Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia e Política
Disciplina: Direito e Sociedade
Profa. Corinne Davis Rodrigues Aluno: Osvaldo Rosa Valente
Primeira Prova
Primeira Questão – 40%
1) Compare e contraste as teorias de Durkheim, Weber e Marx sobre o direito. Discuta
a aplicabilidade destas teorias para pesquisa sociológica do direito nos dias de hoje.
Marx, Durkheim e Weber possuem perspectivas diferentes acerca do direito. É preciso
dizer que nos dois primeiros não se tem escritos sistemáticos, mas apenas passagens em suas obras sobre o direito. Weber foi o único que dedicou um capítulo inteiro de seu Economia e Sociedade ao assunto, mas mesmo isso, apesar do grande número de páginas dedicadas ao assunto, é, considerando o resto de sua obra, residual. É preciso, portanto, dizer que nenhum deles teve na relação entre direito e sociedade o principal foco de suas reflexões. Comparar suas contribuições para o estudo sociológico do direito implica em comparar suas teorias acerca das sociedades modernas. Karl Marx assentou toda sua teoria social sobre uma perspectiva crítica. Foi inicialmente um crítico do hegelianismo ortodoxo em filosofia, foi um crítico daquilo que classificou como “socialismo utópico” francês e posteriormente um crítico da economia política clássica, que denominava de “economia política burguesa”. Esse tom crítico é o que marca suas breves referências explícitas ao direito. Mas, para se compreender sua posição em relação ao direito e sua relação com a sociedade, é necessário dois esclarecimentos prévios. O primeiro é a maneira como entende a estrutura das sociedades. Baseado na premissa de que originalmente as sociedades foram organizadas socialmente na forma do “comunismo primitivo”, isto é, na não existência das classes sociais ou de qualquer diferenciação interna que não a divisão do trabalho baseado no sexo, Marx identifica no surgimento da estratificação social, isto é, na divisão da sociedade em estratos ou classes sociais ou, o que é mesmo, numa relação diferenciada no que concerne a propriedade dos meios de produção o aparecimento da exploração entre os homens, no surgimento da política como forma específica de dominação do homem pelo homem. As sociedades, portanto, são marcadas por divisão interna, por esta contradição que é a produção socializada de sua subsistência e a apropriação diferencial daquilo que produzido. Essas formas de apropriação diferencial assumiu formas diferentes de acordo com os diferentes modos de produção que a humanidade conheceu em sua história. O segundo ponto é sua teoria da ideologia. Este está diretamente relacionado ao anterior. A questão aqui é como as relações sociais aparecem, ou seja, como são apreendidas pelos homens. Para Marx, a posição social, a sua relação com os meios de produção, deforma a sua percepção das relações sociais. Mais, tende a iludir o próprio ator na medida em que aquilo que é particular aparece justificado como geral ou universal. Os valores, portanto, presentes nas formas de concepção do social, deformam (como Marx ilustra através do imagem invertida em uma aparelho de fotografia) a percepção do ator. O que interessa aqui é que essa imagem invertida é apresentada como tendo valor geral e não particular, não como refletindo os interesses do ator. É assim que a ideologia é uma ilusão. Ilusão, diga-se, que tem uma função política muito específica. De posse destas duas premissas, pode-se, então, entender o que Marx diz a respeito do direito. Ele observa que o direito se apresenta como natural e universal. Pretende ser uma forma de normatizar as relações sociais de forma neutra, tratando todos os indivíduos de forma equânime. Trata a todos como indivíduos. O problema é que, para Marx, as sociedades modernas, ainda que testemunhem o surgimento do individualismo, são marcadas pelo surgimento das classes sociais. Ao privilegiar os indivíduos, o direito escamoteia a relação social básica que é entre classes sociais e não entre indivíduos. Estes são portadores de relações sociais que os determinam como tal, isto é, suas posições em relação uns aos outros. Assim, suas posições são assimétricas e essa assimetria se baseia na sua relação com os meios de produção. Tudo isso, argumenta ele, passa desapercebido ao direito. Segundo este, todos os homens são livres, dado que não há mais nenhum laço que vincule um diretamente ao outro como na relação escravista ou de servidão. Mas, Marx argumenta que os proletários são livres apenas no sentido de que são livres para vender sua força-de-trabalho. O vínculo de obrigatoriedade não se acha mais no vínculo direto, mas está abstratamente construído e validado na ilusão de liberdade individual. Daí porque o direito, como o Estado, não é a superação das clivagens sociais, mas a sua expressão. A superação aparente, a nivelação dos atores sociais a suas forma individuais, é apenas ideologia. Weber, como Durkheim, não foi contemporâneo de Marx. Como o sociólogo francês teve que dialogar com Marx em função da adoção pelos partidos social-democrata e comunista das idéias de Marx em seus programas políticos. Além disso, o marxismo serviu como discurso orientador de muitas das lutas operárias que marcaram o século XIX e a passagem deste para o século XX. Importante notar, contudo, que o diálogo de Weber com Marx foi mais intenso do que o diálogo de Durkheim com o pensador alemão. Estabelecido isto, em que pese o diálogo maior de Weber com Marx (tal diálogo foi, é bom frisar, mediado pelo debate com a social-democracia alemã e sua interpretação da teoria marxiana), sua teoria tem uma coloração própria. Esta coloração própria vem de um problema que lhe é particular. Enquanto Marx empreendeu um esforço de explicar a história da humanidade como um todo segundo a perspectiva da sucessão de modos de produção material alternando-se na história, Weber é bem menos ambicioso, pois estava ciente das dificuldades inerentes a tal empreendimento marxiano. Sua ambição é mais modesta: sempre se ocupou da singularidade da sociedade ocidental. Daí sua ênfase em um aspecto em particular que seria um elemento diferenciador do Ocidente em relação a outras sociedades: a crescente racionalização da esfera societal. O direito racional moderno que presente nos códigos legais mais diversos é apenas uma das expressões desta racionalização. Por racionalização Weber entendia, basicamente, aquilo que se designa como formalização. Tal formalização possui três grandes características. Em primeiro lugar, a estruturação sistemática de um corpus de proposições jurídicas claramente analisadas coloca as normas vigentes numa ordem visível e controlável. Em segundo lugar, a forma da lei abstrata e geral, não configurada para contextos particulares especiais, nem dirigida a destinatários determinados, confere ao sistema de direitos uma estrutura uniforme. E, em terceiro lugar, a vinculação da justiça e da administração à lei garante uma aplicação ponderada e conforme ao processo, bem como uma implementação confiável dessas leis (HABERMAS, Direito e sociedade, p.195-6). Mas, algo que chama atenção na longa passagem de Economia e Sociedade que Weber dedica ao estudo do direito é o seu início. Por que todas aquelas considerações acerca da distinção entre direito público e privado? A resposta quem nos dá (foi, pelo menos, onde fomos buscar) é Habermas em Direito e Democracia. Na verdade, Weber percebe a crescente materialização do direito formal na modernidade. Segundo Habermas, “Os processos de juridificação, típicos do atual Estado social, equivalem, de certa forma, à materialização do direito formal burguês”. Ainda segundo Habermas, tal materialização do direito formal ocorre quando, citando Weber, “com o despertar dos modernos problemas de classes, uma das partes interessadas no direito (a saber a classe operária) formula exigências materiais ao direito, enquanto a outra parte, formada pelos ideólogos do direito ... exige um direito social na base de postulados patéticos (‘justiça’, ‘dignidade humana’). Isso, porém, coloca basicamente em questão o formalismo do direito”. O par aqui exposto é basicamente político, informado pelos interesses sociais: a oposição entre “formal” e “material”. Está, então, colocada a base da análise weberiana. Contudo, pode-se argumentar facilmente que a oposição entre o “formal” e o “material” no direito é falaciosa. Na verdade, o formalismo é apenas uma forma de apresentação de certos interesses sociais, notadamente dos grupos dominantes. Neste sentido, temos apenas o “material” em qualquer circunstância. Weber, um observador sagaz e também leitor cuidadoso de Marx, acabou por sucumbir à ilusão presente no corpus legal. Durkheim está pouco interessado nas conexões entre direito e interesses políticos, algo que atravessa Marx e Weber. Mais interessado na coesão social, na moralidade das relações sociais, Durkheim deve ser entendido como alguém que discute com o pensamento conservador de sua época. Curiosamente, ele discute com o conservadorismo em seu próprio terreno: a moralidade. É sabido que o Século XIX foi sacudido por uma onda de acontecimentos políticos que deram bastante combustível ao conservadorismo que utilizou-se das agitações sociais para denunciar a própria sociedade que se estabelecia como carente de vínculos morais fortes. Bom mesmo era o passado, com suas posições sociais bem estabelecidas e sua vida agrária pacata. Durkheim rejeita tal posição afirmando que as sociedades modernas que surgiam e se consolidavam na Europa não careciam de moralidade. Apenas a moralidade havia mudado de forma ou, para ser mais exato, estava presente em outros âmbitos. É por isso que incorpora a discussão do direito à sua teoria e a casa com a análise da divisão social do trabalho. Nesta, percebe que uma sociedade para ser coesa não precisa ser de tamanho minúsculo com parca divisão do trabalho; as sociedades modernas estavam tão coesas quanto aquelas, apenas assentadas sobre uma divisão maior do trabalho. Mesmo sem se conhecerem, os homens dependiam uns dos outros. O fim das relações face-a-face não era o fim da solidariedade. O mesmo acontece com a moralidade. O recuo do direito punitivo não significava que os homens haviam desistido de regularem através de normas suas relações. Ao recuo do direito punitivo, característico das sociedades dominadas pela solidariedade mecânica, correspondia o avanço do direito restitutivo nas sociedades modernas, marcadas pela solidariedade orgânica. Tal forma de direito se incumbe de regular as relações nos mais variados âmbitos de relações sociais. Portanto, nada de caos social, como pregavam os conservadores; as sociedades modernas apenas MULTIPLICARAM as formas de regulação através de normas as relações entre os indivíduos. A moralidade ainda estava presente e atuante nas sociedades industriais. Não se sabe se isso confortou ou apaziguou os conservadores, sempre ávidos de leis duras e punições exemplares, mas valeu a Durkheim o rótulo de conservador pela esquerda liberal. 2b) Sobre a teoria do comportamento do direito, de Donald Black, elabore sob quais aspectos esta teoria pode ser considerada um teoria sociológica do direito? É possível explicar o direito sem incorporar o elemento normativo? Justifique a sua resposta.
Gostaria de começar a responder a partir da segunda pergunta, ou seja, a partir do
elemento normativo presente no direito. Pelo que foi dito acima acerca da teorização weberiana do direito moderno, pôde-se ver que é impossível separar o direito da questão normativa. Direito é um termo que carrega em si uma imensa dimensão normativa, se não por nada, apenas porque estabelece uma série de leis, normas e regras de comportamento que se pretendem válidas. Talvez a questão mais importante seja justamente essa: a validade da norma jurídica. Se se tomar como exemplo a teoria da jurisprudência sociológica de Roscoe Pound vê-se claramente, pelo menos no curto ensaio que foi objeto de discussão em sala de aula, que o que ele percebe é que existe um novo princípio jurídico que está tomando o lugar de outro na elaboração de novas regras. Assim, enquanto o antigo princípio normativo assentava-se no indivíduo, o que ele vê tornar-se “hegemônico” é o mais preocupado com a dimensão social da regra jurídica. Ora, um princípio é um valor, valor este que vai estar presente na própria estruturação da norma. A questão subseqüente é daí derivada. Ao se estudar o direito está-se inevitavelmente lidando com a questão normativa. Isso é um ponto que não deve ser discutido. Mas, somente porque se está lidando com algo claramente normativo, deve-se ter uma posição normativa, isto é, deve-se ter de antemão em mente o que o direito deveria ser? Esse é o dilema de Weber. Para ele, com todas as dificuldades que isso pode trazer, a resposta deve ser NÃO. Se o intuito do analista é verificar como as regras jurídicas funcionam, qual sua influência nas relações sociais, cabe ao analista manter um certo distanciamento do objeto. Só assim, e com alguma sorte, pode a análise verificar o que uma lei ou norma jurídica possui que pode ser objeto de crítica. Marx, por exemplo, age desta maneira. A postura de Donald Black pode ser resumida da seguinte forma. Sem tecer maiores comentários acerca da valorização implícita na norma jurídica, ele afirma que ela “se comporta”. Se ela “se comporta”, significa dizer que ela é uma variável dependente. No caso, ele afirma que ela varia conforme variam as condições sociais de sua existência. Esta afirmação genérica não está muito distante de outra afirmação tão genérica quanto, que diz que o direito é socialmente criado, isto é, depende da estrutura das relações sociais. Se esta é aceita como “sociológica” – como o é, amplamente –, não vejo porque as postulações de Donald Black não o seriam. Afinal, guardadas as devidas distâncias, elas dizem rigorosamente a mesma coisa. O problema de Black é não especificar o que entende por “mais direito”, ou seja, não qualificar o que está por trás do quantitativo. Pode-se dizer também, como crítica, que ele analisa apenas um direção da relação – a influência das relações sociais sobre o direito –, esquecendo-se que a relação é de mão dupla. Em suma, quantificar não significa ignorar a dimensão normativa do direito. Se por “mais direito” entender-se mais normas e regras, sem dúvida Black tem razão: os Estados modernos são particularmente generosos no que tange a normatização das relações sociais. A questão é que este é apenas o ponto de partida. 3b) Roberto Mangabeira Unger e Boaventura de Souza Santos são críticos, cada um a seu modo, do formalismo jurídico. Escolhendo um entre os dois autores, discuta a crítica proposta por ele.
Uma das dificuldades do estudo sociológico do direito é conciliar aquilo que é
propriamente a perspectiva sociológica do direito com aquilo que os estudos jurídicos reconhecem como tal. No fundo a questão é a conciliação entre juristas e sociólogos. De alguma forma, ambos os campos do conhecimento debruçam-se sobre os mesmos fenômenos: as relações sociais mediadas por normas. A questão que gera maior debate entre os campos de saber é justamente a referente a o que se deve entender por direito. Um jurista, ainda que reconheça a origem social das normas jurídicas, tende a reconhecer o direito como aquilo que se acha codificado (Kelsen é o melhor exemplo dessa postura). Não se deve estranhar tal posição, pois a atuação de advogados, juízes e das escolas de direito tem nas leis, códigos, e normas formalizadas a matéria de sua atuação. A jurisprudência sociológica de Roscoe Pound é um bom exemplo disso. Para um sociólogo, contudo, as normas e sanções sociais não se esgotam naquelas formalizadas no Direito Positivo. Este último é apenas uma das formas assumidas pelas normas que regulam as relações sociais. Na crítica que faz a Pound, Alan Hunt lembra justamente isso. Se se analisar as relações sociais do ponto de vista do controle social, o direito é apenas uma das formas assumidas por tal controle. O que diferenciou a forma sociológica de acessar o controle social foi sua maior ênfase nas maneiras informais de tal controle. Note-se: Pound iniciou sua teoria por volta do início do século XX. Já então os sociólogos privilegiavam as maneiras informais de controle social. Tais ênfases diferenciadas explicam em parte a dificuldade de diálogo entre juristas e sociólogos. Tendo isso em mente, algo que pertence ao senso comum da sociologia, pode-se, então, dar a devida dimensão ao trabalho de Santos acerca dos “modos de produção do direito”. O sociólogo português parte da percepção de que o direito (entendido aqui no sentido estrito dado a este termo pelos advogados) não é a única forma de normatização das relações sociais; que existe uma multiplicidade de formas de poder nas sociedades. As explicações e pesquisas sobre tal fenômeno na sociologia são muitas e diversas. Santos propõe, finalmente, sua própria forma de explicação teórica para isso: existe na sociedade capitalista quatro modos de produção de poder que, embora articulados, guardam entre si uma autonomia estrutural. Por outro lado, nas sociedades capitalistas modernas existem quatro modos de produção de direito que, embora estruturalmente autônomos, encontram-se articulados. Se entendo bem, a postulação desses “quatro modos de produção” do direito foi a forma encontrada por Santos para superar a separação e conseqüente reificação, existente na teoria, dos espaços público e privado. De fato, uma parte importante da justificação de sua teoria é seu desconforto com a separação do público e do privado como campos antitéticos. Assim, o espaço público é visto tradicionalmente como o campo onde se situam o direito e a política; em contraste, o espaço privado é o campo onde se situam as relações contratuais (em oposição à lei, que é mais impessoal) e a econômica (local dos interesses privados, em oposição à política que seria menos localizada ou centrada no indivíduo). A questão crítica aqui, segundo Santos, é que o campo público não é o único espaço onde se produzem normas e regras; que a política não é prerrogativa do âmbito estatal. Numa fábrica, por exemplo, existe tanto normas, como controle, punição, etc., isto é, fenômenos usualmente lembrados como estatais. Assim, a perfeita dicotomia se rompe. Mas, há algo mais importante: o Estado, como local de regras e de direitos, segundo Santos, não seria possível se não estivesse apoiado nessa ampla gama de locais onde também se produz o direito. Dito isto, Santos também estipula que além de possuírem dimensões internas múltiplas, estas esferas ou “modos de produção” do direito se relacionam de forma complexa. Ademais, estipula uma qualificação adicional, amparado nas teorias da dependência: tais relações variam segundo a centralidade ou não dos Estados no jogo das relações internacionais. Essencialmente, nos países centrais as dinâmicas internas são preponderantes, dada a força da sociedade civil. Em contraste, os países periféricos a dinâmica de criação de esferas de direito é mais suscetível às influências externas, isto é, advindas das relações internacionais. Criticando as formulações de Foucault, Santos lança a seguinte questão: se o poder está em todo lugar, nele não estaria em lugar nenhum? Em suma, ele não se perderia como objeto passível de investigação? Bom, talvez possamos dizer o mesmo quanto as suas próprias formulações: se o direito é produzido em vários âmbitos da sociedade, não corremos o risco de não ter um objeto de investigação claramente investigado? Pois, obviamente que se pode expandir os tais quatro “modos de produção” do direito para os mais variados âmbitos de relações sociais. O que há de normativo numa relação face-a- face? Basta ler Goffman para se saber que há muito de normativo num contexto tão “simples” como uma interação de dois atores. A resposta de Santos é, assim nos parece, francamente insatisfatória. Seu quadro pode ser levado ao infinito e, mesmo assim, de nada serviria. A questão é, em suma, a seguinte: todo e qualquer âmbito normativo pode receber o rótulo de “âmbito de produção de direito”?