava de um lado a outro se
questionado a respeito de suas atitudes, mas era tarde
demais para consertar esse erro ou voltar atrás. América ia
em direção ao telefone, para pedir ajuda ou algo parecido.
Dave segurou sua camisola e a jogou novamente contra a
parede!
— Você não fala nada? Hein? Não tem nada a dizer?

207
— Sobre o quê? — América estava com a voz
embargada apertando a mão de Dave que segurava o
colarinho de sua camisola.
— Não se faça desentendida.
— Olha, eu nem sei quem você é. Tem dinheiro na
minha bolsa, pode levar tudo.
— O quê? Eu não quero seu dinheiro, é a última coisa
que eu preciso, isso não é um assalto!
— Eu não entendi. O que você quer? — disse América
com tom de medo.
— Você tá achando que eu sou trouxa?
— Talvez se você me explicar eu possa te ajudar —
tentou acalmar os ânimos.
— Você, sua filha da puta, me vendeu quase toda sua
floricultura e me deu de “brinde” aquela flor preta maldita
— falou em tom irônico.
— A dália negra!
— É isso aí!
— Calma, eu não tive culpa de nada — desviou.
— Que não teve o quê? Você pelo menos me deve
uma explicação.
— Melhor não! Eu não sei de nada! — Aquilo parecia
mentira de alguém que não queria abrir o bico.
— Ah você vai me contar, nem que isso custe...
Dave não conseguiu terminar a frase. Deixou a sacola
cair no chão, pegou a caixa da parafusadeira e tirou-a lá de
dentro.

208
— Você sabe o que é isso? — Mostrou a ferramenta
na mão.
— Eu acho que não vou gostar de saber.
— Talvez não mesmo! Isso aqui é uma parafusadeira,
furadeira sei lá, com controle de velocidade, mandril
manual, rotação reversa, luz de LED na ponta que te ajuda
a enxergar o que está parafusando ou furando, display
digital, martelete para paredes mais duras e mais de 1000
rpm... E o caralho! — Dave estava perdendo o controle de
si.
América olhava espantada para Dave falando todos
aqueles termos aos quais ela nem fazia ideia do que
significava e nem o porquê daquelas informações.
— ...essa ponta aqui é de diamante, e sabe o que é
mais legal — disse em tom de ironia. — As baterias já vêm
carregadas, cortesia da loja que eu comprei. Só que lá eles
não me deram nenhum brinde que matasse alguém que eu
amo! Me disseram que essa ponta é para coisas duras, o que
será que ela faria com um osso seu?
Dave apertou o gatilho da máquina, a velocidade do
giro fez os cabelos de América voarem.
— Olha, eu não tenho culpa de nada e...
— Para de me enrolar! — Aproximou a broca do olho
de América.
— Eu não sei de nada!
— É a sua última chance!
— Eu juro, não tenho culpa do que aconteceu.

209
Dave cerrou os dentes e enfiou a broca no ombro de
América. Ela berrava e lágrimas escorriam pelo rosto. Ele
sentiu a furadeira tremer em sua mão, a velocidade caiu
consideravelmente em contato com a carne e a broca
começou a travar. Dave sentia a vibração da ferramenta na
mão que perfurava o ombro de América. A parafusadeira
antes branca, agora suja de respingos avermelhados,
ganhou uma nova função que não foi citada por Marcelo
anteriormente.
— A FLORICULTURA ERA UMA FARSA! — berrou
ela.
Dave soltou o gatilho e parou a rotação, boquiaberto.
— Foi tudo armado — falou ofegante. — Eu me
lembro de você, eu nunca fui dona de floricultura, eu sou
atriz.
— O quê? — disse, sem acreditar. — Mas como? —
Voltou a si. — Quem contratou você?
— Olha, eu não posso di...
Dave apertou o gatilho novamente, dessa vez sem
culpa alguma.
— SE EU DISSER, ELE VAI ME MATAR!
— Você vai morrer agora se não me contar. Você acha
que eu tenho algo a perder agora?
— TÁ BOM! — Dave aliviou o dedo do gatilho. — Eu...
não vi o rosto dele...
Apertando o gatilho, acelerou a ferramenta:
— Não brinca comigo!

210
— EU NÃO VI O ROSTO DELE! ELE TAVA DE
ÓCULOS! — Dave tirou o dedo no gatilho. — Ele tava de
óculos escuros, terno preto, luva preta...
— Luva preta?
— Sim.
— Tinha cabelo branco? Pele negra, pintas pelo
rosto?
— Isso mesmo — disse com a respiração pesada.
— Ai caralho!
Antes de sair, Dave testou sua ferramenta uma
última vez. Seu cenho se franziu e um prazer mórbido
tomou seu corpo. Ele mesmo se surpreendeu por gostar de
fazer aquilo. Sua orelha ficou em modo silencioso ante os
gritos de América. Puxou a ferramenta para si,
desconectando-a de sua vítima. Ela desmaiou sob uma poça
de sangue.
Antes do baque ensanguentado, Dave ouviu passos
vindos de dentro da casa. Uma criança segurando um
cobertor vinha esfregando os olhos em direção à porta.
— Mamãe? — bocejou a menina, em seguida.
Dave olhou para aquela menina e as lágrimas de
vingança se somaram às lágrimas de arrependimento. Um
frio tomou seu peito e a respiração automática falhou.
Escondeu a “arma” de seu crime nas costas.
— Oi, mocinha. Tudo bem?
— Onde tá minha mamãe?
— Volte a dormir, mamãe já vem. — Dave tentou se
aproveitar da sonolência da garota para enganá-la.

211
A criança se virou e foi andando cambaleante em
direção ao quarto. Dave guardou a furadeira ensanguentada
de qualquer jeito na sacola. Antes de passar pelo portão,
discou o número do serviço de emergência e acionou uma
ambulância, numa tentativa vã de compensar suas ações.

212
44

De volta para casa, Dave olhava aquela máquina no


seu tapete, meio inteira, meio desmontada, ao lado de uma
sacola amarela e ensanguentada. Sentado no chão de
pernas cruzadas, não sabia o que fazer. Não tinha a menor
noção de como dar continuidade ao seu projeto.
Provavelmente sua “vingança” tenha enfraquecido sua
ideia, ou mesmo sua vontade de dar-lhe seguimento. Foi ao
banheiro, e se barbeou. Decidiu ver Wins, não precisava
apenas de ajuda, mas, quem sabe, de conselhos.
“Eu amo tanto você, meu amor.”
Chave da tranca, capacete, carteira, pedalar algumas
quadras... Dave empurrou aquela pesada porta de madeira
e ouviu o sininho anunciar sua presença.
— Estou aqui atrás! — Ouviu uma voz conhecida.
Dave foi andado até os fundos da loja, e viu Wins. Seu
blazer verde estava pendurado em um gancho na parede, a
blusa branca e a gravata vermelha, impecáveis. Estava
agachado atrás de um enorme contêiner de metal com um
formato que Dave não soube identificar o que era. E a sua
frente piscava uma luz azulada como se ele estivesse
soldando alguma coisa. Wins olhava para baixo e seu
chapéu coco permanecia imóvel em sua cabeça.
— Precisa de ajuda aí?

213
— Não, já tô quase acabando. Está melhor sem a
barba — disse sem levantar os olhos para Dave. — Mas,
diga-me, em que Wins pode ajudá-lo?
— Eu ando tendo uns problemas com aquela ideia
minha... sua... nossa.
Wins se levantou e Dave percebeu que ele estava com
os óculos de solda pendurados no pescoço. Ajustou os
óculos de grau nos olhos e olhou direto para Dave. Tocou-
lhe o queixo, virou de um lado a outro, puxou-lhe a parte
debaixo dos olhos e examinou sua esclera por mais alguns
segundos.
— Me parece tudo certo. — Retirou os óculos. — Ela
ainda está aí. Você não tem muita opção, meu jovem, ou
você dá um jeito de executar a ideia ou ela vai te corroer por
dentro.
— Me sinto meio dividido, quero concluir a ideia,
mas parece que algo me impede nesse momento.
— Imagino. — E voltou ao seu trabalho de solda.
— Eu sabia que você era especial, você conseguiu
furar a fila e colocar uma vingança na frente de uma das
minhas ideias. Com uma vontade dessas, tenho medo do
que você é capaz de fazer.
— Não foi porque eu quis!
— Bom... Você fez um esforço enorme para ir atrás
daquela mulher. Tudo é fruto exclusivamente da sua
vontade.
— Ah, isso. Talvez eu tenha minha parcela de culpa.
Espera, como você sabe...

214
— Eu sei bem mais do que você pensa, ainda mais
quando se trata de conflitos com minhas ideias.
— Eu fiquei fora de mim. — Abaixou a cabeça.
— Está escrito na sua cara que você não está bem.
Não precisa ser eu pra saber isso. — Apontou para si.
Dave não tinha resposta para aquilo. Wins começou
a caminhar e Dave o seguiu.
— E por que você me procurou? — Vestiu o blazer
verde — Pra dizer que não vai poder concluir?
— Não, eu... só achei que talvez você pudesse me
ajudar a resolver de vez esse problema e seguir em frente.
— Veio pedir conselhos?
— Pode ser, se me ajudar.
Wins virou-se e foi em direção do balcão principal,
Dave o acompanhou:
— A única coisa que eu posso dizer, pra te ajudar, é
que você vai ter que fazê-lo aparecer. Se quiser respostas.
— E já tentei. Eu pensei que ele iria aparecer depois
do que eu fiz. Principalmente depois que vi a menina. —
Olhou para baixo. — Então você sabe dele também?
— Já disse que sei mais do que você pensa. Te
assustaria o que eu sei.
— E como eu faço isso?
— Talvez aquele episódio com aquela pobre atriz
pese um pouco sua consciência.
— Pesa mais do que você imagina. Mas acho que não
o suficiente.

215
— Minha segunda dica é que você vai precisar disso.
— Wins estendeu a mão e entregou um pequeno objeto para
Dave, que havia pegado embaixo do balcão segundos antes.
— O que é isso?
— Isso é um Arduino.
— Um o quê?
— Você já está querendo demais, garoto, pesquise,
estude um pouco, se vire, mas use. Isso vai ajudar você a
focar mais na sua ideia. Agora, se não vai comprar nada, se
retire da minha loja que eu tenho um dia cheio.
Dave foi saindo meio desconcertado da loja e quando
estava próximo à porta:
— Não se esqueça, meu jovem. A conclusão da sua
ideia é essencial para a sua sobrevivência. Não se esqueça.

216
45

Deitado no chão da sala, olhando para o teto,


pensando, pensando, pensando... Daquele ângulo ele via o
Arduino na mesa da sala. Ele se sentia como se estivesse de
frente a um abismo, não sabia como aquilo podia fazer parte
do seu projeto. Tantos problemas para resolver e sem saber
por onde começar. Seus pensamentos se emaranhavam no
hiato que havia entre uma jukebox e um Arduino, em como
conectar os dois.
Como fazer uma “entidade” que não tem como
chamar, sabe-se lá quando ou por que aparecer. Levantou-
se e foi até à mesa. Olhando aquele símbolo do infinito com
um sinal de + e -, seus pensamentos travavam. Parado ali
por vários minutos, encontrou algo que poderia ser a
solução do seu problema parecia que aquele abismo tinha
uma ponte.
***
A campainha do apartamento tocou, Dave atendeu a
porta.
— HIRO! Meu amigo, como vai?
— E aí Dave, tranquilo? O que é tão “urzente” assim
pra você me fazer perder meu horário de almoço? — Hiro
entrou no apartamento, meio tímido, com um notebook
embaixo do braço.
— Eu não vou tomar muito o seu tempo, senta aí.

217
Os dois sentaram-se à mesa e Dave mostrou a Hiro o
Arduino.
— Pode me ajudar com isso?
— Cara, onde você conseguiu isso? — disse Hiro com
cara de espanto.
— Comprei — mentiu.
— Caramba! Eu sou louco em um desses. Vou te
dizer, isso aqui é um mundo de possibilidades, basta que
você saiba programar.
— Pode me ensinar?
— Posso! Isso é fácil.
Hiro e Dave passaram um longo tempo em frente ao
computador debatendo sobre linguagens de programação.
Dave dizia o que precisava e Hiro respondia com uma
provável solução em programação. Ele inventou uma
história que ocultasse o real motivo de ter conseguido um
Arduino, e aproveitando a presença de seu amigo, viu a
oportunidade perfeita de pôr em prática o ditado “unir o útil
ao agradável”.
— Então, Hiro, onde foi que você aprendeu essas
coisas?
— Ah, cara, eu sou muito sozinho. No meu tempo
livre eu fico pesquisando essas coisas relacionadas à
“tecnolozia”. E é bom pro meu curso.
— Curso?
— É. Eu faço ciências da computação, não sabia?
— Não!

218
— Eu “zá” falei para você uma vez. Não lembra? “Zá”
tô quase terminando.
— Lembro, não — Era hora de atacar. — Você é um
“virjão” mesmo, né!
— O quê? — Hiro ficou sem entender por que daquela
mudança repentina.
— Não me ouviu? Ou é surdo além de virgem?
— Cara? Por que você tá fazendo isso?
Enquanto Dave proferia aquelas palavras, um
sentimento dentro de si que se refletia em um tom de voz,
dizia-lhe “Não faz isso cara, você vai se arrepender demais,
vai perder uma amizade por conta de uma vingança!”, mas
Dave não deu ouvidos a si e prosseguiu:
— Porque eu tô cheio de você! Não sei onde eu tava
com a cabeça quando te chamei pra me ajudar.
— Qual é, Dave? — Hiro se levantou.
— Cara, cala essa boca! Eu não suporto esse seu jeito
de falar. “Ai você ‘zá’ fez isso?”, “Eu sou o ‘virzen’ do
‘zardim’ de flores” — debochou Dave, tentando imitar a voz
fina de Hiro.
Lágrimas se formaram no rosto de Hiro, mas não
chegaram a cair.
— Não conte mais com a minha “azuda”!
— Mano! Vaza da minha casa! Vai transar, depois
você fala comigo.
Hiro fechou o notebook com força e foi em direção à
porta:

219
— Eu não esperava essa violência gratuita, não vindo
de você!
— Ah vai pentear macaco! Seu virgem! Ou melhor,
“virzen”!
Hiro abriu a porta e saiu sem fechá-la. Dave levou as
mãos à cabeça enquanto ouvia os passos pesados de Hiro
pelas escadas. A porta rangeu e fechou-se lentamente.
— Oi, Dave.
Uma voz conhecida vinha de trás da porta.
— Finalmente.

220
46

Dave armou um soco em direção à cabeça de sua


própria consciência. Atacou sem pensar. Por um segundo,
uma reflexão veio-lhe à mente. Aquele movimento pareceu
que ia socar a própria cabeça, sua mão foi de encontro a
quina da parede, onde sentiu sua dureza na cabeça de seus
metacarpos, e segurando o punho virou-se para ouvir:
— Calma, vamos conversar. — Essa voz vinha da
poltrona no meio da sala, abaixo das mãos enluvadas
cruzadas em frente à boca.
— Eu não quero conversar, EU QUERO MATAR
VOCÊ! — E avançou em direção à poltrona da sala.
Dave deu de encontro ao encosto, fazendo a poltrona
virar. Caiu de costas no chão e bateu o cotovelo.
— Se você pretende me matar, por que todo esse
esforço? É mais fácil que você pensa, pegue uma arma e
atire na própria cabeça ou corte os pulsos. Você pode
escolher. — A voz vinha do lado da mesa próximo à cozinha.
— Daqui onde eu estou eu alcanço uma faca. Quer que eu
pegue?
Recolocando a poltrona no lugar correto, ofegante e
com a mão no cotovelo, sentou-se e respirou bem fundo:
— Tudo bem? Vamos conversar — disse até pensar
em uma maneira eficiente de atacar.
— Na verdade, quando eu digo “vamos conversar”,
eu estou sugerindo que a primeira palavra parta de você.

221
Os nervos de Dave estavam à flor da pele, a raiva e o
ódio que nutria suas forças estancaram a dor que sentia na
mão e no cotovelo. Já que não era possível atingir seu
“inimigo” fisicamente, teria de usar as palavras. De um
momento para outro a raiva e o ódio deram lugar a uma
emoção de tristeza e lágrimas escorreram.
— Me diz pelo menos por que você fez isso.
— Eu? Eu não fiz nada. Do que você tá falando?
— Me parece muita coincidência eu ameaçar
América de morte e ela me dizer que você matou a Maritza...
E, pensando bem, o cheiro daquela rosa negra parece muito
com o seu.
O Consciente deu uma risada, como se tudo fosse
óbvio.
— Dave, meu caro, faça o caminho inverso e se
pergunte como vim parar aqui hoje.
— O que quer dizer?
— Eu sou a solidez do peso da sua consciência. Você
não pode me tocar porque eu não estou tão sólido assim.
Talvez porque não foi um sacrifício muito grande torturar
América como você fez. Aquele sentimento de vingança
parece que não pesou tanto, já o que você fez com o pobre
Hiro... Devia se arrepender.
— Você quer dizer que torturar é pior do que xingar
ou ofender?
— Não! Eu não quero dizer nada. Não existe uma
medição do que é mais ou o que é menos. O que realmente
importa é o que é para você.

222
— Tem razão, eu me arrependo mais de ter ofendido
o Hiro do que o que fiz com a América... Ei, não muda de
assunto.
— Meu caro, você foi presenteado com um dos dons
mais escusos que eu tenho. O dom da minha paciência.
— Você é insuportável! Tenho nojo de você!
Mais uma risada partiu do consciente. Alta dessa vez.
— Eu sou fruto do seu subconsciente, se você
acredita que eu tenha cometido algum crime, se pergunte
de onde partem as minhas vontades...
O queixo de Dave caiu, não antes de outra lágrima.
— Não, não, não, não. NÃO! — repetia para si,
tentando se convencer — não pode ser. Ela é tudo para mim,
tudo que eu tenho. Eu jamais ia querer ela fora da minha
vida.
Ele se culpava antes por ganhar de brinde uma rosa
negra, não mais do que agora se culpava de ter planejado
tudo, sem a menor intenção. Havia lógica no que ouvia da
própria consciência. Ela era fruto de si mesmo. E ainda que
não tivesse as intenções, elas partiram dele. A respiração de
Dave começou a ficar ofegante, o ar saía barulhento por
entre os dentes de sua mandíbula cerrada.
— É minha culpa. — Dave chorava de joelhos no
chão.
O chão sob os pés do Consciente começou a rachar,
o piso se abriu em pequenas rachaduras. Sob seu queixo
uma imensa papada se formou, as bochechas inflaram
como um balão de gás, expulsando os óculos do rosto. O

223
abdômen inchou como um airbag, rompendo os botões do
blazer e da camisa interna e atirando-os como balas por
todo o apartamento. As mãos engordaram dentro das luvas,
e o tecido que imitava couro negro se desfez à medida que
as palmas cresciam.
— Ei, vai com calma aí, cara!
— A culpa é minha — dizia, chorando com os olhos
vermelhos em brasa e batendo com força no piso.
Dave inspirou profundamente e segurou o ar por
alguns segundos.
“O que está acontecendo com ele?”
O Consciente estava perdendo o equilíbrio, devido ao
seu peso. Um baque no chão fez o apartamento tremer
assim que ele caiu. Mesmo no chão seu corpo continuava a
crescer. O pescoço já não era mais visível, ali havia um
tronco redondo, com braços e pernas que pareciam curtos
demais para aquele corpo. Ele continuou a inflar, tal qual
Violet Beauregarde após comer chiclete. Os olhos se
afundaram na pele cheia de gordura em torno dos olhos.
Dave berrava com toda a força de seus pulmões!
Enquanto segurava a própria cabeça, sua garganta vibrava
até que seu fôlego acabasse.
Quando a barriga de sua consciência já estava
tocando o teto, uma pressão muito forte fez o gesso rachar.
Fissuras por todo o tecido do terno negro começaram a
riscar toda a roupa e se romperam
— Você... precisa... se... acalmar — disse, quase sem
ar. — Ou a culpa vai... SER MAIOR QUE O PRÉDIO!

224
Dave continuava chorando enquanto o peso de sua
consciência aumentava. Ele estava muito dentro de si em
seu sofrimento particular para ouvir as palavras do
Consciente. Ainda chorando e babando, sentia um aperto
lancinante em suas têmporas, uma dor horrível que pulsava
de um lado a outro. Dave cerrou os dentes forçando as veias
contra a pele que agora se destacavam verdes, na testa e no
pescoço.
Sem que algum deles percebesse, a porta do
apartamento foi arrombada. Alguém entrou. Dois dedos
foram em direção à têmpora de Dave, seus olhos pesaram e
ele apagou. O Consciente sumiu do apartamento, deixando
os danos para trás.
— Wins sempre tem que apagar os incêndios — disse,
fechando a porta.

225
47

Alguns dias depois era noite. Dave contemplava o


céu, do banco de uma praça onde outrora comprou um
cachorro-quente de um cara que foi preso. Ainda tentava
conectar o momento que soube da notícia de ser o
“assassino” de sua noiva, com o momento de ter chegado a
essa praça. Seu pai já dizia: “olhar o céu é a melhor forma
de refletir, já que você fez parte daquelas estrelas algum dia,
pois ao olhar para elas estará vendo a si mesmo”.
Havia uma “ficha” entalada em sua garganta que não
descia em momento nenhum, como poderia tê-la matado?
Ela era seu grande amor, qual seria a necessidade de se
desfazer dela? A resposta dessa pergunta era algo que
demandava uma reflexão e um tempo de que Dave não
dispunha. Daquele banco era possível ver a lua, que, aos
poucos, ia sendo coberta por nuvens avermelhadas, o poste
atrás de si tinha uma luz que piscava dando um ar de
reflexão ao momento.
Por mais de uma hora Dave permaneceu olhando o
céu, num ciclo de pensamentos que circulavam em sua
mente, e a cada volta, os argumentos iam se sobrepondo e
tornando-se certezas, de forma a abrirem caminho para
uma conclusão. Contudo, ela parecia nunca chegar, apesar
da insistente busca. Era quase como a cabra suicida, que
corre em direção ao penhasco, seguindo a cenoura presa
por uma corda na vara em suas costas. Não adiantava

226
perseguir uma resposta ou um consolo, o resultado não
agradaria a Dave.
Um pingo de chuva tocou-lhe o nariz e escorreu,
outra gota tocou o assento do banco ao seu lado, mais uma
gota gelada tocou-lhe as costas da mão, e em pouco tempo
todo seu cabelo já estava molhado. Ele parecia ignorar a
chuva completamente, nem mesmo o frio da noite o
incomodava, e, ao olhar a rua completamente deserta,
decidiu. Precisa de uma punição pelo que fez. A culpa não
apareceria dessa vez, ele mesmo poderia resolver.
Dave se viu andando. Subindo a rua na chuva em
direção ao banco onde estava sentado. Seu outro “eu”
caminhava, pisando nas poças de água. Dave se levantou e
foi caminhado em direção à rua, seus olhos cerrados pela
água miravam em direção a si mesmo que vestia as mesmas
roupas. Os passos passaram a tocar o solo cada vez mais
rápido e em pouco tempo já estavam correndo um em
direção ao outro, Dave sabia o que tinha que fazer.
“Não, meu amor, fica comigo.”
— Vou ficar, meu amor. Em breve! — gritou.
Aquela voz ressoou como um megafone na chuva,
batendo nas paredes dos prédios e indo de encontro aos
ouvidos de Dave. Só ele no mundo inteiro podia ouvi-la
agora. O som não reverberava nos prédios, muito menos
passava pela chuva, apenas rebatia nas paredes de seu
crânio, como uma bala que ricocheteia dentro de um
contêiner blindado.

227
Quando estavam à distância, a alguns metros, ele
dobrou os joelhos e pulou em direção aos quadris de seu
“oponente”. O ombro de Dave tocou-lhe o plexo solar de seu
outro “eu” derrubando-o no chão. A grande diferença entre
estar de pé na chuva ou rolando no chão em meio a uma
briga é a sujeira. Ambos que já estavam molhados agora
estavam imundos pela lama da sarjeta. Um sobre o corpo
do outro, Dave socava o próprio rosto:
— Vocês apareceram na minha vida para suprir uma
necessidade, não foi? Me parece que eu ainda sinto falta
dela. Vocês são muito incompetentes nas suas funções. —
Dave estava de joelhos no asfalto gritando e socando o
próprio rosto ritmadamente. — Alguém tem que sofrer
junto comigo, pelo menos!
A cada soco uma descarga de raiva saía pelos seus
punhos, sangue, hematomas, coágulos, inchaços, coisas que
desfiguravam o rosto daquele condenado sem reação.
Socava o tórax, as costelas e a boca do estômago. Dave
levantou-se ofegante vendo o sangue ser lavado da face de
seu “eu” prostrado na lâmina d’água. Nenhum sentimento
de pena ou culpa por aqueles atos passava por seu coração,
a chuva era fria assim como a temperatura do seu sangue
naquele momento.
Ele viu-se deitado na sarjeta e lentamente se desfazer
e escorrer se misturando com a enxurrada. Viu seu outro
corpo tornando-se líquido e transparente, fluindo pelo
canto da rua. Assim que aquele corpo machucado
desapareceu, Dave sentiu uma dor no tórax e dificuldade

228
para respirar, tossiu, e quase engasgou com o sangue em
sua garganta. Levantou a blusa e hematomas começaram a
arroxear sua pele, sentiu a mesma dor de quando quebrou
as costelas.
Dave escutou os ossos de sua face quebrando, seu
supercílio inchou e explodiu em sangue, sua visão começou
a ficar turva, caiu de joelhos no asfalto, com as mãos
apoiadas naquela água suja. Cada vez que respirava, doía,
mais um pigarro de sangue manchava a rua, mas logo se
tornou uma lembrança lavada pela chuva. Um pingo de
arrependimento tomava-lhe os sentidos. Deu um último
berro olhando para cima erguendo os braços o máximo que
pode. Seus olhos foram pesando, a noite escura foi tomada
por um túnel cinza e molhado, até, provavelmente, morrer
espancado.

229
48

Dave caminhava por uma rua bem conhecida de sua


cidade, não sabia que dia nem que horas eram, mas o sol
estava forte. Provavelmente era por volta do meio-dia e pelo
movimento nas ruas talvez fosse um fim de semana. As
pessoas colocavam as cadeiras na calçada e observavam as
crianças brincando, pulando corda, correndo, se divertindo.
Poucas pessoas caminhavam pela calçada onde uma delas
abordou Dave:
— Oi, moço, você pode me dizer onde fica esse
endereço? — disse uma senhora mostrando um pedaço de
papel.
Dave ficou ao lado dela e leram juntos. Não sabia
onde ficava o endereço, olhou em volta para verificar se
encontrava aquele ponto de referência mencionado, mas
não poderia ajudar aquela senhora. Seu senso de
entregador não funcionou dessa vez.
— Olha, eu não sei onde fica, mas a senhora pode
perguntar ali naquele posto. — Dave apontou para a
esquina da rua, onde havia um posto de gasolina. Nesse
momento sentiu um perfume familiar. Ele viu uma moça
virando a esquina, conhecia aqueles cabelos cor de mel de
qualquer distância.
— Maritza! — gritou. Saiu correndo, trombou com
aquela senhora e quase a derrubou.

230
Dave virou a esquina e a perdeu de vista, olhou em
volta e pareceu ainda estar na mesma rua que
anteriormente. Olhando para o outro lado, viu as mesmas
crianças acompanhadas de seus pais, ao longe vinha em sua
direção uma senhora com um pedaço de papel:
— Oi moço... — Dave olhou por cima do ombro dela
e lá estava, virando a esquina os cabelos ao vento. Dessa vez
Dave reparou no corpo e agora tinha certeza de que era ela.
— Você pode me dizer... — Correu antes que a senhora
terminasse a frase. Virou a esquina e nada novamente.
Ainda estava na mesma rua. Decidiu agir antes que
tudo retornasse, correu em direção ao fim da rua, passou
por uma senhora que segurava um pedaço de papel e quase
a derrubou. Virou a esquina e bateu o rosto em algo que não
podia ver, como uma parede invisível. Deu alguns passos
para trás e caiu no asfalto.
Dave acordou alguns minutos depois, com a lateral
esquerda do rosto doendo, notou que não estava no mesmo
lugar de antes. O sol forte havia desaparecido estava em um
cômodo fechado, o ambiente era iluminado por chamas de
velas, sentiu o cimento da calçada com uma textura macia,
até perceber que não era um tapete felpudo manchado de
marrom.
Levantou-se lentamente, esfregou os olhos até que
sua visão retornasse ao foco. Dave percebeu que estava em
um longo corredor, as paredes eram cobertas com um papel
de parede texturizado em tons de vermelho vinho e sangue.
No fim do corredor havia uma porta negra, sem maçaneta.

231
Atrás de si uma parede. Sua única opção foi ir em direção à
porta.
Como não havia maçaneta, tentou empurrá-la, a
porta rangeu. Dave não conseguiu enxergar nada lá dentro,
apenas a silhueta de uma pessoa iluminada por uma luz
bruxuleante ao fundo.
— Olá?
Nenhuma resposta. Dave adentrou o recinto, a porta
bateu atrás de si.
O cômodo iluminou-se lentamente, revelando um
quarto com o mesmo papel de parede do corredor. O tapete
sobre seus pés parecia ainda mais peludo cobrindo quase
todo seu pé, nas paredes, quadros com molduras douradas
bem gastas, de pessoas as quais não era possível enxergar
os rostos. Do teto pendiam o que pareciam ser membros
humanos. Braços com ossos à mostra, pernas até a altura
dos joelhos, pés com unhas enormes e sujas.
No centro do aposento, uma poltrona no estilo
colonial cujo estofado já se encontrava bastante surrado,
com partes do tecido rasgado e com o estofamento
aparecendo. O papel de parede estava descolado e rasgado
em alguns pontos, revelando a cor anterior da parede e em
outros cantos mostrava parte do reboco. Dave caminhava
em direção à poltrona até notar uma silhueta feminina
sentada. Atrás da poltrona há uma prateleira de madeira
escura, com dezenas de potes de vidro. Dentro, líquidos
escuros com coisas boiando e se movendo. Dave não
conseguiu reconhecer nada ali.

232
A única coisa que destoava de todo o resto estava na
mesinha ao lado da poltrona. Um bule e uma xícara de
porcelana repousavam sob uma bandeja de prata. Uma
fumaça clara saía da xícara. O cheiro do chá de broto de
laranja chegou às narinas de Dave. A perfeição daquele
conjunto de chá era bizarra. Aquilo não poderia
permanecer limpo naquela sala de forma nenhuma. A
cabeça de Dave começou a se confundir, uma leve tontura
passou por sua cabeça, recobrou os sentidos rapidamente.
Quando os olhos de Dave já começavam a se
acostumar com a escuridão, ele a reconheceu. Maritza
estava sentada naquela poltrona ferrada. Com olheiras
profundas tal como no dia de seu velório. Com um olhar
catatônico, ela sentava-se um pouco mais à frente do
assento, com os joelhos e calcanhares bem colados. As mãos
com os dedos cruzados repousavam sobre as coxas.
Ela usava um vestido branco e preto, com babados e
rendas das mesmas cores. A parte que um dia fora branca
estava imunda, com tons de amarelo encardido, e a parte
que continuava preta estava rasgada, com fiapos à mostra.
À medida que Dave se aproximava, o rosto dela parecia ficar
mais assustador, talvez pelo ambiente ou pela iluminação,
chegou mais perto a passadas lentas:
— Meu bem? É você?
Sem resposta.
Já estava a distância de conseguir tocá-la. Pousou a
mão sobre as de Maritza, que não esboçou reação. Seu olhar
permaneceu da mesma forma que anteriormente, vazio.

233
— Meu amor? Fala comigo! Sou eu, Dave.
Não houve resposta. Maritza começou a mover a
mandíbula, fazendo movimentos de mastigação. O som de
ossos se quebrando podia ser ouvido de dentro da boca
dela. Ela fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás,
erguendo o queixo e expondo o pescoço. Dave notou
reações pulsantes em sua jugular, se afastou dois passos
atrás.
A pulsação ficou mais acelerada, Maritza abriu a
boca e um volume absurdo de sangue começou a escorrer
pelo seu queixo, como uma cachoeira vermelha. O sangue
escorria por todo seu corpo, manchando seu vestido sujo.
Enquanto o sangue fluía para fora da boca, alguns dentes se
soltaram e desceram pela correnteza. O cheiro de ferro se
sobrepôs ao de broto de laranja, fazendo o estômago de
Dave revirar.
Dave afastou-se, com dificuldade de andar, os pelos
do tapete estavam empapados pelo líquido viscoso. Tentou
encontrar a maçaneta, mas não conseguiu sair daquela sala
por mais que empurrasse a porta. Voltou-se para Maritza,
ela respirava de forma pesada, tomou um profundo fôlego
e começou a gritar. A vazão do sangue aumentou dezenas
de vezes e o fluxo bateu no teto e se espalhou mais rápido,
derrubando os membros presos ali. O som do grito era
ensurdecedor, fazendo Dave tapar os ouvidos e cair de
joelhos na imensa poça de sangue.
A voz de Maritza ia de um agudo para um gutural
capaz de tremer as paredes, o som fazia ondas no sangue

234
que já inundava a sala. O líquido beirava a cintura, Dave foi
em direção de sua ex-noiva, pegou-a pelos ombros:
— PARA! O QUE TÁ ACONTECE... — Um jato de
sangue o arremessou na parede oposta, e caiu pesado na
piscina de sangue que a sala se tornara.
Dave se levantou com dor nas costas, o sangue já
tomava todo o aposento. O nível do líquido já estava na
altura do queixo, logo lhe cobriria o nariz. Os membros
decepados flutuavam pela superfície e tocavam o rosto de
Dave, que teve o impulso de vomitar e não conseguiu.
— Maritza, não! — A luz deixava seus olhos na
mesma velocidade que o ar deixava seus pulmões.
Dave tentou dar um último grito, mas sua voz foi
abafada e borbulhou sob o sangue.

235
49

— AHHHHHHH!
— Calma, meu rapaz, relaxe, vai ficar tudo bem. —
Dave reconhecia aquela voz.
Ele estava confuso e meio tonto, levantou-se muito
rápido, e sentado na cama olhava em volta tentando
identificar onde estava. A dor lhe lembrou de não fazer
movimentos bruscos. Em sua memória se recobrava de ter
visto luzes e sentir seu corpo em movimento. A memória lhe
trazia alguns vultos que pareciam pessoas. Seu corpo doía
em vários lugares, o rosto estava inchado e seu supercílio
suturado com vários pontos.
— Onde eu estou? — disse Dave sentindo dores
horríveis.
— Onde mais? Você está num hospital, depois da
surra que você levou... ou deu... Não sei como dizer.
— Aí. Você me trouxe aqui? — A voz não saía
normalmente devido aos inchaços.
— E isso importa? A enfermeira mandou você tomar
isso aqui — disse Wins, apontando um copinho com
comprimidos.
— Aí, cara, parece que eu fui atropelado por um
caminhão. — Colocou os comprimidos na boca e virou um
copo de água.
— Com a raiva que você estava, não é muito diferente
de um caminhão. — Wins olhava pela janela.

236
— Não era para eu ter sobrevivido — falou com
dificuldade para engolir.
— Essa é a maneira mais ridícula, ou a mais maluca,
de se suicidar que Wins já viu.
— Cara. Que dia é hoje? — Dave teve um arrepio ao
terminar de ingerir os comprimidos.
— Quinta-feira!
— O quê? Eu tô aqui há três dias?
— É pouco, se considerar no dano que sofreu. Você
chegou bem perto de morrer, cara!
— Onde eu estava com a cabeça quando fiz isso?
— Bom… Me diga você, eu gostaria de saber. Eu
tenho uma teoria.
— E qual seria?
— Creio que você estava se punindo, por que acha
que você foi o culpado pela morte da sua ex-noiva.
— Mas eu fui culpado! Minha “consciência” —
Sinalizou aspas com as mãos na medida em que a dor
permitia. — É fruto da minha imaginação, fruto de mim, sei
lá! Tudo parte de mim resulta em mim. Portanto, a culpa é
minha.
— A ideia pode ter te forçado a tirá-la do caminho.
— Impossível! Não estava em mim ainda.
— Pode ser.
— Vai me dizer que você está envolvido nisso
também.

237
— Não me acuse, rapaz! — Apontou o indicador para
Dave. — Não se atreva a pensar que Wins é capaz de tirar a
vida de um ser vivo.
— ENTÃO O QUÊ? — Levantou a voz. Mesmo com
medo, não recuou. — Eu não posso nem ao menos ter
certeza do que aconteceu.
— Eu digo. Aquela mulher era uma âncora na sua
vida. Você mal se alimentava direito. Trabalhava como um
burro de carga e para quê? Tentar dar uma vida melhor pra
ela?
— Veja como fala — disse, virando o rosto.
— Melhor parar de se culpar antes que você tenha
outro ataque de raiva, e comece a se espancar aqui.
— Como? Eu nem tenho forças para ficar sentado.
Mal consigo me mexer de tanta dor.
— Você já tomou os remédios, então logo passa.
— Eu ainda não entendi o porquê de você estar aqui.
— E franziu o cenho.
— Eu vim por conta de uma ideia que eu te entreguei
há um tempo.
— O quê? Eu todo fodido aqui nessa cama de
hospital, e você me vem me cobrar uma ideia ridícula?
— Agora veja você como fala. — Wins encarou Dave
profundamente. — Pelo visto tá perdendo o efeito.
— Cara! Eu sei que foi minha culpa, mas eu quase
morri e você me vem com essa história de ideia. Sério?
— Isso é preocupante. Você não está estabelecendo
prioridades.

238
Dave gritou novamente:
— Como assim? Eu vivo num dilema onde eu estou a
ponto de concluir que matei minha ex-noiva. O que você
acha que é prioridade pra mim? Saber quem a ou um
executar aquela ideia idiota. — Segurou as costelas na
tentativa de conter a dor.
— Ainda acho que você não sabe estabelecer as
prioridades, meu jovem.
— Você tá ficando louco! — Fez um sinal negativo
com a cabeça.
— Não! Você não entende, a ideia é a chave de tudo.
— ME DEIXA! NÃO LIGO PRA ISSO!
Baixando a cabeça em sinal de decepção, Wins disse:
— Eu não queria ter que fazer isso.
Wins foi andando em direção à maca mexendo no
bolso interno, de lá tirou uma seringa com um líquido
dourado dentro. Olhou seu conteúdo contra a luz, e deu
umas batidinhas no corpo da seringa.
— O que você vai fazer?
Ele pegou o cateter de soro de Dave e retirou a
proteção de plástico da ponta da agulha. Pressionou o
êmbolo, e parte do líquido espirrou. Injetou no soro. Dave
tentou impedir, mas já era tarde. Mal conseguia se mover
pela dor, o líquido correu para dentro das veias dele. Os
olhos de Dave brilharam em dourado mais uma vez:
— Nossa! Onde eu tava com a cabeça?

239
50

— Eu estou impressionado, senhor... — disse


passando os olhos pela prancheta metálica.
— Dave — acrescentou.
— Sr. Dave, como eu dizia, sua recuperação me
surpreendeu.
— Mesmo? — Fingiu surpresa.
— Sim, foi mais rápido do que nós esperávamos. Só
tem uma coisa que eu ainda não estou entendendo.
— Pois não?
— A ambulância lhe trouxe aqui e ninguém deu
entrada na sua internação.
— Eu não tenho ninguém mesmo. Não mais. O
senhor veio assinar minha alta?
— É, eu vim. — O médico parecia distante em seus
pensamentos. — Tá aqui.
O médico, doutor Emilio Fernandes, assinou uma
folha na prancheta de metal, guardou a caneta no bolso do
jaleco e tirou um carimbo automático do mesmo bolso.
Pressionou-o contra a folha. Destacou um pedaço de papel
e entregou a Dave.
— Boa sorte.
— Obrigado, doutor.
O médico saiu do recinto e alguns minutos depois
uma enfermeira entrou no quarto, empurrando uma
cadeira de rodas. Ela retirou a agulha de soro, Dave já tinha

240
trocado de roupa e estava pronto para deixar o hospital. Ele
olhou para ela e pensou já tê-la visto em algum outro
momento. Ele se sentou, meio a contragosto. A enfermeira
empurrou a cadeira até a calçada sem dizer uma palavra.
Dave levantou-se e viu a enfermeira empurrar a
cadeira de volta. Ele se atentou às formas dela, e se sentiu
um pouco atraído. Ficou olhando até as portas automáticas
se fecharem.
Eram por volta das 11 horas da manhã e o sol estava
forte, a ponto de não deixar os olhos se abrirem direito.
Dave caminhava pela rua com saudade de andar de
bicicleta. Também sentia saudade de outra coisa difícil de
identificar. Não conseguia definir muito bem o que era, mas
envolvia algo misturado com uma vontade eminente,
entretanto o sentimento parecia não envolver Maritza.
Ele girou a maçaneta do seu apartamento, e viu
aquela bagunça de peças espalhadas pelo tapete. O teto e
chão ainda com rachaduras. Em cima da mesa, seu
exemplar de Arduino. Lembrou-se o quanto foi duro com
Hiro. Como maltratou o pobre rapaz que só tinha a intenção
de ajudá-lo. Dave trancou a porta atrás de si, foi até a
geladeira, fez um sanduíche. Comeu, já planejando seus
próximos passos.
Sentou-se de frente ao computador, conectou o USB
do Arduino. Os olhos de Dave apresentavam um brilho
dourado intenso como na vez em que fora picado por aquela
vespa verde. Uma luz se acendeu e começou a piscar no
centro do Arduino. Iniciou o programa e começou a

241
programar como um robô. Ele mesmo estava assustado
com a velocidade que digitava. Mal conseguia acompanhar
a própria velocidade sem ao menos saber o que estava
fazendo. Olhando para a tela via as linhas de código se
formando, nada daquilo fazia o menor sentido, era como se
apenas seus dedos fossem fluentes naquela linguagem.
Depois de alguns minutos ela tinha certeza que havia
acabado, que aquilo iria funcionar conforme ele desejava.
Um pequeno lampejo de alívio tocou seu coração.
Como se ele tivesse pagado uma dívida com Hiro
terminando seu trabalho. Não precisou cismar muito, seu
corpo já sabia o que fazer e agiu sozinho. Trocou os discos
por envelopes, conectou o Arduino, ligou na tomada e
apertou o botão.
O braço mecânico moveu-se conforme foi
programado. A garra foi em direção ao lugar onde
envelopes deveriam estar, fechou a garra e soltou bem no
buraco para o acesso às correspondências. Dave fez mais
testes até ter certeza. Adaptou um pequeno teclado
numérico para senhas. Imprimiu uma folha em branco e
substitui os encartes das músicas, deixando espaço para os
nomes dos destinatários.
Tudo estava pronto, já era noite o suor escorria de
sua testa. Dave estava sentado no tapete da sala olhando seu
projeto concluído. Um orgulho queimava em seu peito, mas
não parecia estar satisfeito. Algo ainda faltava ali. É claro.
As cores. A carcaça daquela máquina era extremamente

242
vibrante, cheia de LEDs coloridos. Aquilo chamava atenção
demais, tinha que ser uma coisa mais discreta.
Ele removeu os LEDs com sua parafusadeira. Mas
ainda assim a carcaça ainda era colorida demais, brilhante
como a lataria de um carro. Ainda parecia uma jukebox e
Dave queria tirar essa aparência de caixa de música.
Precisava fazer compras.
Pegou a chave do cadeado da bicicleta, o capacete, e
desceu as escadas. Por uma incrível sorte, Dona Finha não
estava no caminho. Assim que girou as chaves do cadeado,
notou que os pneus estavam murchos.
— Droga!
Dave arremessou o capacete no chão e quase o
quebrou, não havia escolha a não ser caminhar. Ele tinha de
achar uma loja que vendesse tudo que precisava. Sem
tempo a perder, correu pelas ruas, não seria fácil encontrar
um lugar aberto naquele horário. Por pura sorte encontrou
uma única loja aberta. Passou por baixo do letreiro amarelo
que dizia: “Ferragens em promoção”. Foi ali mesmo que
entrou, torcendo para que sua sorte permanecesse e
encontrasse ali tudo o que precisava.
Foi atendido por um senhor de grisalho de poucos
cabelos e muita barriga:
— Oi! Posso ajudá-lo? — disse, arrumando o lápis
atrás da orelha.
— Pode. Eu preciso de algumas coisas.
— Diga, meu jovem.

243
Dave estava nervoso, ao sair de casa estava com tanta
pressa que se esqueceu de pegar dinheiro ou fazer uma lista
das coisas que realmente precisava. A questão do dinheiro
era fácil resolver com qualquer nota que estivesse em seu
bolso. O problema é que a única coisa que se lembrava dos
materiais, eram as tintas, pois queria mudar a cor da
jukebox.
— Preciso de tinta spray preta e amarela.
Enquanto o vendedor entrou pelos corredores, ele
tentava se lembrar do que mais precisaria. Tentando
relacionar as alterações que a Jukebox exigia para se
adequar ao que tinha em sua mente. Enquanto revisava
seus arquivos mentais Dave sentiu um toque em seu ombro:
— Oi, Dave. Como você tá?
Ele achava que conhecia aquela voz, o perfume lhe
deu a certeza, mas se virou por educação.
— Marisa! Tudo bom? — cumprimentou-a com um
beijo no rosto. — Você é a última pessoa que eu imaginava
encontrar numa loja de ferragens.
— Ora! Eu também preciso de ferramentas — disse
sorrindo. — Eu mal tive tempo de falar com você quando
saiu. O que anda fazendo?
— Eu... tô investindo em uns projetos pessoais. Nada
muito certo ainda.
— Ah, legal.
— E você ainda está na lavanderia?
— Tô lá ralando. Lá é um bom lugar pra trabalhar.

244
— Fale por você! — Trocou de assunto. — Você trocou
a cor do cabelo?
— Troquei, foi há pouco tempo. Gostou do rosa? —
Marisa havia trocado as pontas do cabelo de azul para rosa
bem claro.
— Legal. — O clima não era dos melhores, nenhum
dos dois estava confortável com aquela situação. Pouco
tempo de amizade para qualquer outro tipo de assunto. Sem
um assunto em comum para desenvolver um diálogo, Dave
retomou a conversa por impulso:
— E aí? Você tá de bobeira amanhã à noite? — Dave
pensou: “Por que fiz isso?”.
— Sim, não tenho nenhum compromisso. — E ajeitou
o cabelo atrás da orelha.
— Vamos sair pra dar uma volta? — Tinha que dar
seguimento ao que começou.
— Claro! — Marisa respondeu com a empolgação de
alguém que já esperava pelo convite.
O vendedor retornou com dois tubos de tinta:
— Nós temos essa fosca, e essa brilhante. Qual o
senhor prefere?
— A preta eu quero fosca, e a amarela brilhante.
Dave tomou um susto. Como soube responder
aquilo? Nem fazia ideia que existia tinta fosca, nunca tinha
ouvido aquela palavra, mas sabia de alguma forma
exatamente o que precisava. Seus olhos começaram a
brilhar discretamente.

245
— Eu vou precisar também de: três folhas de lixa
para madeira 220, cinco lixas d’água 600, primer spray, fita
de mascaramento, bucha número 8 e parafusos, disco de
serra, disco de borracha, trilho metálico, uma folha de
acrílico de 3 mm, dobradiças de ½, cadeados pequenos,
máscara, e um kit de rodinhas de 36mm — Dave falou tão
rápido que o vendedor ainda estava boquiaberto com um
bloco de notas na mão, revisando mentalmente se tinha
prestado atenção em tudo.
— Nossa, você decorou tudo, hein? — Marisa riu.
— Err... Algo mais senhor? — Pegou um papel e uma
caneta. — Pode repetir?
Dave retomou o fôlego e repetiu a lista mais
lentamente para que o vendedor anotasse. O vendedor ia
saindo com a lista quando Dave acrescentou:
— Ei! Se as rodinhas puderem ser com freio, melhor
ainda.
— Então, Dave, onde você tá pensando em ir?
***
De volta em casa com uma sacola quase rasgando
devido ao peso, espalhou tudo no balcão da cozinha
americana. Dave ainda estava se perguntando onde estava
com a cabeça ao chamar Marisa para sair. Retirou o tapete
da sala e com a fita crepe pregou jornal no chão e em uma
parte da parede. Lixou toda a carcaça da máquina até retirar
a camada de cor vibrante, deixando a madeira exposta. Já
com os braços doendo, colocou a máscara no rosto e aplicou

246
uma fina camada de primer, deixando quase toda a jukebox
cinza. Agora bastava secar.
No dia seguinte, Dave começou os trabalhos antes do
café da manhã. Pintou tudo de preto, em seguida mascarou
alguns detalhes e pintou de amarelo. Quando a tinta secou,
lixou tudo com a lixa d’água para dar apenas um pouco de
brilho à pintura. O contraste amarelo e preto ficou
maravilhoso, mas ainda faltava algo. Dave esticou várias
tiras de fita crepe no balcão, uma ao lado da outra,
formando um retângulo. Com um estilete ele desenhou uma
vespa, dentro de um hexágono. Fez um estêncil, colou na
frente da máquina na parte preta e com o spray amarelo,
deu leves jatos de tinta sob a forma. Após remover a fita
crepe, lá estava o desenho de uma vespa amarela com as
asas abertas em um fundo preto.
Dave olhava a vespa desenhada em sua criação e
contemplava o dorso da mão, onde havia um ponto
avermelhado bem no centro, e se questionava como tudo
aquilo entrou por aquela picada. O que estava em sua
frente, era o resultado de algo que entrou por ali, esse era o
motivo da escolha daquela logo. Tudo veio de uma vespa.
Ele optou pela cor amarela, por dois motivos: primeiro
porque as vespas que conhecia eram amarelas e pretas e
segundo, não queria dar a Wins o gostinho de usar seu tom
de verde favorito.
Ele se sentia meio que realizado ao fim de todo
aquele trabalho. O projeto ainda não estava concluído, mas
já era tarde da noite. Dave sentiu vontade de ligar para

247
Marisa. Sem entender muito o porquê disso, já que o
projeto ainda não estava totalmente concluído. A ideia
parecia não lhe obrigar a continuar trabalhando. A vontade
de ligar para a garota era mais forte nesse momento. Discou
o número.
— E aí, tá pronta?

248
51

Eu tranquei a porta da loja e girei a maçaneta uma


última vez para ter certeza que deixei bem fechado. Guardei
as chaves no bolso interno do blazer. O fim do dia estava
agradável para caminhar, perfeito para a minha missão
dessa noite. A garoa muito fina me lembrava um borrifador
de água que vinha de todas as direções. O céu era mesclado
com nuvens e estrelas, tudo parecia montado para mim.
A rua estava completamente deserta, só se ouvia os
passos de meus sapatos na calçada. As luzes dos postes iam
se apagando à medida que eu caminhava, como se a noite
quisesse encobrir minha passagem. Muito contraditório já
que, mesmo tímida entre as nuvens, a lua iluminava bem a
rua.
No meu caminho tinha um ponto de ônibus. Próximo
ao banco do meio havia um rapaz de mochila nas costas,
cabelos longos presos em um rabo de cavalo, cavanhaque
mal feito, e blusa amarela. Eu não ia falar com ele:
— Oi, senhor... Você sabe se o 456 passa nesse ponto?
— Passa, sim, meu jovem.
— E demora muito?
— Tudo depende do ponto de vista, não do ponto de
ônibus.
— Hein? — O rapaz parecia muito confuso, não
esperava uma resposta tão complexa para uma pergunta tão
simples.

249
— A sua espera diminui à medida que ela aumenta.
— Ajeitou meu chapéu coco.
— Aí, brother, não tô entendendo nada do que você
tá falando...
— Quanto mais tempo você esperar pelo seu ônibus,
menos vai esperar. Pensa assim que a espera diminui, ou
não, depende.
— Mas isso não faz sentido... Espera... Faz sim, não,
não faz. Estou perdido.
— Não está! Seu caminho é definido pela rota do
ônibus que você espera.
— E se eu pegar outro ônibus? — Decidiu entrar no
jogo.
— Não muda o fato de que vai continuar esperando.
— Mas no caso de...
Ele não me viu mais, aquela discussão não levaria a
lugar nenhum. Existem algumas pessoas que realmente não
merecem o meu tempo, não sei por que ainda o desperdiço
com elas. Eu já estava quase virando a esquina, quando ele
percebeu minha ausência. Se eu desse asas àquela discussão
provavelmente o dia nasceria antes que ele conseguisse
entender alguma coisa. Eu não entendo como as pessoas
não têm a capacidade de entender conceitos contraditórios
e simultâneos. A garoa fina que caía era consequência de
uma chuva forte de algumas horas mais cedo. Mas meu
terno não se molha mesmo pisando nas poças de água
profundas.

250
Eu vi um par de faróis vindo do fim da rua, em alta
velocidade. Eu me preparava para atravessá-la quando o
carro passou por uma poça de água criando uma onda, me
banhando dos pés à cabeça de lama. Felizmente o líquido
escorre pela minha pele e pelo tecido do meu terno. Atinge-
me, mas não me molha nem me suja. Meu terno permanece
impecável como sempre. Nem me dou o trabalho de me
limpar, apenas pego meu lenço vermelho para disfarçar,
mesmo que não haja a menor necessidade. Sigo meu
caminho, assim como o motorista que continua a se afastar
eu não sinto nenhum tipo de rancor.
Cheguei ao meu destino, encostei o ombro no poste
e ele apagou. Cruzei as pernas e abaixei meu chapéu na
tentativa de parecer discreto. Pensando bem tudo isso é em
vão já que, mesmo no escuro, era bem difícil esconder meu
terno verde-limão e minha gravata vermelho-sangue.
Olho para cima e vejo na janela do terceiro andar,
uma moça que aparentemente acabou de sair do banho,
com uma toalha enrolada na cabeça. Na nuca uma tatuagem
de borboleta. Ela retirou a toalha e ligou o secador, as
pontas dos cabelos eram em tons azuis. Era minha hora de
agir.
Eu vasculhei o bolso interno do meu blazer até
encontrar um pequeno estojo envernizado com tampa de
vidro. Abri o fecho dourado. Presos com agulha no macio
veludo vermelho estão meus veículos, minhas razões de
existência.

251
Puxo uma das agulhas, e uma vespa voa e pousa em
meu ombro. Fecho o estojo e devolvo-o ao mesmo bolso ao
qual ele saiu. A vespa agora caminha na manga do meu
terno parando na palma de minha mão. Aproximo ela de
meus lábios, digo as palavras e um ponto vermelho surge no
dorso da vespa entre suas asas, com um brilho dourado
porém discreto, nada tão importante assim. Ela voa.
Indo em direção à janela aberta voava em zigue-
zague aumentando sua altitude a cada bater de asas. Escuto
um “Ai”, mas sei ser pelo susto e não pela dor. Eu sinto a
ideia sendo transmitida pelo ferrão, que agora furava uma
das asas da borboleta. A ideia que acabo de colocar nessa
moça seria a chave para uma reação em cadeia que
resultaria em meu real objetivo. Mal sabe ela que se trata de
uma peça importante em um jogo maior. Minha função
aqui já foi concluída.
Eu retorno pelo mesmo caminho, que vai
escurecendo à medida que os postes vão se apagando. Um
gato preto revira uma lata vazia. Abandono a calçada e volto
caminhando pelo meio da rua, passo por um ponto de
ônibus deserto e sigo para minha loja.

252
52

Dave estava sentado em um banco de madeira, na


área comum de circulação do shopping. Ele deslizava os
dedos pela folha lisa de uma zamioculca que adornava o
corredor, na tentativa de conter seu nervosismo. Já fazia
muito tempo que não tinha um encontro, não se lembrava
muito bem do que fazer ou como se portar. Para ele a perda
de sua noiva ainda era muito recente, mas de alguma forma
isso não o impediu de estar ali, ele sentia que aquele
encontro deveria acontecer.
Dali onde estava era possível ver a fila do cinema,
que devido ao fim de semana, não parava de aumentar. Ele
olhava as vitrines iluminadas, com coisas tão caras que
pouquíssimas pessoas conseguiriam ou queriam pagar.
Mesmo que conseguir dinheiro não fosse mais um
problema para Dave, ele jamais pagaria o valor de uma
marca, por mais que a qualidade fosse superior. Para ele
existia um abismo enorme entre preço e valor, que ele não
pretendia atravessar.
Observando o movimento das pessoas ali, Dave
traçou dois perfis: os que estavam ali para passear e no
máximo gastariam dinheiro com um lanche, cinema ou
sorvete, e os que estavam lá para fazer compras, essas sim
eram livres de preocupação de preço e valor eram tão
próximos um do outro quanto os dedos das unhas.

253
Ele estava observando as pessoas, e quando estava
prestes a definir um terceiro grupo, sentiu dois dedos
tocarem seu ombro:
— Oi — ela disse.
Dave levantou-se respondendo o “oi” com “olá”, deu
um beijo no rosto de Marisa e completou:
— Gostei do cabelo.
— Sério? Nem fiz nada diferente, nem mudei a cor.
— Gostei mesmo assim. Quer ver um filme?
— Já que você perguntou tem um que eu estava louca
para ver.
Marisa deu um passo adiante e Dave colocou-se a
caminhar ao seu lado. Durante o caminho ele deslocou sua
atenção para a beleza dela. Ela estava usando bastante
maquiagem com uma sombra escura nos olhos e um batom
bem vermelho. Usava um vestido amarelo não muito curto,
mas acima dos joelhos, um salto alto cor creme combinando
com uma tornozeleira dourada. Dave tinha vontade de
segurar a mão dela, mas ainda parecia cedo. Faltava um
pouco de coragem, mas não de vontade.
Na fila do cinema eles conversavam sobre os mais
diversos assuntos, lembraram-se do pouco tempo que
trabalharam juntos. Marisa destacou os atrasos de Dave e
como ele se comportava de modo estranho.
— Tinha uns dias que você chegava muito esquisito.
— Eu? Como?
— Não sei dizer, não parecia que era você.

254
— Deve ser impressão sua. Eu às vezes durmo mal,
chegava cansado. — Tentou desviar o assunto.
— Nesses dias você não conversava com ninguém. Só
o essencial, entende? Você ficava sentado num cantinho e
ficava lá, morto vivo.
— Bobagem, era só cansaço.
— Sei.
Ambos riram.
Falaram sobre Roberto e sua gestão como chefe. Ela
contou como andavam as coisas na lavanderia, assuntos
que os aproximavam. Enquanto Marisa falava e comentava
sobre o que tinham em comum Dave olhava para aquela
cintura fina e curvilínea e tinha vontade de tocá-la e tomá-
la em seus braços, mas era cedo ainda.
Ele olhava para a boca dela, desejando que seus
lábios a tocassem, sua atenção se ateve a uma covinha que
se formava a cada vez que ela sorria. Aquele sorriso lhe
parecia tão familiar. Ele se sentia bem à vontade ao ouvi-la.
Isso impedia qualquer silêncio constrangedor, pois sempre
vinha novo pensamento, uma nova palavra só para vê-la
sorrir mais uma vez, e tudo isso, combinado com o som da
sua voz que acariciava seus ouvidos.
Após comprarem os ingressos, indo em direção à sala
do cinema, Dave se surpreendeu ao notar que já estavam de
mãos dadas. Ele não conseguiu dar o mínimo de atenção
que o filme merecia, pois, ele era tão desinteressante
quanto os assuntos que foram tratados na fila.

255
O que mais comprometia sua atenção era o fato de
uma mulher linda como Marisa estar tão próximo dele, e
naquela meia luz parecia ainda mais atraente. Dave tinha o
impulso de tocá-la, mas hesitou, não queria atrapalhar a
experiência dela com o filme já que ela queria muito ver. Ela
cruzou as pernas revelando metade das coxas, Dave notou
o movimento pelo canto do olho, seus dedos tremeram, a
vontade de tocá-la aumentou, mas ainda parecia cedo.
Talvez não fosse, não para ela.
Marisa descruzou as pernas, pegou a mão de Dave
que repousava sob o braço da poltrona, e colocou na parte
interna de sua coxa. Ele sentiu aquilo como um sinal verde
para libertar sua vontade. Imediatamente pegou-a pelo
braço e deu-lhe um beijo na boca. Aquilo foi, de certa forma,
libertador. Ele quase havia esquecido o gosto de uma boa
companhia. As sensações eram uma mistura de vontade,
prazer e arrependimento, mesmo assim, ele queria mais
daquilo.
Saíram da sala antes de o filme acabar. Andando e
rindo pelos corredores, Marisa com a mão no ombro de
Dave e ele com o braço circulando a cintura dela. Aquilo já
não parecia mais tão errado, e já começava a se parecer com
diversão. “Eu ainda ouço ela, mas ela se foi” pensou Dave.
Ele olhava aquele vestido amarelo com vontade de puxá-lo
pela base por cima da cabeça de Marisa, mas estavam em
público e tinha que se conter.

256
— Olha isso, Dave. — Marisa apontava para uma
máquina de pegar bichinhos de pelúcia no meio do corredor
do shopping.
Ela o puxou pela mão até a máquina, e encostou a
testa no vidro, fascinada pelas pelúcias como se fosse uma
criança.
— Vamos embora, isso é perda de tempo — reclamou
Dave.
— Tenta só uma vez, é bem barato.
— O problema é que nunca se gasta pouco com essas
coisas. A gente sempre acha que vai pegar na próxima.
— Ah, mas eu quero, por favor.
Ele não queria gerar uma briga e acabar com o
encontro, ainda mais por uma coisa tão banal como alguns
bichinhos de pelúcia. Com apenas dois segundos de
reflexão percebeu que poderia tentar infinitamente e não
valia a pena brigar por tão pouco dinheiro já que não faria
falta. Dave olhou aqueles olhos pidões e aquele beiço de
criança emburrada que ela fazia só para chantageá-lo. Ele
tirou uma nota de dois e entregou à Marisa. Ela pegou os
dois lados da cabeça dele e deu um beijo demorado de
agradecimento.
Dave ainda meio anestesiado por aquele beijo se viu
arrastado em direção à máquina. Marisa levou um tempo
até que a máquina aceitasse a nota. Quando finalmente
conseguiu uma música mais alta começou a tocar. Ela
movimentou a alavanca e moveu a garra até posicioná-la
em cima de um unicórnio cor de rosa com crina de arco-íris.

257
Marisa apertou o botão e a garra desceu molenga, tocou o
chifre do unicórnio e fechou-se vazia, foi em direção ao
buraco e abriu sem deixar nada cair.
Ela voltou-se para Dave, que já segurava uma nova
nota de dois na mão, e ela sorriu. Quando foi pegar a nota,
ele a afastou de suas mãos.
— Tem pedágio dessa vez também.
O sorriso dela aumentou um pouco. Marisa beijou
Dave de forma mais demorada dessa vez. Pegou a nota e
virou-se para a máquina. Dave pensou que se pudesse
comprar aquele sorriso todas às vezes com tão pouco
dinheiro, multiplicaria notas infinitamente. Dessa vez a
garra puxou um pouco o pescoço do unicórnio, mas não
conseguiu levantá-lo.
— Marisa, olha só. — Dave estava do lado dela
apontando para o vidro da máquina. — Vê como os
bichinhos estão cuidadosamente encaixados é muito difícil
tirar eles dali.
— Você tem razão. — Marisa estava impressionada,
como não tinha notado um detalhe tão explícito com
aquele.
— Vê aquele rapaz ali? Com uns bichinhos na mão?
— Dave fez uma indicação discreta com a cabeça.
— O de boné vermelho?
— Esse mesmo. Por que será que ele conseguiu
pegar? Já se perguntou?
— Não. Por quê? — questionou Marisa.

258
— Ele deve estar aqui há bastante tempo. Só
observando os bichinhos que gente como nós tira do lugar.
Daí ele vai lá e pega.
— Entendi.
— Nós temos duas opções. Ou você tenta pegar a
baleia ali que tá quase caindo ou...
— Esperamos até alguém mover o unicórnio para nós
— ela completou a frase, estalando os dedos.
Sentados em um banco próximo à máquina de
bichinhos. Dave a beijava, tocava-lhe a cintura e a nuca, o
clima estava agradável a ponto de não perceberem a
passagem do tempo. Ele reparou que ela olhava pelo canto
do olho para as máquinas. De repente Marisa levantou-se
subitamente e acertou o ombro na boca de Dave, que sentiu
um pouco de gosto de sangue.
— Mexeram no unicórnio. Vamos lá! — disse ela.
Dave se sentiu até um pouco ofendido, achando que
ela estava totalmente concentrada nele, mas não. Marisa
avançou em direção à máquina antes que o homem do boné
vermelho notasse mais uma oportunidade de se aproveitar
do dinheiro dos outros. Talvez ela não tenha percebido que
estava fazendo a mesma coisa, mas enfim. Quando Dave
chegou próximo à máquina, Marisa já tinha conseguido
enfiar a nota, e já estava movendo a garra.
— Mira no pescoço, que o chifre do... do... do... do
cavalo vai ajudar a garra a segurar ele.
— Unicórnio! — ela corrigiu.

259
Ela empurrou a alavanca até o ponto onde achava
que a garra estava posicionada acima do unicórnio, ela
olhou ainda pelo vidro lateral para ter certeza, o tempo já
estava quase acabando.
— Vai, solta!
Ela ainda hesitou um pouco antes de apertar o botão.
A garra desceu e pegou nas costas do unicórnio, levantou o
bicho que pesou para o lado e caiu em meio aos outros.
— Droga! — Marisa esmurrou o vidro.
Era nítida a decepção no olhar dela.
— Eu pego pra você. — Ela esboçou um leve sorriso
sem muita confiança.
Dave pegou mais uma nota de seu bolso e colocou na
máquina. Não é porque ele poderia tentar infinitamente
que faria a captura de qualquer jeito. Com a real intenção
de conseguir a pelúcia, inseriu a nota e tomou o controle da
garra.
— Eu tinha dito que você tem que mirar no pescoço,
olha só.
Ele moveu a garra, para cima do bicho desejado.
Dave esbarrou na alavanca segundos antes de apertar o
botão, a garra desceu balançando de um lado a outro. Ela
pegou o unicórnio pelo pescoço. A pelúcia passou
“flutuando” à frente deles e ameaçou cair, deslizando pelos
ferros do gancho. Os dois com a expectativa altíssima
cruzaram os dedos torcendo para não cair antes da hora. O
chifre o travou na garra e continuou a se mover até o buraco.

260
E caiu. Marisa pegou o bichinho de pelúcia e o ergueu sobre
a cabeça como um troféu.
Dave estava feliz com a conquista, mas meio de saco
cheio de tudo aquilo. Ela o agradeceu com um beijo
demorado, que valeu a pena pela espera. Com os braços
envoltos naquela cintura, ele não queria estar naquele
shopping, queria beijá-la, longe daquela multidão na
privacidade de seu apartamento.
Ele queria celebrar a concretização de um trabalho
duro com outro tipo de clímax. Mas se era preciso entrar
numa odisseia em busca de um cavalo chifrudo de crina
colorida para conseguir transar, não custava fazê-lo. Talvez
fosse mais fácil encontrar um unicórnio de verdade do que
conseguir o que Dave queria.

261
53

Marisa apertava o unicórnio pelo pescoço, enquanto


beijava Dave, subindo as escadas do apartamento. Ora ela
batia as costas na parede, ora ele a cada curva que as
escadas faziam. Aquele momento parecia familiar. Marisa
já o abraçava com as pernas, Dave a segurava pelas coxas
enquanto a beijava com o queixo para cima. Ela com os
cotovelos em volta da nuca dele fazia com que as línguas se
embaraçassem. Dave conseguiu abrir a porta sem olhar,
com apenas uma mão, bateu a porta sem trancá-la.
Dave jogou Marisa no sofá e caiu por cima dela. Ela
imediatamente rolou para o tapete e deitou-se com os
braços em cima da cabeça.
— Eu conheço esse tapete.
— É ele mesmo — disse sorrindo.
Ele ajoelhou-se ao lado dela, ela apoiou-se nos
cotovelos e o beijou. Empurrou seu peito, derrubou-o no
tapete e montou em cima dele. Dave subiu as mãos pelas
coxas dela até chegar à cintura por baixo do vestido que ela
rapidamente tirou com um único movimento, por cima da
cabeça. Ela estava sem sutiã, já que o vestido lhe segurava
os seios, hipnotizado por eles, ele não percebeu quando ela
tirou a calcinha. Bonitos e fartos, era difícil não olhar. Tudo
ali parecia montado para ser belo, as proporções, o
tamanho feito exatamente sob medida para suas mãos.
Agradeceu aos céus por ter as mãos grandes.

262
Completamente nua em cima dele. Dave podia sentir
a textura da sua pele macia, com as mãos naquela cintura
fina. Seus polegares quase se encontravam acima do
umbigo, Dave apertou, ela suspirou, ele deslizou as mãos
para cima tocando de leve a região das costelas, e ao chegar
aos seios, os apertou com força. Ela soltou um “Ai” cheio de
ar. Seus mamilos apontavam para cima e escapavam por
entre os dedos de Dave. O cabelo de Marisa, desarrumado,
cobria o lado direito do rosto. Os dentes brilhavam e
mordiam o lábio inferior. O batom borrado era obra de
Dave, ele o tirou com a boca minutos antes.
Os momentos que se seguiram, ultrapassam as raias
da descrição. Aqui, palavras são insuficientes para ilustrar
certas sensações, contudo, é possível estabelecer relações
entre momentos e palavras soltas. Usar as palavras certas é
como guiar a imaginação pelo caminho desejado, sem
passar pela descrição detalhada que monta uma cena. Para
os próximos acontecimentos, podemos listar: suor. Suspiro.
Vapor. Instinto. Aperto. Grito. Tensão. Intensidade.
Velocidade. Ápice. Abraço. Descanso. Sono. Sonho.
Despertar.
Dave acordou ainda deitado no tapete, dali podia ver
o sol que entrava pela janela da cozinha. O micro-ondas
marcava 9 horas da manhã. Piscando os olhos, recordando
dos momentos da noite anterior. Olhou para o lado e
envolta em um lençol branco, com os ombros a mostra
estava Marisa, ainda dormindo. Dave olhava suas costas
nuas, um pouco vermelhas pela noite anterior. Ele passou a

263
mão por ali, da nuca a lombar, e subiu novamente até
chegar à borboleta. Uma vermelhidão, junto a um pequeno
calombo, não fazia parte do desenho.
Ela acordou esticando os braços com as mãos
fechadas, deu um longo bocejo e abriu os olhos lentamente.
— Bom dia. — Dave a abraçou. — Você brigou com
seu unicórnio?
— Não, por quê? — respondeu ela meio sonolenta.
— Porque ele dormiu no sofá.
— Palhaço! — Ela sorriu e o beijou.
O bichinho de pelúcia estava encostado na junção
entre o braço e o encosto do sofá, sorrindo para as
almofadas, com a crina bagunçada.
— Esse bicho deu um trabalho... Acho que nem valeu
a pena.
— É, acho que você tem razão.
— O que você vai fazer com ele?
— Não sei bem ainda, se eu não encontrar um lugar
no meu quarto, provavelmente eu vou dar pra minha
sobrinha.
— Tomara que ele não conte a sua sobrinha as coisas
que ele viu.
Ambos sorriram.
— Ele não parece mais tão legal olhando daqui.
— Eu acho que concordo — disse Dave.
Ficaram alguns segundos olhando para o unicórnio
sentado. Até que Dave rompeu o silêncio.
— Me parece perda de tempo, de verdade!

264
— Pensando bem, você tem razão.
— A não ser que você seja uma criança ou tenha o
costume de dormir abraçadas com bichinhos de pelúcia.
Não vejo motivo para querer um desses.
— Eles poderiam colocar algumas coisas mais úteis
nessas máquinas mesmo.
— Como o quê?
— Não sei. Pensei em jornais, revistas, ou até livros,
quem sabe. — Os olhos de Marisa brilharam em tom leve de
dourado.
Quando Marisa terminou a frase, de forma lenta
quase se calando, ela e Dave compartilharam da mesma
sensação, quase como se entendessem todo o significado
das situações anteriores. Aquela vontade que unia os dois
pareceu sumir repentinamente. O fogo que queimava
anteriormente pareceu que foi apagado com um balde de
gelo. A atração deu lugar a um sentimento de “por que
estamos aqui?”. Parecia que tudo aquilo que aconteceu, o
encontro, o cinema tudo culminou para aquele momento.
— Nossa. Que ótima ideia. — Tentou esconder o
sentimento.
— Acho melhor eu ir embora — disse Marisa, sem
rodeios.
— É. Não precisa ir se não quiser.
— Eu quero! Isso tá muito estranho pra mim.
Os dois estavam muito desconcertados, sem
entender muito bem todas aquelas sensações. Não
conseguiam olhar um para o outro. Cada um foi para um

265
canto procurar as suas roupas. Dave foi guardar os lençóis
e quando virou o corredor, viu de relance Marisa, nua, de
costas abotoando o sutiã. Ela parecia bem menos atraente
agora do que há algumas horas, deitada no tapete. A atração
mudou repentinamente para a indiferença.
Ela estava com a bolsa no ombro e o unicórnio nos
braços. Aquele vestido amarelo parecia tão comum como
qualquer outro de um manequim de loja, ao qual Dave
passaria pela vitrine e o ignoraria sem o menor interesse.
Contudo tão desinteressante quanto o vestido seria o que o
preenchia. Dave sentia-se como se estivesse acabado de sair
de um transe hipnótico, onde a magia e o encantamento da
sedução sumiram sem a menor explicação. Não que Marisa
não fosse uma mulher bonita, longe disso, o fato é que Dave
não conseguia entender como o sentimento mudou tão
repentinamente.
— Eu já vou indo.
Ela apareceu no quarto onde Dave estava, e ele
imediatamente se cobriu com o lençol como se ela nunca o
tivesse visto nu. Ambos deram um passo à frente no que
pareceu a intenção de um beijo, mas era quase como um
muro invisível tivesse sido construído entre eles. As bocas
se desviaram para as bochechas.
— Até mais. — Dave a viu sair sem olhar para trás.
Ele se despiu do lençol, vestiu a roupa e foi em
direção à sala.
— Oi, meu rapaz.
— O que você tá fazendo aqui?

266
— Aquela moça saiu daqui sem fechar a porta e Wins
foi entrando.
— Eu sabia... Eu sabia que você tinha alguma coisa a
ver com isso.
— Eu nem sei do que você está falando, meu jovem
— disfarçou.
— Ah não, claro que não — ironizou. — Você acha que
eu não percebi aquele brilho no olhar dela?
— Eu não tenho nada a ver com essa história. Eu só
vim para te deixar isso. Conversa com ele que você vai ser
bom pra você.
Wins estendeu a mão segurando um cartão de visita
branco. Dave o pegou e leu. O cartão dizia: “Jornal Tribuna
Democrática” no topo. Logo abaixo, “Raphael Felício —
jornalista” e um número de telefone.

Wins abriu o botão do blazer e sentou-se na poltrona,


apoiando a bengala sob o colo.

267
— Por que fazer isso com ela? — Dave balançava a
cabeça. — Ela é uma moça tão gente fina. Deve estar super
arrependida.
— Não se preocupe, ela gostou de sair com você. Vai
por mim.
— Você devia ter aplicado em mim!
— Não. Você já está saturado. Pode ser nociva uma
nova aplicação.
— Quem é essa pessoa do cartão?
— Um amigo.
— Tá, mas o que eu vou falar com esse tal de
Raphael...
Estava sozinho no apartamento, a poltrona vazia.
Dave trancou a porta.

268
54

Dave apertou o botão número 7 do elevador. Lá


dentro havia uma senhora de idade com uma bolsa verde
musgo, muito atraente por sinal, a bolsa, não a senhora. Um
homem de gravata azulada falava ao celular parecendo
muito preocupado, uma música de saxofone tocava no
ambiente.
Pela manhã, Dave havia ligado no número do cartão
e conseguiu um horário para a tarde do mesmo dia. Não
tinha muita noção do que iria tratar naquela reunião, mas
alguma coisa dentro dele o guiava pelas intenções certas.
Ele vestiu a roupa mais social que tinha e escreveu toda a
ideia que “ganhou” de Marisa. Fez alguns esquemas e
deixou tudo bem claro no papel para que não precisasse
falar muito.
A campainha soou e as portas do elevador abriram.
Dave caminhou por um longo corredor encarpetado cor de
carne vermelha. Ao fim, havia um balcão de madeira
adornado com barras de metal dourado. A atendente era
uma jovem que usava fones de ouvido, tinha por volta dos
25 anos e lixava as unhas. Atrás dela, em letras douradas
estava escrito “Tribuna Democrática”.
— Oi, eu tenho um horário marcado com o Rapha...
— Pode aguardar. — Ela cortou Dave. Teclou os
números do ramal. — Sr. Raphael, tem um rapaz aqui e
disse que tem horário marcado.

269
— Já já atendo ele. — E desligou.
Dave estava sozinho na recepção sem contar a
atendente. Sentou-se em uma cadeira próxima. Pegou uma
revista bem antiga na mesa de centro, e algumas edições do
próprio Tribuna. Nunca tinha lido aquele jornal, e
descobriu rápido o porquê. Era péssimo. Quem comprava
aquilo? Tudo ali era desinteressante, não havia como esse
jornal fazer ou ter feito sucesso. Só havia notícias sobre
violência, crimes, prisões, sequestros, obituários,
promoções de produtos tão inúteis quanto o próprio jornal
e sorteio de coisas que ninguém em sã consciência
desejaria.
A atendente fez um sinal para Dave entrar na sala de
Raphael.
— Obrigado — disse, ao dar a volta no balcão.
A porta rangeu quando ele a empurrou. A sala não
era muito grande, mas a janela no fundo da sala era. Uma
vista panorâmica para a avenida e para os outros prédios.
Dave ficou encantado com a vista. “Vou ter uma janela
dessas um dia”, pensou, sentado atrás de uma longa mesa,
muito bagunçada, cheia de papéis e anotações. Ao lado da
mesa, um aquário muito sujo, com a água esverdeada. O
musgo parecia ser a única vida existente ali. O cheiro de
mofo que impregnava o ar parecia vir de uma mancha no
carpete.
Atrás da mesa, Raphael falava ao celular:
— A gente resolve esses investimentos mais tarde,
me diz o que o advogado resolveu no nosso caso. — Ele fez

270
um sinal com a mão para Dave se sentar. — Não tem como
injetarmos mais cem mil num projeto como esse.
Ele usava uma blusa branca, gravata listrada e
suspensórios vermelhos, o blazer do terno estava vestindo
a cadeira atrás de si. Meio calvo no topo da cabeça, usava
óculos de armação preta. E girava no eixo da cadeira
enquanto fala.
— Eu repito! Por mais que tenhamos receita pra isso,
não vou investir tanto numa ideia inútil!
Dave engoliu em seco, pensando que sua ideia
pudesse ser tão inútil quanto aquela proposta. Ele desligou
o telefone e abriu a agenda:
— Você deve ser o... Davi, não é?
— Dave — corrigiu.
— Então? Qual a razão para você ocupar meu caro e
precioso tempo?
— Eu sou amigo do Wins, ele que me deu o seu
cartão...
— Não faço ideia de quem seja.
Dave se assustou com tanta arrogância.
— Enfim... Eu tenho uma proposta que pode tornar
o seu jornal um sucesso. O proprietário é você?
— Sim, eu sou o editor-chefe. O que tem pra mim?
— Minha proposta é fazer uma máquina que possa
vender seus jornais de uma forma diferenciada.
Raphael colocou a mão no queixo.
— Me explica melhor.

271
Dave abriu a pasta que carregava e entregou as folhas
grampeadas.
— Eu escrevi toda a proposta aqui pra ficar mais fácil,
tem alguns desenhos e esquemas. Tudo muito bem
explicado.
— Eu vou mandar isso para o departamento de
marketing. Eu não tenho tempo de ler essas coisas.
— Tudo bem.
— Dependendo da avaliação deles eu entro em
contato com você. Já te aviso: isso não me parece muito
bom, não!
— Mas o senhor nem leu a proposta. Eu levei um bom
tempo pra escrever tudo...
Raphael ouvia com a mão no queixo, com cara de
saco cheio. Interrompeu Dave.
— Pois é, Davi... Não ligo. Não depende de mim.
Depende deles.
— Sem problema. — Dave não queria revidar os
comentários nem corrigir seu nome.
Dave se levantou e Raphael não fez questão de fazer
o mesmo para cumprimentá-lo. Apertaram as mãos. Antes
de deixar a sala Dave deu uma última olhada para a janela
e notou que Raphael folheava as páginas enquanto coçava a
junção das sobrancelhas. Foi tudo mais rápido do que tinha
imaginado, e até que não foi tão difícil.
***
Ele já estava em casa sentado no sofá da sala,
desabotoando a camisa mais próximo da garganta, onde

272
sempre apertava mais. Dave abriu uma lata de refrigerante
e ligou a televisão. Olhou o sofá vazio a sua volta, viu aquela
Jukebox modificada no tapete da sala, e sentiu tanta falta
de Maritza que uma lágrima quase escorreu.
Pensou na vida vazia que andava levando. Estava
sendo guiado por uma ideia que nem era sua, apesar de
muito boa, mas ultimamente não tinha nem tempo de viver
a própria tristeza. Ele sentia como se tivesse traído Maritza
quando saiu com aquela moça da lavanderia. Na hora
pareceu algo necessário, mas a própria consciência é o pior
juiz e nesse momento ela pesava, mas não se deu o trabalho
de aparecer.
Nesse momento ele até olhou em volta, na esperança
de que ele aparecesse. Precisava de alguém para conversar.
No fundo ele sabia que tudo era um plano de Wins para
implantar uma nova ideia dentro dele e talvez tenha achado
que aquela fosse a melhor maneira. E o pior de tudo era a
imensa dificuldade de ignorar as ideias de Wins. Era quase
impossível ir contra o que era implantado.
O celular tocou:
— Alô.
— Dave!! — disse empolgado sem errar o nome dessa
vez — Aqui é o Raphael, do Tribuna Democrática. Tem
como você vir aqui no meu escritório?
— Mas eu acabei de sair daí.
— Não me leve a mal, mas o marketing acabou de
devolver seus papéis e decidimos fazer uma reunião agora.
Tem como você comparecer?

273
— Claro! Estou a caminho.
Dave passou por sua máquina de correspondências e
mesmo sabendo que tinha muitas coisas ainda para ajustar,
tocou a pintura antes de deixá-la no apartamento
depositando um pouco de esperança naquela carcaça
promissora. Foi pedalando até a sede do jornal. Dave foi
recebido por Raphael na recepção.
— Olha ele aí! — Raphael abriu os braços.
Dave olhou para trás e não viu ninguém. Demorou
um tempo para perceber que Raphael estava se referindo a
ele. Agora que o via de pé, percebeu que sua estatura era
bem mais baixa do que aparentava, e a cintura redonda
parecia menor quando escondida atrás da mesa.
— Vem, vamos entrar. — Raphael passou o braço por
cima dos ombros de Dave e o acompanhou até a sua sala
abrindo a porta pra ele. — Fica à vontade.
Dave sentou-se à mesa.
— Bom... Cadê o pessoal do departamento de
marketing?
— Ele tá todo aqui.
— Onde? — Dave olhou em volta à procura de
alguém.
— Eu. Eu sou o departamento de marketing — disse
com um sorriso sem graça. — E o editor-chefe, e o fotógrafo,
e o repórter, e o entregador, algumas vezes.
— Nossa. — Dave estava desconfortável com aquela
situação.

274
— Cara, eu liguei pra você porque eu estou
desesperado. Meu jornal não vende bem. É muito difícil
fazer tudo sozinho. Eu mal consigo pagar o salário da
secretária, ela só tá aqui porque ela é minha prima. Quando
eu vi a sua proposta pensei como uma chance de melhorar
as coisas.
— Tudo bem. Mas tem uma coisa que eu não
entendo. Quando eu vim aqui mais cedo você tava numa
ligação negociando um dinheiro alto.
— Ah cara, era tudo mentira. O celular nem tava
ligado. Eu fingi que tinha alguém na linha só porque você ia
receber você aqui. Isso quase nunca acontece. Você
entende, né?
Dave estava sem saber o que fazer, e se questionou
por que Wins o mandara logo para um jornal como aquele.
A ideia continuava a guiá-lo.
— Então você tem uma contraproposta pra mim?
— Tenho! Eu estou disposto a investir nessa sua
ideia.
— Sério?
— Sim, tenho um dinheiro guardado e pretendo
investi-lo. Não é muito, mas essa talvez seja minha última
chance. Só tenho uma coisa que eu queria saber.
— Pode dizer.
— A gente vai colocar meu jornal dentro de uma
máquina de pegar bichinhos, certo?
— Sim, a ideia é essa!

275
— Mas aqui na sua proposta — disse mostrando as
folhas — diz que cada tentativa vai custar cinquenta
centavos. Um jornal custa quatro e cinquenta. Se alguém
pegar de primeira, vamos ter prejuízo.
— Não é bem assim. Eu não coloquei isso na
proposta? — Pegou as folhas na mão de Raphael e folheou.
— Acho que não coloquei.
“Não está na hora ainda...”
— Me explica. — Raphael parecia bem menos
arrogante nessa segunda reunião.
Dave demorou um pouco para “aterrissar”
novamente depois de ouvir a voz de uma ex-noiva. Aquilo
era um aviso? Ou apenas mais alucinações de sua cabeça?
Prosseguiu:
— Você já viu aquelas máquinas no shopping que
tem celular, batedeira, câmera fotográfica, essas coisas
mais caras?
— Sei. E daí?
— Você acha que alguém consegue pegar um celular
com uma nota de cinco? — disse rindo.
— Eu acho que sim. Se o cara for bom, ele pega, estou
certo?
— Não é bem assim. Existe um segredo. A máquina
só libera os produtos quando ela atinge o dobro do valor
dele. Isso é programável, é impossível não ter lucro.
Dave não sabia muito bem de onde vinha essa
informação, mas tinha alguns traços de certeza que podia

276
sentir abaixo da pele. Raphael juntou as mãos de tanta
felicidade.
— Só tem como ter lucro desse jeito — emendou.
— Temos um acordo? — Dave levantou-se e estendeu
a mão.
— Temos, sim. Vou pedir para o meu advogado
redigir um contrato. — Raphael levantou-se dessa vez.
Apertaram as mãos um do outro.
— Você é advogado também? — brincou Dave.
— Não! — Raphael sorriu. — Eu conheço um de
verdade.
— Aguardo seu contato então.

277
55

Deitado no sofá da sala, Dave revisava os termos do


contrato cantarolando uma música pouco conhecida e
balançando os pés no ritmo dela. Apoiou as folhas na perna
e rubricou em cada página. No final da última folha assinou
por extenso. Voltou as duas vias para o envelope. Agora era
só levar até o jornal.
“Bom dia, meu amor...”
A voz parou, Dave olhou para cima sem surpresa,
olhou para um lado onde a parede se encontrava com o teto,
olhou para o mesmo lugar do lado oposto, esperando o
término da frase... Nada.
Duas semanas depois, Dave já tinha uma das vias do
contrato assinado por Raphael. Na conta há um depósito
em nome do Tribuna Democrática. Em cima do tapete da
sala, quatro máquinas de pegar bichinhos de pelúcia. Uma
delas estava parcialmente desmontada e Dave soldava
algumas partes.
Com a ajuda de Raphael e seus contatos, ele
desenvolveu um tubo transparente, feito em acrílico, para
guardar os exemplares do jornal. Esse sistema permitiria
que qualquer tamanho de jornal pudesse ser apanhado pela
garra. Dave terminaria a programação em algumas horas e
em breve entraria em contato com Raphael para um teste.
Na tarde daquele mesmo dia a campainha do
apartamento tocou. Quando Dave abriu a porta, Raphael

278
estava com a mão na frente do rosto coçando a testa. Aquilo
dava nos nervos de Dave.
— Grande Dave!
— Oi. Entra aí.
Raphael entrou, e não pode deixar de reparar na
bagunça, diversas peças jogadas, parafusos e ferramentas.
Ele caminhou para o centro da sala, com cuidado para não
pisar nas coisas espalhadas.
— É essa aqui do meio. — Apontou Dave.
Dave e Raphael estavam em frente ao vidro.
— Me mostra como funciona.
— Tem moeda aí?
— Não! Meu dinheiro todo tá com você. Tá em cima
do seu tapete na verdade.
— Eu vou ver se acho uma aqui. — Dave colocou a
mão no bolso e tirou uma moeda. — Toma aqui.
Raphael colocou a moeda na máquina e uma música
começou a tocar. Ele tomou o controle da garra, tentou e
não conseguiu apanhar o tubo.
— Quero tentar de novo.
Dave colocou a mão por uma porta lateral que dava
acesso ao compartimento de moedas. E devolveu a moeda a
Raphael.
— Vai com calma, o segredo é balançar a garra um
pouco antes de descer.
Com mais tranquilidade dessa vez, Raphael
aproveitou todos os trinta segundos que tinham disponíveis
para se concentrar e tentar pegar o prêmio da melhor

279
forma. A garra dessa vez puxou o tubo, mas caiu no
caminho para o buraco.
— Caramba! — Coçou a testa. — Essa merda é
viciante. Tem mais moeda aí?
Dave recuperou a moeda e entregou novamente a
Raphael.
— É com isso que nós vamos ganhar dinheiro.
— E é nesses tubos que nós vamos enfiar jornal? —
disse Raphael enquanto iniciava uma nova tentativa.
— Sim, mas você vai ter que mudar seu jeito de
escrever!
— Hein? Como assim? — Ignorou a máquina.
— Cara, eu não entendo nada dessas coisas, mas eu
tava lendo na sua sala de espera, e não me deu vontade de
continuar.
— Mas você tem que entender que é difícil para mim
porque eu tenho que fazer tudo sozinho. Entrevistar,
escrever, diagramar, às vezes, sai tudo meio na pressa e a
qualidade cai.
— Eu não entendo nada disso. Mas talvez seja a hora
de a mudança acontecer junto com esse projeto.
A grande verdade é que Dave não ligava para como o
jornal era escrito. Não sabia ao certo o porquê ter trazido
aquele assunto. Muito provavelmente era a ideia de Wins
fazendo seu trabalho.
— Já pensou em mudar o tema um pouco? Falar
menos de violência, talvez?

280
— Se tudo der certo eu vou ter tempo para arrumar
isso. Notícias policiais são geralmente mais fáceis de editar,
já vem quase tudo pronto. E vende mais também.
— Eu entendo. Mas vamos deixar isso pra trás...
— Escute, garoto — interrompeu. — O que você tem
de idade eu tenho de anos de experiência em escrita
jornalística.
— Posso dar uma sugestão, então? — A ideia
continuava a guiá-lo ante a arrogância de Raphael.
— A gente podia colocar uns cupons de desconto,
pode ser uma boa. O que acha?
— Caramba, cara, que boa ideia! Tem alguns
contatos de anunciantes que talvez se interessem por isso.
Eu vou dar uma olhada — disse Raphael, aumentando o
vinco entre as sobrancelhas com o polegar.
— Então, eu vou deixar para você resolver isso,
porque eu tenho mais três máquinas para desmontar e
remontar.
— Pode deixar comigo.
— Tem outra coisa também. Você tem que ver o local
onde as máquinas vão ficar. Se vai ser em shopping, ou na
calçada, em hotéis. Não sei.
— Eu tô indo para o escritório agora. Pode deixar que
eu vou fazer umas ligações, de verdade dessa vez. — E
sorriu.
Raphael apertou a mão de Dave, e quando foi em
direção à porta perguntou:

281
— O que é aquilo ali? — Apontou para o canto da sala
onde estava a jukebox.
— É uma outra ideia que eu tô desenvolvendo.
— Me mostra.
— Não tá pronta ainda. — Dave arrastou a máquina
para o centro da sala e ligou-a na tomada.
— A ideia é bem parecida com a do nosso projeto só
que para correspondências. Isso aqui era uma jukebox.
Nesse lugar ficava o nome das músicas, e agora vai ter o
nome das pessoas.
— Interessante — disse, encantado.
— E aquele braço ali que pegava os discos vai pegar
os envelopes que vão ficar dentro desses contêineres de
acrílico.
— Genial.
— Minha ideia é colocar isso no prédio comercial
talvez, um em cada andar como se fosse uma máquina de
refrigerantes.
— Mas e se alguém roubar as correspondências dos
outros?
— Eu pensei nisso também. Por isso eu coloquei esse
teclado numérico e tudo vai ser liberado apenas por senha,
ou biometria. Não sei ainda.
— Acho que conheço alguém que pode te ajudar com
isso, hein! Mas a gente vai se falando, até mais.
Dave fechou a porta e voltou a trabalhar em suas
máquinas.

282
56

Era uma tarde de quinta-feira, Dave caminhava por


um dos maiores e mais movimentados shoppings da cidade.
Andava a passos lentos olhando as vitrines e degustando
uma casquinha de sorvete sabor baunilha. Olhava o relógio
sem se preocupar com horários. Em um dos corredores ele
viu uma fila enorme quase virando para o outro corredor.
Caminhou por toda a extensão da fila, na área de diversões
eletrônicas onde alguns jovens tentavam pegar os prêmios
de uma máquina de garra.
— Tem mais 50 centavos aí? — disse um dos jovens.
— Não, a gente gastou quase o dinheiro todo. Não
vou insistir mais nisso!
Dave entrou na fila como se fosse um dos clientes.
Depois de alguns minutos sua vez chegou. Ele olhou a
máquina e se orgulhou como um pai se orgulha de um filho,
aquilo era uma de suas criações. As máquinas foram
coloridas para chamar bastante atenção, na lateral, vários
neons coloridos piscavam. Na frente, diversos desenhos dos
vale-prêmios internos, as quantidades de desconto
disponíveis e a quais lojas pertenciam.
Obviamente ali também havia exemplares do
Tribuna Democrática. Raphael não quis abrir mão deles e
é claro também optou por uma nova abordagem com
notícias mais breves, mas que eram de essencial interesse
público. Cada tubo de acrílico preso a máquina possuía uma

283
cor e no vidro uma legenda mostrando o que continha em
cada tubo.
Os tubos amarelos continham cupons de desconto
em lojas do shopping que iam de 10% a 40%. Os tubos azuis
continham exemplares do Tribuna Democrática além de
cupons promocionais que se colecionados poderiam ser
trocados por prêmios futuramente. Nos tubos vermelhos
havia pôsteres de alguma novela, série ou desenho que
estava fazendo sucesso no momento. O tubo preto era
aleatório e podia conter qualquer dos prêmios anteriores.
E, por fim, o tubo verde, esse sim valia a pena ser pego, só
havia um por máquina e dentro dele um vale-compras de
um valor aleatório que podia ser trocado em qualquer loja
do shopping.
Sua vez chegou, Dave inseriu uma moeda e as luzes
piscaram dando-lhe o controle da garra. Como não estava
muito interessado em pegar um prêmio, ele viu como um
teste de campo. Sem pretensão mirou no tubo preto, mas
não conseguiu retirá-lo, sinal de que sua programação
estava funcionando. Ele se lembrou da época em que estava
fazendo as alterações da máquina e o quanto foi difícil criar
um sistema que só liberasse os tubos quando o dobro do
limite de dinheiro fosse atingido. Fez isso usando
eletroímãs, lembrou-se da dificuldade de programá-los.
Eles ficavam escondidos abaixo dos tubos e a energia era
cortada assim que o valor estipulado era atingido.
Após seu fracasso em pegar o tubo preto e sucesso
em realizar seu teste, Dave sentou-se no banco próximo

284
para observar e terminar o seu sorvete. Um jovem, que
estava a alguns lugares na fila atrás dele, finalmente
conseguiu resgatar um dos tubos da máquina, era hora de
ver se o seu sistema de reciclagem estava realmente
funcionando. O tubo caiu no buraco rolou por um trilho na
máquina e alguns barulhos foram ouvidos, somente seu
conteúdo saiu pela porta dos prêmios.
Por mais que ele se sentisse tão orgulhoso de sua
criação, uma sensação de incompletude ainda o dominava.
A ideia da jukebox tinha de ser finalizada, mas não era tão
fácil quanto essa. Há alguns meses, Raphael havia falado de
um contato que poderia ajudar Dave com aquela ideia, até
hoje ele ainda se lembra da reunião.
***
Eles entraram no escritório de um dos donos da
maior empresa de entregas da cidade. Dave já ouvira falar
daquela empresa em sua época de entregas de bicicleta. Ela
era a pioneira no segmento de correspondência interna do
país, sem uma sede própria, trabalhando dentro de outras
grandes empresas.
Raphael, com sua “influência”, conseguiu um
horário na apertada agenda do CEO. Ambos estavam
vestidos de forma apresentável. Dave trazia consigo uma
proposta parecida com o que apresentou a Raphael na
primeira vez que se conheceram.
O dono da empresa chamava-se Gilberto. Um
homem corpulento usava suspensórios azuis sob uma
camisa social cinza, sem gravata. Ele estendeu a mão

285
enorme com anéis e um relógio dourado com pulseira de
metal:
— Então, como posso ajudá-los, cavalheiros?
Dave entregou a pasta com tudo muito bem
detalhado, sem esquecer nada dessa vez, sobre o que vieram
tratar ali naquela reunião. Raphael ajudou Dave a escrever
algumas partes usando suas habilidades jornalísticas.
Gilberto pegou a pasta e folheou algumas páginas:
— Vocês me desculpem, mas eu não tenho tempo de
ler isso tudo... Será que um de vocês poderia resumir para
mim o que está escrito aqui? — Ele não estava tentando
manter aparências, realmente era um homem ocupado.
Dave tomou a palavra e resumiu a ideia:
— Eu criei uma máquina de correspondências para
fazer as entregas de forma automática.
— E como funciona?
— Você coloca todas as correspondências nela e ela
separa por destinatário aí basta que o dono vá até lá e as
pegue.
— Então você criou uma separadora?
— Não, ele serve para cuidar das entregas também
depois de carregá-la com as correspondências...
— Ah sim, então ela é autônoma. Vai ao encontro do
destinatário e realiza a entrega?
— Na verdade, não — disse, desconcertado. — Cada
destinatário vai até ela e pega suas correspondências.
— Ora! E o que impede que as outras pessoas não
peguem a correspondência alheia?

286
— Impossível! Tudo vai funcionar com senha —
defendeu Raphael.
— Entendi! É uma grande caixa de correio, então?
— É quase isso — Dave respondeu, meio sem graça,
nunca tinha analisado a situação por aquele ângulo. Ele
pensava estar revolucionando, quando na verdade estava
quase se convencendo de ter criado algo que já existia.
— E de qualquer forma meu entregador vai ter que ir
até lá alimentar com as correspondências?
— Sim.
— Já que meu entregador vai ter que ir até a
máquina, eu prefiro que ele entregue direto ao destinatário,
mesmo que ele tenha que andar por aí empurrando um
carrinho. Meus caros, eu receio que essa ideia jamais dará
certo.
— Mas...
— Lamento tê-los feito desperdiçar meu tempo —
disse em tom de ironia e jogou as folhas para outro lado da
mesa, ao alcance de Dave.
Ele estava tão envergonhado daquela forma de
enxergar a própria invenção que decidiu não comentar
nada. Ambos saíram da sala.
— Cara, desculpa, eu não sabia que... — falou
Raphael.
— Relaxa, cara.
— Eu juro que achei a ideia boa. Não imaginava que
ele fosse ter esse tipo de reação.
***

287
Algum tempo depois, sentado ali no banco daquele
shopping, ele via o seu próprio sucesso através de outra
máquina. Ele e Raphael a essa altura já tinham dinheiro
suficiente para cada um abrir a própria empresa. Ao
terminar aquele sorvete já teria mais dinheiro em sua conta
do que quando começou a tomá-lo.
Amanhã, nesse mesmo horário, ele podia dar
seguimento a sua ideia sem necessidade de um investidor
externo. Havia agora a garantia de que aquilo podia dar
certo porque o problema não era dinheiro. Mas o discurso
de Gilberto fora um balde de água tão fria como as mãos de
sua ex-noiva naquela noite.
Para dizer a verdade, para Dave, dinheiro nunca foi
um problema. Ao menos não depois que descobriu sua nova
habilidade. O problema real seria o crime de copiar
dinheiro. A grana que seria investida a partir desse ponto
seria o que conseguisse de maneira honesta e de preferência
possuísse todos os números de séries diferentes.
Durante todo esse processo Dave teve a sensação que
devia algo para Marisa. Para todos os efeitos a ideia partiu
dela, por mais que não fosse propriamente dela. Ele tentou
por diversas vezes contatá-la. Ele devia isso a ela. Sua
intenção não era reatar nenhum laço, mas apenas dar-lhe a
parte em dinheiro que lhe era devido.
“Seria muito estranho caso ela…” — Seus
pensamentos foram repentinamente interrompidos.

288
— “Fique de olho no tempo, a chuva poderá trazer o
amor, mas também um resfriado”. Minha nossa, quem
escreveu essa porcaria?
— CARALHO! — Dave gritou. — De onde você veio?
— Olá, meu jovem. Eu estava passando e resolvi dar
um “oi” — Wins o cumprimentou tocando a aba do chapéu.
— Você podia chegar como uma pessoa normal.
— Talvez, se eu fosse uma pessoa normal, quem sabe,
eu agiria assim. Mas voltando ao assunto, esse jornal é
péssimo.
Wins segurava um exemplar do Tribuna
Democrática.
— Ora! Foi indicação sua.
— O importante é que deu certo. Sua máquina tá aí
funcionando.
— É, mas hein! Por que você não manda um dos seus
insetos dar uma ideia nele, e conserta esse jeito dele de
escrever?
— Wins não faz esse tipo de coisa. — Mudou a página
do jornal.
— Mas você pode ajudar ele também. O que custa?
— Não! Não dá pra introduzir ou despertar talentos.
Eu ajudo de outra forma. A única coisa que talvez eu
pudesse fazer é tirar aquela mania horrível dele de coçar a
testa.
— Você sabe me dizer por que a Marisa não aceita o
dinheiro? É direito dela.

289
— A ideia dela era pra você. Ela não tem o mínimo
interesse.
— E por que você não colocou em mim? Não que eu
quisesse ser picado de novo por aquele bicho…
— Você já estava saturado.
— Sei — respondeu sem entender muito daquilo.
— E a jukebox? Quando você vai terminar? — dessa
vez dobrou o jornal e encarou Dave.
— Tá pronta. Mas pensando bem, acho que nem
preciso continuar a mexer com aquilo. Já estou ganhando
dinheiro o suficiente.
— Você precisa estudar mais.
— Como assim?
— FACULDADE, meu jovem! Já ouviu falar? A ideia
deve ser concretizada, e rápido. — Wins se irritou.
— Não precisa gritar. Só não entendo, se você me deu
uma ideia pra ganhar dinheiro... Já está acontecendo. Eu
não tenho que perder mais tempo com aquilo.
— Não é assim que funciona, você precisa fazer dar
certo. Você tem um vazio enorme aí dentro — disse
apontando para o peito de Dave. — Você tem que tornar isso
realidade se não nunca vai se sentir completo. Tudo é parte
de um plano maior, você precisa entender isso.
— Quem sabe, se você me contar do que se trata, eu
possa ir na direção certa.
— Não pode acontecer assim — suspirou.
— Então...
— Faculdade, não esquece.

290
— Tá legal. — Dave virou-se para jogar o guardanapo
do sorvete na lixeira ao lado do banco. — Por onde você acha
que eu deveria...
Estava falando sozinho novamente.

291
57

Deitado no sofá de sua sala, seus pés ainda com


meias, tocavam um ao outro. Os braços atrás da nuca. Ele
olhava a máquina no canto da sala sem muita vontade de
mexer com ela. A jukebox já parecia parte da decoração,
talvez fosse a única “decoração” de seu apartamento.
Por dentro isso incomodava Dave, ele tinha que dar
segmento a ideia, mas um conflito lógico acontecia dentro
dele. Seu instinto lhe obrigava a tomar uma atitude, mas
sua conta bancária o acariciava dizendo-lhe: “Para que todo
esse trabalho?”. A balança de suas atitudes pesava para o
lado de agir, enquanto o prato da tranquilidade subia. Uma
angústia aumentava aos poucos dentro de si, cedo ou tarde
aquilo tinha que sair da sua sala, não para o lixo, mas para
dar certo.
“...amor da minha vida.”
A parceria entre ele e Raphael não poderia ser
melhor. Dave só era chamado quando alguma manutenção
mais séria era necessária, fora isso, Raphael era quem
escrevia as edições do jornal e também havia providenciado
alguns funcionários que alimentavam as máquinas. Com
isso, a vida andava boa demais para sair da inércia. Mas o
sentimento era como caminhar com um alfinete na meia,
não te mata, mas se não der um jeito vai te incomodar
eternamente.

292
Para conseguir que a jukebox saísse da sala ele
precisava de algumas coisas. Começou a lista mentalmente.
Primeiro precisava de investimento, isso era fácil de
resolver, ele mesmo podia ser o próprio investidor. Caso
precisasse abrir uma empresa, também já sabia como fazer.
A última coisa seria a mão de obra especializada. Por mais
que Hiro tivesse dado uma ajuda, Dave aprendeu a
programar rusticamente, ainda não era o bastante para
resolver alguns problemas que andavam acontecendo. Com
certeza Hiro não o ajudaria novamente. Como resolver isso?
Será que era isso que Wins quis dizer com faculdade?
Pela urgência com que Wins o cobrava, não daria
tempo de se formar em faculdade alguma. Era tão melhor
permanecer como está, mas algo o incomodava, não
poderia deixar aquilo persistir por mais tempo. “Faculdade,
faculdade, faculdade”, pensava. Aquilo ficou martelando
em sua cabeça sem chegar a nenhuma conclusão. Pelo visto
a única opção era iniciar um curso de mecatrônica.
Deu sede, ele foi até a geladeira e abriu uma garrafa
de vidro, que em outro momento conteve suco de uva.
Pegou um copo, virou a garrafa, Dave olhava para o azulejo
da cozinha e deixou seus pensamentos voarem. O copo
transbordava e molhava sua mão, logo a pia estava
encharcada, a garrafa já estava quase vazia:
— FACULDADE! É isso, ele tinha razão — gritou.
Ele largou a garrafa na pia, nem bebeu a água. Correu
até o armário, pegou o capacete e a tranca da bicicleta.
Desceu as escadas correndo e mais uma vez ignorando

293
qualquer proposta de alimentação de Dona Finha, começou
a pedalar. O caminho para sua tranquilidade nunca tinha
ficado tão claro diante dos seus olhos. Talvez não soubesse
o tamanho desse caminho, mas já sabia para que lado era o
primeiro passo. Ele pedalou até a faculdade mais próxima,
onde havia um curso de engenharia mecatrônica.
Ele entrou por uma porta de vidro. Chegou à
recepção sem nem ao menos tirar o capacete. Estava vazia.
Dave ignorou as senhas e foi direto ao balcão.
— Eu tenho que falar com alguém da coordenação ou
da diretoria. — Ignorou também os bons modos e não
cumprimentou a atendente.
— Claro, o senhor tem hora marcada? — perguntou,
com bons modos e paciência, apesar da afobação de Dave.
— Não. Mas é muito urgente, se você puder me
ajudar.
— Vem comigo.
A recepcionista o levou para uma sala atrás do
balcão. Seguiram por um corredor apertado, até uma porta
com uma placa escrito “Sala F”. Dave sentou-se em uma
poltrona ainda suado.
— Você aceita uma água? — disse a moça do outro
lado da mesa.
— Aceito. — Só então percebeu a secura de sua boca.
A moça levantou-se e foi até um bebedouro na
mesma sala. Passou ao lado de Dave e ele pode sentir o
perfume que seus cabelos ruivos ondulados exalavam. Ela
puxou um dos copos presos no suporte de metal na parede.

294
— Gelada ou natural?
— Gelada, por favor.
Ela acionou a torneira de cor azul e encheu o copo,
ela caminhou de volta à mesa, com os saltos fazendo
barulhos que ecoavam pelo recinto. Os passos eram
limitados pela saia secretária preta.
— Como posso ajudá-lo?
— Você? Faz parte da coordenação? — Dave estava
surpreso.
— Sim! Eu... sou uma das sócias.
— Mas você estava na recepção e...
— Um funcionário se atrasou. Estava tranquilo lá na
frente e aqui atrás também. Estava lá até ele chegar.
Dave estava terminando de virar o copo, e respondeu
meio ofegante, meio babando um pouco de água.
— Tudo bem! — disse, terminando de engolir. — Eu
tenho uma proposta.
— Bem... estou ouvindo.
— Eu sou empresário. — Nem ele mesmo acreditou
nessa parte. — Eu gostaria de oferecer horas
complementares para o curso de engenharia mecatrônica
em troca de mão de obra.
— E como isso vai funcionar?
Dave demorou um tempo para responder. Tinha se
distraído olhando para o decote dela, parte da renda do
sutiã aparecia um pouco no final da blusa, ou talvez tenha
se distraído com a pesada maquiagem que deixavam suas
pálpebras escuras, evidenciando ainda mais seus olhos

295
verdes. O silêncio já chegava a ponto de se tornar
constrangedor:
— Vai funcionar assim... — Recobrou a atenção.

296
58

Duas semanas após aquele encontro, Dave ainda se


lembrava do cheiro do seu perfume. Marília era seu nome.
Ela lhe entregou um cartão de visita ao final da reunião e
durante essas semanas Dave segurou-se para não mandar
uma mensagem ou ligar naquele número de celular. Tudo
foi combinado e bem-planejado para esse dia.
Ele estava em uma sala, atrás do auditório da
faculdade, dando um nó na sua gravata, segundos antes de
sua palestra para os alunos de Engenharia. De alguma
forma ele precisava motivar aqueles jovens a trabalhar de
graça para ele. Apertou o nó no pescoço e foi em direção ao
palco. Andando pelos corredores ajustou o microfone
“madonna” na orelha. Detrás das cortinas, uma gota de suor
lhe escorria pela têmpora. As cortinas se abriram, um
refletor forte ofuscou sua visão. Os aplausos terminaram
assim que ele já conseguia distinguir a plateia.
— Boa noite! — disse juntando as mãos.
O uníssono veio à tona, Dave pode sentir a
“temperatura” do interesse daqueles alunos. Ele colocou a
mão direita no bolso interno do paletó, não se lembrava de
como fora parar ali. Dave apertou o botão em formato de
seta e atrás de si, numa tela branca, uma imagem foi
projetada, se apresentou e contou sua história de vida. E
após uma breve introdução do seu projeto:

297
— Gente, eu nunca fui um estudante de faculdade
como vocês. — Apontou para a plateia. — E hoje, eu e meu
sócio temos mais de 300 máquinas de garra espalhadas
pela cidade, cada uma rendendo mais de 500 por dia. Eu
ganho dinheiro sentado no sofá da minha sala.
Burburinhos eram ouvidos na plateia.
— O que eu quero dizer é que a faculdade não é uma
garantia de sucesso, mas entendam: ela é um passo muito
importante no caminho certo até ele. Eu venho aqui hoje
pra pedir o que vocês têm de mais valioso na vida de vocês...
Dave notou que, enquanto falava, sua fluência era
admirável, coisa que nunca aconteceu daquela maneira. Ele
sabia exatamente quais palavras usar para atingir o seu
objetivo.
— ...o seu tempo. Em troca, eu lhes ofereço mais
tempo ainda...
O poder de convencimento que ele estava
desenvolvendo ali era um desafio em mostrar para eles que
aquela não era só uma mera chance de se conseguir horas
para o curso, mas uma oportunidade de uma futura
carreira. Ele notava na plateia os cochichos entusiasmados
dos estudantes.
— ...Se me disponibilizarem seu tempo, cada hora
que trabalharem para mim eu lhes garanto 4 horas
complementares. Hoje eu planto a semente, e quero colher
os frutos dela com vocês. Mas lembrem-se: “Leva tempo”. E
saber usá-lo é a chave. Pode ser que todos nós não

298
tenhamos as mesmas oportunidades, mas todos temos o
mesmo tempo. Uma vida...
— Até mesmo Dave estava se surpreendendo para
onde o discurso estava sendo levado.
— ...e vocês, jovens, são os mais ricos de todos. Tem
mais tempo que qualquer outro.
Nos minutos finais de sua apresentação ele já tinha a
certeza de que tinha conseguido transmitir a mensagem e o
objetivo daquele projeto. Para engajar de vez aqueles jovens
disse:
— Essa não é apenas uma chance de complementar
seus conhecimentos ou preencher horas extracurriculares,
mas eu garanto que se mostrarem serviço, se dedicarem,
pode ser a oportunidade de suas vidas de sair da faculdade
empregados.
Dave foi aplaudido de pé, gritos e assobios eram
ensurdecedores, ele olhava para os próprios sapatos de
couro sintético brilhando sob a luz dos refletores, curvando-
se em agradecimento aos aplausos.
Aqueles aplausos subiram a cabeça de Dave, ele
sentiu que podia fazer muito mais.
— Eu acabo de mudar de ideia, pensando melhor,
depois de ver a esperança e o futuro nos olhos de vocês,
aqueles que se dispuserem a trabalhar comigo, ganharão
remuneração de acordo com seus esforços.
“Putz, o que foi que eu fiz?”, pensou. Onde estava
com a cabeça? Agora teria mais despesas, pagando diversos

299
estagiários. Tranquilizou-se sabendo que os lucros com as
máquinas de descontos poderiam cobrir esses custos.
“Força, meu amor...”
— Obrigado. Alguém tem alguma dúvida? —
continuou sem demonstrar arrependimento.
Um braço se ergueu no meio da multidão. Dave
apontou para o jovem que se levantou. Ele era loiro, com
cabelos curtos penteados para trás, usava óculos redondos
de aros finos, parecia bem nervoso:
— O senhor tem certeza que isso pode mesmo dar
certo?
O tempo pareceu diminuir a velocidade, ante a
rapidez do pensamento de Dave. Ele já respondeu aquela
pergunta várias vezes. A resposta já estava na ponta da
língua.
— Tenho, sim. Essa ideia me foi dada... — Nesse
momento, perdeu um pouco o foco do olhar. — Com a
garantia de sucesso… Mas por que a pergunta?
— É que hoje em dia as pessoas mandam e-mails e
mensagens de texto, as mensagens por carta não estão um
pouco ultrapassadas? Qual o motivo de se investir nisso?
— Meu caro, eu entreguei correspondências por
muitos anos e já o fiz em diversas situações… E acredite:
ainda existe mercado para correspondência escrita.
— Mas a tendência não é acabar? — outro jovem
completou.
— A correspondência física só vai acabar no dia que
a tecnologia conseguir anexar uma mercadoria num e-mail.

300
Todos riram, inclusive o rapaz que havia feito a
pergunta. Os alunos pareciam empolgados, ele tinha
conseguido desviar a atenção deles para qualquer coisa que
pudesse dar errado no processo. Dave deixou o palco sob
aplausos, foi até o banheiro. Afrouxou a gravata na altura
do pescoço. O terno já estava incomodando, aquela gravata
apertava-lhe o pescoço e dificultava um pouco a respiração.
Ligou a torneira da pia e deixou a água escorrer um pouco.
Olhou para si no espelho, abaixou-se e lavou o rosto na água
fria.
— Muito inteligente da sua parte, motivar aqueles
jovens daquela maneira.
— Que susto! Como você entrou aqui?
— Por aquela porta ali — Wins disse, apontando. —
E isso importa?
— Dane-se. — Começou a afrouxar o nó da gravata.
— Já desisti de entender as coisas que você faz.
— Você tem toda razão. O tempo é essencial. Pra
você, principalmente.
— O que você quer dizer?
Wins desviou o assunto:
— Foi uma boa você terceirizar o trabalho mais difícil
para quem já está há bastante tempo estudando o assunto.
— Isso compromete a ideia de alguma forma?
— Não, claro que não, eu só dou a ideia, a forma de
execução é totalmente sua. Wins está orgulhoso. O
importante é você estar caminhando em direção a sua

301
conquista. E no fim você vai entender o propósito de tudo
isso.
— Mas não seria mais fácil se... Sumiu. Maldito!
Dave terminou de trocar de roupa, pegou o capacete
e a chave da corrente da bicicleta.

302
59

Pedalar durante a noite era algo que não fazia há


muito tempo, as ruas desertas facilitavam muito os
movimentos. A liberdade noturna e silenciosa era difícil de
se obter nos dias de hoje, com a rotina de uma cidade
grande, era preciso dar um grande valor para aqueles
momentos.
Dave cortava o asfalto de um lado a outro sem se
preocupar com a movimentação dos carros. A garoa fina
que caía, era consequência da chuva forte de alguns
minutos atrás. As pequenas poças de água deixavam o chão
meio escorregadio, e os sapatos sociais não davam tanta
firmeza quanto os tênis que tinha em casa. Nada disso
diminuía a habilidade de Dave sobre duas rodas, cada
escorregão que o pneu sofria, ele derrapava e compensava
com o peso do corpo para o outro lado, mantendo a bicicleta
de pé.
A roda sujava seu terno com a água lamacenta do
asfalto, ele não ligava. O foco em realizar sua ideia ainda
residia em sua mente. Um terno sujo não é nada se
comparado ao caminho em direção à conquista.
A ausência de movimento pelo caminho foi quebrada
pela presença de um único veículo. Algumas quadras depois
de sair de sua palestra, os faróis de um carro iluminaram as
suas costas. Dave moveu sua bicicleta para o canto da rua e
sinalizou com a mão para que o carro o ultrapassasse. Dave

303
ouvia o motor do carro se aproximar, parecia que não havia
intenção de ser ultrapassado.
Dave virou-se para trás e viu somente o par de luzes.
Nesse momento ouviu o ronco do motor aumentar, os
pneus derraparam. O veículo foi em direção a Dave, que em
um reflexo de anos de experiência com trânsito, começou a
pedalar de pé. O para-choque estava a poucos centímetros
de tocar a roda traseira da bicicleta. Ele pedalou como há
muito tempo não fazia, como se houvesse uma entrega
urgente ou como se sua vida dependesse daquelas
pedaladas. E talvez dependesse.
Ele se perguntava por que alguém o perseguia àquela
hora da noite. O motivo não importava agora. Ele aprendeu
que quando esse tipo de coisa acontece, você não pergunta,
você corre e tenta sobreviver. Caso aquela situação fosse
amigável, com certeza a abordagem seria diferente.
No último segundo antes do choque, Dave fez uma
curva tão bruscamente que seu joelho direito quase tocou o
chão. Ele entrou em um beco próximo derrubando algumas
latas de lixo, mas ainda mantendo o equilíbrio. O beco era
estreito demais para que o carro passasse. Dave viu que o
carro parou na entrada do beco. Os vidros eram escuros,
mas ele tinha certeza que alguém o observava.
Ele continuou pedalando pelo beco até sair pela rua
de trás, já cortou caminho por ali algumas vezes, em seu
auge como entregador. Dave já podia ver a rua de saída do
beco, assim que cruzou a calçada, um carro idêntico ao
primeiro parou bem na frente da bicicleta. Dave não teve

304
como parar, ele bateu na roda dianteira na lateral do carro
e voou por cima do capô. Enquanto flutuava passou pela sua
cabeça que havia mais de um carro lhe seguindo. Era
impossível aquele carro ter dado a volta no quarteirão antes
dele.
Dave caiu meio de lado no asfalto, não machucou a
cabeça por conta do capacete. Ergueu os olhos e viu a porta
do passageiro se abrir, um sapato muito bem engraxado
pisou no chão molhado. Dave não esperou para ver de quem
se tratava, levantou-se o mais rápido que conseguiu e
correu em direção ao fim da rua. Correu sem olhar para
trás, com um medo enorme de levar um tiro nas costas ou
algo parecido, virou a primeira esquina e entrou no parque
a passadas largas, seu intuito era não ser perseguido por
carros ali dentro.
A sensação de segurança tomou seu corpo por um
breve instante no momento em que girou a chave de seu
apartamento, trancando-o por dentro. Para sua sorte já era
tarde e Dona Finha não o viu chegando. Ao entrar não ligou
as luzes, fechou as cortinas e observou a entrada do prédio,
para ter certeza de quem ninguém o seguira. A rua
continuava deserta. Desabotoou, ofegante, a cinta jugular
que prendia o capacete. Encheu um copo de água na
torneira da pia e bebeu com a mão tremendo e derramou
um pouco no chão.
— Cara, você tá branco o que aconteceu?
— AH MEU DEUS!! — Dave quase caiu no chão com
o susto. — Fala baixo.

305
— Só você pode me ouvir, você que tem que falar
baixo.
— O que você tá fazendo aqui? Eu não quero
conversar com você nunca mais.
— Por quê? — disse o Consciente, confuso.
— Porque foi sua culpa a Maritza ter morrido. Não é
óbvio?
— Vai entrar nessa paranoia de novo? Somos
praticamente o mesmo indivíduo.
— Vou repetir a pergunta. O que você veio fazer aqui?
— Os momentos de angústia também pesam na
consciência. Você está se perguntando se fez alguma coisa
errada? Tá com a consciência pesada?
— Acho que é pelo que eu ainda vou fazer.
— E o que é? Vai cometer um crime?
— Mais ou menos. Uma trapaça, talvez. Agora some.
Nem sua própria consciência sabia de seus planos,
não era possível que seus novos perseguidores soubessem
de algo. Mesmo com os olhos atentos a rua, era possível ver
que entre a aflição e o desespero uma coragem de dar o
próximo passo fervia atrás das pupilas, e dessa vez partia
dele.

306
60

A noite parecia que não teria fim, tão cedo.


— Eu quero saber o que é, se você não me contar,
cedo ou tarde eu vou ficar sabendo — disse o Consciente.
— Você sabe quem eram aqueles me seguindo?
— Se você não sabe, como eu saberia?
— Talvez o Wins saiba.
— E o que ele não sabe? Mas me conta dessa trapaça,
quero ouvir de você.
— Vai me deixar em paz se eu disser?
— Prometo. — Cruzou os dedos.
— Eu vou ganhar na loteria. Preciso de dinheiro para
executar a ideia do Wins, já está me corroendo por dentro.
Após uma risada breve o homem de preto disse:
— E você controla isso? Você decidiu, então vai
acontecer? Meu rapaz, sua fé me parece bem sólida.
— E nem sei por que estou perdendo meu tempo com
você. Além de não querer conversar, eu não aguento mais a
tua cara! — quase berrou, mas se conteve pelo medo de
alarmar seus perseguidores.
Dave chegou bem próximo e se viu naqueles óculos
escuros
— Não lhe devo explicações — sussurrou.
— Ah! Você deve, sim! — O Consciente pareceu
crescer, olhava Dave de cima agora. — Acho que você jamais
gostaria de ser julgado por mim. Sou o pior dos juízes.

307
— Vai embora, não te quero aqui. — Não se assustou
e voltou à janela.
— Você é burro?
— Por quê?
— Você sabe qual a probabilidade de você ganhar na
loteria? É praticamente impossível. E outra coisa, se você
precisa de dinheiro é só fazer um monte. Você consegue.
— Não posso. É dinheiro sujo. Já se esqueceu do
rapaz do cachorro-quente?
— Mesmo assim, essa ideia é mais impossível de
cumprir do que multiplicar dinheiro. Usa a grana que você
vem ganhando com a máquina de descontos.
— Não é suficiente. Ainda mais porque tenho que
dividir o dinheiro com o Raphael.
— Ainda assim, você não disse como pretende fazer
essa “lavagem” de dinheiro.
— Vai saber em breve.
***
Foi numa manhã de quarta-feira que Dave resolveu
pôr em prática seu plano de conseguir dinheiro limpo. Já
estava há quase dois dias sem sair de casa, ainda vigiando a
rua periodicamente, sem dormir direito, sem comer direito.
Olhou algumas estatísticas na internet, e as chances de se
ganhar o prêmio eram mínimas. Ganhar já era difícil, agora
ter a sorte de ser o único ganhador e não ter que dividir o
prêmio com ninguém era uma questão de sorte e não de
probabilidade.
— Oi.

308
— AHH! Quer me matar de susto. O que você quer
aqui?
— Na verdade, anda bem fácil aparecer perto de você
ultimamente. Mesmo que eu odeie estar por aqui. Mas vou
ficar na minha já que não gosta da minha presença.
— Não gosto mesmo!
— Olha. Tudo vai ficar melhor quando você pensar
logicamente e perceber que...
— Você é um fruto de mim, que você sou eu e a culpa
é minha e blábláblá... Não enche! — interrompeu Dave.
— Tá fazendo o esquema da loteria? — Colocou a mão
no bolso interno do blazer e acendeu um charuto.
— Não te interessa!
O Consciente encarava Dave, mesmo que isso não
fosse perceptível. Um leve sorriso de canto de boca, dizia
veladamente: “Você não pode esconder nada de mim.” Sem
mais opções, Dave cedeu.
— Já que não tem jeito mesmo. — Deu de ombros. —
Eu achei um site aqui que diz a quantidade de combinações
possíveis e... — Dave clicou na barra de favoritos em um site
de matemática. — São mais de cinquenta milhões de
combinações.
— Caramba! Impossível você conseguir jogar todas!
— Soltou uma longa nuvem de fumaça para cima.
— Quem disse? — Ele já esperava esse tipo de
questionamento.
— Presta atenção! São milhares de combinações, no
mínimo você vai precisar de milhares de bilhetes, milhões

309
quem sabe. E você achar que alguma loteria, em sã
consciência, eu que o diga, vai te entregar essa quantidade
de bilhetes?
— Eu acho que vão sim. Inclusive, já mandei buscar.
— Mesmo que isso seja possível, você vai levar
décadas para preencher tudo.
— Não se eu tiver ajuda. — A campainha tocou. —
Cheguei... Chegamos... Chegaram... Enfim.
Dave foi em direção à porta, girou a chave e puxou a
maçaneta, não sem conferir o olho mágico antes. Vários
“Daves” adentraram o apartamento marchando em fila,
cada um carregando diversas sacolas cheias. Os clones
foram deixando as sacolas no tapete, e, um a um, entraram
para o quarto. Um dos clones soltou a sacola com um pouco
mais de descaso e um papel rodopiou e assentou-se
levemente no tapete.
— Um bilhete de loteria em branco? — disse o
Consciente, pegando o papel. — Já entendi o que você quer
fazer. Mas aqui não tem nem a metade do que você precisa!
— Eu só preciso de um terço disso.
— Não tô entendendo mais nada.
— Dá pra fazer três apostas em cada bilhete.
— Voltei a entender.
— Eu já fiz algumas contas, já sei quantas apostas eu
vou ter que fazer em cada casa lotérica da cidade. Assim que
eu terminar de preencher os bilhetes basta fazer as apostas
antes do próximo concurso.

310
— E sua vizinha maluca não viu vários de você
subindo a escada?
— Escada de incêndio.
— E na rua? Ninguém estranhou tantos irmãos
gêmeos assim?
— Você complica demais, as coisas têm soluções
simples. Bonés diferentes, óculos escuros, roupas
diferentes, enfim, o fato é que tudo que eu preciso está aqui.
— Acho que você está esquecendo um detalhe. —
Deixou o bilhete sobre a mesa.
— Duvido. Qual?
— Você vai gastar mais dinheiro com apostas do que
o valor do prêmio. — Ele cruzou os braços. — Precisa de
dinheiro para ganhar dinheiro. Eis aí o furo do seu plano.
— Mas você é muito burro mesmo, eu sou burro...
Enfim. Não quero que dê o mesmo problema do cachorro-
quente.
— Agora tenho certeza do porquê estou aqui. Vai
voltar a multiplicar dinheiro. — Deu mais um longo trago
no charuto.
— Não só isso. O meu lucro com a máquina de
descontos vai fazer parte da conta também. O que vai ajudar
a camuflar as notas repetidas.
— Isso tem muita chance de não dar certo.
— Essa vai ser a maior lavagem de dinheiro da
história.

311
61

Dave ainda estava no computador, fazendo e


refazendo contas para ter a certeza de que nada iria falhar.
Sua consciência se calou por alguns minutos e ele achou
bastante estranho. Ele ainda fumava caminhando pelo
apartamento, parou em frente à janela e a fumaça branca se
destacou com luz. Mesmo depois de um tempo o charuto
parecia não diminuir.
Não quis puxar nenhum assunto, até porque o ódio
que sentia dele bloqueava qualquer interesse que pudesse
partir dali. Enfim, o silêncio foi quebrado.
— Dave, Dave... Sua perseverança é... invejável. —
Cada palavra era precedida de um suspiro.
— Eu preciso concluir essa ideia, antes que ela acabe
comigo. Nada vai me impedir.
— Tem razão. Mas você precisa parar.
— Não diga bobeiras. — Dave nem desviou o olhar da
tela para responder.
O Consciente se aproximou e tocou os ombros de
Dave.
— Você precisa parar! Esse Wins é perigoso, veja o
que está fazendo com você.
Dave estava sem entender, desconfortável com
aquele toque.
— Eu não posso parar — falou com calma.

312
O Consciente o soltou e voltou a caminhar. Ainda
fumando, parou ao lado do protótipo da jukebox.
— Isso é o centro de tudo — disse, tocando a caixa. —
Talvez seja por isso que você esteja sendo perseguido.
Sem dizer nenhuma palavra, Dave ficou atento e
observando onde os rumos daquela conversa levariam.
— Eu tentei impedir você de tantas formas.
— O quê? — Dave desconfiou.
— Eu fiz você prometer mais dinheiro para aqueles
estudantes. Fiz aquela desatenta do caixa conferir o
dinheiro pela primeira vez, coisa que ela nunca fazia. —
Tirou o charuto da boca.
— Foi tudo você? — disse incrédulo.
— Não foi fácil convencer o Gilberto a recusar essa
ideia. Eu tenho que admitir, é realmente muito boa. Wins
se superou dessa vez.
— Seu maldito! — Dave se levantou.
— Eu achei que seria suficiente tirar ela de você...
— Melhor calar essa boca.
— Ou o quê? — Ele segurou o charuto próximo à
jukebox modificada.
— O que você tá pensando em fazer?
— Acredite em mim. Esse Wins é perigoso, tudo o
que fiz foi pensando no seu bem-estar. — Deixou o charuto
cair.
Dave viu o charuto cair em câmera lenta. Esticou a
mão para frente e tentou dar um passo em direção à
máquina antes que o charuto a tocasse. Tarde demais. A

313
ponta incandescente tocou a madeira da jukebox. Dave não
podia acreditar em seus olhos, a fagulha da ponta do
charuto formou um círculo de fogo no topo da caixa que se
expandiu rapidamente. Era como se a madeira estivesse
embebida em gasolina.
As passadas inúteis que Dave deu na tentativa de
impedir o incêndio resultaram em uma queda no chão da
sala. De lá viu sua criação envolta em chamas, o calor o fez
cobrir o rosto e cerrar os olhos. A decepção que sentia era
mais intensa do que o calor que ardia a sua frente. O fogo
agora já tomava a cortina lateral. Em seguida, a poltrona
também já estaria em chamas.
Dave se levantou e correu até a dispensa. Pegou um
balde e tentou inutilmente enchê-lo na pia da cozinha.
Jogava porções fartas de água em direção às chamas, em
intervalos que duravam o tempo de a torneira encher o
balde.
— Não adianta. Desista. De tudo.
A respiração começava a falhar. Dave tossia na
mistura de chamas e fumaça. O apartamento já tomado pelo
fogo estava iluminado e irreconhecível. Ele correu na
direção onde pensava estar a porta. Queimou os dedos na
chave incandescente, mas conseguiu sair pela porta da
frente. Conseguiu salvar apenas duas sacolas de bilhetes de
loteria. As lágrimas lhe escorriam quentes pelo rosto. Ele
olhou para trás e viu sua “consciência” de braços abertos,
ainda no apartamento, gargalhando e sorrindo triunfante.
***

314
Era quase como se agulhas bem finas flutuassem
pelo ar, Dave respirava cada uma delas. Sentado na parte de
trás da ambulância, segurava uma máscara ligada a um
cilindro de oxigênio verde. Os bombeiros já desciam as
escadas terminando o serviço. Do prédio ainda era possível
ver colunas de fumaça saindo pelas janelas.
A rua estava fechada, dezenas de curiosos olhavam
para cima atrás do cordão de isolamento.
— Oh menino! Fiquei tão preocupada…
Dona Finha apertava Dave, em um abraço mais forte
que o usual.
— Eu tô bem. Obrigado. — Dave chorou.
— Se você precisar de um lugar para ficar... fala
comigo, meu filho.
— Pode deixar. Muito obrigado.
Ela se afastou. Mesmo sendo uma pessoa incisiva
que causava desconforto a vida alheia ela sabia ser o
momento de deixá-lo refletir sobre o momento. Ele
precisava. Dave estava atônito, com o olhar perdido em seus
pensamentos, o médico se aproximou sem ele perceber. O
médico puxou o braço de Dave e passou a alça do
esfigmomanômetro pelo bíceps.
— Vou medir sua pressão, meu jovem.
Dave o reconheceu, e sua atenção aterrissou.
— Wins, Wins! — disse, desesperado. — Eu falhei,
perdi tudo. Não tem mais nada.
— Calma! — Ajustou o estetoscópio nas orelhas.

315
Foi a primeira vez que Dave o viu sem os habituais
terno e chapéu coco. Os cabelos ruivos e curtos estavam
penteados para trás com gel, bem colados à pele.
— Você é médico também?
— Também? É a única coisa que eu sou.
— Desde quando? Não importa a ideia já era! Ele
queimou tudo.
— Você queimou tudo quer dizer.
— NÃO! Eu juro que essa não era minha intenção.
Mesmo que eu quisesse desistir ou destruir a máquina, eu
amava aquele apartamento.
— Fique tranquilo. A ideia nunca se perderá.
— Mas ele queimou tudo. Olha. — Apontou para o
apartamento com lágrimas nos olhos. — O apartamento da
minha tia era a única lembrança que eu tinha dela. Tudo
virou pó... a jukebox não existe mais.
— Sobre o seu apartamento não há muito que fazer.
Agora sobre o seu outro problema talvez possamos dar um
jeito.
— Que jeito? — Dave tinha alguma noção sobre o que
Wins falava, mas não tinha certeza.
— Assim que eu terminar isso aqui conversaremos.
Wins não parecia abalado com a situação, ou ao
menos não demonstrava. Enquanto extraía o líquido de um
bujão com uma seringa disse:
— A ideia sempre esteve dentro de você. O que foi
perdido pode ser refeito. Você é capaz disso, meu jovem.

316
As lágrimas de Dave abriam caminho na fuligem que
sujava seu rosto.
— Eu não sei o que fazer. Não tenho nem para onde
ir.
Ele espetou a veia de Dave, que nem se deu ao
trabalho de sentir dor. Pressionou o êmbolo. Wins se sentou
ao lado de Dave nos degraus da ambulância, ambos
olharam para cima em direção ao apartamento.
— Você vai precisar disso, use na hora certa. — Wins
estendeu a palma da mão aberta.
Dave pegou o objeto, e entendeu imediatamente para
que serviria. Guardou-o no bolso para a hora certa,
conforme sua instrução. Wins continuou.
— Meu jovem, uma grande jornada começa com o
primeiro passo. Você já chegou bem longe. Wins é prova
disso. Talvez seja chegada a hora de iniciar uma nova
caminhada.
— E pra onde eu devo ir?
— Comece atravessando a rua. Vê aquele galpão ali?
— disse, apontando. — Me parece um bom lugar para
começar, se achar melhor...
Dave se levantou, arrancou a máscara de oxigênio
por cima da cabeça e começou a caminhar na direção
apontada. Levando consigo as sacolas de bilhetes que
conseguiu salvar do incêndio. Dessa vez, foi ele quem
deixou Wins falando sozinho.

317
62

As catracas rilhavam a corrente pelo asfalto molhado


da cidade. A borracha do pneu riscava o solo a cada
derrapada nas poças de água. As mãos suavam no guidão,
forçando os calos entre os dedos. O freio rangia ao ser
pressionado contra os metacarpos. Alguém berrava um
xingamento, enquanto Dave cortava os carros pela direita.
O clique do cadeado travava o quadro da bicicleta num
poste. Todo aquele movimento para terminar naquela
estática fila.
Todos uns atrás dos outros, trocando o ponto de
equilíbrio de uma perna para a outra. Quase todos muito
entediados com as contas embaixo do braço, alguns
olhando para o início da fila, outros tendo uma longa
conversa sobre o clima. Dave começou a se arrepender de
ter a ideia de registrar tantos jogos, mas o tédio da fila valia
o perigo das pedaladas.
— Próximo!
Depois de uma longa espera, Dave foi ao guichê
indicado, não sem antes ceder seu lugar várias vezes a
pessoas idosas. Entregou um chumaço de cartelas com
números marcados à atendente, ela o olhou com
desconfiança com cara de quem pensa: “que maluco”.
Folheou as cartelas e as colocou na máquina para fazer o
registro. Um silêncio constrangedor entre os dois era
cortado apenas pela máquina contando as cartelas.

318
— Tá quente hoje né? — Dave tentou ser simpático.
— É — a atendente respondeu com um sorriso falso,
de saco cheio.
Dave desistiu.
— Cento e cinquenta, senhor!
— Só isso? — Disfarçou, pois já sabia o preço
previamente.
Ele entregou as notas falsas mais verdadeiras que já
existiram. Ela olhou-as contra a luz, colocou a nota de cem
sobre uma máquina com luz negra, correu o dedo por uma
lista de números que estava colada no vidro. Dave travou a
respiração achando que aqueles números de série poderiam
estar presentes em alguma de suas notas. Por sorte não.
Parte de sua estratégia consistia em registrar todos os jogos
no mesmo dia. Aqueles números não poderiam pertencer a
suas cópias de forma nenhuma. Um longo papel saiu da
máquina, quase um metro de comprovante com todos os
números que Dave havia marcado.
— Obrigado.
— De nada. PRÓXIMO! — Ela dispensou Dave tão
rápido que as sílabas pareciam se colar umas nas outras.
O ar fora daquele ambiente até parecia mais leve. Na
rua era como se um ar condicionado estivesse ligado se
comparado a parte interna da casa lotérica. Apesar do calor
ainda era mais fresco. Para que todo o plano desse certo,
cada um de seus “eus” deveria dividir suas apostas em dois
estabelecimentos, assim Dave precisaria apenas da metade

319
de pessoas e levantaria menos suspeitas. Para finalizar o dia
bastava chegar ao próximo.
Até o momento a maior dificuldade desse plano, foi
recuperar os bilhetes perdidos no incêndio. O que apesar de
parecer trabalhoso, não foi tanto, se comparado ao trabalho
de preencher cada um com as combinações possíveis.
Trabalho ao qual Dave, dispôs de ajuda de si mesmo.
Destrancou o cadeado e pedalou em meio ao
trânsito. Dave era mais veloz do que qualquer carro naquela
cidade, mesmo se não pedalasse tão forte, ainda assim seria
mais rápido sob todo aquele trânsito. Nenhum veículo na
metrópole pode competir com o ciclista. Dave tinha uma
analogia em sua cabeça: “Eu sou como as gotas de chuva
numa parede de concreto, nada me impede de deslizar por
ela, enquanto os carros são os tijolos presos numa única
massa compacta”. Preferia infinitas vezes ser gotas as de
chuva.
Chegando ao seu destino, e dessa vez a fila terminava
fora do estabelecimento, avançando alguns metros pela
calçada. Sem alternativa, Dave tomou sua posição original,
braços cruzados, pernas abertas. Pelo visto, a espera ia ser
longa, não tirou o capacete por conta do sol.
Depois de quase duas horas, Dave já estava, na parte
interna da lotérica, o capacete já pendurado no cotovelo.
Como era entediante estar numa fila. “Acredito que não
exista uma maneira melhor de perder tempo”, pensou.
Ficar no celular, ou ler um bom livro, pareciam ser formas
melhores de passar o tempo. Para ele, o momento era de

320
reflexão, mesmo preso à fila e longe do banco de uma
bicicleta, em sua mente ele era livre. Sentiu o cheiro de seu
prato preferido, salivou um pouco e quase sentiu o gosto.
Viu trechos de seu filme favorito, cantarolou uma das
músicas que gostava, lembrou-se de Maritza, a ponto de
sentir seu perfume.
“Quanto tempo ele ainda tem?”
— Olha a fila aí, mano! — O rapaz atrás dele indicou,
despertando-o de seu devaneio.
Dave deu um passo à frente.
Um carro forte parou na rua logo em frente,
atrapalhando mais ainda o trânsito. Aquela caixa amarela,
no meio da rua, não tinha como não atrair a atenção de
quem passava por ali. De dentro do carro forte saíram três
homens. O primeiro abriu a porta e, armado com uma
espingarda calibre 12, caminhou para dentro da lotérica,
olhando de um lado a outro. O segundo saiu a uma distância
curta do primeiro homem, com umas das mãos, segurando
a pistola presa no coldre, e a outra segurava dois malotes
pelas alças, que aparentemente estavam vazios. O terceiro
homem desceu alguns segundos depois fechando a porta e
seguindo seus companheiros, também armado com uma
espingarda, fazendo os mesmos movimentos de cabeça que
o primeiro e o segundo.
O motorista manteve o motor ligado. Os seguranças
passaram pelas pessoas da fila. O primeiro e o terceiro
pararam em frente a uma porta que ficava nos fundos da
lotérica e o portador do malote entrou. Um deles entrou

321
junto enquanto o outro permaneceu guardando a porta,
muito atento a toda a movimentação do recinto. Por um
momento os olhares de Dave e do segurança se cruzaram.
Dave desviou o olhar por medo de levantar alguma suspeita.
Por mais que estivesse repassando notas falsas era muito
difícil que fosse detectado.
O momento que se seguiu, pareceu que foi
milimetricamente planejado, mas não foi. Algumas vezes a
aleatoriedade faz com que as coisas aconteçam de forma
mais harmônica do que se um planejamento tivesse sido
feito. Esse tipo de coisa levanta o questionamento se a
aleatoriedade realmente existe.
Uma caminhonete invadiu a calçada em alta
velocidade e parou bruscamente em frente à loteria. Do
banco do passageiro desceu um homem com o rosto
coberto, sacou uma pistola e disparou em direção ao
estabelecimento, a bala viajou por toda extensão da fila sem
acertar ninguém, apenas para ir de encontro ao pescoço do
guarda, que saía com o malote carregado. O sangue
manchou parte da porta que ainda estava entreaberta. Seis
homens com os rostos cobertos com balaclavas e armados
com metralhadoras desceram da carroceria. Entraram
atirando para o alto. Houve uma correria generalizada, um
homem trombou com Dave e o derrubou.
Ainda no chão, Dave se manteve abaixado, rastejou
para trás de um banco, e tentou se proteger como pôde. Os
outros dois guardas dispararam contra os assaltantes. Ele
não conseguia ver o que estava acontecendo, apenas ouvia

322
o estampido dos tiros que eram ensurdecedores naquele
pequeno espaço. O barulho era tão alto que as balas
pareciam passar muito perto dele. Em algum momento ele
teve a coragem de levantar a cabeça, só para ver um dos
seguranças ser atingido no joelho e cair no chão, notou que
havia outros clientes se protegendo e grande parte deles
correu quando a confusão começou. O terceiro segurança
estava abaixado, disparando freneticamente até ouvir os
cliques que indicavam que a arma estava descarregada. Os
criminosos caminharam tranquilamente lotérica adentro.
Aquele que parecia liderar a gangue retirou a balaclava da
cabeça, sacou uma pistola e matou o segurança à queima-
roupa.
De impulso, Dave tentou fugir.
Foi durante o tempo em que o bandido movia a
cabeça e piscava os olhos que outro impulso tomou conta
do corpo de Dave. Suas pernas pareciam ter vida própria, se
moveram quase que sozinhas e o colocaram de pé. Logo em
seguida começaram a correr levando o tronco consigo. Não
haveria tempo de destrancar a bicicleta, seu único objetivo
era sobreviver e se afastar o máximo dali. Quando seu pé
direito tocou a calçada, ele ouviu atrás de si um clique
seguido do disparo de uma arma. A dor não veio no
primeiro momento, mas o impacto foi sentido quase ao
mesmo tempo que ouviu o som. A sensação foi de
desequilíbrio, deu dois passos antes de cair no chão. Aí sim
a dor tomou conta do seu corpo.

323
A dor do choque com a calçada na bochecha direita
foi de encontro à dor que passava da coluna vertebral para
o externo. A respiração ofegante de Dave foi diminuindo o
ritmo, enquanto o sangue começava a fluir e empapar sua
camisa. O coração que estava disparado para bombear
quase todo o sangue do corpo para as pernas, foi lentamente
diminuindo o ritmo até ficar estático. Os olhos se
mantiveram abertos, mas a vida começou a deixá-los
vagarosamente.
“Já passou, meu bem, agora vai dar tudo certo.”

324
63

Chovia torrencialmente esta noite. A escuridão de


hoje era triste, como se o céu lamentasse alguma tragédia.
A água molha os vidros da janela que vez ou outra era
iluminada pelos clarões do céu.
— AAAAHHHH!! — O grito de Dave foi seguido por
uma respiração pesada e ofegante.
— Finalmente você acordou, meu jovem. Deve estar
exausto depois de fazer tantos de você.
Dave passava a mão no peito ainda desesperado,
procurando o buraco de bala. Sentindo uma dor lancinante,
deu outro grito de agonia. Acabara de acordar em sua cama,
ouvindo aquela voz conhecida. O raciocínio estava lento por
conta da dor.
— Você escapou por pouco, se fosse você lá... Não
estaria aqui.
A luz de um trovão iluminou o quarto, mostrando a
silhueta do terno verde-limão de Wins.
— O que aconteceu? Que dor é essa?
— Você... “morreu”, meu jovem. — Fez as aspas com
as pontas dos dedos.
— Então... Não estou no meu quarto? — disse com a
voz embargada pela dor no peito.
— Não, não está. Sabemos que seu apartamento
queimou e...
— Eu sei...

325
No dia do incêndio, Wins aconselhou Dave a iniciar
sua nova caminhada por um galpão do outro lado da rua. O
mesmo galpão que é a atual residência de Dave, com um
pequeno quarto nos fundos. Tão pequeno quanto o aluguel
por todo aquele espaço. Ali seria muito mais fácil
desenvolver qualquer ideia, cabia um helicóptero pequeno
ali dentro e mesmo assim sobraria espaço. O quarto possuía
uma janela com vista para o apartamento carbonizado de
Dave.
— Estou morto?
— Está! Você não morreu realmente. Você morreu
naquela lotérica, mas não morreu aqui.
— Não estou entendendo.
— Lembra do dia que você espancou seu outro “eu”?
— Lembro.
— Toda a dor que causou a ele, refletiu no seu corpo.
Nesse caso aconteceu a mesma coisa, só que com uma dor
mais intensa, podemos dizer assim.
— Eu me lembro... do assalto, dos tiros... das mortes.
— Então, meu jovem, você viu a luz no fim do túnel,
foi até ela e saiu do outro lado. Na verdade, você saiu do
mesmo lado. É complicado de explicar.
— E essa dor não vai passar nunca?
— Não! Acredito que nunca vai se acostumar.
A dor que Dave sentia era como se uma barra de ferro
o tivesse furado nas costas e atravessado o peito. Essa
“barra” pulsava em dor que irradiava por todo o tronco,
dificultando a respiração. Ele sentou-se na cama.

326
— Ainda tenho muito trabalho com a jukebox, como
eu vou trabalhar desse jeito? Seria melhor ter morrido
mesmo! Ah!
— Falando nisso, eu vim trazer mais algumas para
você.
Dave foi em direção à porta do quarto que dava para
o galpão, girou a chave, tocou o interruptor. As luzes foram
se acendendo em sequência, iluminando diversas máquinas
que estavam espalhadas pelo pátio. Todas do mesmo
modelo quadrado que escolhera na vez em que achou um
besouro dourado.
— Você trouxe tudo isso sozinho? — Dave se
desequilibrou e quase caiu. Se não tivesse se apoiado no
batente da porta estaria no chão agora.
— Calma! — Foi amparado por Wins. — Podemos
dizer que você teve sorte. As coisas só vão ficar um pouco
mais complicadas, mas você ainda pode se dar bem. Só não
deixa a ideia de lado.
— Sorte? Cara... Eu morri e voltei só com a dor —
disse com muita dificuldade.
— Você teve sorte duas vezes, se quer saber.
— Você tá completamente maluco. Por que você fala
isso?
— Primeiro que não era você lá, pelo menos não o
original. E segundo, ainda bem que você estava deitado, por
que manter esse tanto de cópias te deixou cansado. Se você
estivesse tomado o tiro enquanto estava de pé, poderia ter

327
caído e batido a cabeça ou algo assim. Você está apagado a
mais de quatro horas.
Dave não conseguia prestar muita atenção em nada
do que ouvia. Ele olhava para o próprio peito e não via nada,
mas sentia muito. Wins levantou-se e tocou o ombro de
Dave.
— Apesar da dor, é de extrema importância que você
conclua o projeto. A ideia deve ser concluída, não se
esqueça disso.
— Cara — disse tocando a testa. — Por que isso é tão
impor... — Olhou em volta e não viu ninguém. —
Desgraçado!

328
64

Dave não conseguia dormir, não importava como se


ajeitava na cama a dor o incomodava de forma a tirar-lhe o
sono. Ele não conseguia explicar a si mesmo, mas algo lhe
dizia que toda aquela dor foi planejada por Wins para que
ele desse prosseguimento àquela ideia maluca da jukebox.
Mas se havia uma chance de aquela dor parar e o caminho
era terminar o projeto, ele mal podia esperar pelo sorteio da
noite seguinte.
O dia amanheceu. Nem Dave nem sua dor
desligaram aquela noite. O dia foi bastante corrido.
Diversos daqueles jovens do curso de engenharia
trabalhavam em seu galpão, programando, montando e
desmontando máquinas, tirando dúvidas sobre os projetos.
Seu celular tocou quase o tempo todo, e nem mesmo toda
aquela rotina o distraiu do que sentia no peito. Era como se
ele pudesse ver em sua mente o caminho aberto que a bala
percorreu, mas ao olhar para seu peito fechado seu cérebro
entrava em contradição.
O celular de Dave despertou no horário em que ele
havia programado, às 19h50. O sorteio seria em dez
minutos. Agora era imprescindível ganhar o prêmio, já que
suas economias e lucros não seriam suficientes para manter
o aluguel e o salário dos estudantes.
Ligou a pequena televisão que havia em seu quarto.
O jornal local parecia estar apresentando a última matéria.

329
Um rapaz pouco mais jovem que Dave encerrava o
telejornal enquanto os créditos subiam à sua frente. “Fique
agora com o sorteio da loteria nacional”.
Aquele era o momento perfeito para que a
“consciência” de Dave aparecesse, ele estava tenso e
angustiado por passar tanto dinheiro falso para fazer suas
apostas. Ele já podia sentir o cheiro da vingança, só faltava
sentir o gosto. “Ele não seria maluco de aparecer aqui,
depois do que me fez”. O mesmo sentimento de quando
ofendeu o pobre Hiro, para forçar sua presença, ele sentia
agora, entretanto, milhares de vezes mais forte, somado a
uma dor que a palavra “incomodar” não consegue abranger.
Dave já sabia que havia ganhado, mesmo que não
tenha conseguido concluir a aposta na lotérica assaltada.
Ele estava acompanhando o sorteio por dois motivos. O
primeiro é que precisava saber quais os números sorteados,
para poder encontrar o bilhete certo. O segundo é saber se
haveria outro ganhador. E caso isso acontecesse o prêmio
teria que ser dividido. De acordo com seus cálculos, não
poderia haver mais de dois ganhadores além dele, caso
contrário o prêmio seria insuficiente para o investimento e
suas despesas.
— Você sabe que... — Colocou a mão no peito. —
...não é muito diferente de você falsificar seu dinheiro por
aquele método tradicional. Caralho! Que dor horrível.
— Eu estava te esperando. Achei que não viria. —
disse Dave ainda de costas para o Consciente.

330
— Olha. Sobre o seu apartamento... Não leva a mal.
Minhas intenções eram boas... — falou, se aproximando.
Dave colocou a mão no bolso da bermuda.
— ...foi a única maneira de tentar impedir você. Você
entende, não é?
Ele estava de pé em frente à televisão, o Consciente
em uma tentativa humilde de obter o perdão de Dave, como
se isso fosse possível. A luva negra tentou tocar-lhe o
ombro. Antes do toque, Dave girou nos próprios
calcanhares e em um único movimento, perfurou a barriga
de sua própria consciência.
No dia do incêndio Dave recebeu de Wins uma push
dagger. Uma faca usada para perfurar, seu formato de “T”
facilitava o golpe tal qual um soco. A lâmina era negra,
cravejada de runas em baixo-relevo, que se iluminaram
assim que perfuraram a “carne”.
— Por quê? — disse o Consciente com a boca cheia de
“sangue” negro.
— Porque você merece, seu filho da puta.
Dave pegou a nuca de sua consciência e girou a faca.
Ouviu um guincho abafado.
— Você sabe o controle mental que eu tive que ter,
para que você não soubesse que eu estava com isso? —
Girou a faca na direção contrária. — Você tirou tudo de
mim, inclusive ela.
Dave não ouviu nenhuma resposta. Um líquido
escuro escorria pela mão que segurava a faca. Uma onda de

331
choque se expandiu pelo quarto quando ele morreu,
bagunçando o lençol.
— Vai tarde, idiota. Agora eu tenho um sorteio para
vencer.
Dave foi invadido por uma coragem, que nunca
tivera sentido antes. Agora parecia não ter mais medo das
consequências. Não sabia ao certo se isso era perigoso ou
reconfortante. Era uma sensação maravilhosa, o alívio só
não era maior pela dor em seu peito. “Que bala maldita!”.
Era a única coisa que passava pela sua cabeça. A dor
pulsante não o deixou em paz nem em vingança. Mesmo
que ela não pudesse aliviar essa dor, ela amenizou outra.
Uma vinheta animada começou a tocar, o estúdio
estava às escuras e se iluminou assim que a música parou.
E o apresentador começou:
“Você aí que está esperando ansiosamente o sorteio
da loteria nacional, concurso 456. Você, minha senhora,
que tá querendo fazer aquela viagem dos sonhos. Você que
tá querendo trocar de carro. Você que quer quitar suas
dívidas. Seu lugar é aqui. O sorteio de hoje vai pagar um
dos maiores prêmios da história, não é isso mesmo,
Rosana?”
Um link ao vivo respondeu de um local que parecia
ser um bar.
“Oi, Jânio, isso mesmo, um dos maiores prêmios até
hoje. Eu tô aqui no Bar do Joká, onde um pessoal se reuniu
só para acompanhar o nosso sorteio. Como tá a
expectativa?”

332
Rosana estendeu o microfone para uma pessoa que
estava sentada em uma mesa próxima.
“Tô confiante, já fiz meus joguinhos aqui. — E
mostrou os bilhetes. — Tô com um trevo-de-quatro-folhas
no bolso aqui e também tô participando de um bolão no
serviço.”
“Quantas apostas você fez?”
“Eu devo ter feito umas 12, não tenho certeza.”
— Amador — disse Dave.
“Vai ganhar hoje?”
“Vamos, sim.”
“Pois é, Jânio, o pessoal aqui tá animado, é com você
aí.”
“Obrigado, Rosana, e vamos deixar de enrolação e
vamos pro sorteio desta noite.”
O apresentador começou a andar pelo cenário e foi
em direção a um imenso globo gradeado que girava cheio
de bolas brancas e numeradas. Havia duas mulheres, uma
de cada lado do globo, usando uma espécie de maiô azulado
com mangas compridas. O apresentador parou e olhou em
direção à câmera.
“Preparado, Dave?”
Dave estava meio distraído, mas aquelas palavras
pescaram sua atenção. A dor em seu peito parecia pulsar
mais forte quando ouviu seu nome. Ignorou.
“E vamos para a primeira dezena.”
A esfera gradeada possuía um tubo no topo assim
que ela parou de girar, disparou uma bola como um canhão.

333
A bola numerada foi parar ao lado da mulher de cabelos
loiros. Ela abriu uma pequena portinha e segurou a esfera
com as mãos. Uma por cima e outra por baixo. A câmera
deu um zoom na esfera o número era “04”.
“Número 04 é a nossa primeira dezena.”
A segunda mulher que estava no palco, foi em
direção à outra, pegou a esfera branca e colocou na quarta
posição de um imenso painel numerado de 1 a 60. O sorteio
se seguiu e o painel foi se preenchendo com os números
sorteados
“A segunda dezena é 56.”
“O terceiro número sorteado da noite é 45.”
“Vamos para a quarta dezena de hoje, que é 05.”
“O quinto número da noite é 54.”
“E agora, o último número, que é 46.”
O sorteio seguiu depois de longos minutos. Dave viu
os números na parte de baixo da tela: 04 — 56 — 45 — 05 —
54 — 46. Agora bastava procurar o bilhete. Pegou um papel
e uma caneta que já estavam preparadas e anotou os
números.
“Pronto, Dave. Pode procurar agora.”
— Esse cara falou meu nome de novo — falou sozinho
em seu quarto.
Dave estava com dificuldades na respiração e foi em
direção às sacolas que estavam espalhadas pelo cômodo.
Dave desatou o nó e espalhou centenas de recibos no chão,
e começou a vasculhar. A cada verificação incorreta ele
rasgava o bilhete em pedaços mínimos. Suas mãos corriam

334
em meio aos papéis, enquanto sua respiração e dor
permitiam, à procura da sequência que estava em tela.
Ele cogitou formar uma força tarefa para ajudá-lo
com a procura, mas... tocou o peito e respirou com
dificuldade. Sentiu uma dor que o fez arrepender-se de ter
se multiplicado alguma vez na vida.
— Eu não vou fazer isso nunca mais na minha... —
lamentou-se.
Antes de terminar a frase, sentou-se para recuperar
um pouco de fôlego. Olhou para televisão e o apresentador
anunciou:
“Nossos computadores estão verificando as
apostas, logo, logo vamos saber de onde é o nosso
ganhador de hoje. Voltamos depois dos comerciais.”
A luz do palco se apagou e os comerciais começaram.
Dave prosseguiu procurando o cupom, ele não precisava
saber de onde era o ganhador, ele tinha certeza que sua
cidade iria aparecer na tela em breve. Ele só precisava saber
com quantos iria dividir o prêmio, se é que teria de fazer
isso. O intervalo terminou, e ele ainda procurava pelo
bilhete premiado. Em poucos minutos, estaria rico.
“Agora na tela! De onde será o nosso ganhador.”
Estava atento enquanto amassava alguns papéis.
Aconteceu algo fácil de explicar, porém difícil de se encaixar
naquela situação. No momento em que o apresentador ia
anunciar as localidades dos vencedores, a energia acabou.

335
Dave viu sua televisão de tubo antiga desligar, a
estática foi o único som daquele breu. Os olhos dele
demoraram a se acostumar com a escuridão.
Dave piscou forte e não havia nenhuma diferença
entre olhos abertos ou fechados. A não ser pelo risco de luz
na parede que entrava pela janela. Como todo mundo faz
quando a energia acaba, ele foi até o interruptor e o acionou
duas vezes. O resultado foi apenas os cliques. Ele procurou
o celular para acender a lanterna, mas não o encontrou.
Faltava apenas uma sacola para verificar os bilhetes. Como
a segunda coisa que as pessoas fazem quando estão sem luz,
ele foi até a janela.
Ao puxar um pouco as cortinas algo lhe chamou a
atenção, aparentemente apenas a sua rua estava sem
energia, o resto da cidade e as luzes dos postes ainda
estavam ligadas. Parecia que tudo fora desligado
propositalmente.
Virando a esquina ele viu um carro preto, muito
parecido com o que quase o atropelou naquele dia. Nesse
momento sua suspeita sobre a queda de energia se
confirmou. Dave sentiu um aperto no peito tão forte quanto
a dor do tiro que não recebeu. O carro parou na calçada da
frente e dois homens de terno preto e óculos escuros
desceram do veículo, ambos tocaram a cintura em
momentos diferentes, indicando que provavelmente
estavam armados. Eles atravessaram a rua em direção ao
galpão.

336
Dave se afastou da janela e fechou a cortina, sua
respiração estava ofegante, com certeza viriam atrás dele,
mas por qual motivo? E por que estavam usando óculos
escuros durante a noite? Não havia tempo para responder
essas perguntas, ele pegou a última sacola de bilhetes, saiu
para o espaço da “oficina” do galpão e se escondeu atrás de
uma jukebox.
As luzes de emergência estavam acesas e por baixo
da porta de metal, ele pôde ver movimento lá fora. Escutou
passos na calçada ficando cada vez mais altos, ouvia os
solados dos sapatos ecoando cimento. Silêncio. A porta foi
arrombada e os dois entraram com armas em punho e
lanternas.
Um deles caminhou em direção ao quarto, onde
estavam espalhados os bilhetes que Dave já havia conferido.
— Achamos.
— Procura direito, ele ainda deve estar aqui dentro —
disse o outro logo atrás.
Dave se esgueirou pela lateral da máquina para
espiar os dois invasores. Pelo barulho tudo indicava que
agora eles reviravam o quarto de Dave. A dor em seu peito
se misturou com o nervosismo e ansiedade. Dave avançou
mais um pouco e notou que eles cometeram o erro mais
amador possível. Eles invadiram o galpão e deixaram a
porta aberta. Dave só teria uma chance, e não era sua
pretensão tomar outro tiro. Em hipótese alguma nesse
corpo.

337
Era hora de arriscar mais uma vez. Dave fechou os
olhos e apertou a alça da sacola em sua mão. Uma dor
invadiu seu peito que quase o fez desmaiar, mas não, ainda
se manteve acordado enquanto os intrusos estavam dentro
do seu quarto, seu outro “eu” bateu a porta do banheiro.
Isso chamou a atenção dos invasores que correram em
direção ao barulho, apontando as armas para frente. Dave
aproveitou esse momento para disparar em direção à porta
de saída.
Dave forçou tanto a corrida que ao passar pela
entrada, o tapete deslizou sob seu pé, isso chamou a atenção
daqueles dois. Um deles iluminou Dave com a lanterna
enquanto o outro apertou o gatilho. O projétil viajou em
direção à cabeça de Dave, que para sua sorte havia sido
derrubado pelo tapete. Caiu com um dos joelhos no chão
abaixando-se, protegendo a cabeça com a mão. Apoiou-se
na outra perna e correu em direção à rua. Ouviu atrás de si,
aqueles dois começando uma perseguição.
Ele corria pela calçada, com passadas largas. Para a
sua sorte, um casal entrava pela portaria de seu antigo
prédio. Dave deu um salto e conseguiu passar entre eles e o
portão, subiu as escadas ainda ouvindo seus passos atrás de
si. Escondeu-se atrás da cadeira onde Dona Finha ficava no
corredor. Viu seus perseguidores passarem por ele e subir
as escadas sem notar sua presença. A porta abriu atrás dele,
e antes que Dona Finha dissesse a primeira palavra Dave
rolou para dentro do apartamento dela, tapando sua boca.

338
Dave olhou no fundo dos olhos dela. A pobre senhora
muito assustada devolveu o olhar, vendo parcialmente os
olhos de Dave iluminados apenas pelas velas que estavam
espalhadas pela casa. Nesse momento ela soube que deveria
permanecer calada. Dave tirou a mão da boca da senhora e
ela respirou fundo.
— Você tá encrencado, meu filho? — disse,
cochichando.
Dave levantou o dedo, pedindo silêncio mais uma
vez. Dona Finha foi em direção às escadas sob os protestos
silenciosos de Dave, que não conseguiram impedi-la.
— O que está havendo aqui? Que barulheira!
— Volte para dentro, minha senhora. — Dave ouviu
uma voz grave vinda do corredor.
— Sua senhora? Você me respeite, rapaz!
— Senhora, por favor.
— Por favor, coisa nenhuma. Parem com essa
barulheira. Preciso dormir!
Para alguém que sempre pareceu ser muito
simpática, ela sabia interpretar uma velha rabugenta, muito
bem. Dave foi em direção à janela. Viu os dois homens
chegando à rua e olhando em volta. Já se contentando que
o tinham perdido de vista. Ambos olharam para cima e
Dave se abaixou. Alguns segundos depois, ouviu o barulho
de um carro acelerar e de pneus derrapando. Dave deu uma
última olhada e a rua estava deserta novamente.

339
65
Dave acordou sentado num sofá, abraçado com uma
sacola de bilhetes de loteria, o sol entrava pela varanda e
batia em seu rosto. À sua frente uma senhora fazia uma cara
de poucos amigos, com o cenho franzido, as rugas pareciam
ainda mais profundas.
A sala tinha um cheiro de gato muito forte. Dave
notou alguns pelos por toda a extensão do sofá. Falando
dele, era feito de corino marrom coberto por um xale cor de
rosa que parecia ter sido feito à mão via crochê. Nas paredes
atrás de si, diversas fotos antigas, em preto e branco com
molduras coloridas.
Dave acordou assustado e conferiu sua sacola, e
parecia tudo ok. Sentou-se no sofá.
— O que aconteceu? — Agora ela mudou o semblante
para uma feição preocupada.
— Dona Fi... É... A senhora não imagina o que eu
passei nos últimos dias.
— Aqueles homens estavam atrás de você?
— Acho que sim.
— Por que, meu filho?
— Eu realmente não sei. — Coçou a cabeça.
Nesse momento, Dave tomou um susto quando um
gato cor de laranja saltou no seu colo, e se esfregou em suas
pernas. Ele sentiu um pouco de nojo, o gato era muito mal
cuidado, com o pelo desgrenhado e arrepiado.
— Você tá precisando de alguma coisa? Você tava tão
aflito ontem. Eu nem dormi direito preocupado com você.

340
— Olha, Dona... — Dave massageou o peito numa vã
tentativa de arrancar sua dor.
— Maria.
— Dona Maria, eu agradeço muito, por tudo que a
senhora fez, me desculpa pelo transtorno de ontem, mas eu
tenho que ir.
— Não vai, não! Descansa mais um pouquinho.
Dave foi se levantando, e o gato pulou do seu colo e
foi de encontro a outro gato cinza.
— Eu realmente tenho que ir — disse, e foi saindo
puxando a maçaneta da porta.
— Espera, leva isso para você comer depois.
Ela pegou uma espécie de vasilha que estava
amarrada com um pano de prato. Dave se sentiu um tanto
culpado por invadir a casa daquela senhora e pegou o
pacote com o intuito de se desculpar.
— Obrigado, Dona Maria.
— Leva um casaco também.
— Obrigado. — E pegou a blusa de frio.
Desceu as escadas vagarosamente espreitando a
cada curva. Em uma mão uma sacola de bilhetes de loteria
e na outra uma marmita com o que provavelmente seria
uma das comidas naturebas de Dona Finha. Dave procurou
a porta dos fundos, passou longe da saída de pedestres e
saiu pela garagem.
Dave caminhou pela calçada coberto pelo capuz
abraçando a marmita e a sacola, olhando pela rua com
receio de encontrar um carro preto ou aqueles homens de

341
óculos escuros. Ele continuou caminhando até chegar a um
pequeno parque, bem conhecido por ele. Aqui foi onde uma
vez ele comprou todos os cachorros-quentes de um rapaz
que provavelmente está na cadeia nesse momento.
Ele foi até a sombra de uma árvore, na parte mais
escura que encontrou no parque durante o dia. Olhou em
volta e despejou todos os bilhetes na grama, e desesperado
começou a tatear aquela montanha de papel.
— Quatro... Cinquenta e seis... quarenta e cinco...
Cinco... Cinquenta e quatro... Quarenta e seis. — Ficava
repetindo sussurros enquanto procurava.
Em meio a toda aquela papelada, o bilhete premiado
pareceu brilhar em meio aos outros. Dave se arrastou com
as palmas da mão e os joelhos em direção ao bilhete.
Conferiu mentalmente as dezenas: “04 — 56 — 45 — 05 —
54 — 46”. Dave guardou no bolso da camisa próximo ao
peito e deu duas batidinhas. O maior problema foi sentir a
dor do tiro no peito, não devia ter feito aquilo. Dave viu ao
longe um mendigo deitado embaixo de um banco. O
mendigo dormia sob um cobertor surrado.
Ao lado do morador de rua havia uma garrafa de
cachaça, deixando a marmita de Dona Finha no lugar. Dave
pegou o resto de bebida que havia naquela garrafa e pediu
emprestado um fósforo de uma moça que fumava próximo
ali. Espalhou a cachaça por toda a extensão dos bilhetes.
Não poderia correr o risco de alguém encontrar um bilhete
com uma quadra formada ou uma trinca que seja.

342
Dave tomou a direção norte da rua, riscou o fósforo
em uma árvore próxima, e arremessou a chama por cima do
ombro, e sem se virar sentiu o calor do fogo em suas costas.
Continuou seu caminho como se já estivesse nele a bastante
tempo. Viu pessoas correndo na direção contrária, gritando
palavras do tipo, “Fogo!” ou “Caramba!”, “Alguém ajuda
aqui antes que espalhe”.
Ele prosseguiu seu caminho sem acelerar, diminuir
o passo ou se quer virar o pescoço. As labaredas tremiam a
imagem de um homem caminhando com um capuz preto
sumindo ao longe enquanto diversos populares tentavam
impedir que as chamas destruíssem o parque.

343
66

É impossível mensurar a quantidade de tempo e os


acontecimentos que ocorreram depois daquele pequeno
incêndio na grama. O fato é que nada mudou nesse
intervalo. Nenhuma coisa extraordinária ocorreu. Nenhum
encontro com sua própria consciência, mesmo morta, ou
com o homem de terno verde, menos ainda com os
perseguidores de preto.
Ele não se acidentou, não caiu, não encontrou
Raphael, Dona Finha, Hiro, Roberto ou Marisa. O mais
próximo que esteve de alguém, nesse meio-tempo, foi da
voz de sua ex-noiva. Está sempre dentro de sua cabeça. Tão
longe quanto a mais distante das galáxias e, ao mesmo
tempo, tão perto quanto a própria pele.
O senhorio dobrou o aluguel do galpão. Dave
concordou em pagar desde que ele não dissesse a ninguém
quem o estava alugando. Ele pagou tudo o que devia e
dispensou os estagiários. Trabalhou sozinho por bastante
tempo, aproveitando o esforço deixado pelos jovens. Cobriu
todas as janelas, quase não via a luz do dia, trabalhava em
silêncio o máximo possível. Evitava sair. Algumas pedras,
vez ou outra, voavam pela janela quebrando os vidros. Um
sinal que Dave encarava como positivo: quanto mais janelas
quebradas, maior era a aparência de local abandonado.
Apenas ele e suas vontades estavam de pé. A outra
que o acompanhava sem nunca descansar era sua dor no

344
peito. Ela se lembrava de sua presença a cada segundo.
Talvez não fosse maior que a dor da perda de sua amada
noiva. Mas com uma já havia se acostumado, com a outra
jamais.
Não teve mais nenhum daqueles pesadelos horríveis,
aos quais ele desejava que lhe tirassem o sono, mas nunca
acontecia, só o deixavam mais exausto tornando o sono
mais profundo e aumentando o sofrimento. O hiato de
confusões que ocorria agora não parecia pertencer a sua
rotina. A paz momentânea trazia uma incerteza de que
estava no caminho correto, depois de passar por tudo isso
sempre paira a dúvida de que houve ou não um desvio do
caminho a ser seguido.
Depois de resgatar seu prêmio, ficou escondido por
bastante tempo. Moveu o dinheiro entre contas, na
tentativa de despistar rastreadores. A grana foi mais que
suficiente para financiar tudo o que precisava por bastante
tempo. Sua ascensão foi lenta, mas constante. Não demorou
muito para que cada empresa da cidade quisesse uma
máquina como aquela. Tal qual a venda de seus cachorros-
quentes na praia, as encomendas de novas máquinas, foram
em sequência. Teve de abrir uma nova empresa, contratar
funcionários aos quais deu preferência aos seus antigos
estagiários.
Pouco antes da conclusão da ideia, um sentimento de
incerteza lhe invadiu, seria mais forte se a dor em seu peito
não o distraísse tanto. Tinha chegado ao tão esperado fim?
O que fazer quando você chegar lá. O famoso “lá”, o lugar

345
que cada um tem o seu. Que sentido tem a conquista de seus
sonhos? O amor que o desejo nos traz é assinado pela
presença. Não existe mais sonho quando ele é realizado.
Wins disse certa vez que a ideia era a chave de tudo… Sua
conclusão era de essencial importância, mas e agora?
O fato mais surpreendente na história de Dave é que
agora as coisas pareciam estar dando certo.

346
67

Dave olhava para o lado de fora da janela


panorâmica via toda a cidade por cima. Do décimo sexto
andar via pessoas andando de bicicleta por entre os carros
engarrafados na avenida principal. Isso o fez repassar toda
sua trajetória, de como partiu lá de baixo até chegar aqui
em cima.
Nas paredes de seu escritório, diversas capas de
revistas emolduradas, as quais Dave era protagonista das
matérias de capa. Diziam: “Rapaz de sorte!”, “Como o
entregador virou CEO”. Dave tinha orgulho daqueles
quadros. Abaixo deles as notícias de todos os jornais: “Cada
prédio da cidade possui uma dessas”, “A revolução da
correspondência”. Dave tocava o vidro e sorria sozinho em
sua sala. A parede também era enfeitada com quadros de
patentes e prêmios que recebera.
Tinha de caminhar dez passos para chegar à
máquina de café. Demorava longos minutos para dar o
primeiro gole, o cheiro era muito melhor que o gosto, ou
talvez não fosse, mas queria delongar aquele momento ao
máximo que pudesse. Observava aquela fumaça branca
subir lentamente. Que aroma! Aquele era apenas um dos
mimos que o dinheiro e o sucesso lhe permitiram atingir,
mas antes de cada gole Dave refletia sobre sua trajetória e
era grato, sempre.

347
Tudo seria maravilhoso, se não fosse aquela maldita
dor.
Atualmente sua empresa já não precisava mais
reciclar máquinas de música antigas. Ele criou seu próprio
layout patenteado. Para manter o estilo do ambiente de sua
sala, havia uma jukebox real. Apertou um botão vermelho
com a mão que não estava segurando a xícara de café.
Começou a tocar “Foreigner — Juke Box Hero”.
Mesmo que o tempo o tenha feito se “acostumar”
com a dor. Era quase impossível ignorar sua existência. As
pontadas em seu peito não lhe tiravam a alegria de suas
conquistas, mas a lembrança daquele tiro permanecia ali,
alertando e pulsando. Mostrando que ainda era um
humano por trás daquela carne.
Mesmo com essa “superação” havia uma dor ainda
maior dentro de seu peito, o fato de não ter Maritza para
dividir todas aquelas conquistas. O dinheiro, a fama ou a
realização não tinha sentido se não pudesse ser
compartilhada… Por mais que ouvisse a voz dela em alguns
momentos e sentisse sua presença, ela não estava ali.
A fumaça de sua xícara de café embaçava um pouco
o vidro da janela panorâmica, olhando a janela dos outros
prédios, ele sabia que cada um daqueles andares tinha uma
máquina de sua empresa. Todas as repartições tinham sua
própria versão de “jukebox”. Dave facilitou a vida de
milhares de estagiários pela cidade, que ao invés de ficar
andando com um carrinho por entre as mesas dos

348
funcionários, bastava alimentar a máquina todas as
manhãs.
Tornar-se CEO de um negócio tão próspero tinha
suas vantagens. Suas funções principais se resumiam a
acordar, pedalar um pouco, beber café caro, ouvir música
em seu escritório e o que ele mais gostava: ver o dinheiro
entrar em sua conta. Vez ou outra resolvia alguma
pendência, mas nada que lhe ocupasse o tempo.
Dave também deu emprego para quase todos os
alunos da faculdade de engenharia onde certa vez contou
com a ajuda deles para desenvolver seu projeto. Muitos
deles trabalhavam num departamento recém-criado por
Dave com o objetivo de desenvolver a jukebox 2.0. Dave
queria que ela andasse pelas mesas entregando as
correspondências. Em uma tentativa de compensar seus
erros passados, nomeou o jovem Hiro para gerência desse
departamento. Ele aceitou o convite e perdoou Dave sem a
menor cerimônia.
Dave recusou todas as tentativas de contato de
Roberto. Sem saber se queria participar de alguma forma
ou cobrar por ter perdido seu passador de roupas. Recusou
também as propostas absurdas feitas por Gilberto, que
agora dizia que Dave teve uma ideia maravilhosa. Raphael
ainda era sócio de Dave, mas apenas na outra empresa.
Ele pousou o café sob o vidro de sua mesa, sentou-se
na cadeira confortável, continuou olhando para fora com as
mãos atrás da cabeça, reclinando-se um pouco. Apoiou os

349
pés sob uma mesinha ao lado da janela, que não tinha outra
função senão essa. O telefone tocou.
— Com licença, senhor Dave. O senhor Bones e o
senhor... Sanches estão aqui para vê-lo.
— Eu não conheço eles. Quem são?
Houve um intervalo onde Dave ouviu a secretária
perguntar alguma coisa aos visitantes.
— Eles disseram que são investidores, senhor Dave.
— Eles marcaram horário? Como está minha agenda
hoje?
— Não marcaram, senhor, mas não há nenhum
compromisso.
— Deixe-os entrar — disse, apertando o botão
vermelho.
Depois de alguns instantes, dois toques na imensa
porta de madeira, que se abriu em seguida. Antes que Dave
terminasse de desligar o telefone. Dois homens de terno
negro, óculos escuros e chapéu entraram no escritório.
Dave sentiu uma mistura de pavor e angústia que somada à
dor era quase insuportável.
Aqueles eram seus perseguidores, que outrora
invadiram seu galpão. “Como me acharam?”, pensou. Ele
olhou as capas de revistas e jornais espalhadas pela sala, foi
bem fácil responder à pergunta.
Dave agiu naturalmente como se não soubesse quem
eram. Na verdade, não sabia. O que sabia era que
representavam perigo. Ele se levantou para cumprimentá-
los fingindo tranquilidade para não levantar suspeitas.

350
— Senhor Sanches. — Estendeu a mão. — Senhor
Bones. Vocês aceitam um café? Fiquem à vontade. —
Indicou a máquina.
Enquanto Bones recusou a gentileza, Sanches foi em
direção à máquina de café, colocou duas cápsulas uma em
seguida da outra de sabores diferentes. Ele era o mais gordo
dos dois, e voltou-se para sentar ao lado de seu
companheiro segurando dois copos de café. Tudo indicava
que o segundo copo era para Sanches, mas ele bebeu os dois
rapidamente, sem se importar com a temperatura e
levantou em seguida para pegar mais. Sanches continuou.
— Senhor Dave, somos investigadores, estamos
seguindo pistas há alguns meses e elas nos trouxeram até
aqui.
Dave engoliu em seco, mas sem deixar transparecer.
Ele reconheceu aquela voz do dia em que escapou deles.
— Eu ficarei feliz em ajudá-los no que puder.
— Agradecemos, mas nosso principal suspeito é o
senhor. — Bones tinha uma voz meio grave e arrastada de
alguém que aparentava fumar bastante.
— O quê? Como assim?
Bones abriu uma pequena agenda que guardava no
bolso interno do paletó, enquanto Sanches já tomava o
quarto copo de café.
— O senhor é o ganhador mais recente da loteria,
estou correto?
— Sim. Ganhei sozinho.
— Dentro das nossas investigações...

351
Dave o interrompeu. Queria descredibilizá-los e
tentar sair dessa situação de alguma forma.
— Os senhores podem me mostrar algum distintivo
ou um documento que comprovem suas identidades?
— Não! Nós não somos da polícia... E estamos
trabalhando disfarçados. — Olhou por cima dos óculos.
— Vocês podem fazer o que estão fazendo? Tem
mandado para isso? Eu deveria responder a essas perguntas
na presença do meu advogado — disse, se levantando.
— Senta aí! — falou o brutamontes Sanches, se
levantando e apontando o dedo para Dave. Em seguida,
voltou a tomar seu café.
Dave notou a própria exaltação, deveria se conter
para não levantar mais suspeitas. A dor em seu peito o
deixava mais nervoso, sentou-se calmamente.
— Se o senhor for inocente, não tem nada a temer —
prosseguiu.
— Tem razão, eu sou apenas um homem de muita
sorte.
— Será mesmo? Temos filmagens do senhor em dois
lugares ao mesmo tempo — disse, estendendo a mão para
Sanches.
Sanches apoiou o café sob a mesa e tirou um tablet
de dentro do bolso. Bones ligou e mostrou uma tela
dividida. Ali mostrava uma filmagem de câmera de
segurança. De um lado estava Dave numa fila em uma casa
lotérica, e do outro lado Dave também em outra casa
lotérica, sendo atendido no balcão.

352
— Senhor Dave, a habilidade de estar em dois lugares
ao mesmo tempo é um dom muito raro, não acha?
Dave olhou as imagens mais de perto.
— Não sou eu.
— Será mesmo? Estas são as filmagens do dia em que
a aposta vencedora foi feita, o senhor tem que ser um
destes.
— Um deles provavelmente sou eu, o outro é com
certeza um sósia.
— Curioso, me parece que o senhor tem mais 13
sósias espalhados por aí.
E virou novamente o tablet para Dave que, desta vez,
engoliu em seco. Não sabia o que dizer: lá estavam 14
imagens diferentes dele fazendo apostas, algumas já sendo
atendidas no guichê, outras ainda na fila de braços
cruzados, conversando com outros apostadores...
— Tem algo a dizer?
Dave não respondeu.
— O senhor se lembra de onde fez a aposta
vencedora?
— Lembro. Foi na lotérica Baú de ouro. — Pelo
menos isso era verdade.
— Ainda tem um fato mais curioso. Esse
estabelecimento foi assaltado nesse dia e me parece que o
senhor foi baleado fatalmente.
Bones virou o tablet e mostrou a cena do assalto em
que Dave foi “baleado”. Ao recobrar aquela memória, foi
quase como reviver o momento. Era como reforçar a dor

353
com uma faca, como abrir um buraco com uma lâmina de
barbear. “Como explicar aquilo?”, ele se perguntava. Na
cena, Dave se via abaixado enquanto os assaltantes se
moviam pela loteria, não era possível ver o projétil, mas
Dave se viu movimentar na tentativa de correr e cair logo
em seguida inerte.
— Eu não fui atingido, eu tropecei e caí. Eu disse, sou
um homem de muita sorte.
— Se esse fosse o caso, poderia ter se levantado logo
em seguida. Nós não temos mais imagens, mas pegamos o
depoimento de várias testemunhas que viram o corpo
desaparecer.
Dave não conseguia mais engolir, devido ao aperto
em sua garganta.
— Eu não sei o que dizer.
Bones fitou o tablet, e correu o dedo por ele como se
procurasse mais alguma coisa.
— Há alguns meses, um rapaz foi preso.
Injustamente segundo o depoimento dele. Ele foi acusado
de tentar fazer compras com dinheiro falso...
Dave já sabia onde aquela conversa iria chegar.
— ...era apenas um simples vendedor de cachorro-
quente. Ele conta que no dia em que foi preso um rapaz
comprou todos os cachorros-quentes dele.
— Com todo respeito, o que isso tem a ver comigo?
— desviou.
— Ele fez um retrato falado do homem que comprou
toda a sua mercadoria. — Bones mostrou um desenho

354
muito parecido com Dave. — Me lembra muito o senhor,
senhor Dave.
— Essa acusação é completamente descabida, nunca
comprei todos os cachorros-quentes de ninguém — mentiu.
— Temos algumas fotos do senhor na praia,
carregando uma caixa de isopor. — E mostrou as fotos. — O
que o senhor estava levando?
— Acho que não tenho que responder.
— Bem, senhor Dave, eu nunca vi um falsário como
o senhor. — Tirou uma nota de dinheiro do bolso do paletó.
— Veja, Sanches, como é perfeita. Se eu mesmo não tivesse
visto dezenas de outras com o número de série, eu jamais
saberia a diferença.
— É perfeita — disse o brutamontes, bebendo um
copo de café ao qual ele mesmo já tinha perdido a conta.
— Vocês estão me acusando de falsificar dinheiro?
Ou de ter sido assaltado, ou por ter a sorte de ganhar na
loteria?
— Ainda não estamos acusando o senhor de nada.
Estamos apenas ligando alguns pontos. E sobre a loteria,
estamos achando que o senhor manipulou o resultado
jogando em todas as probabilidades.
— E daí? — Dave já estava ficando impaciente.
— E daí que para alguém fazer o que o senhor fez, ou
seja, apostar em todos os resultados possíveis, o senhor
gastou mais que o dinheiro do prêmio.

355
— Qual o problema com isso? Eu tinha esse dinheiro,
fruto da minha primeira empresa de uma máquina de
descontos.
— Será mesmo? Isso está me cheirando a lavagem de
dinheiro. Provavelmente todas as apostas foram feitas com
esse seu dinheiro falso. E passou despercebido devido à
perfeição de suas falsificações.
“Como é possível?”, pensou. Seu plano fora
descoberto. Dave chegou a cogitar que aqueles homens
eram outras manifestações de sua própria consciência,
punindo-o por seus deslizes, mas não parecia ser o caso. E
quando Dave achou que aquele era o fundo do poço, na
verdade era um poço sem fundo.
— Não tem o menor fundamento essas acusações.
— O que é isso, senhor Dave? — disse em tom irônico.
— Apenas... enriquecimento ilícito, falsidade ideológica,
manipulação do sistema de apostas e assassinato.
— Assassinato? Que história é essa? Vocês estão indo
longe demais.
— Vamos ao assunto mais sério, então. O senhor com
certeza conhece uma jovem chamada Maritza Silva. —
Bones avançou o tablet em direção a Dave. Na tela, a foto
3x4 do documento de identidade de Maritza.
— Sim, era minha noiva. — Dave franziu o cenho, não
queria falar dela.
— O senhor é a única pessoa que estava com ela no
momento da morte.
— Eu não matei minha noiva. — Levantou-se.

356
Sanches se levantou no mesmo momento.
— Melhor você sentar aí! — disse Sanches,
apontando o dedo na cara de Dave.
Dave se sentou, e Sanches, aproveitando que já tinha
se levantando, foi pegar mais café.
— Ninguém aqui falou que o senhor matou a
senhorita Maritza, mas o que é estranho nessa história toda
é que o laudo da autópsia foi inconclusivo. Mas como você
pode ver aqui nas observações no fim da página. —
Estendeu o tablet. — O legista acredita que foi
envenenamento.
— Envenenamento? Ela cheirou uma flor.
— Uma flor tóxica, muito rara, chamada dália negra,
não é? — Coçou o queixo. — Só havia uma em toda a cidade,
e, segundo esse recibo, o senhor fez compras na floricultura
onde ela estava plantada.
— Eu não sabia que a planta era venenosa, foi um
pedido de casamento, eu não tinha nenhuma intenção de...
— Me parece o álibi perfeito. O senhor é muito
engenhoso, senhor Dave.
— Você está mesmo insinuando que eu matei minha
noiva?
— O senhor acaba de afirmar que ela apenas cheirou
a flor.
— Sim, foi isso que aconteceu.
— A exumação do corpo revelou um enegrecimento
de todas as mucosas. E segundo os exames que fizemos, eles
revelaram que a concentração da toxina da flor é muito

357
maior do que ela poderia ter inoculado com apenas uma
inspiração.
Bones mostrava as fotos de Maritza na gaveta do
necrotério com o contorno dos olhos completamente
escurecidos. O rosto sem vida era algo assustador. Aquelas
imagens pareciam acentuar ainda mais a dor em seu peito.
Enquanto Bones falava, uma sensação ruim crescia dentro
de Dave. Sua raiva o fez levantar novamente, batendo as
mãos na mesa e gritando:
— EU NÃO MATEI A MARITZA! — Dave deu outro
murro na mesa, com lágrimas nos olhos, dessa vez
rachando o vidro.
Agora os três estavam de pé, Dave tremia por conta
do nervosismo, e chorava por conta da dor, mas não a do
tiro.
— Isso é um absurdo. — Limpou as lágrimas. —
Vocês vêm ao meu escritório, me acusam de um monte de
coisas e eu ainda sou obrigado a ver essas imagens da minha
ex-noiva nessas condições...
Eles mexeram numa ferida que não deveria ter sido
reaberta. Continuou:
— ...e com que direito vocês ousam exumar o corpo
dela? Podem apostar que meus advogados vão procurá-los,
assim que me disserem para quem vocês trabalham.
— Melhor o senhor se acalmar! Não interessa para
quem a gente trabalha. O que o senhor tem que saber é que
nós somos especializados em encontrar pessoas como o
senhor. Não precisamos de mandado, de autorização, não

358
há portas fechadas para nós. Somos investigadores,
policiais, caçadores e até juízes em alguns casos.
— A gente pega os caras maus — disse Sanches, em
tom de deboche.
— E o senhor é um desses — emendou Bones. — O
senhor tenha a gentileza de vir conosco.
Dave fez menção de tocar o telefone ou mesmo fugir,
os dois agentes levaram a mão às cinturas quase que
simultaneamente. Se eles também fossem os juízes como
disseram, Dave suspeitou que usassem armas no lugar de
um martelo.
A única saída da sala estava a sua frente, atrás de si
somente a janela panorâmica, para qualquer um dos lados
que optasse o único destino era a morte certa. Uma decisão
precisava ser tomada com urgência. Os dois sacaram as
pistolas.
— Com muita calma, o senhor vem conosco — Bones
reforçou.
Ao ver aqueles dois revólveres mirados em sua
direção, imediatamente a sensação do tiro lhe voltou à
mente e ao peito. Dave deu um passo para trás, Bones
puxou o cão da arma fazendo um clique. Ao ouvir aquele
barulho, a memória de Dave reproduziu em sua mente o
som de um disparo. O som que ele ouviu separou as
conexões entre cérebro e membros inferiores. Isso o fez
correr contra a sua vontade, numa direção a qual não
desejava: a janela.

359
Ele deu dois passos na direção oposta à porta de
saída, e dessa vez o som de um disparo real cortou o ar em
direção ao seu ouvido. Em seguida mais um, seguido de
outro e outro. Dave abaixou a cabeça e a cobriu com os
braços. Pulou em direção ao vidro. Uma bala o estilhaçou
antes do impacto. Dave voou por alguns segundos enquanto
seu impulso lhe permitia afastar-se do prédio. Milhares de
cacos de vidro cintilavam a luz do sol ao seu redor.
Um dos projéteis passou de raspão na parte interna
de seu cotovelo. Antes que a gravidade começasse a agir
sobre o corpo de Dave, ele conseguiu se virar no ar, mostrou
o dedo do meio aos seus algozes, e começou a cair. Seu
corpo cortou o vento, ele via sua janela quebrada se afastar
rapidamente. A sensação de não poder se apoiar em lugar
nenhum era desesperadora. Dave não teve tempo de sentir
dor, o baque forte fez um barulho de ossos quebrados, e
dezesseis andares abaixo não sentiu nem mesmo o asfalto
quente, foi como apagar a luz.
Lá em cima:
— Ele escapou de novo, chefe.
— Não dessa vez, aqui em cima ou lá embaixo, o
destino dele era o mesmo.

360
68

Ele acordou sem a coragem de abrir os olhos. Sentiu


um pouco de frio. Do outro lado das pálpebras parecia
haver uma luz muito forte. Abriu os olhos lentamente, o
foco demorou para se ajustar. Assim que sua visão se tornou
nítida pareceu que ainda estava embaçada. Sua visão
mudou de preto para branco. Tudo era branco. Deitado,
Dave se apoiou nos cotovelos e olhou em volta. O chão não
possuía textura. Era liso e de um material indefinível.
Ele se levantou e começou a caminhar, tudo à sua
volta era o mais puro branco. Ele não sabia de onde vinha a
luz, não havia sombra. Apenas o som do eco de seus passos.
Por esse barulho, Dave concluiu que deveria estar numa
imensa sala. Ao olhar para cima não viu teto, mas a mesma
visão do “chão” ou do “horizonte”.
Continuou caminhando sem chegar a lugar nenhum,
colocava a mão no chão, na tentativa de entender o que
estava acontecendo ou pelo menos elaborar uma ideia de
onde pudesse estar. Seu braço doía onde a bala havia
passado de raspão. Passou a mão no rosto, ainda havia
algumas gotas de sangue pelos cortes do vidro.
Horas se passaram enquanto caminhava, seus lábios
já estavam secos e rachados, os pés arrastando, os olhos
começaram a se fechar levemente. Todo aquele plano
branco foi dando lugar a um túnel cinza. Desmaiou e antes

361
que caísse para frente um braço o segurou pelo peito e o pôs
de pé novamente.
— De pé, meu jovem.
— Hein? — Dave piscava lentamente, confuso.
— Vamos! Acorde!
Antes que os olhos de Dave identificassem aquela voz
ele reconheceu o borrão verde-limão.
— Wins? É você? Onde eu estou? Eu morri?
— Se acalme, meu jovem, tudo a seu tempo.
Wins usava seu clássico terno verde-limão impecável
e a gravata-borboleta vermelho sangue. Dessa vez
segurando uma bengala curva completamente negra.
— Minha boca tá seca.
— Tem um pouco de água ali em cima da mesa.
— Mesa? Que mesa? Não tem nada aqui. — Olhou em
volta.
— Talvez você devesse prestar mais atenção.
Dave girou 360 graus nos próprios calcanhares e
percebeu uma mesinha de tampo redondo com uma jarra
de água e uma taça de vidro. A mesa era completamente
transparente e aparentava ser branca como tudo ao redor.
Imperceptível a um desavisado. Ele nem tocou a taça,
tomou a jarra nas mãos e bebeu o líquido em goladas fartas,
direto da jarra.
— Eu morri? — disse Dave, com gotas de água ainda
escorrendo pelos lábios.
— Veja você mesmo. — Wins estalou os dedos.

362
Um quadrado flutuava na frente dos dois, como uma
tela. Dave se viu pulando da janela de seu escritório em
câmera lenta, fazendo gestos obscenos para aqueles que
dispararam os tiros.
— Acho que não tem como sobreviver a uma queda
como essa.
Wins foi em direção a Dave e tocou-lhe no peito:
— Ainda dói?
— Dói muito. Você disse que eu ia me acostumar,
mas...
Wins manteve a mão alguns segundos sob o peito de
Dave, ele inspirou profundamente e sentiu um imenso
alívio.
— Nossa, já não me lembrava como era respirar sem
dor. Você poderia ter feito isso o tempo todo?
— Não onde a gente estava.
Dave começou a chorar.
— O que foi, meu jovem? — perguntou Wins.
— Tem uma dor ainda maior que nem você pode
curar.
— E qual seria?
— Maritza. — Limpou as lágrimas misturadas com
sangue.
— Já imaginava. Eu posso dar um jeito nisso
também.
— Não me venha com essa. Eu já vi você fazer muitas
coisas. Mas ressuscitar alguém... Eu acho que é demais até
para você!

363
— Jamais duvide das minhas capacidades, meu
jovem. Eu não posso ressuscitá-la. Mas posso te levar até
ela.
— Vamos então! Para onde? Por aqui? — Dave se
desesperou olhando em volta.
Wins deu um tapa forte no rosto de Dave,
derrubando-o no chão.
— Eu disse que posso ajudar, não disse que ela está
aqui. Levante-se, meu jovem.
Ambos estavam de pé, frente a frente. Wins segurou
nos ombros de Dave e olhou profundamente em seus olhos,
como se enxergasse sua alma.
— Isso é o que você mais quer?
— É, sim!
— Talvez você prefira voltar para a sua antiga vida,
sem ela, com as suas empresas, sua pequena fama e fortuna,
não seria melhor?
— Sem ela? Jamais! Não há um dia que eu não me
culpe pela ausência dela. Eu preferia mil vezes voltar a ser
entregador. Não pela adrenalina, mas para encontrar ela no
fim do dia depois de ter quase morrido.
— Pensa melhor.
— Nada do que eu fiz tem sentido se eu não tiver a
chance de dividir com ela. — As lágrimas lhe pingavam do
queixo. — Eu agora percebo que eu só consegui executar a
sua ideia por que a picada daquela vespa me deixou
obcecado. Senão eu... não estaria... — concluiu, com olhar
pensativo. — Aqui.

364
— Você finalmente entendeu. Toda a influência que
eu tive sobre a sua vida e sobre suas decisões eram para
culminar nesse momento.
— Agora faz um pouco mais de sentido.
— Você foi um dos mais resistentes até hoje.
— Só traz ela para mim.
— Ok, mas não vai ser fácil. — Wins aproximou
novamente a mão do peito de Dave.
— Eu tô preparado!
O que antes parecia um gesto de gentileza, agora era
pura hostilidade. Uma onda de choque saiu da mão de Wins
em direção ao peito de Dave e o arremessou a alguns
metros. Ele voou e caiu de costas batendo a cabeça. O chão
agora parecia diferente, coberto por uma fina lâmina de
água. Wins caminhava em direção a Dave, deixou a bengala
de lado e seguiu com uma expressão determinada no rosto.
Dave se levantou, com as costas encharcadas, Wins
tocou-lhe o peito novamente e o jogou mais longe dessa vez.
Na segunda queda a água estava na altura dos joelhos. Wins
continuou andando, dessa vez desabotoando o blazer verde.
Sem afundar na água, puxou Dave pelo pescoço e o levantou
acima da própria cabeça:
— Tá pronto?
— Sim — disse, entredentes.
Outro impacto forte no peito. Pela expressão no
rosto de Wins fez bastante força, pela expressão no rosto de
Dave, não havia dor. Ele foi arremessado muito mais longe

365
dessa vez, percorreu o ar por longos segundos, antes de
começar a sentir uma conhecida sensação de queda.
Caiu de costas na água, mas dessa vez, afundou, ao
contrário da superfície branca, abaixo da linha da água tudo
era escuro. O líquido que Dave antes definiu como água,
não era bem isso, era algo que o envolvia e dava-lhe a
sensação de suspensão, o sentido do tato desapareceu de
seu corpo e permaneceu ali sem se mover. Lá de baixo ele
podia ver Wins caminhar acima da linha da água.
Dave estava fundo demais para subir, seria um
esforço inútil gastar o que ainda restava em seus pulmões
para mover um dedo sequer. O ar começava a faltar, seu
fôlego estava quase no fim. As lágrimas se perderam em
meio ao líquido. A profundidade escura parecia atraí-lo,
lentamente foi descendo, seu corpo parecia pesado. De
onde estava, não enxergava as próprias mãos, de olhos
fechados ou abertos, a percepção de luz era a mesma. Zero.
Nada podia fazer, a não ser se entregar. Desmaiou.

366
69

Os ouvidos de Dave começaram a funcionar antes


dos olhos. Um som de um monitor cardíaco, em intervalos
regulares, “pi, pi, pi, pi”, entrou por sua orelha. Ele ouviu
duas vozes conhecidas em seguida:
— Ufa! Conseguimos estabilizar!
— Ele vai ficar bem agora, doutor? — Era uma voz
feminina.
— Eu acho que eu vou, sim — disse Dave, de olhos
abertos.
Ele piscou forte, franzindo um pouco as
sobrancelhas. Sua voz saiu um pouco embargada, como se
suas cordas vocais não fossem usadas há bastante tempo.
Tudo parecia ter um tom azulado, como se tivesse mantido
os olhos fechados por meses. À sua frente, viu dois
enfermeiros. Um recolhia os fios de um desfibrilador, o
outro regulava a dosagem de soro e fazia anotações em uma
prancheta.
Ao seu lado, um médico conferia seus batimentos
com um estetoscópio.
Uma moça segurava sua mão e chorava sob a cama.
E ao erguer o rosto, Dave percebeu olheiras profundas sob
os olhos vermelhos de choro.
— Meu amor! — Maritza pulou em cima da cama e o
abraçou.

367
— Amor? Que saudade! — disse com lágrimas nos
olhos.
Dave abraçou-a, na medida em que o soro preso ao
seu braço permitia. Suas articulações doíam. Era como se
precisassem de lubrificação. Mesmo assim, se esforçou para
mantê-la dentro de seu abraço. Não a deixaria ir a lugar
algum sem que ele pudesse estar na sua presença.
— Ei, vamos com calma, ele acabou de acordar. — O
doutor se aproximou.
Tirou do bolso uma pequena lanterna, puxou as
pálpebras de Dave e examinou as pupilas dele. Tudo parecia
bem, assim que seus olhos começaram a focar ele
reconheceu o médico.
— Wins? É você?
O doutor ignorou o que Dave disse e continuou o
exame.
— Wins, fala comigo! O que tá acontecendo? Como
ela pode estar aqui?
— Que isso, meu amor? O que é “Wins”? O que ele tá
dizendo, doutor?
— Eu não tenho ideia — disse o médico.
Dave levou as mãos à cabeça. Uma dor imensa
apertava seu crânio, como se uma morsa pressionasse as
laterais de seu cérebro. Ele demorou a acreditar estar em
um hospital. O choque de mudança de realidade foi demais
para ele. A sensação de confusão fazia tudo girar ao seu
redor.

368
— ONDE EU ESTOU? QUE LUGAR É ESSE? ELA
NÃO PODE ESTAR VIVA...
Dave se debatia na maca, um dos enfermeiros
tentava contê-lo. Ele movia as pernas desesperadamente
enquanto gritava frases sem sentido. Dave tentou se
levantar, mas foi contido. Maritza avançou para tentar
ajudar, mas foi impedida pelo doutor. Nesse momento os
enfermeiros o prendiam com tiras de contenção.
— A senhora vai ter que nos dar licença.
Maritza foi empurrada para fora do quarto e a porta
se fechou.
***
Na sala de espera, Maritza apoiava as têmporas sob
as mãos, segurando uma pesada dor de cabeça. Ela ouviu o
som de alguém sentar ao seu lado no banco de cimento.
— Ele está sedado — falou o doutor.
— E ele vai ficar bem? — Levantou a cabeça.
— Vai, sim.
— O que eram aquelas palavras que ele ficava
repetindo?
— Eu não faço ideia. Mas um dos enfermeiros notou
uma coisa interessante.
— O quê?
— São as iniciais do meu nome.
— Como?
— É, Wilson Ivo Nunes Santana. — Apontou para o
bordado do bolso do jaleco.
— Mas o que isso quer dizer?

369
— Bom, pacientes em coma por tanto tempo, como
foi o caso dele, acabam por criar outra realidade em suas
mentes.
— E por que ele chamava seu “nome”?
— Não sei… Talvez de tanto ouvir a minha voz, ou de
ouvir meu nome, não sei. O coma ainda é um grande
mistério para a medicina.
— Eu posso ver ele?
— Assim que ele acordar. E vá com calma na hora de
conversar com ele, a transição pode ser um pouco
traumática.
***
Depois de algumas horas, foi permitida a entrada de
Maritza. Ela empurrou a porta e viu seu namorado com a
cabeça virada para o lado. No rosto o risco úmido de uma
lágrima que passou por ali. Dave contemplava a janela com
um olhar tão distante quanto sua mente nos últimos dias.
Ela o tocou na testa e deslizou a mão num carinho em seu
rosto.
— Tá mais calmo, meu amor?
— Ele me deu uma segunda chance.
— Segunda chance, meu bem? Quem?
— Wins.
— Meu bem, você tem que entender que...
— Eu entendo agora — interrompeu. — Tudo faz
sentido, eu tenho a chance de fazer tudo diferente, de não
decepcionar você, de te fazer feliz do jeito que você merece.

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— Meu amor... — disse com lágrimas nos olhos. — Só
de você estar comigo de novo já é o suficiente para mim.
Dave projetou o tronco para frente e abraçou-a com
força. Pena que ela não sabia que tinha sido pedida em
casamento. Pelo menos para ele.
— Eu quero me casar com você. Viver o resto dos
meus dias ouvindo a sua voz. Desde que eu possa olhar nos
seus olhos ao mesmo tempo.
— Mas como? — Ela ainda chorava. — A gente mal
tem dinheiro para pagar o aluguel.
— Eu tenho uma ideia.
Por cima do ombro de sua futura noiva, Dave viu o
Dr. Wilson olhando pela janela do quarto que dava para o
corredor. Dave deu um largo sorriso regado a lágrimas, e
recebeu uma piscada de olho do doutor.

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70

Anos depois, Dr. Wilson desenvolveu sua técnica de


despertar pacientes de coma pós-traumático. A inovação foi
replicada por diversas partes do mundo.
O método consistia em apenas uma vitrola e um
disco de vinil.

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