Você está na página 1de 129
Cet eSe ag eiaT od esr Celtel el M-TaZ ae) Prefacio Uuis Gracia Martin O NOVO DIREITO PENAL DAS FAMILIAS * O Principio da dignidade da pessoa humana como Clausula geral de protecao da personalidade e a protecdo da familia na Constituicao Federal e no Cddigo Civil Principios penais de garantia e a politica criminal relativa ETP EUS ohr- Ul eae Perla ele Act routs A familia no atual Cédigo Penal e criticas a forma de sua protecdo penal Quovo Dero PeNaL pas Famiuias 083 Assim, veja-se que o bem juridico “familia”, que ora 6 considerado para efeito da incriminagio de cerlos compor- tamentos, ou agravamento das penas aplicdveis em i a forma -se pa ici da mesma, serve Se ara beneficiar os s diante da clara prevaléncia do interesse estatal em se resguar- ‘dara familia, especialmente quando confrontada com outros ‘pens juridicos de menor relevancia'*?, como por exemplo, 0 patriménio. Resta assim demonstrado que a melhor forma de “se proteger a familia 6 privando-a da ingeréncia penal. 22a 4.2. DOS CRIMES CONTRA O CASAMENTO 4.2.1 0 CASAMENTO COMO BEM JUR{DICO-PENAL ESPECIFICO: E SUA REGULAGAO JURIDICA: CONCEITO, FORMAS E EVOLUGAO DA SUA TUTELA LEGAL O instituto juridico do casamento, heranga europeia legada pelos portugueses na colonizagéo - e que tem suas bases na formagao latina do Direito ocidental, cujo desenvolvimento e estrutura devemos aos romanos - sempre foi o veiculo de insergao dos casais no universo da legalidade. Trago fundamentalmente cat6lico, o casamento foi elevado a condigao de dogma religioso e de instituigao juridica tao profunda e marcante, em certos momentos, quanto o proprio Estado™. Modernamente, porém, diante da reestruturada for- magéo econdmico-social, 0 casamento, paulatinamente, transforma-se, Nota-se um distanciamento, pelas novas ge- Tages, da rigidez de conceitos, da previsibilidade da vida Se GAMA, Guilherme Galmon Nogueira da. Op. cit., p. 188. ™ CARVALHO, Dimetri Braga Soares. Direito de Famflia ¢ Direitos Humanos, Leme; EDIJUR, 2012, p. 69. Digtaload com CamSeanner son Faustino Rosa | Gisz a4 MENpEs pg Ca em comum, do formalismo e das tesponsabilidades Assim, diante das crescentes modificagées, 0 casament, tende a ter sua forga mitigada em face da sociedade, dandy ensejo as unides paralelas, modalidades alternativas's:, os casamento, como viga mestra da estrutura familiar, Tedese. nha-se para corresponder as expectativas dos novos casais, Tegais, Nesse passo, incumbe ao Direito, especialmente ag Direito Penal, conceber os bens juridicos “familia” ¢ “casa- mento” afastando-se do positivismo dogmiatico, na mesma medida em que deve aproximar-se da realidade fatica do meio social. Pois, apesar de tais valores advirem da Teligiao e também, como nos demonstra a histéria, Por interesses econémicos, incumbe a moderna Ciéncia do Direito tratar da familia e do casamento, esvaziando-se da confusao Esta- do-religiao e crime-pecado, buscando, ao contrario, uma ca- racterizagao mais sincera e palpitante da familia moderna™. Ademais disso, ©, casamento civil, assim como 0 Es- tado, é criagéo do homem para o homem, que o fez para regulamentar o convivio social e harménico, para permitir a formalizagao legal do matrimonio religioso preexistente, dando-lhe publicidade, £6 Publica. Logo, constata-se qu quando se criminaliza a bigamia, por exemplo, nao se esté & proteger o “casamento” como se observa pela sisteme lizagdo do Cédigo Penal (Titulo VII, Capitulo I - Dos ct mes contra o casamento), mas a-“fé ptiblica”, pois se tral de uma fraude, de um engodo, ao sistema de registros P” ° oo Para a codificagao, de um con eapat t ara a tarefa, bem como técnicos fre, lo Res mecessidades jutidicas de teat eeneo (vide BONA 1978, p, 1), Politica e Direito. 2. ed. Rio de Janeif: leis anterior, de maturidade p; Digtaload com CamSeanner OQ novo Dinero PENAL DAs FaMiuias 85 blicos, de um atentado a ce substituindo-se o verdadeiro za _das relages juridicas™, Quanto ao casamento, que para alguns é apenas um contrato solene®, ou ainda para outros, uma instituigao'® em razao da necessidade do reconhecimento de autoridade competente para sua realizacao, o ideal seria sim manter sua protegao, porém, através da tutela civel, do Direito de Familia, sem a intervengao penal, que ja realiza a —— a ge hee Uh ea salvaguarda da _ Salyepuarea Cae Nesta esteira, importa-nos relembrar duas notaveis definigdes de matriménio deixadas pelos romanos. Uma, dada por Modestino (D. 23, 2, fr. 1), em quem o casamento seria a uniao do homem e da mulher para a partilha de vida: a comunicagao do divino e do direito humano™, Outra,’ contida nas Instituigdes de Justiniano (1, 9, §1.°), fala assim: 0 casamento ou a uniao de um homem e uma mulher 6 como um recipiente personalizado por uma vida indivisivel"®, Ha, indubitavelmente, nessas definigées, algo de ele- vado e nobre, capaz de bem traduzir a santidade dos sen- timentos, que devem existir entre os que se conjugam pelo —EEEE ™ NORONHA. Edgard Magalhaes. Direito Penal. Sao Paulo: Saraiva, 1979, v. 4, p. 109-110. | ™ JOSSERAND, Louis. Derecho Civil. T. I, v. II. Buenos Aires: Bosch, 1952, p. 15; BEVILAQUA, Clovis. Direito de Familia. Campinas: Red Livros, 2001, p. 40. a : : "S TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 35; WELTER, Belmiro Pedro. Teoria tridimensional do Direito de Familia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 64; MADALENO, Rolf. Curso de direito de familia. Rio de Janeiro: Ne cana foemi ortium omnis vitae: |Nuptiae sunt conjuctio maris et foeminae, cons , ): divini et humani juris communicatio” (MODESTINO, Herenio, apud BEVILAQUA, Clovis. Op. cit., p. 45). Co © “Nuptiae sive ‘matrismenium est viri et mulieris conjunction, indi luam vitae consuetudinem continens” JUNIOR, José Cretella. Ins tutas do Imperador Justiniano. 2. ed. Sdo Paulo: Revista dos Tribu- Rais, 2005, p. 76). ~~ Digtaload com CamSeanner matriménio, alguma coisa que vibra. c IMO se fossem digg. cos solenes de poema antigo. Mas falta-lhes rigor ientificg para serem mantidas. Nao é somente para completar a vida dos conjuges e legalizar as relacoes que existe 0 casamen. to; é também para proteger a débil existéncia da prole, que dele ha de surgir, a qual exige desvelos assiduos e Prolon- gados de seus progenitores, a qual sucumbiria em sua fra- gilidade, se o amor materno nao fosse um verdadero culto, Sob essa perspectiva, romantica, porém em desacor. do com a atual realidade, Bevilaqua define casamento como um contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legalizando por ele suas relagdes sexuais, estabelecendo a mais estreita comunhio de vida e de interesses, e comprometendo-se a criar e edt- car a prole, que de ambos nascer. E assevera ainda, 0 autor do codex de 1916, que por ter a teligiao, por muito tempo, monopolizado a celebragao do casamento, por ter o cristia- nismo elevado este ato a categoria de sacramento, ainda hoje ha juristas, que se arreceiam de declard-lo um contrato™. Se de fato, 0 casamento for tido como um contralto, seré mais solene do que qualquer outro, pois envolve @ mais importante de todas as trans. goes humanas, e ¢ @ base de toda a Constituicado da sociedade civilizada. Ter4, Por isso, efeitos mais extensos, valor social maior, pois que legitima a familia e faz tecer-se uma rede extensissima 4 telagées, direitos e deveres'®®, , _2.4ue importa, independentemente de como iss0 s° dé ~ seja em decorréncia de uma “casamento-contrato” de uma uniao de fato ~ € a constituicéo da familia’, om Hegel 6 tida como a substancialidade imediata 40 & Ry UA, Cl “Idem, p.a7,° v0 UD, Henri . 1 Paris et Léon; vis. Op. cit, p. 46 one : MAZEAI 7 de Droit Civ * Montchrestien, 1985, P. ie eae Digtaload com CamSeanner a Q novo Direrro PENAL DAS FAMiLias 87 QO xovo Dinerro Mexap pasmamss pirito, determinando-se pela sensibilidade de que é uma, pelo amor, de tal modo que a disposigao de espirito corres- pondente é a consciéncia em si e para si e de nela existir como membro, nao como pessoa para si’. a _” Durante o periodo em que a economia doméstica con- centrava-se no meio rural, a familia possufa maior amplitude, abrangendo um numero maior de integrantes nas linhas retas e colateral, o que foi sendo reduzido paulatinamente com a migracao para os centros urbanos na busca de emprego na industria, em franca expansao, resumindo-se numericamen- te aos pais e filhos, ao mesmo tempo em que se estabelecia a ocupagao da familia restrita de pequenos espagos para a moradia exclusiva dos parentes em linha reta e em bastante proximidade de graus'”*. Ao tempo do Codigo Civil de 1916, a familia brasileira era essencialmente matrimonializada, s6 existindo em decor- réncia do casamento vilido e eficaz, sendo marginalizadas as demais constituiges de arranjos familiares que divergissem. Tal paradigma foi alterado a partir da Constituigao de 1988, que abriu o leque de padrées distintos de estruturas fami liares, passando a admitir-e a proteger estruturas familiares decorrentes da uniao estavel e 4 familia monocratica, pois 0 - Sn vinculo matrimonial deixou de ser-o-tnico fundamento da familia legitima, expandindo-se a fim de se adequar as novas. necessidades humanas’”. Nesse contexto, nos termos do art. 226, da Constitui- Gao, a entidade familiar amparada pelo Estado 6 a comuni- dade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, —— eee “HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Principios da filosofia do direito. n¥ad. Orlando Vitorino. Sao Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 149-150, MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. La sagrada familia: o critica de la wStitica critica, 3. ed. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1973, p. 217. ALENO, Rolf, Curso de direito de familia. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 28. Digtaload com CamSeanner podendo originar do casamento civil, da uniao estaye| § 3°) e da monoparentalidade (§ 4°), assegurando ainda 9 ic vre planejamento familiar do casal. A grande problematica decorre do fato de a Lei Maior permitir o livre planejamento e, simultaneamente, Testringi-lo a expresso “casal”, que remeto-nos 4 uniao composta de um homem e uma mulher, o que retrata um grave retrocesso, um paradoxo ao progresso atingido pelo Direito das Familias”, um fator legal que nao pode ser considerado apto a limitar o avanco da tutela dos anseios da humanidade, devendo ser salvaguardada, a dignidade da pessoa humana e, respeitado o livre desenvolvimento da personalidade de cada um dos integrantes da familia e, em especial, da instituigao familiar, independente de qual seja sua constituigao. Temos, portanto, que a fam{lia matrimonializada, pa- triarcal, hierarquizada, heteroparental, biolégica, institucio- nal, vista como unidade de produgao e de reprodugao cedeu lugar para uma famflia pluralizada, democratica, igualitéria, hetere-ou. homoparental, biolégica ou socioafetiva, co da com base ‘a afetividade ¢ no cardter instrumental Considerando que o nosso ordenamentojuridico construiu- se pautado sob os ideais libertarios do periodo iluminista e, em especial, da dignidade da pessoa humana, concebendo-se 0 “*homem” como o centro do universo, criador do Estado e d0 Direito, que existem tao somente para regular o convivio humano, © qual deveré, naturalmente, Por via consuetudinaria, ditar 0 titmo da evolugao e Teconstrugao do ordenamento jurfdico, d¢ acordo com suas necessidades e anseios. ide: ENNECCERU. = = fartin. TraladodeDerecho Civ, ae, TEODOR, Kipp: WOLFF Marth : {-4. Barcelona: Bosch, 1979, p. 11; MAZEAUD. Ose * Léon; MAZEAUD, Jean. Op. cil p. 711; JOSSERAND. Louis. vs FARIAS, CpEVILAQUA, Clovis, Op. elt, p. 40. fn Familias, 2. ed ane, Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 12. Digtaload com CamSeanner O novo Drrerro DAS Famitias 89 Sendo, portanto, inadmissivel, a prevaléncia do “procedimentalismo” exacerbado que limita aplicagao do Direito, restringindo o reconhecimento da instituigao familiar somente as hipoteses Previstas na constituigao, posto que nao é alcangavel pelo “homem-legislador” a regulamentacao e delimitagéo de todas as modalidades familiares possiveis de serem criadas, 0 que depende muito do meio social, do contexto histérico, das necessidades econdmicas, afetivas, _Materiais_e_morais de cada ser humano em face de seu cla fraterno. De tudo isso, tem o moderno Direito das Familias se ocupado, buscando atender da melhor forma possivel os interesses humanos, despido do carater punitivo e do estigma pertencentes a ingeréncia penal, que nesta esfera nao deve intervir. Pel menos, néo a pretexto de proteger a familia de seus proprios membros. eer a) Bigamia O tipo penal incriminador intitulado pelo legislador ordindrio como bigamia encontra-se descrito no art. 235, do Cédigo Penal, e descreve, essencialmente, a conduta ativa de contrair alguém, sendo casado, novo casamento, _ inctiminando-a com pena derecluséo de_2_a 6 anos, taractertzando-se como infracéo penal de elevado potencial olensivo, Historicamente, porém, tem-se que, jé em Roma, o dogma do casamento monogamico conduzia a ilicitude de Novo matriménio. Todavia, como mencionado ‘outrora, a bigamia fora tolerada durante 0 perioda republicano e no inicio do Império, mas nao a poligamia’”®. “°PRADO, Luiz Rogis. Curso do Direito Penal brasileira arte especial + artigos 121 a 249. 11. ed. Sao Paulo: Revista dos » 2013, v. 2 p.927, Digtaload com CamSeanner 90 Gerson Faustino Rosa | GiseLe Meno: Ainda na Antiguidade, Valeriano (258 dc) a celebragéo do duplo matriménio, apenando. com a infamia’”. Diocleciano (285 d. C.), por sua y, : incriminou a bigamia e deixou a fixagao da pena ao talants do magistrado, visando combater a poligamia que era corriqueiramente praticada em diversas Provincias do Império Romano’, Vedoy “@ somente ez, Jano perfodo medieval, confundia-se a bigamia ao adul- tério, exigindo-se a conjungao carnal para sua consumagio, em decorréncia da influencia Tomana, onde o presente delito denominava-se stuprum. Os prdticos, com estudos efetuados mesclando Direito e religiao, construiram diversos tipos de bigamia, sendo trés mais importantes, quais sejam, a bigamia verdadeira, a similitudindria e a interpretativa'”, A verdadeira é a bigamia como vem definida nas legis- lagoes, inclusive em nosso Codigo Penal; ja a similitudindria Por possuir contetido mais teligioso e moral, 6 considerada ligada a uma ordem sagrada ou contraida por meio de votos solenes de celibato, que dao ensejo a um contrato matrimo- nial. Entendia-se que os atos solenes e outros estados religio- pS eduivaliam a um matriménio com o Supremo Criador. A bigamia fra equiparada a um delito de carne, pecaminoso. A terceira forma de bigamia, a interpretativa, restava carac- terizada pelo casamento com mulher vitiva antes do prazo eal de impedimento, sendo assim consideradas em algumas legislagoes latino-americanas'®, Sempre alicer hee ee : cadas na ry i es esta beleciam pun eligiao, tais concepgor igdes Severissimas, equivalentes as de incest © PIERAN Parte especial Jes Henrique. Manual de Direito Penal Brasilel! * a 2B. 540; HUNG RES ia 361. Séo Paulo: Revists tos tat unais, 2007+ ™ DRADO. rt Regiy, ©, Nelson. Op.cit., p. 326, ih Fratado de Dizeite 5.0) BITENCOURT, Cezar Robe “aes P. cit., p, 927 Dir cit, p. 927; : oN ep 2a * Parte especial. 4. ed. Sao Paulo: Saraiv® x IGELL, José Hen “Idem, tbidem, °S Heatique, Op, cit., p. 540. Digtaload com CamSeanner Q novo Direrro PENAL Das Famitias at as de morte, e em razao da flagrante desproporgao, foram sendo gradativamente substituidas por penas como a perda de metade dos bens, o desterro, as marcas a ferro. Na Espa- nha, o Codigo Visigético, denominado Fuero Juzgo, punia a bigamia com a submissao do bigamo ao marido ofendido que podia dispor dos consortes como lhe aprouvesse. Ja as Siete Partidas, assim denominadas no século XIV, tidas tam- bém com uma “enciclopédia humanista”, aplicava a bigamia a pena de desterro e a perda dos bens, diferentemente do Fuero Real, que a punia somente com a pena pecuniaria™’. A Constitutio Criminalis Carolina (1532), em seu art. 121, que sancionava o presente delito com pena de morte, bem como a Bamberguense, art. 146, o Direito Palatinado de 1582, o Cédigo hamburgués de 1603, o bavaro de 1616, o prussiano de 1620 € o austriaco de 1656 continuavam exi- gindo a copula carnalis para a consumagao do crime. Nao era punido, todavia, aquele que contraisse matriménio com pessoa casada, estivesse ou nao de boa-fé". J o Direito Pe- nal Canénico cominava a bigamia pena de excomunhaéo™. Nesta esteira, o Codigo Penal Francés de 1791 pe- nalizava o delito de bigamia com priséo a ferros por 12 anos. Seguidamente, o Codigo Penal da era napoleénica, de 1810, apenava com trabalhos forgados 0 bigamo, bem como 0 oficial ptiblico que concorresse com a celebragao CUELO CALLON, Eugenio. Derecho Penal - Parte Especial. Barcelona: Editorial Bosch, 1975, p. 730. a ‘2 LISZT, Franz Von. Tratado de Direito Penal Alemao. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell Editores, 2003, t. II, p. 138, leciona que a primitiva Idade Média alema também no a tratava como crime especial e a punia como adultério ou rapto (Frauenstadt, Z., 10.2, 234). $6 as fontes posteriores como, por exemplo, o Direito municipal de Ripen de 1269 (Loning, Z.. 5°, 224, vide também Osenbriiggen, Alamannisches Strafrecht, 282, Knapp, Z., 12.*, 236) ow a malefizordnung tirolense de 1499, ¢ que fizeram mengao da bigamia como crime independent. *= PRADO, Luiz Regis. Op. ci ay p: 927. Digtaload com CamSeanner 2 Gerson Faustino Rosa GisELE MENnEs pg CARVALHg 9 do casamento. Desde entao, 2 crime de bigamia Passou g ser tido como auténomo, e nao mais besatiaa mera continua. gio do adultério, dispensando-se a conjuncao carnal parg gua configuragio. Considerou-se_entao, a bigamia como abuso de le legal do matrimonio. No Brasil, as Ordenagées Filipinas (1603) previam pena de morte para a bigamia’*’, enquanto que o Cédigo Criminal do Império (1830), inspirando-se no Cédigo Pe. nal Francés de 1810, cominava, em seu art. 249, a pena de priséo com trabalho e multa’, trazendo ao delito o nomen juris de polygamia. Nesta esteira, o Cédigo Penal Republi- cano (1890) punia a poligamia, em seu art. 283, com prisao celular de um a seis anos, responsabilizando como ciimpli- ce aquele que se une a pessoa casada sabendo da existéncia de matriménio anterior”, O atual Cédigo Penal, vigente desde 1940, retomou a nomenclatura anterior, inserindo a bigamia entre os HUNGRIA, Nelson, Op. 318-319; PIERANGELI, José Henrique. Op. cit., p. 540; PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p, 927; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. 4. ed. Sé0 apatle: Saraiva, 2013, v. 4, p. 222. quale XIX Do homem que casa com duas mulheres e da mulher qu? cusa.com dois maridos estabelecia que “todo homem que sendo cased fneatgide com huma mulher, e néo sendo o Matrimonio julgado Po ares list juizo da Igreja, se com outra casar, e se receber, a Tecekoe ("2 E esta mesma pena haja toda mulher que dous maridos lugar, ora ambos, ©asat pela sobredita maneira, o que tudo havets hum delles"°S © Matrimonios fossem invalidos per Direito, © “* Art. 249, Cédi ou mais veze. trabalho tempo”, ™ Att. 283, Cédi de uma vez, sem poe da Repiblica: “Contrahir casamento es ©u por morte do outer t@tior dissolvido por sentenga de nulida’:: anos. Paragrapho gare, co Uge: Pena de priséo celular por UM * Se & casado aquelle conc®: 5° @ Pessoa tiver prévio conheciment0 4°43, ®cumplicidade”. 1U°™ contrahir casamento, incorreré 125 P 2 Giiminal do lmpério:“Contrahir matrimonio seat" » sem ter dissolvido o primeiro. Penas de prisé0 Poruum a seis annos, e de multa correspondente 4 metade 2° Digtaload com CamSeanner O novo Dinero Penal pas Famitias 93 delitos contra 0 casamento, no Titulo VII, Capitulo I, mais precisamente no art. 235. Saliente-se, por derradeiro, que o Anteprojeto do “novo” Cédigo Penal’, de 2012, em votagao no Congresso Nacional, aboliu o Titulo VII, que tratava dos crimes contra a familia, nao fazendo qualquer mengao-a_tais modalidades, coadunando-se com a atual ‘politica criminal de tutelar a familia por searas diversas do Direito Penal, uma vez que a policia e a justiga penal nada fm a contribuir com o cla fraterno, que é perfeitamente regulamentavel pelo moderno Direito das Familias, que j4 trata dos impedimentos ao matrim6nio em seu art. 1.521. Modernamente, o conceito de bigamia indica o Tato de alguém, estando formalmente casado, convolar noyas niipcias", ou ainda, o fazer antes de ter sido o casamento anterior dissolvido, anulado ou tornado inexistente™®. To- davia, historicamente, a presente definigdo vai além para alcangar a conduta de quem, estando casado, contrair ca- samento varias vezes, ou seja, o conceito de bigamia abran- gia também a poligamia e essa construcdo aparece, como vimos, no Cédigo Criminal do Império. imos, no Codigo Criminal do Impéri Constata-se que o presente delito, para existir, depende dos usos e costumes Inoets, principelments ondese tem forte influéncia religiosa em defesa da monogamia. Conquanto a bigamia quase sempre apareca atrelada 4 motivagao sexual, nos momentos de anormalidade social ela decorre da desin- tegracao familiar, durante a ocupagao militar numa guerra, na imigragao etc., mas a bigamia nao parece ser um problema Se “*O Projeto de Lei (PLS 236) encontra-se disponivel, na integra, em: . Acesso em 04/ jun/2013. * SABINO JUNIOR, Vicente. Direito Penal, parte especial. Sao Paulo: Sugestées Literdrias S. A., 1967, v. 4, p. 1063; PIERANGELI, José wllentique. Op. cit., p. 541. : COSTA JUNIOR, Paulo José da. Op. cit., p. 770. Digtaload com CamSeanner Rosa | GiseLe M Gerson FAUSTINO PARVALHo, 94 tao grave que merece aintervengao do Direito Penal. 0 Tosso {ao z oe oe Fad Penal vigente, em seu tipo basico ou primério, cop. ceitua a bigamia como matriménio celebrado por quem, sen. do casado, contrai novas ntipcias. Pode-se afirmar, Portanto, sor a ineriminacao da bigamia.o.reflexo ea consequéncia da concepgio monogémica do-casamento : Obem{juridico protegido éa ordem juridica matrimonial, lastreada pelo casament Tonogamico™’, conforme afirma Magalhaes Noronha, para quem. “com a punigao da bigamiao ‘Cédigo Tutela a ordem Juridica matrimonial que caessentans casamento monogamico'”, que é a regra entre os paises em que vigora-a civilizagao crista™. F ; evidente que 0 interesse superior-ofendido com a agao incriminada é a organizagao da familia, no particular aspecto da ordem _juridica matrimonial”, Portanto, tutela o Direito Penal um objeto juridico que jé se encontra regulado no Cédigo Civil (Livro IV - Do Direito de Familia, Titulo I - Do Direito Pessoal, Subtitulo 1- Do casamento), com especial destaque para 0S impe- dimentos matrimoniais, descritos no art. 1521. Pode-se, oo ™ PIERANGELI, José Henrique. Op. ci 107 7 . Op. cit., p. 541. MANZINI, Vicenzo, ‘Trattato di diritto Tae italiano. Tarim: Editrice a 1950. v. 7, p. 635; CARVALHO, Gisele Mendes de; Pea ee Erika Mendes de; PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Aon ee 13 ed. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. f Cezar Rob, IGELI, José Henrique. Op. cit., p. 541; BITENCOUR™ Renate ho, OP cit, p. 222; MIRABETE, Julio Fabbrini FABBRY 5 CP. 27 ed [| de Direito Penal: parte especial. Arts. 235 @ 351 1 NORONHA nae: Atlas, 2013, v. 3, p. 04. vo, ya: zdgard Magalhdes. Direito Penal. Sao Paulo: $8 IGELI, José Henrique. Op. cit., p. 541. 80, 1 mae soll Ri do jane ee Ligbos dé Direito Penal, parte espe - 1.521, Nao pod se: 1984, v. 2, p. 92. sejao paromieeredem casar: I - og caceadonten com os descenden'” adotante com quer, (iat ou civil: IL- os afins em linha 7 Gye 9 foi do adotarter 91 COnjuge do adotado e 0 adotado OM as V'N'- 08 irméos, unilaterais ou bilaterais. ° Digtaload com CamSeanner Q Novo Diretro PENAL Das Famitias 95 pois, concluir que a tutela juridica se faz sobre a organiza- cao familiar e, muito especialmente, sobre a ordem juridica matrimonial = Em verdade, néo ha qualquer bem juridico-penal tutelado, mas apenas a razao de ser da incriminagio, / posto que a objetividade juridica especifica do crime de bigamia esté no status conjugal, que impée a pessoa casada o dever de nao convolar novas nupcias™. Por tais razoes. Jnlrigamo-nos diante da construcao da doutrina italiana pela necessidade de um “reforco” penal ao Direito Civil, uma vez que, nos dias atuais, a familia tem sido tutelada_ acontento pelo jus familiae, qué 6, indubitavelmente mais sensivel e proporcional aos anseios familiares", ensivel e proporcional aos anseios familiares. _ Como sujeitos do crime da bigamia prépria, prevista__ no art. 235, caput, tem-se crime proprio ou especial, uma vez que 86 pode ser praticado por pessoas casadas e a agao” ‘criminosa consiste na violagéo de um dever decorrente do status familiae. Jé na modalidade imprépria, em que 0 ———— ee ————— colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - 0 adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - 0 cénjuge sobrevivente com © condenado por homic{dio ou tentativa de homicfdio contra o seu consorte, (grifou-se) ih ; ™ FRISOLI, F. Paolo. Loggetto della tutela penali nei reati contro il matrimonio. Pola: Rocco, 1942, p. 26; COSTA JUNIOR, Paulo José da. Op. cit., p. 771, leciona que ter 0 casamento como a ratio legis da incriminagao é a orientagao preferivel. “* SOLER, Sebastian. Derecho Penal argentine. 5, ed, Buenos Altes: Tipografica Argentina, 1992, p. 401-402 alerta que, na Argentina, ao discutitse Ecmeee 2 elaboragao da lei penal (n.° 13.944) que ctiminalizava o descumprimento dos deveres de assisténcia, surgiram algumas reservas sobre a necessidade de usar a ameaca criminal para © cumprimento dos deveres, tradicionalmente, mantidos e See No campo civil, cujas violagGes acarretam somente consequéncias de outro cardter, _ “PRADO, Lutz Regis, Op. cit. p- 929 dispée que a doutrina italiana, com base no art. 556, do Cédigo Penal, denomina prépria a bigamia Quando 0 agente, casado, contrai novo matrimonio (crime prépri) )e imprépria quando alguém, no sendo casado, contrai casamen| Pessoa casada (crime comum). Digtaload com CamSeanner Gerson FausTINO Rosa | Gis! 96. impedimento existe 6 para um dos contraentes, conti en 235, se este conhece 0 obstaculo do outro g 1.2 + 239, sim contrai casamento tem-se um crime comum, po as dang, Mesmo . 1S Pode ser praticado por qualquer pessoa, seja homem ou mulher desde que solteiro, porém mais brandamente sancio com recluséo ou detengéo de um a trés anos (bigamis privilegiada)”™. Trata-se de delito bilateral Convergente, poi, reclama a intervengéo de duas pessoas, ainda que uma Seja inimputével ou nao tenha qualquer impedimento, mas saiba da proibigdo do outro, posto que, sendo a conduta individual, no seré aperfeigoada a figura penal”. KH Apesar da exigéncia da lei civil de que o casamento se realize entre pessoas de sexo diferentes*”, uma resolugio do Conselho Nacional de Justiga de maio de 2013 determinou que todos os cartérios do Brasil realizassem casamentos entre pessoas do mesmo sexo, resolugao esta fundada nas decisées da Acdo Declaratéria de Inconstitucionalidade n.° 4.277 e da Arguigao de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 132, de 05 de maio de 2011, oportunidade €m que, por unanimidade de votos, reconheceu-se a uniéo esti iwa;-dando interpretagao mais afpla 2 art oda Constituigao Federal, de modo a abrange! de entidade familiar também as unides ent? JUNI ado, nO conceito ITENC ; . COSTA R, Paulo jose tN (URE. Cezar Roberto. Op. cit. p- 222 Op. ci : i is, Op. cits P 928; PIERAN OP. cit., p. 771; PRADO, Luiz Regis, OP- de SOU A NGELL José Henrique. Op cit» Soe cet guile apt) 2 Penal comentado. 13, ed, Sao Paulo. Revs Thibunais, 2013, l te Nites: impotae’ GRECO, Rogério. Cédigo Penal: coment FABBRINE, Renata nts 2013, p. 768; MIRABETE, Julio Fabby Codigo pen MN. Op. cit, beet ” Celso. ts “Aa tenis P. 634; COSTA JUNIOR, Paulo)? it 7 ‘ I I A ne OP. St p. 541 7Resis. Op. cit,, p, 929; PIERANGH S N08 podem cage BO Civil: “G hi om e225 55 “ho aon aan me ” ®nquanto nao atingida a maiorid#! gida a Digtaload com CamSeanner novo Dirziro PeNAL DAS FaMiLias 97 Ere r—es — 2 essoas do mesmo sexo, com fulcro os fpios da liberdade, da igualdade e da proibigao de discriminagao. = Neste passo, ao contrario do que defende parte da . doutrina*”, 6 possivel, sim, que o delito seja cometido por pessoas do mesmo sexo, pois 0 tipo penal exige apenas que alguém, sendo casado, contraia novo casamento. Con: derando a atual licitude do casamento homossexual, caso " pessoas do mesmo sexo, sendo casadas, venham a contrair ‘ovo matriménio, estima-se que também restaré subsumi- da sua conduta no tipo penal do art. 235, do Cédigo Penal. Jéem relagao a Unido Estavel™, nao ha possibilidade de’ alguém que, convivendo em _uniao estdvel, cometer o delito de bigamia ao contrair casamento com _terceira pessoa, uma vez que nao se admite analogia in malam partem no Direito Penal. _ Umut en eens Segundo a doutrina, séo sujeitos passivos o Estado &, secundariamente, o cénjuge do primeiro casamento e 0 contraente do segundo, desde que de boa fé*’. Com a devida vénia, também discordamos do presente entendimento, uma vez que ninguém tem mais interesse na legitimidade da celebragéo do que o proprio individuo que o contrai. Quanto ao Estado, tem sempre o interesse em preservar ordem publica, as instituigdes e a ordem jurfdica, e tal we __ ™ PIERANGELI, José Henrique. Op. cit., p. 541; PRADO, Luiz Regis, Op. cit., p. 929, Ea Iniéo Estavel 6 a relagao de convivéncia duradoura ¢ estabelecida Com objetivo de constituicao familiar. Qualquer tentativa de se impor Maiores parametros objetivos para regular as relagdes nascidas do afeto, acabaria deixando & margem do manto legal um sem-niimero de sittagdes que constituem entidades familiares dignas de tutela (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Familias. 4° ed. Sio Paulo: ‘evista dos Tribunai: 7, p. 99. “PRADO, litle Rone oat, 4 928; PIERANGELI, José Henrique. Op. clt,, p. 541) NUCCI, Guilherme de SOUZA, Op. 1035; GRECO, Ro- 8ério. Op. cit., p. 768; MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Op. cit,, p. 04; DELMANTO, Celso... [et al]. Cédigo penal comenta- 4o. 7, ed. Rio de janeiro: Renovar, 2007, p. 627. Digan com CamSeanner 98 Gerson Faustino Rosa | Gistit Mees pp Lig interesse geral, quando violado, coloca: mK, cong sujeito passivo secundario, mas nunca primério, Asin, sustenta-se que sao sujeitos passivos tanto quem Contraj g matriménio com pessoa que desconhece ser casada quanto consorte do matriménio anterior”, Ao se admitir a colocagéo do Estado com primeira do delito de bigamia, estar-se-ia publiciz mais um instituto predominantemente do Direito subvertendo a razao de sua criagao. Esta é também a inter. pretagao que decorre da presente criminalizacao, onde » Estado, equivocadamente, vale-se da ingeréncia penal pata ‘tratar de um ato juridico do Direito de Fam cificamente de uum contrato 0 vitima ando de. Privado, de Familia, mais espe. Demais disso, nao pode ser considerado como sujeito Passivo o Estado porque, sendoo ente tutelar, 60 denominador comum na tutela de todos os crimes, Tampouco a familia Podera ser considerada como sujeito passivo do delito, embora possa, inegavelmente, ser ofendida pela conduta. Essa familia, que empresta o nome ao Titulo VII, do Cédigo Penal, é o bem juridico categorial da tutela penal, é 0 objeto comum, € nao o sujeito passivo, nem também o objeto juridico especifico da singular incriminagéo, que 6 0 casamento. Nao Se venha, outrossim, pretender afirmar que os sujeitos Passivos sao todos og membros integrantes da familia, m# Somente o cOnjuge que Contrai o matriménio com pessoa 14 desconhece Ser casada?®, trair” © tipo penal objetivo tem como verbo nuclear “CO » que no vernaculo significa contratar, ajustat, © 3; PENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit, p: 2222" © BEInAQUIOS: Poul Jose da’ Onan. p. 771.772. igi Por muito tempo, mais: OP. cit., p. 46, leciona que “tendo 2 r28,

Você também pode gostar