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Os dois mundos de Mia

Antes de nascer, Mia herdou um par de brincos de ouro em forma de bolinhas,


que ela iria gostar de morder quando crescesse.

Sua história começa em meio à efervescência política de 1964, em uma


pequena cidade plana com casas de madeira. Nossa personagem Mia, nasceu
de uma forma peculiar, com dificuldades, veio ao mundo pelas mãos de sua
avó materna. Sua cidade não seria menos interessante que sua trajetória de
vida.

Antes de sua chegada, sua cidade passou por um momento peculiar. Numa
manhã fresca, um pedaço da lua foi encontrado no meio de uma rua, tinha
dimensões de uma rocha que batia na cintura do pai de Mia. A cratera que se
formou não era grande, mas apresentava sinais de fogo, como se o fragmento
tivesse chegado incandescente. O acontecimento jamais foi esquecido pela
cidade.

A personalidade de Mia é um fator de suma importância, pois ela já nasceu de


olho no mundo, sua curiosidade reforçou ainda mais sua tendência às
investigações, uma Sherlock Holmes, que a motivava a ver tudo com lente de
aumento. Aos 2 anos de idade outro acontecimento mudaria a visão de mundo
de Mia, numa manhã de inverno ela, sua irmã e sua prima de idades próximas
encontraram uma gigantesca cratera na frente de sua casa, diziam que ali era a
entrada do inferno. Sua imaginação fértil viajou longe tentando desenhar na
cabeça como seria o proprietário daquele buraco profundo.

Mas sua visão foi interrompida quando sua mãe conseguiu segurá-la pelo
vestido, antes que ela escorregasse e mergulhasse no caldeirão do inferno.

Mia só soube o que era Natal aos 3 anos de idade quando ganhou uma
bola vermelha de listras brancas para dividir com suas irmãs, o que foi um
acontecimento, porque mudou seu cotidiano. Mia e suas irmãs acordavam
muito cedo e brincavam até o cair da noite, e inventavam todo tipo de
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brincadeira que tivesse a participação da bola.

Quando estava com seus 4 anos, ocorreram dois fatos bem marcantes que a
confundiram entre dois mundos: o real e o fictício. Desde então sua vida foi
permeada entre os dois universos. Mas retornando aos fatos ocorridos: o
primeiro foi durante uma grande tempestade que lavou casas e árvores,
telhados e roupas. As grandes avenidas tornaram-se corredeiras velozes com
fluxo de água que chegava ao quarto andar dos prédios. Ao final da
tempestade todos saíram às ruas para ver o cenário devastado após o evento,
as pessoas corriam apavoradas de um lado para o outro. Mia e suas irmãs
foram levadas pela mãe, movidas pela curiosidade para ver o que havia restado
da tempestade.

Uma amiga de sua mãe relatou que algo terrível havia ocorrido, um anjo havia
prendido uma mãe e seu filho dentro de um banheiro e os levou para o céu.
Ninguém sabia do paradeiro deles, e não se soube do desfecho, algo que
sempre incomodou Mia. Ela sabia o que era ficar presa dentro de um banheiro,
pois um dos castigos de sua mãe, foi prender ela e suas irmãs, durante uma
longa tarde dentro de um micro banheiro, porque foram passear do terreno
baldio ao lado de sua casa. Sua mãe era muito rígida, e isso fez com que Mia se
tornasse invisível para não ser alvo dela, aliás, Mia virou especialista em ser
invisível durante parte de sua vida. O mundo imaginário a salvava.

O segundo acontecimento se passou numa tarde lenta e quente de verão. A


vizinha de sua mãe saiu desesperada, e esbravejava muito sobre um fato
que estava acontecendo, pois, seu marido estava preso e ela tinha que
enfrentar tudo sozinha e agora mais do que nunca, precisava dele porque os
habitantes da parede queriam sair para o nosso mundo. Exatamente isso,
diante dos olhos de Mia tudo foi acontecendo, e ela assistia perplexa, a
parede ser aberta por uma mão que segurava uma marreta, abrindo um
buraco cada vez maior. Os habitantes da parede se revoltaram e resolveram
sair para desfrutar do nosso mundo, que eles achavam ter o mesmo direito. O
final do dia foi muito perturbador para Mia, já que o muro da vizinha era alto,
ela só conseguia ver parte do acontecimento, era o que sua pouca altura
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possibilitava.

Uma das distrações de Mia era desenhar, como não tinha papel qualquer outra
superfície servia, logo, desenhar na areia ou na terra era um passatempo de
longas horas. Aos poucos sua brincadeira ganhou tridimensionalidade e ela
passava muito tempo construindo suas cidades, esburacando a terra e
esculpindo inúmeros edifícios. Os micro habitantes pareciam gostar: besouros,
formigas, borboletas, siriris, minhocas e qualquer um que parecia
interessado em habitar sua cidade. Enquanto comia toneladas de amora, ela
acomodava os novos moradores.

Sua família era pobre, ela e suas irmãs Pina e Ceci compartilhavam uma
pequena cama. Elas nunca souberam o que era alguém contar uma estória
antes de dormir, até que sua tia Nita, além de carinhosa, era uma grande
contadora de estória e passou a lhes contar sobre os habitantes dos cafezais:
Mula-sem-cabeça, Saci-Pererê, lobisomem, a mulher de branco e outros.
Dormir na casa de sua tia era algo mágico e apavorante, pois o repertório em
grande parte eram estórias de terror, tragédia e manifestações da natureza. O
lobisomem era o seu terror, só de imaginar andar a noite no escuro e ele
espreitando-a como uma presa, ela se arrepiava, e sempre cuidava para não
dar as costas para o escuro.

Aos 5 anos de idade, Mia ganhou um vestido vermelho de bolinhas brancas -


ela era fissurada por bolinhas. Ela assistia sua mãe terminar as costurase
ajudava a cortar as linhas, então se entusiasmou e resolveu brincar de
costureira, no final ela tinha picatado todo o vestido.

Ainda nessa idade, ela viajou para conhecer sua avó materna, a Maria, para
isso ela fez uma longa viagem de trem. Quem a levou foi sua tímida e pequena
avó paterna, a Joaquina, que fez uma parada em sua casa. Mia adorou a casa,
tinha um mar de hortênsias lilases e roxas na frente da casa, que era branca
com portas cinza, e mantinha ainda no quintal, o galpão que guardavam a
carroça e o cavalo, que já não existiam há décadas.
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Mia estava muito ansiosa para conhecer sua avó Maria, diziam que ela era
muito bonita e tinha uma fé que movia montanhas. Maria era devota fervorosa
de Nossa Senhora de Aparecida. Aliás, seu nome, Mia é um diminutivo de
Maria, em homenagem à sua avó materna.

Na noite anterior à viagem que a levaria até sua avó, Mia sonhou que estava
em uma praia - que ela só conheceria aos 18 anos - e que do céu vinha Nossa
Senhora de Aparecida sentada em um trono dourado. Ela chegava voando e
assentava na praia com seu manto azul todo reluzente com brilhos diversos
provocados pela luz do sol. Quando Mia acordou acreditou que Nossa Senhora
era sua avó, e ao conhecê-la, teve a certeza de que havia encontrado sua
companheira. Mia viajou durante anos com Maria e conheceu cada
cidadezinha que a estrada de trem pudesse levar.

Sua diversão a partir dos 6 anos era desenhar personagens queusavam batom,
brinco, e ruge, como a banana e a vaquinha. Sua frustração na escola era tirar
nota baixa, tinha ataques de mau humor e se isolava até que uma nova
fantasia a aliviada de sua autocrítica. Nesse perído foi a escola e descobriu um
mundo mágico, e com ele as bordas dos cadernos que ela desenhava
incessantemente.

No trajeto da escola havia uma casa que todas as crianças ficavam curiosas e
paravam para ver o que se movia no quintal. Na calçada havia um mosaico
escrito bem grande “Atlante”. Depois de muito pesquisar, ela ficou sabendo
que era um homem que tinha uma sala de torturas.

Todos os dias ela parava diante do muro de tijolos vermelhos e olhava pelos
buracos. Na entrada tinha uma longa escadaria, e a casa ficava escondida entre
as árvores na parte mais alta. Um dia ela e as crianças fizeram mais uma
parada em frente a casa para observar se viam o homem das torturas. Ao
menor movimento todas saiam correndo e gritando de medo.

Numa manhã quando voltada da escola, seu coração quase saiu pela boca, ela
finalmente viu o habitante da casa de tijolos vermelhos. O homem era de baixa
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estatura, seus olhos eram azuis e ameaçadores, era muito alvo, careca e mais
parecia um halterofilista, com munhequeiras de couro.

Ela suportou identificá-lo por apenas uns instantes e logo tratou de fugir,
finalmente havia encontrado a figura tão ameaçadora, então ela passou outras
vezes na frente da casa, um pouco mais segura após ver o Atlante. Muitos anos
depois ela descobriu que ele era massagista, e ajudara em massagens para a
coluna.

Em sua adolescência Mia, que na realidade tinha uma vida tranquila em uma
família muito pobre, teve muitas privações, mas suas fantasias, a salvaram de
muitos momentos. Ela não tinha percepção que era pobre. Mas nessa nova
fase, a realidade se abateu sobre ela, trazendo a depressão. O que a salvava
eram os sonhos em um mundo paralelo. Mia foi depressiva até os 34 anos.

A realidade paralela...durante 2 longas décadas, os sonhos venceram a


realidade.

Em uma longa noite, em sonho, Mia viajava, alçando altos vôos, e com ela mais
duas crianças, suas funções era proteger um grande diamante ambicionado por
muitos. Suas perspectivas aéreas mostravam grandes plantações de flores e
verduras recortadas formando um grande patchwork com tonalidades de
verde salpicadas de cores. Após longo vôo, era necessário descansar e se
alimentar. Mia e as crianças entraram em um bar para beber leite, no meio da
refeição uma mulher entrou, tinha os olhos malignos que fizeram as crianças
sentirem o perigo. Ela estava acompanhada de soldados nazistas. A megera
vociferou ordens para que seu exército capturasse as crianças que alçaram
vôo. Lá embaixo um grande exército munido de metralhadoras, mirava nas
crianças que voavam com todas as suas forças para escapar do ataque.

Quando estavam no máximo que podiam voar encontraram uma alta muralha
que fizeram com que voassem mais alto para ultrapassá-la por cima. Ao
adentrar a muralha, não tinham mais forças e caírampara dentro. Tratava-se de
um orfanato no céu, a fortaleza era cercadae as crianças não puderam escapar,
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mas entre elas, uma ainda conseguia voar e então se despediu das outras duas
crianças prometendo que viria buscá-las um dia. Mas esse dia nunca chegou,
as crianças no orfanato foram encontradas por seus pais quando eram
adolescente e foram levadas para casa.

Passaram-se muitos anos sem que soubessem da outra criança que


desapareceu, e em um Natal depois da ceia, quando subiam as escadas da
casa, miravam a janela do castelo gótico. As crianças pararam no meio do
patamar da escada em frente a uma grande janela em vitral, que jogava um
colorido para dentro, iluminada pela luz da lua. Elas olhavam para o colorido e
conversavam sobre a saudade da criança que havia desaparecido ao buscar
ajuda. Antes que terminassem seus pensamentos, a enorme janela vitral se
espatifou, e quem atravessou foi um jovem que todos reconheceram ser a
criança perdida. Ele não havia perdido sua capacidade de voar e agora era
como um Peter Pan, mas se perdeu nas nuvens. Agora ele voltada para o lar
com muitas aventuras para contar e trouxe uma grande surpresa, o grande
diamante.

As crises de depressão levou Mia para uma experiência na escuridão aos 22


anos, e foi necessário a ajuda de uma psicóloga. Ela acordou num dia em que
não sabia se as pessoas planejavam o dia para viver ou se ele acontecia
acidentalmente, de forma espontânea. Tal confusão fez com que ela buscasse
incessantemente caminhos para continuar a viver – amenizar a realidade com
mais fantasia.

Uma característica de sua natureza foi nunca esperar para ver no que a
situação de perigo ia dar, e em seu mundo de fantasia ela tinha experiências de
se lançar em precipícios, mas nunca alcançar o fundo. Era comum ela entrar no
universo da fantasia lançando-se num longo pulo no espaço, uma forma de
encarar o perigo, em segurança. Em seu mundo, tudo era possível.

Mas sua percepção começou a mudar quando ela entrou na universidade de


biologia. Seu sonho era ser botânica, principalmente, desenhando espécies de
plantas e insetos, uma inspiração que ela teve ao conhecer o trabalho da
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grande desenhista botânica, Margaret Mee.

Após as sessões de terapia, Mia nunca mais seria a mesma, sentiu que
gradativamente se libertava do processo de depressão. Um dia teve um sonho
revelador que a libertava de seu passado. O cenário era um quarto com
móveis antigos, e ela se encontrava deitada em uma cama com dossel, as
paredes eram uma película translúcida como uma pele de ovo, que permitia
ver o movimento das pessoas passando do lado de fora. O piso era similar ao
cenário de uma vida anterior que ela achava que havia vivido. Mesmo com
paredes tão delicadas, ela ainda se sentia segura e do lado de fora, uma
agitação chamou sua atenção. Ao abrir a porta viu duas gangues se
preparando para um conflito, alguém gritou para que ela se recolhesse, pois ia
começar uma luta entre eles, chamada virginal. Diante do conflito, ela sentiu
que a luta não era mais dela, estava livre.

Quando chegou aos 32 anos, teve uma revelação. Sonhou que se encontrava
suspensa no universo diante dos planetas que se encontravam alinhados,
um vento desarrumava seus cabelos violentamente e um som grave preenchia
o espaço como um mantra “OOOmmmmm”, que ecoava sem interrupção. Ela
reencontraria com essa visão em uma visita a Índia.

Quando voltou da viagem sonhou com a “cidade dos homens e suas próteses”.
Ela desconfiava que esse sonho tinha relação com suas aulas de biologia, sobre
anatomia de plantas e insetos. No sonho Mia viajava com 2 crianças e eram
protegidos por várias pessoas em um carro aberto, e viajavam por várias
cidades desconhecidas em busca de esconderijo, porque estavam sendo
perseguidos. Seus companheiros eram habitantes da cidade dos homens com
próteses.

Era uma cidade esquisita e seu guia explicava que a moda naquela cidade era
subtrair pedaços do corpo em formas geométricas e queimar a carne e os
órgãos como se tivessem retirado um cubo perfeito no corpo. Cada habitante
tinha uma subtração em alguma parte do corpo, de tal forma que era
possível observar do outro lado através do buraco. Eles exibiam seus buracos,
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como se fosse um modelo de beleza bizarra.

O que mais espantou Mia foi um homem que no lugar da cabeça havia um
oratório com um santo dentro. Quando o homem passou por Mia e já estava
de costas, o santinho do oratório, saiu para olhar para trás. Seus olhos eram do
tamanho de um humano, grandes e ensangüentados ao redor, já que eram os
olhos originais do homem do oratório que foram transplantados para o santo.
Ela acordou chocada com o sonho inusitado, mas procurou não se envolver,
sua maturidade ajudou muito a jornada na idade adulta.

Mia partiu para novas viagens, se levando pelos sonhos, não existia roteiro,
tudo era possível de acontecer, bastava ela entrar em sono profundo para
ficar entre os dois mundos e então um deles se manifestava, em geral o dos
sonhos.

Na mesma semana outro sonho bizarro a assustou, com medo de um novo


processo depressivo. Era uma longa noite de neblina pesada, quando Mia
acordou em uma gigantesca cama, dentro de um ambiente luxuoso em meio a
uma festa iluminada com pouca luz, e ninguém percebeu sua presença. Ela
gostaria de se retirar do local e foi se esgueirando para ver como saia de lá.
Para sua surpresa, o local tinha vários andares, e um deles era uma cozinha
toda de madeira com muitas panelas e vapores.

Tudo se movia, e tinha um clima misterioso, para não dizer tenebroso, foi que
então Mia descobriu onde se encontrava. Ao chegar no topo do que parecia
uma torre, ela foi até a beira e então viu algo arrepiante. Na frente uma caveira
com longa capa e chicote na mão e parecia ter mais de 2 metros de altura e
puxava a grande torre, que era empurrada por um demônio de longos chifres.
Ao serem observados por Mia, olharam para o topo da torre e por pouco ela
não foi vista. Num determinado ponto da viagem a estrada transformou-se
numa curva pronunciada e fez com que a torre tombasse. Todos os viajantes se
acidentaram com a queda. Foi então que Mia observou melhor os habitantes
da torre, todos tinham partes do corpo substituídas , um hibridismo com partes
de animais. Uma mulher gritou pelo mestre, a caveira, e solicitou que ele a
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salvasse, seu joelho era uma prótese com cabeça de bode. Seu mestre a
observou e lhe prometeu salvar, então chamou seus cães de olhos vermelhos
para devorá-la.

Após esses sonhos assustadores, Mia sentiu que esse ciclo estava se
encerrando. Sonhos mais leves e sensíveis tomaram o lugar dos sonhos
sombrios e e ela teve dois sonhos imporantes, a grande concha e a sereia
presa.

A grande concha era deconcreto, e se equilibrava na ponta de um precipício.


Mia se aproximou e pensou em entrar na concha, quando ouvir uma voz
dizendo: “Todos vêem ao Highlander contar sua história, quem sabe eles
ouvem a sua”

Aos 40 anos, Mia teve um dos últimos sonhos, em que era uma sereia, que
ansiava experimentar outros mundos, e durante sua vida marinha, colecionou
tesouros para quando fosse viver em terras secas. Todos os dias, ela ficava no
fundo do mar, olhando seu tesouro em frente a uma barreira muito alta de
concreto que a separava de seu futuro, aguardando a hora de completar de
colher tudo que precisaria para viver na realidade.

Mia hoje é uma bióloga, especializada em botânica e desenvolve pesquisas


para serem aplicadas em biomimetismo por engenheiros, arquitetos e
designers, e seu hobby é pintar ilustrações de plantas e flores. Possui um
orquidário e mora em um apartamento pequeno, com muitas plantas e adora
cores derivadas da natureza e papéis de parede, como também coleção de
gravuras da fauna e da flora.

Sua vida continuou em sonhos cada vez mais realizáveis...Atualmente ela


reflete sobre sua jornada e conclui que, o que ela sonhou ser como mulher,
hoje ela acredita ser quem sempre desejou.

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