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Arianna Hu ngton: “A privação de sono é uma epidemia

global”
15 Janeiro 2017  765 

Ana Cristina Marques

O sono como mercadoria a ser explorada, a sua privação


como caminho para o sucesso profissional. O novo livro de
Arianna Huffington vai convencê-lo a dormir mais e a
dormir bem, pela sua saúde.
Abril de 2007. Arianna Huffington, uma das mulheres mais bem-
sucedidas nos Estados Unidos da América e a fundadora do jornal
online The Huffington Post, recuperava a consciência depois de ter
desmaiado, sem aviso, em pleno escritório. O corpo não aguentou mais
as noites sem dormir e o cansaço a que estava sujeito a bem do sucesso
profissional. Huffington, então com 56 anos, acordou numa poça de
sangue depois de, na queda, ter partido o maxilar. Assim começou uma
nova etapa para aquela que já chegou a ser considerada uma das 100
personalidades mais influentes do mundo, e uma das mulheres mais
poderosas da atualidade, pela Forbes.

O valente susto despertou-a para as fragilidades do corpo e da mente,


pelo que a partir de 2007 Arianna começou a dedicar-se cada vez mais
ao equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, que é continuamente
ameaçado nas sociedades modernas em que vivemos. Exemplo dessa
preocupação é o bestseller norte-americano A Revolução do Sono, que
acaba de ser traduzido para português. No livro, a autora cita inúmeros
estudos científicos que revelam a importância de dormir bem, mas
apresenta também os perigos dos comprimidos para dormir e os
problemas de saúde associados à privação de sono, condição em que
não se dorme o suficiente para o organismo recuperar.

Em entrevista por e-mail ao Observador, Huffington explica qual o seu


ritual de sono, tece críticas às sociedades que olham para a privação de
sono como parte do caminho para alcançar o sucesso profissional e
admite que é “particularmente difícil ir contra uma cultura
predominante que ainda mantém, num formato coletivo, estes delírios
perigosos sobre o sono”.
O livro está à venda desde o dia 12 de janeiro por 17,50€, numa edição Matéria-prima.

Comecemos pelo início: abril de 2007 foi o seu ponto de


viragem, quando desmaiou e acordou numa poça de sangue.
Como era Arianna Huffington antes dessa data e como é hoje?
Antes disso eu era uma daquelas pessoas que acreditava na nossa ilusão
coletiva de que o burnout é necessário para o sucesso. Acreditava que o
[jornal] Huffington tinha sido bem-sucedido devido ao trabalho em
excesso e à privação de sono. Hoje sou uma pessoa que percebe que
qualquer sucesso que tive a sorte de alcançar foi apesar — e não por
causa — do excesso de trabalho e do burnout. Agora sou uma pessoa
que percebe que somos mais produtivos, mais criativos, mais presentes
e tomamos [melhores] decisões quando damos prioridade ao nosso
bem-estar. E, claro, isso é o que a ciência mostra claramente.

O que é o "burnout"
O burnout pode ser entendido como um estado de exaustão emocional,
sem que haja qualquer sentimento de realização pro ssional. É conhecido
também como a síndrome de exaustão pro ssional.

O livro parece uma ode ao sono. Tem algum ritual antes de ir


dormir? E quando o despertador toca, carrega no snooze?
Não uso o botão snooze — se temos uma vontade imensa de carregar no
snooze quando o despertador toca, isso é um sinal de que não estamos a
dormir o suficiente. Mas sim, tenho um ritual antes de ir dormir, uma
coisa que toda a gente deveria ter, porque [o ritual] diz ao corpo e à
mente que é hora de começar a dizer adeus ao dia e preparar-se para
dormir.

Todos têm um ritual diferente. Eu começo por desligar todos os meus


aparelhos eletrónicos e, gentilmente, escolto-os para fora do meu
quarto. Depois, tomo um banho quente com uma vela por perto — um
banho que eu prolongo se me estiver a sentir ansiosa ou se estiver
preocupada com alguma coisa. Já não durmo com as minhas roupas de
treino (isso manda mensagens contraditórias aos nossos cérebros), mas
tenho pijamas, camisas de noite e t-shirts para dormir. Às vezes bebo
uma chávena de chá de camomila ou de lavanda se quero uma coisa
quente e reconfortante antes de me deitar. Adoro ler livros reais e
físicos, sobretudo poesia, romances e livros que não têm nada que ver
com o trabalho.
"Antes eu era uma daquelas pessoas que acreditava na nossa
ilusão coletiva de que o burnout é necessário para o sucesso.
Agora sou uma pessoa que percebe que somos mais produtivos,
mais criativos e mais presentes quando damos prioridade ao
nosso bem-estar." 

No livro escreve que existe um nível de cansaço tão grande


que, por vezes, as pessoas acabam por não notar que estão
cansadas. Como assim? Antes de 2007 era uma dessas
pessoas?
Eu era definitivamente uma dessas pessoas antes de 2007. Quando tive
um colapso não tive qualquer aviso — sabia que estava cansada, mas
não sabia que estava prestes a desmaiar. Estar-se cansado e sem dormir
diminui grandemente todas as nossas funções cognitivas — a tomada de
decisões, o nosso julgamento e a capacidade de nos ligarmos aos outros.
A maior parte das vezes não sabemos que estamos cansados. É por isso
que não devemos esperar por um colapso para fazer mudanças nas
nossas vidas.

Na App Store da Apple há milhares de aplicações associadas


ao ato de dormir. No Google há milhões de resultados quando
se procura pela mesma palavra. Resumindo: procuramos
ajuda para dormir através das mesmas ferramentas do
mundo moderno que, muitas vezes, nos limitam as horas
dedicadas ao sono. Não é irónico?
É sim, e a tecnologia é definitivamente um dos motores da nossa cultura
moderna de burnout e excesso de trabalho. O ritmo de vida e as
mudanças que as tecnologias ditam são difíceis, impossíveis até, de
acompanhar. Mas a tecnologia também permitiu avanços incríveis — é
claro que não vamos voltar atrás. Não ter tecnologia não é a resposta. A
resposta é ter melhor tecnologia, tecnologia que nos permite controlar a
tecnologia em vez de ser esta a controlar-nos. Agora há muitas startups
que usam a tecnologia para nos ajudar a ter uma relação mais saudável
com a tecnologia. Essa é uma das próxima fronteiras em tech —
ferramentas, aplicações e produtos que nos ajudam a proteger e cuidar
do que é realmente humano.

Não dormir horas suficientes é hoje encarado como uma


forma de alcançar o sucesso. Quando é que começámos a pôr
a carreira acima da nossa saúde e porquê?
No mundo antigo, o sono era reverenciado e venerado através de
tradições, culturas e religiões. Mas isto mudou drasticamente com a
Revolução Industrial, quando a luz artificial permitiu que a noite fosse
colonizada e a mecanização permitiu que as nossas horas de sono
fossem rentabilizadas. Assim, o sono tornou-se mais uma mercadoria a
ser explorada — não foi apenas desvalorizado, como também
ativamente desprezado e visto enquanto tempo de ociosidade durante o
qual não se trabalhava. Hoje sabemos, através da ciência, que se
realmente queremos pôr a nossa carreira em primeiro lugar, é no ato de
dormir — por causa dos seus efeitos na performance e na produtividade
— que devemos começar.

"No mundo antigo, o sono era venerado através de tradições,


culturas e religiões. Mas isto mudou drasticamente com a
Revolução Industrial, quando a luz arti cial permitiu que a noite
fosse colonizada e a mecanização permitiu que as nossas horas
de sono fossem rentabilizadas."

As horas a mais passadas no local de trabalho, mesmo que


isso signifique menos tempo para dormir, ainda são muito
valorizadas e associadas à produtividade. Mas não é bem
assim: o presentismo e o absentismo são bem reais. Alguma
vez assistiu a isso no jornal que ajudou a fundar? E que tipo
de preocupações chegou a ter com a higiene do sono dos seus
colaboradores?
Sim, a privação do sono — por causa do presentismo e do absentismo —
é um grande problema no mundo do trabalho, que custa milhares de
milhões de dólares todos os anos e em todo o mundo. E sim, dirigir uma
redação, ou trabalhar numa, é um desafio para o sono. As notícias,
claro, nunca param, pelo que havia definitivamente a tentação de os
editores e jornalistas tentarem replicar o ciclo de 24 horas das notícias.
Fizemos muito [na redação do Huffington Post] para tentar evitar o
burnout. Primeiro, deixámos claro que não era esperado que ninguém
consultasse o e-mail de trabalho depois do horário laboral e durante o
fim de semana (a não ser que essas fossem horas de trabalho). E todos
tinham, pelo menos, três semanas de férias, coisa que era altamente
encorajada. E também instalámos duas salas para sestas na nossa
redação. Mas a chave é estruturar os incentivos da maneira correta —
deixando muito claro que andar por aí esgotado e exausto, sem fazer
intervalos para descansar e recarregar, não é forma de progredir no
trabalho.

Porque resolveu deixar o The Huffington Post?


Depois do meu colapso por exaustão em 2007, fiz algumas mudanças na
minha vida e fiquei cada vez mais interessada em burnout, stress e sono.
Isso levou-me a escrever os meus livros, Thrive e A Revolução do Sono.
E à medida que viajava pelo mundo para falar deles, fiquei espantada
com a resposta que tive. A todo o lado onde ia, as pessoas aproximavam-
se e contavam sempre a mesma coisa: como estavam esgotadas e como
sentiam que já não conseguiam dar conta das exigências das suas vidas,
do trabalho e das tecnologias. Percebi que tinha de alertar para estes
problemas e fazer algo sobre eles. Então, fundei a Thrive Global [uma
plataforma sobre bem-estar e produtividade, criada em 2016] para
ajudar as pessoas a fazerem as mudanças de que precisam para dar
prioridade ao bem-estar e serem melhores nos seus trabalhos.
Em 2016, Hu ngton criou a Thrive Global, uma plataforma sobre bem-estar e produtividade. © Divulgação

Dos adultos para os menores, o que acontece a uma criança


que não dorme o suficiente? Que tipo de cuidados devem ter
os pais?
Dormir é obviamente uma grande questão para as crianças. Os seus
cérebros desenvolvem-se rapidamente — habilidades linguísticas,
motoras e cognitivas –, e dormir é extremamente importante neste
processo. A falta de horas de sono nas crianças pode naturalmente levar
ao mesmo conjunto de problemas de saúde que nos atingem. A rotina é
muito importante para as crianças, tal como é para nós. Mas se um pai
está a fazer todas as coisas certas — um quarto escuro e tranquilo, uma
rotina consistente antes de ir dormir, etc. — e ainda assim a criança não
dorme, então será importante falar com um pediatra.

A privação de sono está associada a ansiedade, stress,


depressão e/ou esgotamento. Isto já não é novidade e pode
ser considerada informação repetida. Então, na sua opinião,
porque é que as pessoas não mudam de comportamento?
É muito difícil [fazê-lo] no nosso mundo moderno, devido à maneira
como as exigências do trabalho aumentaram a par e passo com a
tecnologia e à forma como isso nos permitiu estar conectados ao nosso
trabalho 24 horas e sete dias por semana. Mas é particularmente difícil
ir contra uma cultura predominante que ainda mantém, num formato
coletivo, estes delírios perigosos sobre o sono. É por isso que temos de
mudar toda esta cultura de burnout, na qual a privação do sono é
celebrada e considerada um sinal de dedicação de uma pessoa ao
trabalho, ao invés de ela cuidar de si própria.

Vamos assustar os leitores: o que de pior pode acontecer


quando está em causa a privação de sono?
Bem, o pior que pode acontecer é a morte. Não só porque a privação
prolongada de sono pode ser, em si, fatal, mas também porque dormir
está implicado em muitas doenças, do cancro às diabetes, passando
pelas doenças cardíacas. Também há o perigo da condução sonolenta,
que é responsável por milhares de mortes todos os anos.

"Temos de mudar toda esta cultura de burnout, na qual a


privação do sono é celebrada e considerada um sinal de
dedicação de uma pessoa ao trabalho."

Há toda uma indústria à volta da privação de sono e, no livro,


dedica um capítulo inteiro ao tema. Como olha para os
chamados “comprimidos para dormir” que, no livro, diz
terem tantos e perigosos efeitos secundários, e como acha que
estes deveriam realmente chamar-se?
Eles devem ser encarados com muito mais ceticismo. Ajudas para
dormir podem ser muito perigosas e não deviam ser usadas como uma
solução a longo-prazo para a higiene diária do sono. Todas elas vêm
com grandes e extensos efeitos secundários, e há também uma miríade
de problemas de saúde que podem colocar-nos em risco quando estas
são usadas a longo-prazo.

A higiene do sono está em vias de extinção? Estamos perante


uma epidemia?
É definitivamente uma epidemia global. Felizmente também estamos na
idade de ouro da ciência do sono, que está a mostrar, estudo após
estudo, os benefícios claros em todas as partes das nossas vidas de
dormir adequadamente. Cada vez mais as empresas estão a aperceber-
se disso, que a sua saúde está ligada à saúde e bem-estar dos seus
colaboradores. Isto está a acontecer globalmente, mas não rápido o
suficiente. É isso o que a Thrive Global quer fazer, acelerar esta
mudança global.

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