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La Insurrección Del Horror - Maritza Farías
La Insurrección Del Horror - Maritza Farías
GESTO DE HORROR
Quando o fotógrafo Luis Navarro voltou para casa, depois de ter sido preso
e ter desaparecido durante cinco dias, seu pai lhe exigiu que contasse o que tinha
vivido com a ditadura cívico-militar chilena. Exigiu, porque se fosse por Luis, não
tinha falado nada. Quando finalizou o relato, seu pai respondeu com um gesto de
horror: apoiou o cotovelo esquerdo na mesa, baixou a cabeça e cobriu seus olhos
com a mão. Esse gesto foi imortalizado pelo fotógrafo no retrato intitulado “Meu Pai”,
um gesto de dor profunda, de não acreditar no que seu filho estava contando, da
necessidade de cobrir os olhos diante do horror narrado para poder suportar um
pouco. Horror pelos atos de tortura que seu filho sofreu, fechar os olhos e respirar
para se encontrar em solidão com seu corpo, sem chegar a entender tanta
barbaridade.
Vicky Saavedra permaneceu sentada e quieta durante horas na sala de sua
casa, sem pensar nada, enquanto suas mãos carregavam o pé de seu irmão e o
acariciavam. José Saavedra González era dirigente estudantil e tinha 18 anos
quando foi assassinado pela abominável “Caravana de la Muerte” 1.
1
Operação militar dirigida por Augusto Pinochet e sob o comando do geral Sergio Arellano Stark,
que consistiu em percorrer o Chile de sul a norte, executando dezenas de prisioneiros partidários de
Allende. A comitiva iniciou sua operação no dia 30 de setembro de 1973, finalizando no dia 22 de
outubro do mesmo ano, deixando pelo menos 97 vítimas.
ela ficava todos os dias, observando durante horas, tentando ver sua filha dentre as
mulheres que iam e vinham num trânsito constante, desde a piscina até o camarim
de mulheres, e do camarim de mulheres até a piscina. A mãe segurou as mãos de
sua filha sem imaginar que, durante os últimos dias, essas mãos tinham sido
cuspidas e que, numa tentativa mínima de proteção, tinham se tornado um escudo
de proteção contra chutes e socos em seu rosto e seu corpo, essas mãos que
tinham defendido seus peitos, suas nádegas e sua vagina das mãos estupradoras
que a esfregavam. Enquanto a mãe segurava as mãos com amor e cuidado, não
tinha como imaginar, que essas mãos, as mãos de sua filha, tinham sido tocadas,
mijadas e mordiscadas por ratos, ratos que os milicos colocaram no quarto de
castigo junto com a frase sentença: “hoje à noite esse rato vai entrar na sua vagina,
puta upelienta”.
2
Diálogo extraído do capítulo III “La Piscina”. Terrorismo de Estadio. Prisioneiros de guerra num
campo de esportes. Segunda edição ampliada. Página 73. Editorial Latinoamericana 2016. Pascale
Bonnefoy Miralles.
daqueles outros horrorizados. Toda vez que somos testemunhas de um depoimento
ou temos em frente um documento de arquivo, uma sorte de horror mobilizador
pega, mexe e lança a gente para o espaço, nos quebrando e deixando milhares de
cacos de horror que vão cravar cada corpo que se dispor a recebê-los, cada corpo
que quiser ser impactado e assim, compartilhar em boa parte, a nossa dor. É assim
como a memória funciona e é praticada. O horror provocado por certas situações,
ações ou histórias, esse horror que sentimos, não deveria nos deixar dormir
tranquilos, não deveria permitir que sigamos como se nada tivesse acontecido que
aqui não tem acontecido nada. Enquanto existam situações na humanidade que
provoquem horror, não podemos viver tranquilos, embora aqueles que sofrem o
horror não sejam parentes ou amigos nossos, é o nosso dever humano nos
horrorizarmos com a insensibilidade. O horror deve mobilizar e impulsionar o
cuidado da memória para jamais esquecer ou repetir as aberrações cometidas
contra a humanidade.
3
Cuerpos sin duelo (Diéguez, 2013, p. 61)
outros não sofram o que nós sofremos e para que outros não vivam o que outros,
ainda mais distantes, viveram. É preciso que os Artistas habitemos os territórios da
memória e do esquecimento, percorrendo os caminhos da denúncia, o depoimento
e o documento, porque nossa missão é transformar e subverter as dores e as
feridas. Uma arte política, uma arte crítica deve evidenciar, expor e esfregar no
corpo de todos, o que sistematicamente tenta-se ocultar. Os artistas devemos voltar
uma e outra vez nos assuntos que ainda não foram resolvidos, nos fatos que
permanecem em silêncio e, oprimidos, devemos insistir em gritar e mostrar o que
deve ser denunciado. Trata-se de estabelecer um compromisso com a memória, o
que a história não diz é dito e corrigido pela arte. Como pessoas, carregamos nossa
história e a história dos mais próximos, e como artistas devemos ser transmissores
delas, não podemos deixar elas morrerem e somirem junto com seus protagonistas.
Os e as que fazemos Arte somos transmissores da história, e é assim como
devemos nos reconhecer. Toda oportunidade de estar com outro ser humano e
simplesmente conversar pode ser uma tribuna política e, como a própria Ileana
Diéguez diz, a arte é uma tribuna política, portanto a pessoa Artista é quem tem a
maior responsabilidade.