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23 HISTORIA SOCIAL DA CRIANGA E DA FAMILIA Ou quelque maisre que tu serves, Fay te tu pouls que tu dsseres La grace :Tamour de ton mattre ‘Afin que tw puisees mist exre Quand it sera temps et mésir ‘Mais peine d scavoir bon mestier Car pour ta vie pratiquer Tout tom cocur } dis appliqer. En se faisant ta poureas este [Et devenir de valet maistre Et te pourra fire sertr Et prs et homeurdesserdr EE acquéri finalement e'tom dime le saurement.* Assim, 0 servico doméstico se confundia com a aprendizagem, como uma forma muito comum de educaglo. A crianga aprendia pela pratica, e essa pratica ndo parava nos limites de uma profissio, ainda mais porque na época nil havia (e por muito tempo ainda néo hhaveria) limites entre a profissio ¢ a vida particular; a participacio na vida profissional - expresso bastante anacrOnica, aliés ~ acarre- tava a participaco na vida privada, com a qual se confundia aquela.. Era através do servigo doméstico que o mestre transmitia a uma ¢fianca, nao a0 seu filho, mas ao filho de outro homem, a bagagem de conhecimentos, a experiencia prética ¢ o valor humano que pudes- se possuir. ‘Assim, toda a educaglo se fazia através da aprendizagem, © dava-se a essa nogio um sentido muito mais amplo do que o que ela adquiriu mais tarde. As pessoas nfo conservavam as proprias crian- {gas em casa: enviavam-nas a outras familias, com ou sem contrato, para que com elas morassem ¢ comecassem suas vidas, ou, nesse novo ambiente, aprendessem as maneiras de um cavaleiro ou um off- ‘Para bem servo, / Ese quiteres merecer seu amor, / Deves deixar tods a tua vonta- de / Para servi teu meste de bom grado, / Se serves a um mestre que tena mulher / Borpvese, senorita ou senhora, 7 Doves sempre guardar sua honra. / E se sevires ‘um eletige ou padre, / Cuidado para no seres um criado-amo.../ Se fres secretir fio, / Deves sempre guardar os segredos.../ Se servtes a um juiz ou a um advogado, / ‘No contes nenhum easo novo, /E, se porveatura te aconteoer / Servires a um Duque, Principe ou Conde, / Marqués, Baro ou Viseonde, / Ou outro seahor de terras, / [Nido invents impostos ¢subsidios /E no tomes para ti os bens do povo.../ Seservi- fest um fidalgo'na guerra, / Nao roubes ninguém.../ Esempre, em qualquer casa / ‘Ou aqualquer mestrea quem trvas,/ Faz, se pudercs, por mereosr/ A graga co amor de teu mestres/ fim de que posas ser mesire / Quando chegar 0 tempo, ] Mas esfor~ te para aprender um bom oft, / Pos, para praica ta vid, / Deves aplicarncla odo 0 teu coragho. / Assim farendo, paderds ser | E te tomar, de etado, mesire, | E poderis te fazer servi / E merecer prémios ehonras, / E finalmente obter / A salva: Ho de twa alma” (N. do T), DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA 29 cio, ou mesmo para que freqiientassem uma escola e aprendessem as Jetras latinas. Essa aprendizagem era um habito difundido em todas as condigées sociais. Apontamos acima uma ambigiidade entre 0 ‘riado subalterno e 0 empregado de nivel mais elevado, dentro da mesma nogdo de servigo doméstico. Uma ambigGidade semelhante txistia entre a crianga ~ ou o rapazinho ~ eo servidor. As coletaneas {nglesas de poemas didaticos que ensinavam a cortesia aos servidores se intitulavam Babees Books. A palavra valet significava um menino ‘equeno, e Lufs XIII crianga, numa explosio de afeicio, diria que Zostaria muito de ser “o pequeno valet do papai”. Na lingua francesa dos séculos XVI ¢ XVII, a palavra garcon designava a0 mesmo tem- po um rapazinho novo ¢ um jovem servidor doméstico: foi conserva- a para interpelar os empregados que servem num restaurante, Mas mesmo quando, a partir dos séculos XV-XVI, comegou-se a distin- guir melhor dentro do servigo doméstico os servicos subalternos dos Oficios mais nobres, o fervico da mesa continuou a ser tarefa dos fi- thos de famtlia e no dos empregados pagos. Para parecer bem edu- ‘eado, ndo bastava como hoje saber comportar-se & mesa: era preciso também saber servir & mesa. O servigo da mesa até o século XVIII ‘ocupou um lugar considerivel nos manuais de civilidads e nos trata~ ddos de boas maneiras: € o assunto de um capitulo inteiro do manual de ivilidade crista de J.-B. de La Salle, um dos livros mais populares do século XVII. Tratava-se de uma sobrevivencia do tempo em que to- dios os servigos domésticos eram realizados indiferentemente pelas ceriangas a quem chamaremos aprendizes, ¢ por empregados pagos, provavelmente muito jovens também. A distingio entre essas duas talegorias fez-se muito progressivamente, O servidor era uma erian- ‘¢a, uma crianga grande, quer estivesse colocada em casa alheia por tum periodo limitado a fim de partithar da vida familiar ¢ assim se ini- car na vida adulta, quer nao tivesse esperanga de algum dia passar “de criado a mestre™, pela obscuridade de sua origem. Nao havia lugar para a escola nessa transmissio através da aprendizagem direta de uma geracio a outra, De fato,a escola, a es- tcola latina, que se destinava apenas aos clérigos, acs latinéfones, ‘aparece como um caso isolado, reservado a uma categoria muito par- ticular, E-a escola era na realidade uma excocdo, ¢ 0 fato de mais tarde la ter-se estendido a toda a sociedade nio justifica deserever através dela a educacdo medieval: seria considerar a excegio como a regra. A egra comum a todos era a aprendizagem. Mesmo os clérigos que: tram enviados a escola muitas vezes eram confiados - como 0s Ou- {ros aprendizes ~ a um clérigo, um padre, as vezes a um prelado a. {quem passavam a servi. O servico fazia tdo parte da educa¢ao de um lérigo quanto a escola, No caso dos estudantes muito pobres, ele foi 230 HISTORIA SOCIAL DA CRIANCA E DA FAMILIA substituido pelas bolsas dos colégios: vimos que essas fundagbes fo- ram a origem dos colégios do Ancien Régime. Houve casos em que a aprendizagem perdeu seu carter empiri- co ¢ assumiu uma forma mais pedagogica. Um exemplo curioso de ensino técnico oriundo da aprendizagem tradicional ¢ fornecido pelo ‘Manuel du Veneur. Sto descritas af verdadeiras escolas de caca, na corte de Gaston Phoebus, onde se ensinava “maneiras ¢ condigSes que devia ter aquele que desejava aprender a ser bom cacador”. Esse manuscrito do século XV € ilustrado com belissimas miniaturas. Uma delas representa uma verdadeira aula: o mestre, um nobre (a julgar pelo traje), esté com a mao direita erguida ¢ 0 dedo indicador levantado — um gesto que serve para pontuar o discurso. Com a mio esquerda, ele agita um bastio, o sinal indubitdvel da autoridade ma- gistral, 0 instrumento de corregdo. Trés alunos, meninos ainda pe- uenos, esto lendo os grandes rolos que seguram com as mos ¢ de- vem aprender de cor: uma escola como outra qualquer. Ao fundo, al- guns velhos cacadores observam. Uma cena semelhante representa “Como se deve soprar a trompa”. Eram coisas que se aprendiam com a pratica, como a equitacio, as armas ¢ as ma- neiras dos cavaleiros. £ possivel que alguns tipos de ensino técnico, como’o da escrita, se tenham originado de uma aprendizagem jé or- ganizada e escolatizada. Contudo, esses casos foram excepcionais. De modo geral, a transmissio do conhecimento de uma geracdo a outra era garantida pela participacdo familiar das criangas na vida dos adultos. Assim se cexplica essa mistura de criangas ¢ adultos que tantas vezes observ: mos ao longo deste estudo, até mesmo nas classes dos colégios, onde seria de esperar, ao contério, uma distribuigéo mais homogénea das idades, Mas ndo se tinha a idéia dessa segregacio das criancas, a que estamos Uo habituados. As cenas da vida quotidiana constantemen- te reuniam criancas ¢ adultos ocupados com seus oficios como por exemplo, o pequeno aprenciz que prepara as cores do pintor ‘, ou a série de gravuras dos oficios de Stradan, que nos mostra criangas em ateliés com companheiros mais velhos. O mesmo acontecia nos exér- citos. Conhecemos casos desoldados de 14 anos! Mas 0 pequeno jem que leva 2 manopla do Duque de Lesdiguidres *,e 0s que levam 0 capacete de Adolf de Wignacourt na tela de Caravaggio que se en- contra no Louvre, ou o do General del Vastone, no grande Ticiano do museu do Prado, também n: muito mais velhos: sua cabega 5 "L'école des vencurs, Ms. Bibiothéque Nationa. 6 Conrad Manuel, muscu d Bera T Museu de Grenoble DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA 21 bate abaixo do ombro de seus senhores. Em suma, em toda a parte ‘onde se trabalhava, ¢ também em toda a parte onde se jogava ou brin- ‘cava, mesmo nas tavernas makafamadas, as criangas se misturavam aos adultos. Dessa mancira elas aprendiam a viver, através do conta- to de cada dia. Os agrupament correspondiam a divisdes verticais que reuniam classes deidade diferentes, como esses misicos das pinturas de concertos de cdmara, que funcionam tanto como re- tratos de familia quanto como clegorias das idades da vida, pois red- nem criancas, adultos e velhos, Nessas condigées, a crianga desde muito cedo escapava A sua prépria familia, mesmo que voltasse a cla mais tarde, depois de adul ta, © que nem sempre acontecia. A familia nfo podia portanto, nessa época, alimentar um sentimento existencial profundo entre pais ¢ fi- thos. isso no significava que os pais no amassem seus filhos: cles se ‘ocupavam de suas criangas meros por elas mesmas, pelo apego que Thes tinham, do que pela contribuicdo que essas criangas podiam tr zer & obra comum, ao estabelecimento da familia. A familia era um: realidade moral e social, mais do que sentimental, No caso de fami{- lias muito pobres, ela néo correspondia a nada além da instalacio material do casal no seio de um meio mais amplo, a aldeia, a fazenda, © patio ou a “casa” dos amos dos senhores, onde esses pobres pas- savam mais tempo do que em sua prépria casa (As vezes nem ao me- nos tinham uma casa, eram vagabundos sem eira nem beira, verda- deiros mendigos). Nos meios mais ricos, a familia se confundia com a prosperidade do patriménio, a honra do nome. A familia quase nio existia sentimentalmente entre os pobres, ¢ quando havia riqueza ¢ ambigo, o sentimento se inspirava no mesmo sentimento provocado pelas antigas relagdes de linhagem, A partir do século XY, as realidades © os sentimentos da familia se transformariam: uma revolugdo profunda ¢ lenta, mal percebida tanto pelos contemporaneos como pelos historiadores, e dificil de re- conhecer. E, no entanto, o fatoessencial é bastante evidente: a exten- sio da freqiiéncia escolar. Vimos que na Idade Média a educacdo das. criangas era garantida pela aprendizagem junto aos adultos, e que, a partir de sete anos, as criangas viviam com uma outra familia que nndo a sua. Dessa época em diante, ao contrario, a educacdo passou a ser fornecida cada vez mais pela escola. A escola deixou de ser reser- vada aos clérigos para se tornar o instrumento normal da iniciaco social, da passagem do estado da infancia ao do adulto. J4 vimos ‘como isso se deu. Essa evolugio correspondeu a uma necessidade nova de rigor moral da parte dos educadores, a uma preocupacdo de isolar a juventude do mundo sujo dos adultos para manté-la na ino- 232, HISTORIA SOCIAL DA CRIANGA E DA FAMILIA céncia primitiva, a um desejo de treiné-la para melhor resistir as ten- tagdes dos adultos. Mas ela correspondeu também a uma preocupa~ do dos pais de vigiar seus filhos mais de perto, de ficar mais perto cies e de no abandoné-los mais, mesmo temporariamente, aos cul- dados de uma outra familia. A substituigdo da aprendizagem pela es- cola exprime também uma aproximagdo da famflia e das criangas, do sentimento da familia e do sentimento da infancia, outrora separa dos. A familia concentrou-se em torno da crianga. Esta nfo ficou po- +rém desde o inicio junto com seus pais: deixava-os para ir a uma esco- la distante, embora no século XVIT se discutissem as vantagens de se ‘mandar a crianga para o colégio e muitos defendessem a maior efica- cia de uma educagio em casa, com um preceptor. Mas 0 afastamento do ‘escolar no tinha 0 mesmo ‘cariter © ndo durava tanto quanto a se ago do aprendiz. A crianca geralmente nao era interna no colé- ‘num pensionato particular ou na casa do mestre, Nos . traziam-lhe dinheiro ¢ provisées. O laco entre o escolar sua familia se estreitara: segundo os didlogos de Cordier, era mes- ‘mo necessdria a intervenco dos mestres para evitar visitas muito fre- ‘qlentes & familia, visitas projetadas gracas & cumplicidade das mies. Algumas erianigas mais ricas nfo salam de casa sozinhas; eram acom- panhadas de um preceptor, um estudante mais velho, ou de um cria- do, quase sempre seu irmao de leite. Os tratados de educacdo do sé- culo XVII insistem nos deveres dos pais relativos & escotha do colé- gio e do preceptor, ¢ 4 supervisio dos estudos, & repeticdo das ligSes, quando a crianga vinha dormir em casa. O clima sentimental era ago- ra completamente diferente, mais préximo do nosso, como se a fami- ja moderna tivesse nascido ao mesmo tempo que a escola, ou, a0 ‘menos, que o hibito geral de educar as criancas na escol De qualquer mancira, 0 afastamento que 0 pequeno nimero de colégios tornava inevitivel nfo seria tolerado por muito tempo pelos pais. O esforco dos pais, secundados pelos magistrados urbanos, no sentido de multiplicar as escolas.a fim de aproximé-las das familias, € um sinal digno de nota. No inicio do século XVII, como mostrou o Pe, de Dainville', crlou-se uma rede muito densa de instituigées es- colares de importincia diversa. Em torno de um colégio com a série completa de classes, estabelecia-se um sistema concéntrico formado por alguns poucos colégios de Humanidades (sem classe de filosofia) ede um maior niimero de escolas latinas (com apenas algumas clas- ses de gramatica). As escolas latinas forneciam alunos para as classes superiores dos colégios de Humanidades ¢ dos colégios com a série 1 P. de Daiuville, “Effectif des colleges”, Populations, 1955, pp. 455-483, DA FAMILIA MEQIEVAL A FAMILIA MODERNA BB completa de classes. Alguns contempordneos inquictaram-se com essa proliferagio das escolas. Ela correspondia ao mesmo tempo a essa necessidade de educacdo tedrica, que substitula as antigas for- ‘mas priticas de aprendizagem, e a0 desejo dos pais de nao afastar muito as criangas, de manté-las perto o mais tempo possivel. Esse fe- némeno comprova unta transformacio considerdvel da familia: esta se concentrou na crianga, e sua vida confundiu-se com as relagdes cada vez mais sentimentais dos pais ¢ dos filhos. Nao serd surpresa para nds descobrir que esse fendmeno situa-se no mesmo periodo em {que vimos emergir e desenvolver-se uma iconografia da familia em tomo do casal e das criangas. B verdade que essa escolarizagao, tao chela de conseyténcias para a formagio do sentimento familiar, nio foi imediatamente ge- neralizada, a0 contrario. Ela ndo afetou uma vasta parcela da popu- facio infantil, que continuou a ser edueada segundo as antigas priti- cas de aprendizagem. Antes de mais nada, havia as meninas, Com ex- tcecdo de algumas, que eram enviadas as “pequenas escolas” ou a conventos, a maioria era educada em casa, ou também na casa de ou- tras pessoas, uma parenta ou vizinha. A extensio da escolaridade as meninas nio se difundiria antes do século XVIII c inicio do XIX. Es- Forgos como os de M"™* de Maintenon e de Fénelon teriam um valor exemplar. Durante muito tempo, as meninas seriam educadas pela Pritica e pelo costume, mais do que pela escola, ¢ muitas vezes em casas alheias. No caso dos meninos, a escolarizacio estendeu-se primeiro 4 ca~ mada média da hierarquia social. A alta nobreza ¢ os artesios per- ‘maneceram ambos figis 3 antiga aprendizagem, fornecendo pajens 0s grandes senhores e aprendizes aos diferentes artesios. No mundo artesanal e operdtio, a aprendizagem subsistiria até nossos dias. As viagens A Itilia e & Alemanha dos jovens nobres no fim de seus estu- dos ligavam-se também & antiga tradicZo: eles iam para cortes ou ca- sas estranhas para ai aprender as linguas, as boas manciras ¢ 0s ¢s- portes da cavalaria, Esse costume caiu em desuso no século XVI Substitiido pelas Academias: outro exemplo dessa substituicik educacio pratica por uma instrugdo mais especializada e mais tebri- {As sobrevivéncias da antiga aprendizagem nas duas extremida des da escala social nao impediram seu declinio: a escola venceu, através da ampliagdo dos efetivos, do aumento do mimero de unida des escolares e de sua autoridade moral. Nossa civilizacio modesna, de base escolar, foi entio definitivamente estabelecida, O tempo x consolidaria, prolongando e estendendo a escolaridade. 234 HISTORIA SOCIAL DA CRIANCA EDA FAMILIA Os problemas morais da familia apareceram entio sob uma luz nova. Isso fica evidente no caso do antigo costume que permitia be- neficiar apenas um dos filhos em detrimento dos irmaos, em geral 0 filho mais velho. Tudo indica * que esse costume se difundiu no sécu- lo XIII, para evitar 0 perigoso esfacelamento de um patriménio cuja unidade ndo estava mais protegida pelas praticas de propriedade conjunta e solidariedade de linhagem, mas, ao contrario, era ameaga- da por uma maior mobilidade da riqueza. O privilégio do filho, bene- rimogenitura ou pela escolha dos pais, foi a base da sociedade familiar do fim da Idade Média até o sécuio XVII, mas no mais durante o século XVIII. De fato, a partir da segunda meta- de do século XVII, 05 moralistas educadores contestaram a legitimi dade dessa pritica, que, em sua opinido, prejudicava a eqUlidade, re- um sentimento novo de igualdade de direito & afeicio miliar, ¢ era acompanhada de uma utilizacio profana dos benefici eclesisticos ~ esses moralistas eram também reformatéores religio- sos. Um capitulo do tratado de Varet De l'éducation des enfants, ublicado em 1666, trata da “igualdade que se deve manter entre as criancas *”. “Ha uma outra desordem que se introduziu entre os fiis e que ndo fere menos a igualdade que os pais e as macs devem a seus filhos. Essa desordem se resume no fato de os pais pensarem apenas no estabelecimento daqueles que, pela condicdo de seu nascimento ‘0u pelas qualidades de sua pessoa, Ihes agradam mais.” (Eles thes * gradavam" porque serviam melhor ao futuro da familia. Trata-se da concepcdo de uma familia como uma sociedade independente do sen- ‘timento pessoal, como uma “‘casa”.) “As pessoas temem que, se di direm igualmente seus bens entre seus filhos, no possam aumentar como queriam o brilho ¢ a gléria da familia. O filho mais velho ndo poderia nem possuir nem manter os encargos ¢ os empregos que os pais Ihe tentam obter se seus irmaos e irmis tivessem as mesmas van- tagens que ele. € preciso, portanto, pd-los em condicdes de ndo po- der disputar esse direito com o mais velho. E preciso envié-los aos claustros contra sua vontade e sacrificé-los logo aos interesses daque- le que se destina a0 mundo e vaidade”. € curioso notar que a indi nagio provocada pelas falsas vocagdes ¢ os privilégios do filho mais velho nao esta mais presente quando se trata do casamento: ninguém pensava em contestar o poder dos pais nessa questio. texto citado acima exprime uma opinido categérica, Em suas Régles de l'éducation des enfants ", Coustel traduz, a0 contrério, um 9G. Duby. op. cit. 10 Varet, De Péducation des enfants, 1661 M1 Coustel, Régles de éducation des enfants, 1687 DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA. 235 certo embaraco, ¢ prefere cercar-se de todo 0 tipo de precaucdes pat condenar uma prética antiga ¢ difundida, ¢ que parecia ligada a per- trantncla da secedade funy Ele admite ques pas tenharn Pre feréncias: “Nao é que os pais facam mal em amar mais aqueles de seus filhos que so mais virtuosos ou t#m mais boss qualidades que ‘0s outros. Mas digo que pode ser perigoso manifestar de forma mui- to gritante essa distingdo ¢ essa preferéncia”. © abade Goussault, em seu Portrait d'un honnéte homme de 1692", & mais veemente: “Hé nfo apenas vaidade em se doar a me- Ihor parte dos bens ao fitho mais velho da familia, para manté-lo sempre no luxo ¢ ctemizar seu nome (sentimos aqui perfeitamente a ‘oposicao entre a familia-casa ¢ a familia sentimental moderna); ha mesmo injustiga. Que fizeram os mais mogos para serem tratados as- sim?” “Ha pessoas que, a fim de estabelecer alguns de seus filhos ‘num nivel superior a seus préprios meios, sacrificam 08 outros ¢ 08 encerram em mosteiros sem consulté-los a respeito © sem examinar se tém uma vocagio real. Os pais nio amam igualmente seus filhos ¢ introduzem diferengas onde a natureza no quis fazé-lo.” Apesar de sua convicgio, Goussault admite ainda, como uma concessdo ao sen- so comum, que 08 pais “possam ter de fato mais amor por alguns de seus filhos", mas “esse amor € um fogo que eles devem manter oculto sob as cinzas” Assistimos aqui ao inicio de um sentimento que resultaria na igualdade do cédigo civil, ¢ que, como sabemos, jé havia penetrado ‘nos costumes no fim do século XVIII. Os esforcos para restabelecer 08 privilégios do mais velho no inicio do séeulo XIX chocaram-se contra uma repugndincia invencivel da opinifo pablica: muito poucos cchefes de familia, mesmo nobres, utilizaram 0 direito que Ihes era re- conhecido pela lei de beneficiar apenas um dos fithos. Fourcassié cita uma carta de Villéle em que este se lamenta desse insucesso de sua politica, ¢ profetiza o fim da familia ®. Na realidade, esse respeito pela igualdade entre os filhos de uma familia é uma prova de um mo- ‘vimento gradual da familia-casa em diregdo & familia sentimental modema. Tendia-se agora a atribuir & afeicio dos pais ¢ dos filhos, sem divida tio antiga quanto o préprio mundo, um valor novo: pas- sou-se a basear na afeicio toda a realidade familiar. Os tebricos do inicio do século XIX, entre os quais Villéle, consideravam essa base demasiado fragil eles preferiam a concepeao de uma “casa ‘uma verdadeira empresa independente dos sentimentos particulares: haviam compreendido também que 0 sentimento da infancia estava 12 Goussault, Portrait d'un honnéte homme, 1692. 13.5 Foureasst, Ville, 1954 236 HISTORIA SOCIAL DA CRIANGA E.DA FAMILIA na origem desse novo espirito familiar, do qual suspeitavam. Por essa azo, tentaram restaurar o direito da primogenitura, derrubando as- sim toda a tradigdo dos moralistas religiosos do Ancien Régime. _ Observaremos aqui que 0 sentimento de igualdade entre as criangas péde desenvolver-se num novo clima afetivo e moral gracas uma intimidade maior entre pais ¢ filhos. Parece-nos indicado comparar essas observagSes com um fend- ‘meno cuja novidade e sentido moral foram sublinhados num proces- $0 de 1677" Toleravacse ent o casamento dos meses, mas cont ‘nuava.se a proibir aos mestres casados o exercicio de cargos universi Lirios. Assim, em 1677, um professor casado foi cleto decano da Tri bo de Paris. O candidato derrotado, o escrivao Du Boulay, apelou, ‘© caso foi entregue a0 Consetho Privado. O advogado de Du Boulay apresentou numa meméria as razbes que se teriam para manter 0 ce- libato dos professores. Os mestres tinham o hébito de reccber em casa pensionistas, ¢ a virtude desses meninos poderia ser exposta a varios perigos: “Inconvenientes que acontecem com-muita freqdén- cia devido & convivéncia que os mestres casados so obrigados a ad- r entre os jovens que educam e suas mulheres, filhas ¢ criadas. spossivel para eles impedir essa convivéncia, menos ainda aos pen- sionistas que vivem em sua casa do que aos externos, Os senhores co- missdrios fardo a gentileza de refletir sobre isto: sobre a indecéncia que ha para os escolares em ver de um lado as roupas das mulheres © das meninas, ¢ de outro, seus livros ¢ suas escrivaninhas, e muitas ve- 2es, todas essas coisas juntas; em ver mulheres ¢ meninas penteando- se, vestindo-se, ajustando-se, eriancas de cueiros em seus bergos, € tudo o mais que € 0 apandgio do casamento”, A este tiltimo argumento, particularmente interessante para nos- so estudo, 0 mestre casado responde: “O dito Du Boulay fala como se tivesse acabado de deixar a aldeia onde nasceu... Pois todos sabem que onde moram mulheres ind quartos para elas, onde elas se vestem ‘em sua privacidade (privacidade sem divida bastante recente, ¢limi- tada as grandes cidades), ¢ hd outros para os escolares”. Quanto ds criancas de bergo, ndo eram vistas nas habitagbes parisienses, pois eram todas entregues a amas: “E.sabido que as criancas so enviadas as ca- ss ns no slug shes vizinha, de modo que em casa dos ‘ofessores casados se véem tio poucos bergos e cutis no tartério do dito Du Boulay”. meee esos come Esses textos parecem indicar que 0 costume de enviar as eriangas, para as casas das amas “numa aldeia vizinha” era comum nos meios 14H Ferté, Les Grader universtaires dans Pancienne facé des arts, 186. DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA 237 sociais urbanos como os dos mestres, mas que ndo era antigo, ja que tum dos querelantes podia fingir ignord-lo. Esse costume ter-se-ia de- senvolvido durante 0 século XVII, enquanto era denunciado pelos Sducadores moralistas que, muito antes de Rousseau, recomenda- ‘Vam que as maes nutrissem elas mesmas suas criangas. Mas sua op’ nido, tantas vezes eficaz, apoiava-se apenas em tradigoes convencio- his que remontavam @ Quintiliano. Ela nfo conseguit prevalecer Sobre tum costume que certamente se apoiava na experiéncia e corres- pondia 20 melhor tratamento da época. De fato, podemos imaginar $ dificuldades provocadas pela alimentagdo e a criagao dos bebés no aso de a mae ndo ter leite. Recorret ao leite de vaca? Esta era a sina Sos pobres, © humanista Thomas Platter, para descrever toda a mi- ‘Séria de sua infincia no inicio do stculo XVI, ndo encontra nada mais expressivo do que confessar que fora criado com leite de vaca. ‘As condicdes de higiene da coleta do leite permitem compreender essa repugnancia. Além disso, no era fécil administré-lo as crian 68 tecipientes estranhos que estio expostos nas vitrinas do museu: da Faculdade de Farmacia de Paris, e que serviam de mamadeiras, de- ‘iam exigit muita habilidade e paciéncia, Pode-se compreender mui- to bem o recurso as amas-de-leite. Mas que amas-de-leite? Podemos Supor que no inicio elas geralmente fossem criadas recrutadas na Vi- Sinhanga, € que a crianga amamentada permanecia em casa, onde era sriada junto com as outras criancas. Tudo indica que nas familias ri- as do século XVI e do inicio do século XVII os lactentes eram man- fidos em casa. Por que entio, sobretudo nas familias da pequena bur- ‘como as dos mestres, dos oficiais modestos, se criou o hibito +r 08 bebés para o campo? Nao devemos interpretar esse c0s- tume relativamente recente como uma medida de protegio, cu ousa- ria mesmo dizer de higiene, que deveria ser comparada com os outros Tendmenos em que reconhecemos uma atencéo particular com rela- gio & crianga? De fate, apesar da propaganda dos filésofos, os meios ricos, nobres © burgueses, continuaram a entregar suas criangas a amas-de- Tuite até o fim do século XIX, ou seja, até o momento em que OS Pro- tressos da higione e da assepsia permitiram utilizar sem riscos o leite Erfmal, Contudo, uma mudanca significativa ocorreu nesse meio tempo: a ama passoU a se deslocar, em lugar da crianga, © passou a wear na casa da familia, e a familia passou a se recusar a separar-se Tos bebés, Esse fendmeno é comparavel 20 da substituigéo do inter- rato pelo externato, estudado num capitulo anterior. [A historia aqui esbogada, sob um certo ponto de vista, surge como a historia da emerso da familia moderna acima de outras for- 238 HISTORIA SOCIAL DA CRIANCA E DA FAMILIA mas de relagdes humanas que prejudicavam seu desenvolvimento, Quanto mais o homem vive na rua ou no meio de comunidades de trabalho, de festas, de oracdes, mais essas comunidades monopoli- zam no apenas seu tempo, mas também seu espirito, e menor & 0 1u- ‘gar da familia em sua sensibilidade. Ao contririo, se as relagdes de trabalho, de vizinhanca, de parentesco pesam meaos em sua cons- cigncia, se elas deixam de aliend-lo, 0 sentimento familiar substitui os outros sentimentos de fidelidade, de servico, ¢ torna-se preponderan- te ou, ds vezes, exclusivo, Os progressos do sentimento da familia se- ‘guem os progressos da vida privada, da intimidade doméstica. O sen- timento da familia nao se desenvolve quando a casa est muito aber- ta para 0 exterior: ele exige um minimo de segredo. Por muito tem| as condigdes da vida quotidiana nao permitiram esse entrincheira io da familia, longe do mundo exterior. Um dos obs- {culos essenciais foi sem divida o afastamento das eriancas, envia- das para outras casas como aprendizes, ¢ sua substit prépria casa por criangas estranhas. Mas a volta das criangas, gracas ias sentimentais desse fechamento da fami- ¢ af muito longe ainda dz familia moderna intiga sociabilidade, incompativel com esse tipo de familia, subsistia quase que integraimente. No século XVII, constituiu-se um equilibrio entre as forgas centrifugas ~ ou so- ciais ~ ¢ centripetas - ou familiares - que no sobreviveria aos pro- ‘gress0s da intimidade, conseqincia talvez. dos progressos técnicos. Vimos nas paginas anteriores 0 despertar dessas forcas centripetas. Observemos agora a resistncia das forgas centrifugas, a sobreviven- cia de uma sociabilidade compacta. s historiadores ja insistiram na manutengdo eté muito tarde no stoulo XVII de relagées de dependéncia que antes haviam sido negli- genciadas. A centralizacdo monarquica de Richelieu e de Luis XIV foi mais politica do que social. Se ela conseguiu reduzir os poderes politicos rivais da coroa, deixou intactas as influéncias sociais. A so- ciedade do século XVIT na Franca era uma sociedade de clientelas hierarquizadas, em que os pequenos, os “particuliers” se uniam aos maiores. A formagdo desses grupos implicava toda uma rede de contatos quotidianos, sensoriais. Para nés, isso se traduz numa quantidade inimagindvel de visi tas, conversas, encontros ¢ trocas. O éxito material, asconvengdesso- 15. A, Adam, Histoire de (a nérature francaise au XVII sigcle 1 (1948), 111980, R, Mousnicr. “Soulévements populaires avant la Fronde, fev. Hist mod. et cont 1938. pp. 81-113, DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA 239 ciais e os divertimentos sempre coletivos nao se distinguiam como hoje em atividades separadas, assim como nao existia separagdo en- tre a vida profissional, a vida privada ea vic i essencial era manter as relagSes sociais com 0 conjunto do grupo onde se havia nascido, e elevar a prépria posico através de um uso habil dessa rede de relacdes. Ter Exito na vida nfo significava fazer fortuna ou obter uma situacdo - ou ao menos isso eta secundério; significava antes de tudo obter uma posigdo mais honrosa numa s0- ciedade em que todos os membros se viam, se ouviam e se encont ‘vam quase todos os dias. Quando o tradutor francés de Laurens Gra: cian * (1645) propde que o futuro “Her6i” escatha um “emprego plausivel”, ele ndo quer dizer com isso o que hoje chamariamos de luma boa situaco, e sim um emprego “que se execute as vistas de todo 0 mundo e para a satisfacdo de todos, sempre com a preocupa- io da reputacdo”. A arte de fazer sucesso era a arte de ser agradé- vel, “samavel" em sociedade. Assim a concebia no século XVI 0 cor- tesio de Balthazar Castiglione ": “Essa ¢ na minha opinido a manei- ra de cortejar mais conveniente ao fidalgo que vive na corte dos principes, através da qual ele pode servir perfeitamente em todas as ‘questdes razodveis, a fim de obter o favor daqueles © 0 elogio dos ou- tos". O futuro de um homem dependia unicamente da sua “reputa- Gao", “Parece-me que hd outra coisa que da e tira a reputaclo, é a cleigdo dos amigos com os quais se deve ter urna relagdo intima.” Em toda a literatura do século XVII, um lugar importante era reservado ‘a amizade, & amizade que era uma relagdo social mais intensa que as outras. Dai a importincia da conversagdo, ainda segundo 0 Le Cour- tisan: “Gostaria ainda de ouvir falar particularmente sobre a mai ra de viver e conviver com os homens € as mulheres: coisa que me pa- rece de grande importancia, visto que, nas cortes, a maior parte do tempo é gasta nisso” - e ndo apenas nas cortes. Toda a literatura dita de “civilidade” do século XVI insistiria na importancia da conversa- Gio, na necessidade de conhecer a arte da conversa¢do, na conduta durante a conversagdo etc. Os conselhos desses manuais descem a de- talhes incriveis *. “Peca-se também ao falar de muitas ¢ diferentes maneiras, e, sobretudo, no assunto de que se trata.” A conversagao deve respeitar a conveniéncia. Os assuntos domésticos, familiares ou muito pessoais devem ser evitados: “Erram também aqueles que rnunea tgm nada na ponta da lingua além de sua mulher, seus filhi- 16 L’Heéros, de Laurens Grancien, fdalgo aragonés, 1645. 17 Belthazar Castighone, Le Courtisan, trad. francesa de G. Chappuys, 1585, 16.G. Della Casa, Gelade, raducdo francesa de Hamel, 1656, 240 HISTORIA SOCIAL DA CRIANCA EDA FAMILIA hos ¢ sua ama: ~ Meu filhinho ontem me fez rir tanto. Jamais vistes uma crianga mais engragadinha do 0 que o meu menino. Minha mu- lher tem isto e aquilo.. Deve-se evitar a mentira auto-clogios a €poca do Menteur de Corneille). Ou ainda, segundo a Civ velle de 1671 *: “Observareis como primeiro ensinamento jamais di cutir ou falar sobre coisas frivolas entre pessoas importantes ¢ dou- tas, nem sobre questo ou assunto muito dificil entre pessoas que nio possam entendé-los... Nao faleis 20 vosso grupo sobre coisas melan- Cblicas como feridas, enfermidades, prisdes, processos, guerra e mor- te” (0 que & que sobrava?), “No conteis vossos sonhos.” “Nao digais ‘vossa opiniio a nao ser que vo-la pecam, mesmo que sejais o mais r zoavel.”” “Nao vos intrometais em corrigir as imperfeigSes dos ou- tros, tanto mais que isso cabe aos pais, maes ¢ senhores.”" "Nao faleis antes de ter pensado no que quereis dizer.” E preciso lembrar que essa arte da conversagio nao era uma arte menor como a danca ou 0 canto. O Galatée, esse livro de cabeceira do século: XVII, sobre o qual Sorel ® dizia que “em algumas nagSes, quando s¢ vé um homem cometer alguma incivilidade, diz-se que ele leu 0 Galatée*”, deixa bem claro que a conversagio ¢ uma virtu- de: “Comegarei por aquilo que julgo necessério aprender para que uma pessoa seja considerada bem educada e agradavelmente fina 20 ‘conversar com as outras, algo que no entanto é uma virtude, ou mui- to se aproxima da virtude”. O Galatée era lido nos colégios jesuitas. Em Port-Royal, mais tarde, Nicole se exprimiria da mesma forma em seu tratado De la civilité chrétienne®: “Sendo portanto 0 amor dos homens to necessirio para nos manter, somos naturalmente levados a procuré-lo e obté-lo”. “6s amamos ou fingimos amar os outros a fim de chamar sua atengao. Este é0 fundamento da civilidade huma- nna, que é apenas uma espécie de comércio do amor-préprio, no qual teritamos atrair 0 amor dos outros demonstrando-Ihes afeicio.” As bboas maneiras sio para a caridade 0 que os gestos devotos sio para a devocao. “A solidez de sua unio (das gentes de bem) no depende apenas desses laos espirituais, mas também dessas outras coisas hu- ‘manas que os preservam” — as boas maneiras ¢ a arte de viver em so- ciedade. Se uma pessoa vive em sociedade, ela deve “forjar as opor- tunidades” © “fazer-se amar pelos homens”. Esse estado de espirito nao era novo: remontava a uma concep- cdo muito antiga da sociedade, na qual as comunicagdes eram asse- 19 bas Civilieé nowrlle, 1611 20 Citado por M. Magendie, La Politesse mondaine au XVI scl, 21 Ch now 18, deste eapiul 27 Nacole, “De la cuilite chetienn 92s “in Essais de morale, 1773, 411, p- 116. DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA 2a guradas menos pela escola do que pela pritica, pela aprendizagem, ha qual a escrita ainda nao ocupava um lugar muito importante na Vida quotidiana, E notavel yue esse estado de espirito tenha subsisti- do numa sociedade em que o desenvolvimento da escola indicava os progressos de uma mentalidade muito diferente. Essa ambigGidade entre a sociabilidade tradicional e a escolarizagdo moderna foi muito bem sentida pelos contempordncos, ¢ sobretudo pelos educadores moralistas, muitos dos quais se situlavam nas vizinhancas de Port- Royal. Quase todos esses moralistas se colocaram o problema de sa- ber se a educacio particular em casa valia mais do que a educacdo pliblica na escola. Na verdade, o problema era menos atual do que parece, pois jé havia sido discutido por Quintiliano,o que he confe- Tia a nobreza de um precedente, Mas os educadores moralistas discu- tiram o problema em fungio de suas circunstancias ¢ de sua época. Em L’Honneste Garon, M. de Grenaille * expde questo da se- guinte maneira: “Quanto a mim, ndo desejo em absoluto ofender a fantigiidade com opinides modernas, nem desaprovar a organizagao sdbios aprovaram. Ouso dizer, ainda assim, que 0s Colégi ‘Academias vantajosas para 0 piblico do ique instituigdes necessarias aos particuliers”” (os nobres particuliers, 0u sefa, a pequena nobreza por oposicio aos grandes senhores). Eles sio um “meio tanto para os pobres como para os ricos de adquirir esses tesouros do espirito que outrora s6 podia aleangar quem pos- Suisse muitos bens. Ha varias criangas que, no podendo manter mmesires em casa, se consideram muito afortunadas por se verem mantidas & custa do piblico, e por receberem gratuitamente a ciéncia {que outrora tinha de set comprada. Mas para aqueles a quem a for- {una ea natureza concederam todos os favores, considero que a inst tui¢do particular é mais vantajosa do que a publica. Essa opinidio no € absolutamente nova, embora pareca ousada”, A educagio publ ‘era desprezada porque se acreditava que as escolas estavam nas maos ddos pedantes: essa opinido era difundida na literatura, a0 menos @ partir de Montaigne, certamente também na opinido publica. A Brande evolucio da escola néo diminuiu © desprezo pelo mestre. Havia outras razdes para essa aversdo a escola: a disciplina esco- lar era demasiado severa. O que diria M. de Grenaille dos colégios religiosos e dos liceus do século XIX! “Assim como em cast nao se ‘di uma liberdade excessiva as eriangas (porque elas nunca abando- nam @ companhia dos adultos), nao € preciso tolhé-las a ponto de thet prejudiear a autoconfianca” EM. de Grenaille acrescenta este 25 De Grenaill, L'Hommeste Garcon, 1682. ar HISTORIA SOCIAL DA CRIANCA EDA FAMILIA comentario, que deixa entrever a nostalgia de um tempo em que as criancas no eram separadas dos adultos: “Elas ndo sdo tratadas da mesma maneira que as outras”. A escola ou bem corria 0 risco de corromper a erianca através das més companhias, ou bem retardava sua maturidade afastando-a dos adultos, ¢ M. de Grenaille conside- rava esse prolongamento da infancia como um mal: “*Mesmo que uma crianga nao fosse escandalizada por seus companheiros de esco- la, ela sempre aprenderia na escola mil puerilidades que seria dificil desaprender, e nfo seria menos dificil purificé-la das sujeiras do colé- ‘io do que preservé-la de seus vicios”. Enfim, o principal defeito do colégio era 0 isolamento das criancas, que as separava de seu meio social natural. “Ela precisa aprender cedo como se deve agir tanto «em sociedade como no estudo, e isso ela ndo pode aprender num lu- gar em que as pessoas pensam mais em viver com os mortos do que com os vivos, ou seja, mais com os livros do que com os homens.” Este era 0 verdadeiro motivo de toda essa critica: a repugniincia que sentiam pela escola aqueles que permaneciam mais ou menos fiéis & antiga educacio pela aprendizagem, um tipo de educagdo que met- gulhava imediatamente a crianca na sociedade e encarregava a socie- dade de treiné-la a desempenhar seu papel, sem passar pela etapa in- termedidria da iniciacdo das sociedades formadas por classes de ida- des, ou da escola, nas sociedades técnicas modernas. Essa seria ainda, cerca de 20 anos mais tarde, a opinido do Ma- rechal de Cailligre em La Fortune des gens de qualité et des ger tilshommes particuliers (1661) *: “Nao basta conhecer a ciéncia ensi- nada no colégio; hé outra ciéncia que nos ensina como devemos nos servir daquela..., uma ciéncia que nfo fala nem grego nem latim, mas ‘que nos mostra como utilizar essas linguas. Encontramo-la nos palé- cios... entre os principes ¢ os grandes senhores. Ela esconde-se tam- bém nas ruclas de mulheres, deleita-se entre as gentes da guerra, ¢ no despreza os comerciantes, 0s lavradores ou 0s artesdes. Ela tem por guia a prudéncia e, como doutrinas, as conversacdes ¢ a expe- riéneia das coisas". As conversacdes ¢ 0 habito da sociedade “muitas vvezes ja formaram pessoas bem educadas sem o recurso as Letras. O mundo € um grande livro que esté sempre nos instruindo, e as con- versagdes sio estudos vivos que nada devem aos dos livros... A con- vivéncia habitual de dois ou trés espiritos inteligentes pode nos ser mais itil do que todos os pedantes das universidades juntos... Eles La Fortune des gens de qualité... 1661 DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA 243 = produzem mais matéria em uma hora do que poderiamos ler numa biblioteca em trés dias. A aco e a expresso da face tém algo de en- cantador que imprime intensamente aquilo que o discurso pretende infundir”. No fim do século XVII, o abade Bordelon * (1692) ainda era da ‘mesma opinido: ‘“Instruf as criancas mais para o mundo do que pela escola”. O fruto de uma Bela Educacdo - assim se chamava 0 set li- vro ~ nao deveria nunca parecer com este pedante: Cet homme est un original Et sa doctrine est sant seconde: Wade Perse Juvénal De Canute et de Mariel Une intelligence profande {-entend tout horml Te monde. * Vemos, portanto, que ao longo de todo o século XVII existiu uma corrente de opinido hostil a escola. Poderemos compreendé-la melhor se nos lembrarmos o quanto a escola era um fendmeno recen- te. Esses moralistas, que haviam compreendido a importancia da ‘educagio, durante tanto tempo ignorada e ainda mal percebida por seus contempordneos, ndo perceberam bem o papel que a escola po- dia desempenhar e jé havia desempenhado no treinamento das crian- cas. Alguns, especialmente os que cram ligados a Port-Royal, tenta- ram conciliar os beneficios da escola, que reconheciam, com os da educagao doméstica, Em suas Régles de I'éducation des enfants * de 1687, Coustel analisa o probléma mais de perto, e pesa 08 prés ¢ of contras. Se as criancas so criadas em casa, 0s pais velam melhor por sua sadde (esta também ¢ uma preocupacdo nova), ¢ ‘elas aprendem mais facilmente a civilidade” através do convivio social. “Insensivel- mente, as criancas se formam nos deveres da vida civil e na maneira de agir das pessoas bem educadas”. Mas ha inconvenientes: “E dificil determinar a hora dos estudos, pois a hora das refeigdes, da qual de- pendem os estudos, nao pode ser fixada por causa dos negécios ¢ das visitas que aparecem © que muitas vezes no se podem prever nem evitar”. E importante notar a freqiléncia dessas visitas, ao mesmo 25 Bordelon, Le Belle Education, 1694 < “Este homem € um orignal, /E sua doutina io tem igual: /De Peso ¢ Jvenal, /De Cato « Maca, Ele posi om conbecmento profund/El eens edo, /me- 26 €. Coustel, Régles de Féducation des enfants, 1687. 244, HISTORIA SOCIAL DA CRIANCA EDA FAMILIA ternpo cordiais e profissionais. As criangas correm também o risco de ser demasiado mimadas pelos pais. Enfim, elas ficam expostas as “complacéncias e bajulagdes dos criados, aos discursos licenciosos € as tolices dos lacaios estranhos, que nem sempre podem ser afastados delas”. Ah! a temivel promiscuidade dos criados ~ mesmo os piores adversirios da escola reconheciam que este era um argumento pode- 050 em seu favor. Assim, De Grenaille admite que os pais “sio obri- gados a enviar seus filhos aos colégios, preferindo que eles fiquem ‘numa classe a permanecerem numa cozinha*”". Coustel reconhece, alias, que a discuisdo é de cardter tebrico, pois, em sua época, todos os meninos eram enviados ao colégio. “O costume mais geralmente aceito na educacdo das criangas ¢ colocé- las em colégios.” Essas instituigdes tém suas vantagens: as criangas “fazem ai conhecimentos ¢ amizades vantajosas, que muitas vezes duram até o fim da vida". Elas aproveitam também os beneficios da emulago: “As eriancas adquirem af a coragem louvdvel de falar em piiblico sem empalidecer & vista dos homens, o que é absolutamente necessdrio queles que devem assumir cargos importantes”. “A edu- cago particular” acentua a timidez. Observaremos que as vantagens reconhecidas dos colégios quase nfo se referiam ao nivel de instru- ‘e&o; elas permaneciam sociais, “civis”, como se diria na €poca. Mas 08 colégios também tinham inconvenientes. Sabemos que as classes eram muito numerosas, muitas vezes contendo mais de 100 alunos. Para Coustel, “a enorme multido de alunos ndo é um obsté- culo menor para seu avango nos estudos do que para os bons costu- mes”. O que ja sabemos sobre as classes superpovoadas e sobre a tur- buléncia dos alunos nos permite compreender melhor as inquietacdes de Coustel. “Assim que pdem os pés nesse tipo de lugar, as crianci- nhas ndo tardam a perder a inocéncia, a simplicidade e a modéstia que as tornavam tio amaveis a Deus como aos homens.” Havia uma solucdo, que jé fora entrevista por Erasmo: “Colo- car cinco ou seis criancas com um ou dois homens de bem numa casa particular”. Observamos que essa formula for adotada em Port- Royal nas célebres “pequenas escolas”, célebres ainda que efemeras. Encontramo-la também nas numerosas pensdes particulares que se- iam criadas no fim do século XVII ¢ ao longo do século XVIIL Com raras excecdes, os educadores moralistas sdo um tanto reti- centes com relagdo ao colégio. Um historiador que se contentasse com seu testemunho poderia deduzir legitimamente que a opinido piiblica era hostil As formas escolares de educacdo, quando na reali 27 De Grenalle, op. et DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERINA, 2a dade, como vimos, havia uma imensa procura de colégios, todos su- perpovoados, Os tedricos nem sempre fornecem 0 melhor reflexo de sua época. Contudo, essa oposigio no era aberrante: ela pode ser explica- da pela importancia que a aprendizagem € 0 convivio social ainda conservavam, apesar dos progressos da escolarizagio. Na vida de to- os 05 dias, as pessoas souberam melhor do que nos escritos dos edu- cadores moralistas conciliar a escola ¢ a civilidade. A primeira ndo baniu a segunda. Ao lado da educacdo através da escola, subsistiu tuma educagio através do mundo, que também se aperfeigoou duran- teo século XVII. Nés nos deteremos neste ponto por um momento. ‘A palavra “civil” era quase sindnimo de nosso “social” moder- no: um ser civil era um ser social. A palavra “civilidade” correspon- deria aproximadamente ao que hoje entederiamos por “conhecimen- to da sociedade", mas a correspondéncia ja € menos perfeita, De fa- to, nos séculos XVI-e XVII, a civilidade era a soma dos conhecimen- tos priticos necessérios para se viver em sociedade, ¢ que no se aprendia na escola. Sob o nome mais antigo de courtoise, a civilid de ja existia numa época em que a escolaridade era reservada unica- mente aos clérigos. ‘As origens da literatura sobre a civilidade, tal como existiu do século XVI a0 XVII sem grandes mudancas, sio bastante complexas. Elas se ligam a trés géneros muito antigos. Primeiro, aos tratados de cortesia propriamente dita. Muitos desses tratados foram redigidos ros séculos XIV e XV em francés, inglés, italiano e mesmo em latim. Dirigiam-se a todos, a clérigos como a leigos, aos que liam latim como aos que 6 falavam as linguas vulgares. Em Zinguanta Cortesie da Tavola, * podemos ler: “La prima é questa: le Benedicte. La corte- Sia secunda: deves lavar as milos. La terzia coriesia: espera para te Sentares até que te convidem. A décima terceira: aquele que serve & mesa deve estar limpo endo deve escarrar nem fazer outea sujeira diante dos convivas.” Em francés, havia 0 livro Comment se tenir d table; em latim, ‘Stans puer ad mensam. Esses liveos dirigiam-se as criancas © aos jo- ens. Em ingles, esses tratados eram designados sob 0 nome de Bar bees Books: ensinavam a falar corretamente, a cumprimentar, a dobrar o joelho diante do senhor, 2 nao se sentar sem ter sido convi- Gado, 2 responder as perguntas, “Corta as unhas com freqiéncia e fava as mos anies do Jantar. Quando tirares uma porcio de comida 28. Fra Bonvenisco Rips, Zinquania Conesie da Tavola, circa 1922. 29, Babees Books, op. 246 HISTORIA SOCIAL DA CRIANGA EDA FAMILIA limpo. Nao cochiles & mesa... Presta atencdo para nfo a Esses conselhos praticos em geral eram ritmados em ver- sos de mé qualidade. Na Idade Média, eles se dirigiam também as mulheres. O Roman de la Rose & em parte um tratado de cortesia: re- comenda &s mulheres 0 uso de uma espécie de corpete (sem barbata- nas de osso ou metal), dé-Ihes conselhos sobre a toalete, os cuidados intimos e a limpeza da “‘casa de Vénus™, que devia set mantida raspa~ da. Mais tarde, os tratados de civilidade nfo mencionariam mais as mulheres, como se seu papel se tivesse enfraquecido no final da Idade Média ¢ inicio dos tempos modernos. ‘A segunda fonte dos tratados de civilidade foram as regras de ‘moral comum contidas numa coletdnea de adégios latinos atribuida na Idade Média a Cato 0 Antigo, os disticos de Catdo.O Roman de a Rose cita-os como uma referéncia: “Esta ¢ também a opinito de Catio, se te lembras de seu livro”. Os disticos de Cato foram lidos durante varios séculos, e ainda eram reeditados no século XVIII”. Eles ensinavam o leitor a conter a prépria lingua, a desconfiar das mulheres (inclusive a prépria), a no contar com herangas, a néo te- mer a morte, a ndo se preocupar se alguém do grupo falasse em voz baixa (¢, nesse caso, ndo imaginar que se estava falando da propria pessoa), a dar um oficio aos filhos, a moderar a célera contra 03 ser vidores, a esconder os préprios erros (pois a dissimulaco valia mi do que a mé reputagio), a ndo praticar a advinhagdo ¢ a feitigaria, nao falar dos préprios sonhos nem se preocupar com eles, escolher bem sua mulher, evitar a gula (sobretudo quando esta acompanhava 0 “vergonhoso desejo de amor”), nio zombar dos velhos, evitar ser um marido complacente etc. Esses conselhos se ligavam ao que hoje considerariamos uma moral de extrema banalidade, um conformis- ‘mo social ou um bom senso grosseiro: 0 que se deve € 0 que no se deve fazer em todas as areas ~ nas relagdes de um homem com sua ‘mulher, seus criados, seus amigos, bem como na conversagio ou na conduta & mesa ~ tudo misturado ¢ no mesmo nivel. Nada disso ps rece muito importante, segundo nossa dptica moderna. Mas nesses, conselhos, em que vernos a pressio de convengbes sociais triviais, 'n0ss0s ancestrais reconheciam os mandamentos da vida em comum, guardides dos verdadeiros valores. ‘A terceira fonte dos tratados de civilidade foram as artes de ayradar ou as artes de amar ~ a Ars amatoria de Ovidio, o De Amore Ue André le Chapelain, os Documenti d'amore de Francisco de Barbe- W, Mrewlo-Catdo, Distcha de moribus DAFAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA. 41 rini, ¢ 08 manuais de amor do século XVI. © Roman de la Rose ¢ um modelo do género. Ele ensina que se deve evitar o citime, que o mari- do nao é senhor de sua mulher (isso mudaria mais tarde), que 0 amante deve instruir-se nas ciéncias e nas artes de agradar a sua ami- ga, que nfo deve repreénde-la, procura ler suas cartas ou surpreen- edos. De maneira geral, ensina que também se deve fu- gir & vilania, que no se deve maldizer, que se deve fazer saudagdcs © responder a elas, ndo dizer grosseiras, evitar 0 orgulho, ser bem apes- soado e elegante, alegre e contente, generoso, ¢ que se deve colocar 0 coragdo num tinico lugar... Sdo receitas para ganhar a simpatia das mulheres ¢ de todos os companheiros de uma vida em que nunca se ‘stava sozinho, mas sempre no meio de uma sociedade numerosa ¢ exigente. (s tratados de cortesia, as regras de moral ¢ as artes de amar concorriam para um mesmo resultado: iniciar 0 rapaz (¢ As vezes a dama) na vida em sociedade, a Gnica conveniente fora dos claustros, uum vida em que tudo ~ tanto as coisas sérias como os jogos — se pas- sava através dos contatos humanos ¢ das conversagdes. No século XVI, essa literatura medieval complexa ¢ farta iria transformar-se ¢ simplificar-se. Dela se originariam dois géneros, proximos no fundo, mas diferentes na forma: as “‘civilidades” € os Scortesios”, ou tratados sobre a arte de fazer sucesso na vida. © primeiro manual de civilidade foi o de Erasmo, que fundou género. Todos os manuais posteriores, ¢ houve muitos, nele se inspi- Faram ou o imitaram servilmente. Os nomes mais notaveis talvez se- jam os de Cordier, Antoine de Courtin, ¢, finalmente, Jean-Baptiste de La Salle, cujas Régles de la bienséance et de a civilité chrétienne se- riam reeditadas um nimero infinito de vezes no século XVIII ¢ até ‘mesmo no inicio do séeulo XIX. tratado de civilidade nao era um livro escolar, mas satisfazia uma necessidade de educa¢do mais rigorosa do que a mixérdia dos “antigos livros de cortesia ou dos ensinamentos do pseudo-Catdo. As circunstincias - os progressos da escolarizacdo - fizeram com que, embora estranho a escola, ¢ transmitindo regras de conduta ndo ¢s- colares e mal escolarizaveis, o manual de civilidade fosse associado ‘a0 ensino das criancas pequenas, a suas primeiras ligSes de leitura e escrita, Aprendia-se a ler e a escrever nesses manuais de civilidade. Por isso mesmo, eles eram impressos em varios caracteres, todos os caracteres conhecidos de uma técnica tipogréfica bastante complica- ‘da: havia caracteres romanos, itdlicos ¢ goticos, mas havia também ‘caracteres manuscritos, que eram impressos apenas nesse tipo de li- vo, € por isso eram chamados de “caracteres de civilidade”. Essa destinacdo pedagogica dava aos manuais de civilidade uma apresen- taco tipografica pitoresca. Algumas vezes, também, 0 texto era im

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