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A INSURREIÇÃO DO HORROR

Maritza Farias Cerpa


Universidade de Valparaíso - Chile

GESTO DE HORROR
Quando o fotógrafo Luis Navarro voltou para casa, depois de ter sido preso
e ter desaparecido durante cinco dias, seu pai lhe exigiu que contasse o que tinha
vivido com a ditadura cívico-militar chilena. Exigiu, porque se fosse por Luis, não
tinha falado nada. Quando finalizou o relato, seu pai respondeu com um gesto de
horror: apoiou o cotovelo esquerdo na mesa, baixou a cabeça e cobriu seus olhos
com a mão. Esse gesto foi imortalizado pelo fotógrafo no retrato intitulado “Meu Pai”,
um gesto de dor profunda, de não acreditar no que seu filho estava contando, da
necessidade de cobrir os olhos diante do horror narrado para poder suportar um
pouco. Horror pelos atos de tortura que seu filho sofreu, fechar os olhos e respirar
para se encontrar em solidão com seu corpo, sem chegar a entender tanta
barbaridade.
Vicky Saavedra permaneceu sentada e quieta durante horas na sala de sua
casa, sem pensar nada, enquanto suas mãos carregavam o pé de seu irmão e o
acariciavam. José Saavedra González era dirigente estudantil e tinha 18 anos
quando foi assassinado pela abominável “Caravana de la Muerte” 1.

Vicky cuidou do pé de seu irmão como toda pessoa cuida do corpo de um


ente amado, e com uma atitude de calma, silêncio e recolhimento deixou que o
horror se posicionasse, inundando-a por completo. Estava impactada, porque foi
naquele momento que tomou consciência de que seu irmão estava morto, que
tinham atirado nele. De novo presenciamos um gesto de horror, que não envolveu
movimentação nem chegou a ser fotografado. Na ausência da imagem, podemos
imaginar ela sentada ali, petrificada, respirando, sentindo a boca cheia de areia do
deserto, sem conseguir compreender tanta monstruosidade.
Eles te torturaram, filha? – foi a pergunta que lançou a mãe de Carolina
Pradenas depois de alguns dias sem vê-la desde a grade do Estádio Nacional, onde

1
Operação militar dirigida por Augusto Pinochet e sob o comando do geral Sergio Arellano Stark,
que consistiu em percorrer o Chile de sul a norte, executando dezenas de prisioneiros partidários de
Allende. A comitiva iniciou sua operação no dia 30 de setembro de 1973, finalizando no dia 22 de
outubro do mesmo ano, deixando pelo menos 97 vítimas.
ela ficava todos os dias, observando durante horas, tentando ver sua filha dentre as
mulheres que iam e vinham num trânsito constante, desde a piscina até o camarim
de mulheres, e do camarim de mulheres até a piscina. A mãe segurou as mãos de
sua filha sem imaginar que, durante os últimos dias, essas mãos tinham sido
cuspidas e que, numa tentativa mínima de proteção, tinham se tornado um escudo
de proteção contra chutes e socos em seu rosto e seu corpo, essas mãos que
tinham defendido seus peitos, suas nádegas e sua vagina das mãos estupradoras
que a esfregavam. Enquanto a mãe segurava as mãos com amor e cuidado, não
tinha como imaginar, que essas mãos, as mãos de sua filha, tinham sido tocadas,
mijadas e mordiscadas por ratos, ratos que os milicos colocaram no quarto de
castigo junto com a frase sentença: “hoje à noite esse rato vai entrar na sua vagina,
puta upelienta”.

– Me jura que não te fizeram nada


– Não mamãe, não me fizeram nada
– Mas jura para mim
– Mãezinha, fica tranquila, não aconteceu nada
– Você tem que soltar ela, senhora. Tem que ir para casa. Sua filha
tem que descansar.
(A mãe tomando consciência do horror)
– Se não lhe fizeram nada, por que tem que descansar?2

Horror. Silêncio. Gesto interno de horror, do horror-desgarro-dor de uma


mãe.
Nas três situações anteriores, o horror se manifesta em quem se impacta
com a experiência do outro, com a vivência da outra. O pai se horroriza com a
vivência de seu filho, a irmã se horroriza com a vivência de seu irmão, a mãe se
horroriza com a vivência de sua filha. O horror, como sentimento intenso causado
por algo terrível e espantoso, possui seus corpos e ficará ali, para sempre, em suas
memórias. É o mesmo horror que surge quando nós somos, os e as receptoras

2
Diálogo extraído do capítulo III “La Piscina”. Terrorismo de Estadio. Prisioneiros de guerra num
campo de esportes. Segunda edição ampliada. Página 73. Editorial Latinoamericana 2016. Pascale
Bonnefoy Miralles.
daqueles outros horrorizados. Toda vez que somos testemunhas de um depoimento
ou temos em frente um documento de arquivo, uma sorte de horror mobilizador
pega, mexe e lança a gente para o espaço, nos quebrando e deixando milhares de
cacos de horror que vão cravar cada corpo que se dispor a recebê-los, cada corpo
que quiser ser impactado e assim, compartilhar em boa parte, a nossa dor. É assim
como a memória funciona e é praticada. O horror provocado por certas situações,
ações ou histórias, esse horror que sentimos, não deveria nos deixar dormir
tranquilos, não deveria permitir que sigamos como se nada tivesse acontecido que
aqui não tem acontecido nada. Enquanto existam situações na humanidade que
provoquem horror, não podemos viver tranquilos, embora aqueles que sofrem o
horror não sejam parentes ou amigos nossos, é o nosso dever humano nos
horrorizarmos com a insensibilidade. O horror deve mobilizar e impulsionar o
cuidado da memória para jamais esquecer ou repetir as aberrações cometidas
contra a humanidade.

HORRORIZADXS: TRANSMISSORES DA HISTÓRIA

A Arte deve testemunhar seu tempo. A Arte de um país deve estar


comprometida com a história que as pessoas viveram e vivem. A Arte deve segurar
com uma mão o passado, e com a outra, segurar o presente, produzindo uma Arte
comprometida com aqueles que habitaram e habitarão esse país, tendo sempre
como base seus problemas, seus abusos, suas dores, suas injustiças, seus
horrores. A Arte deve funcionar como construtor e transmissor da memória, e
qualquer pessoa que se defina como Artista deve ser um horrorizado, um praticante
e militante que mexa na memória, se apoiando nela como experiência prática. A
prática artística deve ser entendida e reconhecida em seu poder de construtora de
memória. A arte e a Artista devem sublimar a memória e dar a conhecer o texto da
experiência, transformando-a numa obra de arte que “reflita um problema político,
mas com sentido artístico; que mostre os problemas sociais, políticos e ideológicos
de uma sociedade, mas desde o ponto de vista de um poeta”, citando a força das
palavras do documentarista chileno Patricio Guzmán.
A pesquisadora Ileana Diéguez insiste na necessidade de um artista que
dialogue de forma constante e incessante com seu tempo, produzindo um
pensamento cronotópico como seres humanos que somos, atravessados
diariamente pelo contexto e pela vida. Um artista é um pesquisador que deve se
situar no tempo e no espaço, se constituindo, como Diéguez propõe (2013), como
um cidadão-artista, que é “aquele que sabe que pode estar no lugar dos outros” 3.
Embora seja um outro tempo, embora não seja eu, embora não seja alguém que eu
conheço, o fato de me horrorizar com a experiencia que o outro viveu só tem sentido
sabendo que eu também pude ou poderia ter estado no mesmo lugar. O fato de
pensar outros corpos significa colocá-los no próprio corpo e também posicioná-los
na atualidade, significa pôr em frente outros corpos como lugares-tempo, na
necessidade de visibilizar algo que está se esquecendo, ou algo que está
acontecendo em outro espaço com outra pessoa, ou um abuso cometido no mesmo
instante, mas a uma distância de milhares de quilômetros. Trata-se de fazer um
trabalho de presença para evidenciar para outras e outros que não viveram nem
vivem essa situação, e ninguém lhes contou nem lhes contará o que todos preferem
silenciar, esfregando no rosto de muitas e muitos que acreditam que os horrores
não acontecem mais ou aqueles que argumentam que não é possível que tudo seja
tão macabro e maquiavélico. Ainda tem gente (e seguirá existindo) que não acredita,
que fará tudo o possível para negar e não ver toda possibilidade de ato de
desumanização, tudo a fim de não pôr em perigo seu pequeno espaço de conforto,
mesmo entendendo isto como indiferença, mesmo isto signifique fechar os olhos e
calar porque, no final, não se trata de mim nem dos meus.
Os Artistas devemos contar a História e as afeições de nossos países e não
aquela que os livros contam, mas a História das pessoas que sofrem os impactos
daquela outra grande História, o como a vivem, o como a resistem. Devemos nos
posicionar neste lugar, porque é o nosso ponto de vista e o nosso ponto de ação.
Porque nós não somos os que escrevemos a grande História e nossas vidas
cotidianas avançam muito distantes dela. Devemos testemunhar e subverter os
atos, devemos contribuir para melhorar a humanidade pensando no futuro, para que

3
Cuerpos sin duelo (Diéguez, 2013, p. 61)
outros não sofram o que nós sofremos e para que outros não vivam o que outros,
ainda mais distantes, viveram. É preciso que os Artistas habitemos os territórios da
memória e do esquecimento, percorrendo os caminhos da denúncia, o depoimento
e o documento, porque nossa missão é transformar e subverter as dores e as
feridas. Uma arte política, uma arte crítica deve evidenciar, expor e esfregar no
corpo de todos, o que sistematicamente tenta-se ocultar. Os artistas devemos voltar
uma e outra vez nos assuntos que ainda não foram resolvidos, nos fatos que
permanecem em silêncio e, oprimidos, devemos insistir em gritar e mostrar o que
deve ser denunciado. Trata-se de estabelecer um compromisso com a memória, o
que a história não diz é dito e corrigido pela arte. Como pessoas, carregamos nossa
história e a história dos mais próximos, e como artistas devemos ser transmissores
delas, não podemos deixar elas morrerem e somirem junto com seus protagonistas.
Os e as que fazemos Arte somos transmissores da história, e é assim como
devemos nos reconhecer. Toda oportunidade de estar com outro ser humano e
simplesmente conversar pode ser uma tribuna política e, como a própria Ileana
Diéguez diz, a arte é uma tribuna política, portanto a pessoa Artista é quem tem a
maior responsabilidade.

HORROR TRANSFORMADO: INSURREIÇÃO

Quando a documentarista Soledad Cortés pergunta ao comprometido


dramaturgo chileno Juan Radrigán “O que você construiu?” Ele responde “Eu não
tenho construído absolutamente nada, salvo as obras que escrevi. Isso é a única
coisa que eu posso dizer que construí”. Nossos corpos desaparecem com nossa
morte, se desintegram, não seremos nunca mais. Então, o que significa estar no
mundo? Ou melhor, o que fazer com nossa existência? O que acontecerá com as
próximas gerações que habitem um mundo que suprime o passado? Quem irá
contar os fatos que conformam a história da humanidade? O tempo presente não
existe. Ele se constitui a partir dos acontecimentos passados, do que aconteceu
ontem ou do que aconteceu um tempo atrás. Nosso tempo presente é influenciado
pelo passado e com o desejo de que tudo será melhor no futuro. Juan Radrigán
faleceu em 2016 Seu corpo não está mais, mas sua dramaturgia não tem nem terá
data de vencimento. Poderemos viver nossas vidas tranquilamente, nos adaptando
a todas as circunstâncias que se apresentam, nos importando somente com a
felicidade pessoal num egoísmo desmedido que se parece com a indiferença? Será
que estamos concordando manifestando uma ação que funcione como extensão de
nosso próprio corpo? A Arte deviera trabalhar assim, não concordando. Deslocando
o próprio horror e desconforto provocado no nosso corpo materializando-o como
tentáculos em diferentes formas, materiais, densidades, cores e volumes. Uma Arte
que dê conta dos horrores com os que cada sangue ferve, fisicalizando e
materializando-os numa criação. Se a capacidade de se horrorizar acaba para um
artista, sua vida também acaba. (ou pelo menos para ele ou a artista a quem falo
hoje). Se o desejo que conecta o passado com o futuro se suspende e chega a se
romper, não tem pesquisa nem criação possível. Devemos saber de que lado da
barricada queremos estar.

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