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MUSEU

INTERNACIONAL
DA MÁSCARA

mágica
MEMÓRIAS ARTÍSTICAS
A mlelo Sartori

pctscgui(lo c ;linda hojc lamento a sutil ferocí-


Anotaçõesautobiográficas
dadc (104adultos (Icbaixo da rn.t•cara do sorri•
Nascia 3 dc nowmb10 dc 1915 ctn utna casa so dc condcsccndénci.l.
hgicdemolida.na ponta do Carminc, no bair• Naturaltncntc, fui cxptll•o dc todas as
TOdosPellctticli. I nmb10 pouco ou imprccisa• colas do Reino c rcprosado. Readmitido pov
menu»dc minha ptimcira infância, scnsaçócs tcriormcntc por obra dc urna diretora. fui
aipidase aspectos ga)tescos, sotncnte. Era a cncaniinhado á tcrccira séric dc rcpctcntcs
épocada Guerra Mundial, dc pri',açócs. dc mc- cuidada. I)cus a bendiga c a conscrvc por mui-
dos.Os meus pais refugiaratn•sc cm .Módcna. to tempo, por urna mestra, a senhora Andolfo,
comigoe com Ininha irmã. I)cpois '.nltamos a qnc logo mc compreendeu e então mc enca-
Páduae fomos Inovar na Santa Crocc, na pcri• minhou para minha estrada. Sáo sei como fez,
feria.lugar então aberto, próxirno ao catnpo. tuas um fato é certo: pagou do próprio bolso
Conheçotudo daqueles lugares: os bastiócs um banco da sala quebrado por mim e deixou
perose tépidos de sol, a canalcta que parecia quc cu apenas lesse e desenhasse, porque fazer
frescae límpida,antes dc sc aprofun• conta era para mim uma imensa escuridão que
dare nutrir, após um longo trecho escuro, o até hoje não superei.
Pra'della Valle;e os honos e as casas raras e Coto ela cursei duas séries e foi Ininha salvação.
osplátanosenormes sob os quais acampava'li Depois dela começou o calválio. A quinta com
osciganoscom quem eu frequentemente me um professor. Eu tinha nove anos. Desde aque-
entregavaa impetuosas algazarras. Não muito Ia época, meu pai, para me tirar da rua durante
longe,a igreja embebida em odor de incenso a tarde, e tatnbém porque minha mãe e minha
suavemente contaminado pelo mofo do umi- irmã maior trabalhavamcom ele, mandou-me a
dificador.Foi um tempo feliz, permeado por um amigo de infancia que W)ltarade Paris trazen-
horizontesarejados e perfume de pão saído do do um pecúlio obtido pelo trabalho com entalhe
fornoque nunca mais reencontrei. de madeira. Um homem que, apesar das incom-
Depoisveio a escola: um pesadelo. Até a preensões a que me submeteu, possuía uma ca-
terceirasérie lembro-me apenas das grades pacidade técnica até então jamais vista.
dasjanelas,as professoras que falavam como se Parecia brincar, e divertia-se,escavando flo-
estivessemno púlpito e um profundo estupor res, folhas, fruta, animais grotescos na madeira.
porum aspecto do Coisas cheias de frescor, e, com aquele ar en-
mundo insuspeitadamente
distantede qualquer possibilidade de que eu cantado sobre as figuras e os animais, pata•cia
0 aceitasse.A perdido em meio a um requinte de adornos
terceira série atingiu-me profun-
(lamentena pessoa de
um professor, E reagi dignos do mais belo barroco e rococó francês.
feio.Umtinteiro Com ele fiquei dois anos, que considero funda-
jogado voou sobre as carteiras O escult0i Amteto
emmeio a mentais para a minha formação no olicio, Vene.•a,
gritos, confusão, um terremoto. Fui *eite
na escola, onde tinha acesso. Segui um critério
Concluí as prilneiras séries, meiro, me lembro, os russos, todos, 1)
que a dornar
agora ensino. Anos duros conno 13mion,nnas principalmente naquela
na edição
Oito horas de
a massa do pão conl tuna mão. lua Slavia. Depois os alemães, os
mais
rara
ingleses,os
noite. Foi dicos, deixando-me levar pelas Icituras
Ilvador no bairro hebraico, até a dos
tores dc moda: à Fóldi, Kónncndi,
LajosZilahy
Milagres, Propus-me continuar a estudar dc
Inanidade próxima à da Corte dos qualquer
nncs- modo e obter o título dc professor dc
unida por um encaixe espesso, de torn ao arte.Em.
preguei-me por necessidade junto a
mo tempo picaresco e dramático, digno de um rcprc.
sentante de tecidos. Com o que ganhava
uni Ruzante elevado aos mais altos bastidores. podia
Pam mim e para os meus, evannanos de fonie, estudar em um liceu artístico noturno.
Aos(Ic-
no circuito de um trabalho prolongado, sem zesseis anos, trabalhanclo de dia e estudando
à
mais interesse pela ideia de sacrifício e sem noite, obtive o diploma de professor de arte
do
possibilidade de salvação. Instituto de Veneza. Depois perdi o emprego
Meu pai fora despedido porque não queria e comecei a trabalhar por minha conta,fazen-
saber de carteirinhas fascistase taxado como do objetos falsos para os antiquários a preçodc
subve1Sivoporque amigo de Matteotti. O or- fome, alternando ganhos discretose rápidos,
gulho de minha mãe confortava-o, tanto que explodindo minas nas pedreiras de traquito,
jamais se curvou. Arriscava a pele alguns dias da semana, maspo-
Anos plenos de experiência, de sofrimentos dia estudar outros dois.
suportados conl dignidade e encobertos por Obtive, assim, o diploma cle professor,sem-
uma dura máscara da qual transparecia vez ou pre frequentando a escola privada.Depois,
outra o choro silencioso de minha mãe. tendo conquistado uma bolsa de estudoda
Realizei os quatro cursos da escola de arte, Prefeitura de Pádua, inscrevi-mena Academia
frequentando oito horas ao dia e trabalhando de Veneza, que frequentei por um ano, alguns
outras seis. As vezes pensava que ia morrer; mas dias da semana. Mais tarde, durante quasedois
consegui. Terminada a escola, fui despedido anos, usufruí de outra bolsa de estudos pública,
pelo patrão. Tirei de cima (eu tinha quase de- e com ela pude transferir-me para a Academia
zesseis anos) o casaquinho de militar pintado de Florença, onde ensinava o professorGrazi()-
de azul e fui para Roma, à casa de um tio.
si. Dois anos de intenso e duro trabalho,fazen-
Ali procurei emprego: nada. Procurei clu-
do esboços de mármore no turno da noitee
vante dois meses, alternando os estados
de estudando durante o dia.
ânimo de suicida a aqueles, perdidamente
es- Voltei a Pádua para frequentar o últimoano
tupefatos, de visitasaos museus e
galerias da em Veneza. A fome me deixara quase transpa-
inteira Roma. Voltei para casa
como um ca- rente. Voltei a trabalhar por minha conta,mul-
chorro levado pela asfixia, mas
embebido por to irregulamnente, e ganhando pouco. A Escola
uni senso de pânico e solar.
Lembro que pen- Selvatico chamou-me para um concurso de che-
sava inteiramente em tennos
de forma. Ainda fe de lab01atório na seção de pedra, e eu ga-
não descobrira a cor.
Seguinun-se outros duros nhei; Em um ano tratei de acabar a Academia,
meses, entre a bus-
ca de urn tR1balhoqualquer ensinar e trabalhar também porque o dinheiro
e leituras fufibun- Fui
das de liwos emprestados continuava pouco. Parecia uma maldição.
por
amigos e de alu-
de empréstilno de
todas as bibliotecas convocado às armas e frequentei o curso
Fili
a que nos oficiais alpinos em Bassano por um mês.
128 1 A Arte Mágica
acusadode antifascismo. Voltei e reco-
expulso
de renovação. O teatro de prosa
tornou-sefa-
a ensinar. Naquele ano me
a uabalhare miliar para mim, tanto pelas leituras como
pelo
Incu filho Donato (1939). amontoado das galeriasmais altas que cu fre-
c nasceu
casei
de 1940 tive uma peritonite, em quentava com um tio, amigo de um lanterni-
Emjancivo
e quasemorri. Depois de dois meses
Fenara, nha que se contentavacom um copo dc vinho.
loantei para me dirigir ao distrito Vi todo o repertório clássicodas companhias
decama
chamadocomosoldado simples. Fui mandado da época: Moissi (de que mal me recordo),
hospitais militares pelo mal de-
aseteou oito Zacconi, Chiantoni, Ruggeri, a Chamatica,Be-
dagravedoença. Em casa era a fome
corrcntc nassi, etc. Trabalhei com os amigos do teatro
tive condições, tornei-me soldado, cla universidacle por três anos participando ao
e,assimque
nashoras de liberdade.
uabalhando vivo dos problemas teatrais e, sobretuclo, toma-
Em1942nasceu Serenella. Fui mandado va para mim o problema da máscara que, pude
devoltaà casa em 1943 e retomei o ensino. descobrir, estava quase abandonado.
Aguenaestavaem curso e os alemães demi-
tiame perseguiamos judeus. Vieram os guar-
Projetar a máscara
dasarmadose me levaram tudo de casa sempre
dC\idoà questãoracial. Depois a casa foi bom- Foi em 1948,discutindosobre o elemento
bardeada.Eumudavade lugar e era observado máscara em meio aos problemas teatrais com
àdistânciacomo um perigo público. Isto não Jacques Lecoq e Gianfranco De Bosiono teatro
impediuque me encontrasse espontaneamen- da Universidade de Pádua, que propus tentar
tenomo\imentoclandestino. Daquilo por que alguma realização. Primeiro como experimen-
nãose fala com facilidade. Direi apenas
passei to, depois, na medida em que o problema foi se
queporduasvezescaí nas mãos dos sicários da colocando em termos cada vez mais amplos e
"bandaCarità"l o que, se por um lado foi uma concretos, decidi aprofundá-lo decisivamente.
coisa
terrível,por outro, eu diria, foi uma expe- Pela lembrança de noções históricas,reali-
riência
morale humana impagável. Vi diante zei inicialmente máscaras em madeira esculpi-
demima vidae a morte em seus aspectos mais da, mas, apesar de resultaremextremamente
temíveis
e maiselevados; saí com uma visão de sutis e leves, me satisfizeramapenas como re-
mundocom limites bastante ampliados. sultado artístico.Tentei realizaçõesem papel
Tenninadaa guerra, retomei o ensino. Re- machê. Atravésde um longo período de expe-
cornpus
a famfliae à custa de muito trabalho rimentações, consegui realizar máscaras que,
consegui
ter minha casa. Em 1948 fui chamado pela leveza, solidez e praticidade, considero
aoTeatroda Universidade para ensinar histó- hoje, dificilmente superáveispor mim mesmo.
riadaartee modelagem de máscaras teatrais. Agora, à distância de cinco anos (à parte o
Quem Inechamou foi Gianfranco De Bosio quc valor e o gosto artístico), estes exemplares con-
IOItaVd
de Pariscom os mais recentes anseios scrvam intactas as características formais e de
colorido, mesmo com o notável uso a que fo-
Tratase ram submetidas.
do apelidoda "Repartição de serviços especiais"
(R.SS)denorença,uma Com conquistas dc ordem técnica, fui aos
espécie de escritório político-in-
itstigativo,
comanil)laautonornia, dentro da 92' Legião poucos mc aprofundando tambémna cultura
chefiou
Foi comandada por Mario Carica, que
esta(lisisâode
específica relativa às máscaras em geral, e dc
docornquese
modo tão autónomo e feroz, fazen-
nvaneira particular, às máscaras clássicasan-
tlistemcnte conhecida, por suas
tigas; depois, pouco a pouco, à da Commedia
\ioléncias
e torturas,
sonu:nte como Banda Carità. (N. T.)

artísticas 1 129
As tormas da invençdo - Memórias
XVI-XVII, até o in- Portanto, o problema
(lell'Artcitaliana dos séculos
surgiu, natural- refazer as máscaras seria,hoje
teiro Goldoni. A certa altura, scgundo
a
gMfica histórica,
relativaa cadatradição
apaixonou devido às enormes obra
e a novidade do ponto de vista, dificuldades
Panta- sentaria), mas o dc rever
profundamente; isso: os vários Zanni, isso
parcccrann-nnc tório iconográfico com completamente
leão, Arlequim, Briguela, etc., cognição o
c
identificados dc modo sennpre muito aproxi- modernas. Em outros
termos,seria
ou tentar refazer uma tolo
mativo e com caracteres iconográficos c psico- máscara
dcArlequim
lógicos apenas grosseiramente definidos. mais semelhante possívcl
à usadapor
Uma investigaçãomaisaprofundada revelou- que ou Fiorilli ou ainda
por um
-me, sucessi\amente,a existência de toda uma Companhia de Flaminio Scala; da
Arlequim

mas
tipologiaiconográficaconsequente em sentido o caráter particular clo identificar
Amleto Sartori em seu
Arlequim dc
estúdio-ateliê. umade.
Pádua, Istituto d'Arte "Pietro
históricoe relatisa a cada um destes persona- terminada comédia e realizá-losegundo
Selvatico", 1950. gens;sem levar em conta, além disso, a questão sensibilidade moderna. Irá se
tratar,enfim,
relativa ao ator que assumia o papel da máscara. construir uma máscara que, mesmo
possuindo

130 1 AArte Mágica


essenciais do Arlequim tradi-
ascmacterísticas deste problema, foi-se colocando de maneira Amleto Sartori modela a estátua
em argila do monumento a Ruzante.
possaresponder mais adequadamente
cional, impositiva também o problema técnico, por-
Ao fundo o filho-aluno Donato
aopersonagemem questão e assumir seu papel que, implicitamente, tratava-sede usar a mes- desenha
c representativoessencial. ma matéria usada no passado e esteticamente Pádua, Istituto d'Arte "Pietro
Selvatico", 1957.
Colocadoo problema nestes termos, a maté- insuperável: o couro. Se existe uma série limi-
riaemestudo,em senso artístico, torna-se qua- tada de exemplares de máscaras antigas, existe O ator Marcello Moretti
seilimitada
e deixa ao artista a possibilidade de uma ainda mais limitada, se não efetivamente no estúdio de Amleto Sartori diante
do próprio retrato
manifestar
completamente a própria in tuição, a pobre, literatura técnica referente às máscaras
Pádua. 1956.
forçaartística e a capacidade realizadora. Ocor- de couro. E, no entanto, este ofício teria alcan-
re,então,que uma liláscam de Arlequim que çado grande esplendor na Veneza do século
iiilha,
por exemplo, para La Cameriera Brillante XVII, pois pôde contar com uma corporação
IACalilareira
Espirituosa], de Goldoni (que re- chamada dos "Maschereri" coexistente com as
presenta
o caráter do servo bem escroque mas outras ilustres dos "Pintores", "Entalhadores",
ingénuo), não será válida tam- "Escultores" etc. Como justificativa parcial,
parao Arlequirn de lua Fmniglia dell' An- podemos reconhecer o uso difuso da máscara
[AFamíliado Antiquário], do mesmo na vida civil da Sereníssima; mas que não se
oldoni,que separe da existência, podemos dizer, rotinei-
apresenta, junto às características
)ásicas,
urnconnponentede desonestidade que ra e estandardizadade máscaras,a presença
Alge
canicterísticas expressivas particulares. E de máscaras excepcionais destinadas às festas
seráparacada
comédia e para cada perso-
atrau'•sdo inesgotável
filão que a tradi- No original, em dialeto: "Pitori", "Calegheñ", "Tajapie-
nos oferece. Naturalmente, ao lado

As formas da invençào - Memorias artisticas 1 131


pronuncia- importantíssimas c tirar dali
competição notáveis
de
(lembre-seo senso ricos) e de algumas c Vista
técnico
e nos do artístico.
díssimo nos notáveis comediantes célebres. corno
dos Há, dc fato, vários exemplares
realmente famosas de
0 quanto pude, do ponto cm
Após esgotar, fa- Zanni, Arlequim, Pulcinella, que
obsewaçâo dos exemplares parecem
Nistaartístico, a Aus- sido usados no passado por atores
na Itália, na França e na famosos c
mosos existentes literatura que que, mesmo ressentindo-sc das
busca de uma característiQs
tria, atirei-me em cami- técnicas e artísticas dos exemplaresdo
pudesse oferecer a indicação de um
me a da Opera de Paris, possuem traçosmais
seguir. Seria inútil e aborrecido fazer vitais
nho a compatíveis com o vigor da Commedia
cronológica; basta dizer apenas que (lell'/lrte,
história e particularidades técnicas evidentes tais
pesquisas tendo
dispendi mais de um ano em por exemplo, o uso de um couro muitoespey
como
algumas noções
como resultado o encontro de
técnica de en- so e, segundo me parece, muito semelhante
escorregadiase inexatas sobre a
Veneza da couro cru siciliano recentementeexperimen.
cadernaçáo em pele e em couro na
deci- tado por mim, com o qual fiz a máscarahoje
primeira metade do século XVI. Um fato
famosa para o célebre Arlequim, MarcelloMCE
sivo para mim foi ter visto moldes em madeira
(Museu da Opera de Paris) para um zanni, so-
retti, na última edição de Arlequim,
Semidorde

bre a qual o couro era estendido e modelado, e Dois Palrões para as turnês do Piccolo Teatrode
o testemunho escrito sobre a existência de cer- Milão pela América do Sul e Europa setentri(h
tos "moldes em chumbo usados para máscaras" nal. Outra interessantíssima contribuiçãopara
(Biblioteca Marciana, Veneza). Daqui veio o o meu aprofundamento técnico foi o conheci-
ponto de partida. Quanto ao resto, por um lon- mento direto das máscaras teatraisjaponesas
go período de experimentação em que provei em Veneza por meio da CompanhiadoTeatro
muitíssimostipos de materiais e infinitas per- Imperial de Tóquio na representação dealguns
cepçôes, em grande parte, confiei no bom sen- espetáculos Nô (1955).
so. Com a ajuda de amigos técnicos em couro, Tratava-se de uma série de máscarasemma-
posso dizer hoje que obtive resultados inespe- deira esculpida, pintada e laqueadade beleza
rados se se pensar que consegui obter máscaras
excepcional e fruto de desconcertanteperícia
de fortíssimo relevo com couro curtido e
cores técnica. Disto tive ampla confirmaçãona su-
naturais, e depois com couro curtido
especial pramencionada coleção do Museu Scala,no
branco, e depois pintado.
Museu de Arte Oriental de Veneza,no Museu
Os materiais de que a técnica
me permitiram sistemas de
atual dispõe Chiossone cle Gênova, no Museu Guimetem
impermeabilização Paris e no Volksmuseum de Viena.
e dc fixação das cores,
para ter uma máscara em de
couro, cujas características Com a laca, iniciei há tempos uma série
de leveza e elastici-
dade são inimitáveise experimentos em larga escala, com a finalida-
permitem-me hoje a rea-
lizaçâode peças cujo brilho e de de obter exemplares em madeira esculpida
fa-
são galantidos e inalterabilidade e laqueada. Por mais imprudente que seja
absolutamente superiores
ponto de vista técnico) (do lar de sucessos,tenho a impressãode ter
aos exemplares
camente ilustres que
até hoje nos
artisti- tido resultados técnicos muito satisfatólios•
de
chegaram.
O recente
arrolamento da especialmente no que se refere à exigência
caras pertencentes coleção de más- novos
a Renato Simoni vultos completos. Já estou preparando
scala de Milão no Museu de mate
permitiu-me examinar experimentos, inclusive com tipos e
peças riais particularíssimos e outrora inexistentes;
132 | A Arie
Mágica
adequadosà importância capital do
espero,
elenwntomáscaülno teatro moderno.
causado pelas minhas más-
0 entusiasmo
como Barrault,
em amigos valorosos
Lecoq, Axel, De Bosio, etc., fez-me
strelller,
compreender claramente que a necessidade
estética das máscaras, ob-
deumaroa101izaçâo
medianteuma elaboração séria, poderá
tid,ms
o públicoe os homens de teatro a uma,
diremosassim,redescoberta do valor funda-
mentaldo elemento máscara, trazendo com
umacontribuiçãoválida para que o teatro
isso
a
continue uma profunda e vigorosa.
Naquelepeúodo, o mimo Jacques Lecoq
de Paris para ensinar mimo e im-
foichamado
e tornamo-nos amigos. Foi para
prmisaçâo,
mimuma coisa importante, pela abertura a 34 7)
ummundopor mim ignorado. Depois Jacques
transferiu-se
para Milão.
NaUniversidade
de Pádua pude encontrar-
-metambémcom Ludovico Zorzi, hoje reco-
nhecido
comoo mais eminente estudioso do
grande
comediógrafoda Pádua quinhentista:
Ruzante.
Foi com ele e por seu mérito que
pudemeaprofundar em muitos problemas re-
a Ruzantee ao teatro renascentista vêne- Europa e pela Annérica do Sul. Discutiu-se longa- Arlecchino
máscara de Amleto Sartori
toe penetrarem infinitos e fascinantes temas. mente a propósito do caráter das máscaras.De-
Commedia delCArte, direção de
Minhas máscarasforam vistas por Strehler, cidiu-se fazê-las em couro. Começou então uma Jean-Louis Barrault
quemandoume chamar. Encontramo-nos em luta surda para alcançar uma perícia técnica e papel machê pintado
Paris, Teatro Marigny. 1951.
Veneza.
Quasehouve uma briga, mas nos enten- recavar da obscuridade de uma tradição perdida
(lemosRil)idmnente.Comecei a trabalhar com os personagens da Commediadell'Artena essência
0 Piccolo
de Milãofazendo de início máscaras que, mais que qualquer investigaçãoou estudo,
neutras
paraa escola e depois as primeiras em Moretti revelara-me com a sua vememilagrosa.
Papel
machépara L'Amante Militare [O Amante Mobilizei todos os meios de que dispunha e fiz as
Militar)
de Goldoni. Conheci, máscaras. Todos se entusiasmaram. Não poderia
então, Marcello
Moretti
e, após um
embate, tornamo-nos amigos. dizer com exatidão quantas fiz desde então. Cer-
Depois
de alguns meses tamente muitas, e a cada vez com a sensação de
fui chamado a Bolo-
dpelodoutor
Grassipara me encontrar com quem dá um salto no escuro nelas reencontran-
Strehler
r
para aquele festival
de prosa o Piccolo do os tipos conhecidos ao longo de uma vida es-
(vprcsenta\a
OPIil,Noi Vivitono! [Opa, Estamos ticada como uma corda, ou entrevistos em meio
de Toller. aos tênues limites que separam o sono da vigflia
Projetava-se a retomada do
debois
Patu;es,em função da tumê pela ou a consciência fluida dos delírios.

As lormas da invençáo - Memóriasartísticas 1 133


dc Milão
Em 1954 fui chamado a Paris porJcan-Louis DC todo modo, ao Piccolo Teatro
O pai e é a esta
máscara de Amleto Sartori Barrault para preparar um grupo de seten- vai muito do mérito do meu trabalho
sintomais
Sei Personagg/in Cerca d'Autore ta másc•cuas pala a Orestea[Oréstial: a trilogia pequena série dc homens que me
(Scts Personagens à Procura de
inteira. Por isso, além de representar uma im- ligado por gratidão c afeto.
um Autor). dc Lutgi Pirandello alternadas
papel maché pintado portantíssima experiência, iniciou-se aqui um Do final da guerra até hoje, com
com uma
Pádua, Teatro dcll'Untvetsltà, 1952. período em que se olhou com atenção para o vicissitudes sempre condimentadas
estudar,tra•
meu trabalho —desenvolvidoaté então entre dura fadiga, continuei a ensinar,
interessa, e nada
os severos limites do estudo —por parte dc um balhar, viAjare nada mais me
a fazê-lo,
círculo de honwns de teatro de altíssimo valor. peço, além de saúde, para continuar
A partir de então, meu trabalho difundiu-
-se larganwnte. TKibalhei para diretores de
uma máscara
toda a Europa, colhendo a cada vez preciosas Lembranças em torno de
NlarcelloNlorettifoi
experiências de contatos conl mundos diver- A primeira vez que vi do
palco ilumina
sos, Inas sempre voltados para tuna forma su- no Piccolo. Estava só sobre o
perior de vida. exercitando"
e esperava o início do ensaio

134 1 A Arte Mágica


solinhoenl urn difícil jogo
acrobático com Strehler apresentou-nos e eu experimentei a Madame Pace
máscara nele. Para Giorgio e para mim estava máscara de Amleto Sartori
plateia,
no escuro, e ele pensava estar só. Expe- Sei Personaggi in Cerca d'Autore
bem, para ele, não. E disse isso explodindo, dali
lii)lentava
e voltavaa experilnentar uma girân- [Seis Personagens à Procura
a pouco, durante o ensaio. Estavafurioso feito de Um Autor)
(101a
acrobáticadentro de um pequeno espaço um potro selvagem no qual se colocara rédea de Luigi Pirandello
eparecia
ilnpossívelque pudesse não se ferir pela primeila vez. "Não se pode atuar com esta papel machê pintado
ou quel)rartudo a sua Pádua, Teatro dell'Università. 1952.
volta. Quando terminou coisa na cara, me esmaga, eu não enxergo..." e
foiinstintivo
bater pahnas. Ele parou de repen- jogou a máscara no chão.
\irou direçáo
ar ao escuro da plateia com Eu me ofendi; houve uma briga que Giorgio
contEd1iado,quase ofend ido, como um me-
liino in terrolnpeu para continuar o ensaio. Quando
bilitahnentetrazidodo terninou, reconciliamo-nos; Marcello expli-
sonho à realidade.
então L 'AmanteMilitar [0 Amante cou seu ponto de vista, eu o meu, e começa-
de Goldoni,
lhe
e eu estava ali justamente mos a reflecir sobre o problema da máscara,
a pritneiva máscara de Ar- creio, corno jamais havia sido feito até então.
Para miii) é ilnpossível repetir aqui todas as

As formasda invençào- Memóriasartísticas 1 135


(e, da par- uma severa apren clizagem,
considerações queria ter
obsen-açóes,todas as nhecimento preciso de tudo, urn
wrd•adeiüls e próprias iluminações). e
te dele, sua Inor-
noca afetuosa e contínua, até
Desta a Esgotada esta fase punha-se
exemplo, a justificação, eu diria, ao trabalh
te, saiu, por Igual consciência e com a segurança
de \vlequinn. De fato, não e
descoberta do passo
a presumida tra- de quem se colocou e resolveu
considerar seriamente seriamente
se pode qualquer problema de artesanato,
passo de Arlequim a parte
dição dos Inovimentose do cio em sua acepção mais alta. Depois,
do
ou do "fazialll
segundoo modelodo "dizem" quase
falta de qual- que ele advertisse, explodia aquela sua
assim",especialmentediante da cargavital
ou da proxi- dentro da qual qualquer coisa estava
quer literatum técnica a respeito, prevista,
Arlequim que Nesta ordem de problemas e de
midade no tempo de um grande pesquisa,
dele recordo a contínua ânsia por conhecer,
podefia explicar a continuidade da tradição. a
es- "maneira" de trabalhar de cada pessoa
Marcello fez com que eu obselvasse que, queesti-
pecialmente nas máscams plimitivas dos zanni, o
mava. Almejava e referia-se ao modo, ao
mo
furo dos olhos era de diâmetro muito pequeno, do verdadeiro e próprio, método de trabalho
"ofício", justamente. Sobre o que me eradado
teressante aspecto animalesco, também tiravam, conhecer, eu o informava; falei-lhedosproble-
ou reduziam a Nisibilidadeao mínimo. Disto nas- mas relativos às artes figurativas e do modode
ceu a necessidade de mo\imentos sucessivos ra- enfrentá-los; dos tão diferentes modos,ligados
pidíssimos, ordenados em uma sucessão "grosso a escolas, tradições ou personalidades
modo" deste tipo: tomar posse Nisualdo campo nais. Com frequência, pude fazê-loconversar
de ação; olhar os próprios pés para verificar con- com amigos de outras disciplinase elemuito
tinuamentea posiçãoe para não tropeçar em ávido escutava e perguntava até não podermais,
qualquer obstáculo;realizar o movimento no com uma propriedade que indicavaa suaangús-
espaço e num tempo mínimo. Dadas estas ne- tia pela perfeição. Assim era Marcello,sedento
cessidades,resulta ob\iamente um andamento por conhecimento, curioso, daquelacuriosida-
escandido e ágil, sublinhado por um movimen- de para a qual toda coisa é maravilha e alimento
to quase mecânico dos membros e da cabeça.
para o ânimo: escrupulosíssimo homem, intran-
Marcellodeu um ritmo e uma ordem a estes
sigente artesão e grande ator.
mo\imentos, por meio dos quais o pelsonaoem por
Dentre os tantos lados estupefacientes,
pouco a pouco foi se cristalizando no
interior de vezes desconcertantes de uma personalidade
uma arquitetura precisa, em que
era dimensionadoe reconduzido
cada particular complexa, esquiva, tímida, profundamenteme
ao univelsal, lancólica, algo emergia constantemente:a capa:
sobre o qual ele tinha uma
prodigiosa intuição. cidade de pegar a estrada justa, fosseo ân
Vendo-o e pensando com
ele, encontramos a de
confinnaçáo desta intuição nas
visual para observar uma estátua ou o modo
velhas estampas e
em geral em toda a
arlequinesca. De com
fato, o personagemé problema de qualquer ordem. Procedia
continuamente capturado espantado
em mo\ilnentos instinto animal. Depois parava quase
semelhantes aos própn0
um balé, cuja fotogramas de para procurar uma justificativa para seu
sucessão fora intuída
Ele agia sempre, por Marcello.
creio, como agiam comportamento.
tres artesãos do os mes- deconente
Renascimento em Com o passar do tempo, a estima ff'F
sas oficinas. suas glorio-
Submetia-se das relações de trabalho tornou-se amizade 0
continuadamente a criou
terna, e logo, a meu pedido, Marcello
136 1 A Arte
Mágica
de a Pádua durante os dias ou perío- o olho c
hábito trabalho. continuou seu
lioes de do, divertidíssimo, trabalho,representan-
(10s quando ele chegava com pre- 0 seu papel de
Eraumafesta oficina. Como scria ajudante dc
e o ar dc quem volta pra casa, c havia a sobre ele. Ele mc
dc prever, a conversa
recai
sentes olhou e perccbcu que
esperatodo um acúlnulo de coisas: o êxito estava
sua para apresentá-lo;
pesquisaque o interessava, a descober- virou-se,
ocupando-se com
deuma um saco de gesso,
que colocou nas
deuma belezanatural ou artística, um livro sando tranquilamente costas e, pas-
ta
uma boa notícia qual- debaixo do nosso nariz,
deserencontrado,
dificil foi embora com um
e para mim. Durante todo o pe- ar tão divertido como pou-
querparaele cas vezes vi naquelc
rosto sempre melancólico.
pemnanecia em minha casa, ou
ríodoem que Toda vinda sua era-me
da muito cara, por
emAbanopara cuidar saúde, ele ia e vinha afastar-me do trabalho ao
onde frequentemente qual eu sempre fi-
dacasaao estúdio me es- cava preso como um doente;
duranteas minhas 1101asde aula no Ins- e com ele dá-
vamos um giro por esta bendita
e estupenda
titiltode Arte.Lembro que o encontrei várias terra vêneta. As vezes, partíamos
ocupadocom meus ajudantes buscando com um iti-
vezes nerário preestabelecido, com mais
frequên-
umaformaem gesso, ou procurando entencler cia abandonávamo-nos a uma
vagabundagem
a direçáode um veio para esculpir um peda- livre e feliz, que eu não experimentava
desde
demadeira,ou ainda martelando os dedos a primeira infância. Com ele vi o meu,
o nos-
procurando cinzelar um bloco de marmore, ou so Vêneto, sempre por um ângulo particular.
ainda,comogeralmente acontecia, buscando Lembro-me de um temporal que nos pegou
aprender a remover uma máscara de couro. no auge do verão enquanto vagueávamosen-
Apropósitodestas suas tentativas, em que o tre os montes Euganei e os Berici; estávamos
surpreendi várias vezes, lembro-me de um epi- de vespa e íamos devagar para desfrutar a
sódio. Certodia, há alguns anos, deveria vir até paisagem digna da grande pintura vêneta do
mimo Superintendente das Belas Artes para ver século XVI. O céu escureceu, exaltando os
omodeloem argila da estátua de Ruzante que brancos e os cinzas; cada coisa ficou embebi-
eu,justamente,estava fazendo naqueles dias. da do ar pânico de Giorgione.Paramossem
Eumeesquecide dizer ao Marcello, que estava querer, encantados. Depois começou a cho-
tranquilamente tentando modelar uma másca- ver a grandes lufadas, e eu acenei a ele para
racoma argila.Quando a porta do estúdio foi que nos abrigássemos. Ele fez um brevíssimo
abertapara que o Superintendente entrasse, sinal de não com a cabeça e continuou olhan-
nóso encontramos rodeado pelos meus rapa- do, quieto, enquanto a chuva nos ensopava e
zes,vestidocom meu camisão, onde cabiam a paisagem embranquecia ao redor.
doisdele,sujo de gesso Certa vez, lembro, percorremos lentamente
até os cabelos na tentati-
deenformara máscara que havia modelado. toda a antiga estrada que de Pádua leva a Veneza
Normalmente
para mim era bastante na- (nós a chamamos "a Riviera"), seguindo os len-
turalapresentá-loa tos meandros do Brenta em cujas margens estão
todos; e assim seria espe-
cialmente,
aqueledia, com o Superintendente, disseminadas as vilas dos antigos patrícios. Par-
qua-
queo conhecia
pela fama, e mais de uma vez já timos de manhã, em boa hora, e levamos
mais que trinta
perguntarasobre seu trabalho, seu caráter, se o dia todo para fazer pouco
deixamos de lado
aqueleafetuoso
interesse que Marcello sa- quilómetros. Em Malcontenta
biacriarà fomos por aquela velha,
volta de si. Aberta a porta, porém, a estrada de Mestre e
Fusina, de onde,
fiquei
perplexopor um segundo; ele me piscou semiabandonada, que leva a

artísticas1 137
invenção - Memórias
As formas da

一 、
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EstudO
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0 Shakespeare.
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38

A
Arte
M

ca
nos levar a Mestre, economizando
um lon
arco de estrada. Só que, de sua
infânciaaté
tão, vários anos haviam passado; e logo
nos
correndo sobre sendas ásperas que
margea\am
os campos e acabavam quase sempre
em
farvaclos. Corremos até noite alta para
conseguir
sair dali. Antes, porém, fomos tomados de
assalto
por um bando de cachorros vira-latase
tivemos
que nos defender com torrões e pedras.
Depois
foi a vez de uma horda de gansosgigantescos
que literalmente nos cercaram próximoa um
casario rural. Ele desceu da vespa e começoua
imitá-los correndo, e os gansos a segui-lo;depois
voltava correndo, com o andar deles, e os gansos
a fugir com muito barulho. Parecia uma cenade
Brueghel. Lembro que não conseguisegurara
vespa e deixei que caísse por terra, sentandoem
cima dela e desatando em risadascomopoucas
vezes me aconteceu. Marcello interpretavapara
si e para mim um trecho de Commedia dell'Afte
que saía espontaneamente de seu sangue antigo,
encharcado no sal da civilizaçãovêneta.
Dentre minhas mais gratas lembranças
encontra-se uma visita nossa feita a uma vila
chamada "La deliziosa", em Montegaldella,
localidade próxima à Riviera dei Berici,não
muiuto longe de Vicenza. Uma vila estupen-
e
da, projetada, parece, pelo próprio Palladio,
que é ornada por um singularjardinete situado
atrás do corpo principal; impossívelalcançá-lo
se não se conhece. Em tal jardinete, realizado
segundo os mais reconhecidos cânones do cha-
mado "jardim à italiana", estão preciosamente
instaladas estátuas, em tamanho natural,es-
até a última guerra, partiam os pequenos barcos culpidas admiravelmente por uma mão que,
a vapor, que, cortando as profundezas da lagu- mesmo sem ser de primeira grandeza,era,cer-
na, chegavam a Veneza, na degli Schiavoni. tamente, de um ótimo estatuário dono de ofici-
Reencontramos aspectosde um mundo ligado na: Orazio Marinali de Vicenza. Estasestátuas,
a sua e a minha infância; e o desfrutamos como da
únicas no género, representam as máscaras
Amleto Sartori. Modelopara dois estudantes em férias.
Commediadell'Arte.Entre elas há um Arlequim.
roupa de Arlecchtno. Quando decidimos voltar era quase noite. esta
Arlecctuno Servitore dl Due Padroni Para quem conheceu Marcello, ver
Com segurança, indicou-me uma estradinha
(Arlequim. Servidor de DOIS PatrOesl que estátua seú certamente uma coisa impressi(Y
carvao sobre pape14nantoga. 1950. entrava pelo campo e que, segundo ele, roupa
deveria nante. Menor que as outras, com uma

140 1 AArte Mágica


à Palandrandque da tradicional
próxima
camauro,4 com a másca-
curta, com o
jnqucta
A postura assemelha-
e o batocio.5
-anil.csca
cstraordinariamente a alguns gestos típicos
_sc
Maisque uma estátua de género,
deMarcello.
tratar-sede um verdadeiro e próprio
parecia
Marcello com figurino.
retmtode
e por um longo tempo
Eelese reconheceu,
a olhá-lo,a observar suas pequenas par-
ficou
repropondo-se a modificar sua
ticularidades,
roupaparatorná-la mais próxima daquela.
Antesde ir embora, tomado como acon-
àsvezespor uma espécie de maluquice,
tecia
a perneargirando ao redor da está-
começou
6
tuae expressando uma clamorosa verborragia
daqualemergiaum litígio fantasioso com o
de pedra. Depois recompôs-se e fo-
Arlequim
mosembora.Pelo resto do dia falamos de Ar-
e de sua roupa, como se se tratasse de
lequim
umsenivo,porque assim ele o vira e recoloca-
radentro de si.
Marcello foi, como se disse e é verdade, o
últimograndeArlequim, mas com isso não se
faloude sua natureza intrínseca. Ele não foi
apenasum grande ator, na medida em que
podeserumintérprete, mesmo que de grande
talento.
Ele faz pensar em algumas capacida-
desinexplicáveis,pelas quais um homem, par-
lindodafolhabranca de sua vida, sem possuir
ouconheceruma tradição, consegue, através
decaminhosmisteriosos, reatar os fios desta
tRidiÇào
e tornar-seele próprio símbolo e pi-
larde uma civilização parcialmente esquecida,
maseterna.E a notícia de sua morte chegou
aminhacasafaz um
ano, quando não demo- superara a crise, porque sabia-seque para mim
rariaa encontrá-lo.E me
foi dada quando eu morria um irmão. Não pude seguir o seu cai-
xão e nele jogar meu torrão, e me dói; mais fre-
quentemente, porém, prefiro não tê-lo visto.
Veste
decasapara
Camauro
homem, ampla e longa. (N. T.) Eu, assim, conservo-o melhor dentro de mim.
tambémno original: boina de veludo vermelho,
combarra
brancade arminho, na forma de gorro. (N. T.) E depois penso que teria se envergonhado se
Bastão. Amleto Sartori,
Vernota II
Volume,p. ao texto de Ludovico Zorzi, neste surpreendido, como me disse Paolo Grassi, La Resurrezionedelta Came
com as mãos e o rosto contraídos no espasmo
50. (N. T.)
0Original, [A ressurreição da carne)
sproloquio—
discurso prolixo e inconcluden-
da morte; ele, tão pudico e retraído, a ponto de aquarela. 1961.

artísticas 1 141
As lormas da invenção - Memórias
Estavam comigo, além do
pároco
giano Fernando Cardcllin (Giga),
o •
chefe de Solesino e o partigiano Pano
chefe Marcello
Olivi (Ronco). De repente, fomos
avisados
a casa estava cercada pelas SS. Não que
tempo para nos mover. Logo depois, tivemos
atravésda
vidraça opaca do aposento, reconheci
a notafi.
gura do tenente Trentanove. Ele e outras
duas
ou três figuras irromperam na salae
levaram.
para fora separando uns dos outros.
De.
pois de uma sumária revista dos documentos
os outros foram soltos e eu levadoao Palazzo
Giusti: sofri um duro interrogatório a respeito
dos motivos pelos quais estava em contatocom
o pároco. Fui acusado e ameaçado\iolenta-
mente pelo Corradeschi, pelo MarioChiaretto
e pelo Trentanove. Neguei qualqueracusação
e aleguei a justificativa de trabalhos de escultu-
ra que estava fazendo para a igreja.Nãoapa-
nhei. A noite fui solto.
A segunda prisão aconteceu aproximada-
Arnleto Sartori, Grotesco não falar a ninguém sobre seu mal. Ocorre-me mente um mês depois. Eu estavano átriodo
Pádua, Museo Civico, 1928.
frequentemente pensá-lo vivo; acontece sem Instituto de Arte "Pietro Selvatico",ondeensi-
querer, e muitas vezes me pego deixando de no, por volta das nove e meia da manhã.Sem
lado alguma coisa (dias atrás um livro) que ele
se fazer notar entrou um homem comumja-
queria conhecer. Depois vem a realidade, e não
quetão de couro que me pareceujá ter\isto
consigo me convencer; é atroz, mas chegou
em outro lugar. Tratava-se do Cecchi;quando
para mim a hora de sentir-me muito mais
só. o reconheci, o zelador já havia me indicado
a ele. Cecchi pediu que o acompanhasse por-
O laboratórioda humilhação que, disse, "o major Carità precisa de algumas
Fui preso duas vezes. A primeira, informações suas". Só tive tempo de pegar
de doze de fevereiro de 1945,
por volta sobretudo e avisar um amigo para quefosse
aproximadamen- dado o alarme.
te às dez da manhã. Estava
na casa paroquial de
da Igreja de São Prosdócimo Fomos ao Palazzo Giusti a pé. Depois
onde eu tinha um fui
encontro marcado com o mais ou menos uma hora e meia de espera
pároco dom Antonio
Varotto para combinarmos levado a uma sala (a última à direitaentrall'
a distribuição de tenente
volantes e a fabricação de do pelo salão da escadaria), onde o
documentos para os falando
Trentanove sentava à escrivaninha
depois
animadamente com um "tipo" que essoas,
be ser o Squilloni. Havia ainda outrasp
7 - que partilha uma
po; que pertence a ideia, uma
um grupo armado, facção ou gru-
guenilha contra os que
invasoresdo próprio participa da
um governo considerado país ou contra de
ilegítimo; durante Guerra Mundial, pertencente a um moümento
a Segunda
tência contra os nazifascistas. (N. T.)
142 1 A Arie
Mágica
na hora e
lem-
r econheceu-me
frentanovc
ofendidoque eu fizera quando
0 doar alegando minha ino-
rimeitaprisão,
esfregavaas mãos e bebia go-
sqllilloni
uma garrafa.
pingas de
-de começou com uma cor-
interrogatório
0 portanto suspeita. Repen-
sagcrada,
teiac por conta de minhas sucessivas
tinannente,
Squilloni enfureceu; tirou da gaveta

(tratava-sede uma xilogravu-


areconhecia
represe
litandoum pequeno asno com uma
ra
ca@tinha carregadade cigarros que havia sido
zombaras autoridades, lembrando o
feita p,
roubo de quatroquintais de cigarros para os
nossos pafligianicomo presente de Natal; a
madeila fomencontrada no bolso de Renato
morrido na mão deles).
nodiaemque ha\ia
rebateua minha negativa batendo
squilloni
comelaem minha cabeça violentamente vá-
Eu reagi empurrando-o. Alguém me
liasvezes.
prendeupelascostase assim me manteve para
queSquillonipudesse me bater com seus pu-
Ilhosemminha boca e meu nañz, e com os co-
no meu ventre.
tovelos
Graças a Deus, Squilloni foi chamado em
outra sala.Fiqueisem ar e nocauteado. Lem-
broiagamenteque alguém ria de mim e do
sangue quesaíada minha boca. Pouco depois
fuileiadopara o escritório do major Carità.
lhia algumaspessoas presentes, dentre as
quaisrecordoo médico Pugliese, o Chiaretto e em jornais clandestinos, dizendo ter cumprido Amleto Sartori. Partigiano Fucilato
[Partidário Fuzilado]
umcoronelda aviação em divisa com o losango sua obrigação e mantido sua promessa por me modelo em pano tingido em argila
lermelho
de membro da esquadra.9 Squilloni identificar e me prender. Enquanto Squilloni líquida, 1943.
apresentou-me
como gravurista da capa do Pi- falava,fui revistadoe despido de tudo quanto
e de todas as vinhetas que apareceram possuía; deixaram-me apenas o lenço ensopa-
do de sangue.
original,
grappa—aguardente de vinhaço de alto O major Carità agradeceu a Squilloni e co-
alcoólico.(N. T.)
original, meçou a dizer que já possuía todas as provas
—membro de uma esquadra de
squadñsta
açáofascista.
(N. T.) contra mim, que poderia dispor da minha vida
Olirefere-seà
sobrecapa do livro Confidenze di Hitler como quisesse e que convinha que eu falasse
de Hitler] dc H. Rauschning, publicado
Chndestjnarnente se quisesse salvar minha pele. Sofri ofensas de
por Zanocco,com prefácio de Anteno-
teForesta
(Meneghetti).(N. E. italiana) todo tipo. Eu negava. O coronel, num instante

As formas da invenção- Memórias artisticas 1 143


bom, respondeu que com boas
manchas
• "Carità é muito "convencera". Eu estava com
de trégua, acrescentou. enforco numa a cabeça
comigo daqui e te e 0 corpo todo me doía. Deixou-me
mas eu te levo
O interrogatório es-
caserna . -mc afortunado porque tinha algo
árvore da minha
de duas horas.
mais
mais cante a fazer, do contrário, teria irnprjt
tendeu-se por
andar superior numa me
ao
Depois fui levado e ali permaneci
uma lareirall Cecchi e Chiaretto não disseram
sala onde havia esbirro que depois
um
sozinho, vigiado por durante todo o interrogatório. palaiTa
miserável, pro- Pelomodo
Marzotto. Este como me trataram, creio que eu
soube chamar-se
me induzir a fazer delações, inspirasse
vavelmentepara piedade a eles.
para me dizer o que teria feito
teve coragem Passei a noite na sala da lareira em
não atendesse às demandas do cima
de mim se eu urna cadeira, apenas com o guarda.
de que dispunham. Faltaarn
major, contando os meios vidros na janela; o frio, as humilhações
vi o amigo Zanoc- e
Fiquei aliviado quando chutes causaram-me uma grande febre;sentia
aparecer com o panelão da sopa. Troquei
co fortes arrepios na espinha, a cabeçaqueirnaa
escondidas, acerta-
duas palavras com ele, às Na manhã seguinte, Squillonimandou-me
de confronta-
mos alguns pontos para o caso
chamar outra vez. Levei outros golpes.De
çóes pessoais.
refeição e noite, o mesmo. O espancador estavafuribun.
ReviZanocco à noite com outra
troca do. O interrogatório da manhã também fora
falei-lheainda. Durante todo o dia, até a
costas, assistido por uma senhorita loira que,soube
de carcereiros tive o Marzotto às minhas
depois o Accomanni. Por volta das onze da noi- depois, era a filha mais velha de Carità.Lem-
te fui chamado pelo Carità. Fui ameaçado por bro que ela riu com gosto ao ver minhacan
ele novamente e tive que responder a muitas batida com a boca inchada e torta.Anoite,
perguntas. Quando Carità se foi, fiquei com o essa mesma, provavelmente furiosa comalv
Squilloni bêbado. Estavam presentes Cecchi, ma coisa que ignoro ou por puramaldade,
MarioChiaretto e outros de que não me lem- aproximou-se dando-me dois bofetõese disse:
bro. Fui acusado novamente. Neguei. Isso en- "Como é que não se consegue ver estedelin-
fureceu Squilloni que tirou o relógio do pulso, quente humilhado!"
o sobretudo e o casaco e me bateu às cegas até Lembro que, devido à humilhação,à dor
perder o fôlego e me mostrar, larnentando-se, que sentia por toda parte e especialmente ao
as mãos inchadas e avermelhadas. Eu, temen-
hálito cheirando pinga do Squilloni,aquela
do ser chamado de velhaco e irritá-lo
gritando, noite desmaiei duas vezes.
não reclamava.Isso irritava-o ainda
mais. Para Depois do interrogatório fui levado
me bater, não usou mais as mãos
tabuleta de madeira que era a
e retomou a vamente ao andar superior, onde umpouco
acusação,a coronha de uma
peça máxima de mais tarde me colocaram numa celajá
que
de um punhal que estava
pistola e o cabo pada por sete ou oito pessoas.Lembro
de me bater quando
sobre a mesa. Parou
fiquei com o coração apertadoquando
foi chamado ao telefone ingenuidade'
pelo major Carità que professor Zamboni. Em minha
lhe perguntava sobre o
que ponto havia
chegaclo nossa conversa.
a lembrei a ele que o conhecia e que
Ele visto várias vezes no tipógrafo Zanocco.
estive no
No ofiginal, favor"'. —exclamou —"eu jamais
pequena Compreendi
truída no inteñor
de um aposento colocada ou cons- nocco, nem sequer o conheço" •
para aquecê-lo. eventual 011

(N. T.) que agira mal e que um delator


144 | A Arte
Mágica
anheirofrágil poderia nos arruinar. térreo e guardados à vista.Aquela
comp hóspede mais velho do noite, logo
o
era, creio, depois do sinal de alarme, ouviu-se
o zumbido
/ 1011)oni
Giustie sua experiênciaera tal que dos aparelhos sobre a cidade. Os
pala/,/0 que dele recebi foram de muito guardas, com
os presos já prontos, dirigiram-se,como sem-
osconselhos
ajuda p ara mim. Estavam na cela pre, para o andar térreo. Nós, na enfermaria,
e
conforto
DomGiovanni Apolloni, o senhor estávamos todos na cama e mal tivemostempo
conosco:
doutor Miraglia e outros
deVicenza,o para nos vestir quando todas as portas foram
Faccio Na cela ao lado,
cujos nomesme escapam. fechadas. Tivemos que ficar onde estávamos,
outros, estava o professor Me- tendo apenas o teto por proteçáo,no último
a muitos
pormeio de Zanocco, combinamos
neghetti: andar e numa zona relativamentepróxima à
conhecer. estação de Santa Sofia.
liáonos
Comosmeus bons companheiros de cela Ouvimos as primeiras bombas caírem ao
durante os quais sofri ou-
asseitrêsdias longe e sentimos o palácio tremer. A primei-
interrogatórios: um com o
trosdoisou três ra descarga seguiram-se várias outras, cada vez
que me administrou alguns bofe-
Squilloni mais perto. Ouvíamos o sibilo das bombas e dos
osoutroscom o major Carità, presente
tôes, morteiros em cima da cabeça. Da janela aber-
Trentanove que com suas presumi-
otenente ta para o jardim víamos os estouros e as colu-
artísticas era o meu maior
dasexperiências nas de fumo se levantarem.Entravamlufadas
Naquelesdias tive febre e mal-estar
acusador. de ar quente. A casa dançava sob nossos pés. A
muitofortes. menos de duzentosmetros de nós um edifício
Namanhãdo terceiro dia de cela, pedi visita queimava. Nossos carcereiros estavam ao segu-
eodoutorPugliesedecidiu fazer com que me ro numa grande trincheira que nossos compa-
na enfermaria, dizendo que ali fica-
recuperasse nheiros haviam escavado no pátio.
liaumpoucotranquilo porque de outro modo Depois de aproximadamente dez dias, fui
oCafitàe o Squilloni teriam me "arrebenta- chamado ainda uma vez para ser interrogado.
do".Detardeme transferiram. Na enfermaria Fui interrogado pelo Corradeschi. Ele redigiu
encontreio professor Cestari que acabara de inclusive uma ata. Foi chamado para a perícia
sairde uma pleurite traumática em decorrên- da xilogravura o professor Francesco Canevac-
ciadosgolpes que levara, o senhor Avossa, o ci, diretor do Instituto de Arte "Pietro Selvati-
doutor
Sottiainda sofrendo de uma comoção co": resultou negativa (ao menos para eles).
depois
cerebral
pelosgolpesrecebidos, o engenheiro Fui solto nas primeiras horas da tarde
que impunha
Casilli
deVeneza.Depois de um dia ou dois foi de ter assinado uma declaração
visto e ouvi-
le\üdo
paraali também um Partigiano com uma silêncio sobre tudo o que eu havia
Perna
engessada,que nós chamávamos Mario, do no PalazzoGiusti.
e domLuigiPanarotto, pároco de Nove de
nella Commedia
Bassano, (de Arte della Maschera
comcostelasquebradas, o rosto e o na Commedia
corpo dell'Arte [Arte da Máscara
cheiosde manchas roxas. Naqueles dias 175-81; Taina
deixaram-me dell'Arte],op. cit., p. 167-70,
sossegado. Ritorno a Palazzo Giusti.
Dogo Baricolo (org.),
ansiedades,às arritmias, aos tormentos di Carità a Padova
morais Testemonianza dei Prigionieñ
e físicosdeve-se
juntar uma noite de um (1944-45) [Volta ao
Palácio Giusti: Testemu-
susto
terrível.
Trata-sedo último bombardeio dos Prisioneiros de Carità em Pádua].
notilrno
de Pádua. Como regra, ao sinal de nho
Italia, 1972, p. 47-51.)
Florença, La Nuova
osdetentoseram
levados para o andar
artísticas 1 145
- Memórias
da invenção
As formas
“날틀:
MÁSCARA ESPELHO DE VIDA
Gianfranco De Bosio

na zonaofiental da cidade, o Ins-


situado a ausência da luz do
intelecto; inimigo dos fal-
da Amleto Sartori. Ruzante,

titilto
de Farmacologia Universidade de sos engenhos, das sofisticarias,
pesquisava obs- modelo em bronze para
minhas experiências de
Pádua foio centrode tinadamente os valores da arte. Dizia
detestar
o monumentoa Ruzante

clandestina a Resistência.l Ali me o teatro, e deixava transparecer Pádua. 1958.


luta que se tratava
como diretor do Instituto, o pro- de excesso de amor. Assim
começamos a falar
fessor e com seus colaboradores;
Meneghetti, de máscaras, de seu uso no teatro,
e bom tema
os contatos políticos e organi-
lácnuavam-se de discórdia foi a tragédia grega, que eu
ha-
nam-seos ataques armados contra alemães e via enfrentado em termos de poeticidade con-
Erao cenário dos meus primeiros anos
fascistas. temporânea, excluindo a pesquisa, naquela
Terminada a guerra, eu e um
deuniversidade. ocasião (1946) muito pesante para nós, sobre
gmpodeamigosfundamos o teatro da Univer- a atuaçâo com máscara.
e aquelasruas, aquela avenida, aquelas
sidade, Lembro que nos remetíamos aos significa-
tornaram-senova meta de encontros,
árvores dos míticos e dionisíacosda máscara, aos seus
justamentenas proximidades do Insti-
porque valores totêmicos, e refazíamos a gloriosa his-
tuto,
naescolade arte Pietro Selvatico, ensinava tória da máscara da cultura cómica popular
AmletoSartori,escultor, professor e amigo. Ha- da Idade Média até a comédia improvvisa,a
íamosnosconhecidopor ocasião das minhas decadência teatral das máscaras subsequente à
primeiras
direçõesteatrais na Sala dei Giganti reforma goldonianana Itália e a irrupção da
alLi\iano,
as Coéforas de Ésquilo na tradução poética naturalista na Europa; a recuperação
deManara Valgimigli,e O Pelicano de August de seus significados profundos nas experiências
Stiindberg,
uma aproximação dura, de valor figurativas do primeiro Novecentos. E Amleto,
programático.
Característicasde Sartori eram a desde aquele tempo, via na máscara um meio
necessidade
de clareza, a franqueza de opinião, de salvação que poderia anular a mediocridade
aagressfiidade
irónica dos modos de expressão do ator, habituado a exprimir-seno âmbito da
e o calor
das conversações. cotidianidade de suas reações, obrigando-o a
Comeceia frequentar seu estúdio, outras confrontar-se com uma imagem inequívoca,
vezes
esperava-o
moslongas,
à saída da escola e entabuláva- superior no plano expressivo,portanto, alcan-
longas conversas passeando. cando necessariamenteuma gramáticae uma
Amleto
de atacavaos "cómicos", geralmente sintaxe formalizada. Prevalecia em Amleto
acentos a
tecia
shak espearianos;
muitas vezes pa- a visão e a força de quem estavahabituado
subjugar a matéria dura à expressão;vencia a
descobrirsob
o rosto dos atores em cena
da
Iles
Istenza
intransigência do artista contra a preguiça
teatrante no pal-
reação chamada instintiva do
e as forças ano, do outono de
a GuerraMundial
surgido dumnte co. Deixei Pádua por um
0 período nos vários países europeus; trabalhei em Paris em
em que essa
luta se desenvolve. (N. T.) 1947 ao verão de 1948, e
deixavaa escola
filha uma escola que seria a origem das pesquisas do Papafava e Jacques Lecoq, que pan
corvoral
máscara de Amleto Sartori teatro da Universidade de Pádua nos anos suces- onde era professor de educação
organizamosaque-
Sei Personaggi in cerca d'Autore
sivos.Durante minha ausência, Sartori realizou trabalhar em Pádua. Juntos que
[Seis Personagens à Procura de representações
um Autor) de Luigi a sua primeira experiência pública de modela- Ia atividade de estudo e de pan
olhares de todos
Pirandello. direçáo de Gianfranco gem de máscaras,para uma leitura de poesia por alguns anos atraiu os lin-
De Bosio descobertada
negra idealizada por Agostino Contarello: os o teatro da Universidade: a propostasdo
papel maché pintado
1952. atores atuavam protegidos por grandes másca- guagem de Ruzante, as primeiras
Pádua. Teatro dell'Università. introdução
a
ras de madeira, que pretendiam representar teatro épico de Brecht na Itália, na cena
escola francesa
as características individuais e a consciência da arte do mimo da Allilcto
experiências,
coletiva do povo escravo. Confluíam neste iní- italiana. Neste quadro de apartadodos
cio das atividades de Sartori "mascareiro" a li- no mundo
Sartori fez sua entrada
çáo do primitivismo da arte do século XIX e as criadores de máscaras. paduano
profundas raízes populares de sua inspiração. O grande escritor e teatrante era uni forte
No meu retorno de Paris estavam comigo Lieta gelo Beolco chamado Ruzante

148 1 A Arte Mágica


Paduano de origem,
Alnletoe eu. a obra3 de Sartori, que
podia verificar experi-
elo na csigência expressiva, Amleto com-
cntrc
mentalmente como "uma
poplilaf visão dc mundo de Ruzante, a boa máscara muda
a de expressão no
movimento", e ao mesmo tem-
doconterrâneolhe era congénita. Do po ajuda a revelar as
profundidades emotivas
inseridoe descrito na sua realida-
oética
P do ser humano. Enquanto
nem ilusões de Lecoq conduzia
exagerosmitificadores Sartori aos caminhos das
máscaras "frias", eu
mas com adesão às profundezas
Alingenesia, levava-o a percorrer a experiência
das máscaras
Amleto como Angelo, era
imaginário, da Commediadell'Artecom
de minhas encenações
intérprete. de teatro goldoniano.
amigoe
comunicavaos resultados de suas lei- Sartori realiza as suas primeiras experiên-
Eleme
desfrutava de minhas desco- cias específicas no interior do paradoxo
deRuzante, de um
levava-nos às hospedarias
e as de Zorzi, Goldoni que, ao opor-se com sua reforma às
doportelloe ao Foro Boario para ouvir os lon- convenções e à extemporaneidade das másca-
gínquosecosda antiga fala da palavra Pavana.2 ras dell'Arte,na realidade fixa-as e a elas dá vida
creioquea própria decisão de passar uma tem- exterior em muitas de suas comédias. Elas ini-
porada comos atores da minha primeira Mos- ciam no Festival do Teatro da Bienal de Vene-
[Comédiada Mosqueta] (1950) nas altas
(hetta za com o Pantaleão e o Arlequim de Pettegolezzi
Euganei,para reencontrar os rasgos
colinas delleDonne [Bisbilhotices das Mulheres], conti-
doantigopavanotenha nascido das conversas nuam com La CamerieraBrillante[A Camareira
com Contemporaneamente, e mesmo
Sartori. Espirituosa] e com La Famigliadell'Antiquario
osestudosde Lecoq sobre o movimento
antes, [A Família do Antiquário], em itinerário que
doatorha\iamimposto o uso da máscara neu- aperfeiçoa-se de temporada em temporada.
Ira,parareinventaro gesto cénico e reencon- Nas máscaras Amleto pesquisavaa interpreta-
trarsuaprofundidade e amplitude. Amleto, cão, a síntese entre a psicologia do personagem
então,
já estavapronto e motivado para reali- e a do intérprete, estava em constante busca de
zaragrandepassagem da escultura ao teatro. certezas teatrais. Havia nele uma tensão obsti-
0 próprioLecoq, em outro testemunho in- nada pela forma definitiva, quase que a vonta-
cluído
nestevolume, esclarece com nitidez os de de subtrair ao teatro sua improbabilidade.
tempose os modos desta sua experiência. Vale Os intérpretes do papel deveriam ir ao seu es-
recordar
apenasque a primeira demonstração túdio, deixar-se observar, mostrar-lhe posturas
pública
do trabalhode Lecoq ocorre sobre um e gestos, fazer ouvir sua voz e deixar sentir o ca-
textode teatro Nê)japonês traduzido para o lor de suas próprias possibilidadesexpressivas;
italiano,
LeCentoNotti [As Cem Noites]; para depois, no teatro, Amleto assistiaaos primeiros
eleconfluíamos êxitos
de sua aprendizagem ensaios para compreender outros aspectos dos
Dasté,aluno preferido de Copeau, mas jogos do ator; só então avaliavater chegado o
mo-
sobretudoa exigência de recuperar a mensa- momento da modelagem da máscara. Um
desaparecia —
doteatrooriental,
que havia influenciado tivo de divergência aflorava —e
tanto Ruzante.
o teatrodo
século XIX, Brecht inclusive. em nossas discussões sobre
primeira ence-
Osestudossobre
o movimento realizados Eu me aproximava, então, da
porLe vez mais obcecado
coqcom auxílio da
máscara enriqueciam nação e Amleto estava cada

nota2 ao —obra, ofício, autoridade de mes-


texto de Piizzi e Alberti, neste volume, 3 No original, magistero
(N. T.)
tre; habilidade, maestria.

invenção- Máscara espelho de vida 1 149


As formas da
vejam os teus desenhos! você deve
falar
eles, você também é um pouco Ruzante
lhe dizia —mas quer que os Menato, os
Ruzante
as Betie escondam o rosto, escondam-se
de uma máscara? Os personagens de Ruzante
rechaçam a máscara!". Amleto então erguia
a
voz, protestava contra o rosto dos atores,corn
a minha presumível identificaçãoda miscara
com a hipocrisia e o medo...
Na realidade premia demais a mim,a Zor.
zi, a Scandella, aos atores e tambéma Arnleto
afirmar a estranheza do discursode Beolco
frente à sucessiva Commedia all'improvviso;
pre-
tendíamos individuar então a matrizpopular
e realista, e até mesmo o valor de proposta
exemplar de uma forma de teatro italiano
que a cultura vencedora da Contrarreforma
estilhaçará e desviará para a codificação
re-
dutiva dell'Arte.
Somente anos e anos mais tarde (1965e
1981), depois de um longo caminhopercor-
rido com a assídua e fraterna colaboraçãode
Ludovico Zorzi, encontrarei as razões para re-
cuperar o uso da máscaranas representações
de Ruzante, nas danças de corte dosDialoghi
del Ruzante [Diálogos de Ruzante] —
coreogra-
Grup
fias de Marta Egri —e no espetáculodo
Luzzati e
po della Rocca concebido com Lele
à defi-
Santuzza Cali, mas as máscaras servirão
nição do abstrato mundo cortesãoda
pastoral

"desnaturalida-
justamente em contraste com a
experiênciaem
pelos rostos dos personagens de Beolco; de- de" do primeiro Ruzante. Uma
já àscon-
senhava-oscontinuadamente, e uma preciosa sentido contrário (que dedico desde
realizei
série está contida nas duas edições paduanas, versações de um tempo com Amleto) da
encenação
de 1953 e 1954, de Anconitana e Vaccaria,or- junto de Luzzati e de Cali com a
procurei
ganizadas por Ludovico Zorzi. Amleto ficaria ópera nova de Azio Corghi Gargantua:
rabelaisiano
tão feliz se os personagens de Ruzante tivessem restituir, com as máscaras, o senso carna-
\isáo
Amleto Sartori. Estudo para a
vestido a máscara, as suas máscaras! Eu estava da cultura cómica popular como
programaticamente irredutível frente a este so- bakhtiniana
roupa do Pai. 1952 valesca do mundo, a concepção camposdl-
nho seu, não queria cobrir os rostos dos atores,
Sei Personaggi in Cerca d'Autore
do corpo grotesco. Mas estamos em
que do
COITO
[Seis Personagens à Procura de um deveriam conquistar de dentro, na açáo cénica,
Autor) de Luigi Arandello versos dos do teatro de Ruzante, fantasma•
a mesma peremptoriedade das expressões de
têmpera sobre papel "de açúcar" de- grotesco faz essencialmente tema
Ia Indicar azul-escuro). senhadas por Amleto: "Vamos fazer com camponês.
que goria por parte do personagem

150 1 A Arte Mágica


connum situa-
Cinpvc »endimcnto
l'lltimo
Uni mesmo que Zorzi dela
autonomamente,
fundamental lição a
conclui os anos padua-
dcArlequinn,
conl Sartori, a minha ence-
colabotaçáo
Pasonaqensà Pmcura de Autor
dosSeis
Uma didascália, negligenciada
Pilandello.
ou precisão in te-
teatrantescomo bizarria
pelos
de puro 8alor explicativo, permitiu-
lectualista
ressarcia do
enuarnum acordo que nos
entendimentosobre Ruzante. "Sugere-
falhado

- escrevePirandello

usodeliláscamsespeciais para os persona-


expressamente construídas de
máscalãls
gens:
umamatériaque não afrouxará com o suor e
quenãopor isso deixará de ser leve para os
atoresque deverão usá-las: trabalhadas e ta-
demodoa que deixem livres os olhos,
lhadas
asnañnase a boca. Assim se interpretará tam-
bémo sentidoprofundo da Comédia".
'l
EaquiPirandelloprecisa não se tratar mais
defantasmas,
mas de realidades criadas, "imutá-
leisconstruções da fantasia: e então mais reais
econsistentesque a volúvel naturalidade dos
atores".
PiKmdelloconjuga-se criticamente ao
teatrodeSartori,e ainda precisa: "as máscaras
ajudarãoa dara impressão da figura construída
pelaartee fixadacada uma imutavelmente na
expressão do próprio sentimento fundamen-
tal"e aquiPirandello
precisa suas variantes, o
remorso
para o Pai, a vingança para a Enteada, O efeito, mesmo sem que todos os atores es-
0desdémparao Filho, a dor para a Mãe. Amle- tivessem equivalentes, foi de notável fascinação.
toreecontrava
na reflexão de Pirandello muitos E justo lembrar alguns intérpretes: Ottorino
argumentos
para sua visão do teatro. Jogou-se Guerrini, um bravo ator, morto precocemente,
naexperiência
com entusiasmo criativo e for- foi o Pai, Giulio Bosetti o Filho, Marisa Fabbri
neceu-nosas máscarasjá para
os ensaios. Foi foi Madame Pace. A ordem do capocomicd
períodode
de trabalho fascinante: tratava-se Amleto Sartori, Estudo para a
transpor,
sem ajuda da expressão facial, os
'i Capocomico—cómico chefe —dirigente de uma compa- roupa da Mãe. 1952
que, no Sei Personaggi in Cerca d'Autore
senciais,
do s personagens,
tornando-os es- nhia teatral para escrituração dos atores; figura
asemoções acumular funções [Seis Personagens à Procura de
condensadas na expressão seio do teatro cômico-popular, tende a um Autor] de Luigi Pirandello
globaldocorpo;
têmpera sobre papel "de açúcar"
contava a relação da máscara O capocomicado,experiência presente em diferentes mo-
justamente, estudos [a indicar azul-escuro).
da postura e ojogo das luzes. mentos da história do teatro requer,

espelho de vida 1 151


As (ormas da invenção - Máscara
Mais que uma dimensão
cenários amon- historicista
de afastar
os
presen-
reprodução dc um procedimento
(Gianni Montesi) de improviso a Sartori recupera o sentidoúltimo
revelava alucinante da
toados no palco que se tornava a sua valência antropológica. O
personagens, teatro
ca dos máscaras. espelho da vida profunda da
às esplêndidas Universi- sociedade
doido do teatro da Se a comédia ao h
fechamento de na. improvviso
faz-se
parar após o e Prefeitura
que Universidade do teatro, a significar a supremacia
dade (1932), não quiseram evitar? do
souberam ou
filtrado e espaço teatral, a máscarado teatro
Pádua personagens,
verbal dos o momento simbólico. Ela conecta-secomo
O tormento das máscaras, empur-
regelado pela
presença trimônio de crenças e lendas que germinam
os trilhos de uma atuaçáo
rava o drama para psicologista, inconsciente coletivo para tornar-se
memórü
condicionamento da humanidade.
subtraída ao tal inte-
efeitode estranhamentode
comum verificação nos dias (dc Arte della Maschera nella Commedia
mereceria uma delI'Ane
resse que
a mentalidade dos atores italia- [Arte da Máscara na Commedia
dell'Artel,
op.
de hoje. Mas
experiência de
A cit., p. 159-62.)
nos evoluiu suficientemente?
de qualquer modo
Sartorinos SeisPersonagens
de altíssimo re-
encontrará um êxito sucessivo,
La Favola del Figlio
sultado, nas máscaras para
Trocado] do mes-
Cambiato[A Fábula do Filho
mo Pirandello (Milão, 1957).
de
O caminho do teatro da Universidade
pós-
Pádua no campo da máscara nos anos do
-guerra está de fato entrelaçado à formação
de Amleto Sartori "mascareiro"; segue as pri-
meiras conquistas,no terreno da Commedia
dell'Arte,na tipificaçãopopular do persona-
gem, com as ascendências míticas e mágicas
que a história da máscara inclui; revela ainda
a amplitude de interesses na pesquisa da pura
expressividadedo movimento sob a máscara
neutra, até a conjunção com os pontos cen-
trais de inquietação do teatro contemporâ-
Amleto Sartori, Truffo, 1955
Vaccaria de Ruzante neo revelados pela experiência pirandelliana.
madeira cava e laqueada. A redescoberta moderna do procedimento
de
fabricaçãoda máscara em couro
Amleto Sartori, Ruzante, 1955 própria dos
I Rasonamentide Ruzante cómicosdell'Arte,de que Sartori foi protago-
Madeira cava e laqueada. nista, nasceu, portanto, como
consequência
de premissase motivações
Amleto Sartori, Celega, 1955 que a colocam no
Vaccaria de Ruzante cruzamento com as modernas vias
madeiracava e laqueada. teatrais.
histórico-teatraisque o
Amleto Sartori, Sier Tomao, 1955
tivos,de modo a desvencilhem de adjetivos
recuperar a compreensão, valora-
Antonitana de Ruzante
sua noção, a partir histórica, de
madeira cava e laqueada. do contexto,
teatral, de sua
configura-

152 | A Arte
Mágica
| 153
espelho de vida
- Máscara
da invençáo
As lormas
A GEOMETRIA A SERVIÇO DA
EMOÇÃO
Jacques Lecoq

encontro com
Amleto Sartori máscara neutra". Era derivada
O meu
das experi- Jacques Lecoq
ências feitas na escola do interpreta uma máscara expressiva
em Pádua em 1948 para ensinar Vieux-Colombier
Cheguei por Jacques Copeau, de quem Jean dos Sartori
e impro\isaçãoaos atores do teatro Dasté foi Paris. École Internationale de
1110\imcnto aluno e continuador. A máscara, privada
daquela cidade. O grupo de jovens de Théâtre, 1970.
Illiivcfritário expressões particulares, de aspecto vagamen-
foi uma das companhias piloto na
profissionais te orientalizante (Copeau era fascinado pelo
do pós-guerra,trazendo à luz obras de
Itália teatro Nó) representava aquilo que homens e
e de Ruzante, representando
Brecht L'eccezione
mulheres têm em comum, mesmo que a más-
[A Exceção e a Regra} e La Mosche-
claRegola cara utilizada pelos homens fosse diferente da
ta[AComédiaMosqueta]. Com a trupe pude destinada às mulheres.
umamímica aberta ao teatro, diferente
elaborar Ao chegar a Pádua, naturalmente, quis con-
formale estética, que na França estava
daquela, tinuar a experiênciacom a máscara,que me
em um verdadeiro gueto, e desenvol-
encenada influenciara tão profundamente, fazendo com
vero usoda máscara silenciosa e falante. que cada ator construísse sua própria máscara
experiênciacom a máscara teve iní-
Minha neutra. Precisava encontrar alguém que pu-
cioem1945com a Companhia dos Comédiens desse nos ajudar neste campo. Gianfranco De
deGrenobledirigida por Jean Dasté, primeiro Bosio, diretor da companhia, conhecia um
experimento de descentralização dramática na escultor que havia trabalhado para um espe-
Havíamospreparado uma figuração mí-
França. táculo sobre poesia negra e que realizara para
micaintituladaL 'Esodo[O Êxodo] que evocava a ocasião máscaras em madeira esculpida figu-
odramados camponeses obrigados a abando- rando grandes rostos negros. As máscaras não
narsuas\ilas e fugir pelas estradas na tentativa haviam sido feitas para serem vestidas, eram
deescaparao invasor. A guerra acabara de ter- usadas como elemento decorativo pelos atores
minare todos ainda sentiam fortemente estes que, colocando-as ao lado, plantadas sobre um
problemas. O espetáculo foi apresentado tam- bastão, criavam um espaço significativoapro-
I)émnosvilarejosde montanha onde o públi- priado à leitura poética.
jamaishaviaassistidoa uma representação Aconteceu assim o meu encontro com Am-
um
teatR11,
masaceitou sem problemas a conven- leto Sartori. Encontramo-nos em cima de
longo do
damáscara,a representação silenciosa e as andaime, a cinco metros de altura, ao
Pedrocchi, onde
\áriasmetamorfoses
a que nos submetíamos ao muro lateral do célebre Caffe
liostR111sformar, um novo afresco que
de vez em vez, em campone- Amlcto estava concluindo
ses, arruinado.
animais, multidão. substituía o antigo, completamente
jornal em forma de barca
Naquelaépoca utilizávamos uma másca- Usava um chapéu de
ra
queentão de gesso.Artista e arte-
chamávamos "máscara nobre", e uma blusa manchada
lhas
que em seguida de sua cidade.
preferi definir como são no espaço aberto
protegíamos com um verniz opaco para
refraçáo da luz dos projetores. A coisa
maisdi.
ficil, no entanto, era a modelação da terra
para
a máscara neutra. O resultado não foi muito
tisfatório. As máscaras neutras de neutro
tinham
apenas o nome; protuberâncias arrojadase bor_
das pontiagudas impediam separá-la da matrize
uma vez colocadas em nossos rostos,impediam
as emoções. Sartori observava nossosesforços
com muito respeito e um pouco de compaixão.
Depois, quando chegou o dia em que sede.
via ir para a cena representar a minha primeira
pantomima mascarada Porto di IVIare[Porto de
Mar] , inspirada no porto de Chioggia,Amleto
decidiu com autoridade e competência queas
máscaras seriam feitas por ele, as nossaseram
muito feias. Ninguém ousou opor-se a suade-
Neutra masculina Expliquei o projeto e ele, com entusiasmo, cisão; eu não esperava outra coisa,havíamos
máscara dos Sartori
introduziu-nos em seu lab01atório na escola nos livrado de um grande peso. Assim,com
Ia-espetáculo Tout Bouge
"Selvatico".Toda a companhia pôs-sea traba- as máscaras neutras de papel machê colado,
de e com Jacques Lecoq
Paris. 1970. lhar; cada um de nós procurava a máscara neu- teve início para Sartori sua aventura comas
tra sob o olhar curioso de Amleto. Preparamos máscaras, e para mim a história de uma longa
a terra, depois o gesso, e enfim a cola e o papel colaboração e de uma grande amizade.
seguindo a técnica que Jean Dasté me ensinara. Em 1951, deixei Pádua e fui a Milão,cha-
Ela preciso construir uma forma em terra para mado por Giorgio Strehler e Paolo Gassipara
dali extrair uma matriz em gesso, cujo interior criar a Escola do Piccolo Teatro e dirigiro
era borñfado com glicerina para evitar que a coro da Elettra [Electra] de Sófoclesno Teatro
máscara ficassecolada no momento de se des- Olimpico de Vicenza. Foi em um cafépróxi-
tacar. Eram construídas com dez camadas de mo ao teatro desta cidade, num dia de sole
papel de jornal cortado em pedacinhos, cola- à sombra das pedras,l que apresentei Sartori
dos uns sobre os outros com cola de amido, e a Strehler falando-lhe das máscaras que até
entre elas eram interpostos três extratos de tar- então havia realizado. O Piccolo Teatrojá ha-
latana: no início, no meio e no fim. Tudo isso via apresentado o Arlecchino, Semitoredi Due
era deixado a secar, depois, retirado da matriz, Padroni [Arlequim, Servidor de DoisPatróesl
era recoberto com um extrato de gesso inerte,
de Goldoni com o sucesso que todosconhe-
mistumdo a torrões de açúcar: um segredo que
cemos. Marcello Moretti, Arlequim genial,
Dasté conse:vavadesde os tempos do Vieux-
que marcou este papel com a sua personali-
-Colombiermas do qual não se sabia muito
a dade inventiva, ainda não usava a máscarae
utilidade, dizia-seque servia para evitar
extrato não gretasse depois de seco.
que o preferia uma maquiagem preta que criassesua
Respeitava escmpulosamente
este rito. Em No original, " (...) all'ombra delle pietre". Remeteàspe
seguida, com papel vitñficado dras dos monumentos de Vicenza. A passagemreapare
fino, lixáva-
mos a superficieque pintávamos cerei,como citação, no texto de Donato Sartori,A Cmadó
de marrom e
Máscaras,neste volume. (N. T.)

156 1 A Arte Mágica


suas evoluções.
ncomo(lassccm
crsonagcnstipificados, Pantaleão,
Doutor, ao contrário, usavam
dc pouca qualidade.
dcpapelão
«cinprcemprccndcdor, propôs a
cxpcrilncnt ar
confeccionar máscaras
•hlcr cspctáculo remontando às
para cstc
dell'Arte. As promessas
da Copnmedia
tradiÇáo
mantidas. Até aquclc momento, Amleto
tlibalharacom o couro. Lembro-me de
acompanhado ao Museu da Opéra em Pa-
antigas máscaras de Zanni (pre-
paraveras
dc Arlcquim). Observou-as dc perto
vercomocram construídas. Pouco tempo
a pñmcira máscara em couro de Ar-
dcpois,
Icquimtomavaforma. Experimentei vesti-la e
viver,cm vão. Não funcionava. A vitrina
dcoposiçãonão servira para mantê-la viva. não conseguia trabalhar. O couro era muito Neutra masculina
máscara dos Sartori
conservoesta máscara em minha casa,
Ainda macio e foi preciso fazer uma outra em couro aula-espetáculo Tout Bouge
á parede do meu estúdio, o que
pendiltada mais sólido. Aprendi assim que é necessária de e com Jacques Lecoq

uma distância entre a máscara e o rosto para Paris. 1970.

Ulnanváscara pode ser tecnicamente bem que se possa utilizá-la. Procurou, por muito
leita,belaaos olhos, Inas impossível de ser tempo ainda, a máscara neutra feminina, pas-
operada.F,precisoque a sua forma encontre sando sucessivamente da camponesa paduana
lidagmças ao corpo e ao movimento do ator. à jovem maravilhada, antes de se firmar sobre
"pode"exprimir tudo sozinha, precisa a mulher de todas as mulheres.
colocada Inovimento. Sartori chamou Seu filho, Donato Sartori, também ele es-
Motettia seu laboratório de Pádua várias ve- cultor que prossegue a obra do pai com o
e, poucoa pouco, trabalhando juntos, a acréscimo de suas pesquisas pessoais, teve a
do Arlequinn-\loretti ganhou vida. gentileza de doar-me a forma de madeira ori-
Antesde iniciara realização de unia másca- ginal da máscara neutra, matriz das máscaras
época.
Allilctoestuda\aa obra teatral, procurava que a minha escola utiliza desde aquela
Apenas os que vestiram uma miscara podem
icsti-la,
procuravacolher o objetivo da conhecer a emoção que ela encerra e quão
!
Cl)lcscntaçáo
e as capacidades da pessoa. En- profundamente isso nos toca. E como possuir
se revelar. Amleto,
"'lltlou
couronracioe resistente. Tratou este um segredo muito difícil de
uldttlial máscaras expressi-
de Iliodoa que não deformasse em em seguida, fez numerosas
'lato particularmente em selhos
0 suor do ator. Buscava melhorar vas inspirando-se
de Pádua e em
t"l'hnuaddlnente,
Uln dia decidiu fazer ulna professores da Uni\CISidade
Encontr¿e.anaque-
neutra couro para mim, Ia•sou políticos daquela época.
níseis, urna amálgama de
experiências, media les vultos, em vários
U em estado de alegtc
c eu ia experilnentá-la
em seu Ia- paixões que o colocavam par.
1956soltei a Pan»
ou grudada na pele que eu pro\ocagáo

I
A
As
comi- Tais experiências levaram-me a utilizar máscaras
Dcmonstraçôes mímicas fundar a minha escola de teatro levando
Commedia larvárias, vultos muito simples que apresentam
de Jacques Lecoq, go toda a série básica das máscaras da
máscaras da Commedia dell'Arte
dell'Arte,presente de Amleto em minha partida
um caráter preciso das formas cortantes,pun-
dos Sartori
couro patinado da Itália. Estas máscaras em seguida serviriam gentes, comprimidas... que funcionamcomo
'ádua. Teatro dell'Università, 1950. de modelo para numerosos outros criadores instrumentos e evocam semblantes animais.De-
de máscara na França e no exterior, e inspira- pois foram as "arquiteturas portáteis" (iniciadas
riam numerososespetáculosde meus alunos. com os arquitetos da Escola Nacional Superior
Elas ajudam-nos a compreender uma Commedia de Belas Artes em 1969) , grandes estruturasem
dell'AHemais próxima de Ruzante que de Gol- madeira, metal ou material plásticocarregados
doni, mais imediatamente inspirada naquela nos braços e manobrados no espaçocomoum
multidão que se apinha pelos mercados de Pá- veículo dinâmico provido de motor.
dua que na reconstruçãopseudo-históricade Os objetos movem-senuma representação
uma italianidade de museu. Comédia onde o abstrata sem se referir a qualquerfiguração
homem que precisa sobreviverberra seus me- humana. Encontram origem nas sensações fi-
dos, sua miséria, sua fome, e seus amores e se Sicas percebidas pelo corpo mímico no jogo
arranja"numa hierarquia social onde não há
das paixões (medo, ciúme, cólera...).
mais revolta,com um senso trágico do
irrisó-
rio que desnuda as fraquezas humanas.
Aqui,
a Commedia dell'AHe deixa a Itália para tornar-se Discurso sobre o uso da máscara
comédia humana e conquista, atore
dadeiro significado.
assim, o seu ver- A máscara coloca em relevo a açáo do
ao
Apósmeu peúodo italiano leva o caráter do personagem e da situação
prossegui as ex- tom
peñências com as máscaras essencial. Precisa os gestos do corpo e o fil-
trabalhando parale-
voz. Levando o texto para além do cotidiano,
lamentetambémsobre o boa
espaço:era o próprio
espaço a ser colocado diretamente tra o essencial e elimina o anedótico.
em jogo. expressi0
máscara é uma máscara que muda de
158 1 A Arle Mágica
Se permanece igual mesmo veste e do espaço que a circunda. As máscaras
semove.
ator mud a
de atitude, então é uma podem ser muito diferentes na forma e no espí-
do o
A máscara não deve fixar a ex-
morta.
rito, mas cada máscara teatral válida e bela tem
Illíscara não se pocle conceber
deummomento: em comum com as outras a capacidade de re-
transmitir a profundidade da essência humana.
muito tempo, tornar-se-ia
emcena por
manear
E neste nível que se assemelham uma máscara
Nê)e uma máscara da Commediadell'Arte,uma
não basta analisar seus
deumamáscaxa máscara africana e uma indonésia. O jogo da
atmvésde um discruso de significado,
símbolos máscara não é uma ciência exata, mas uma arte
conhecer seu comportamento por
preciso exata. Um discurso profundo sobre esse tema
dasucessãodos que ela su- não pode não ser poético (lá onde as palavras
Umamáscaülque seja apenas simbólica disparatam). A parte não dita é a maior, como
éumamáscan de representação, é apenas em todas as artes. Sem operar o termo "mági-
imóvelde uma ideia fixa.
amíscala co" que daria um tom misteriosoao tema, direi
neutra é a máscara de base que
Amáscara trata-se sobretudo de um deslocamento da geo-
estánocentrode todas as outras máscaras. Ela metria a seniço da emoção.
à calma que servirá para colher
referência
l'\áliaspaixõese estados dramáticos; não car- (De D. Sartori e B. Lanata (org.), Arte della
rega anteriores, está disponível a qual-
conflitos Maschera nella Commedia dell'AHe [Arte da
quer açáo.Agecomo uma pessoa em equilfl)rio. Máscara na Commediadell'Arte]. Florença, La
\'áosepodeseparar a máscara daquele que a Casa Usher, 1983, p. 163-66.)

Jacques Lecoq e Amleto Sartori


Pádua, Teatro dell'Università. 1948.

geometriaa serviço da emoçào 1 159


As formasda invencào - A

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