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Pro-Posig6es - vol. 13, N. 1 (37) - Janfab. 2002 A Institucionalizagao da Logica das Competéncias no Brasil tweiflo Machadot Resumo: Esse artigo aborda o proceso de insticucionalizagio, no Brasil, da nogio de competéncias e de uma determinada légiea social de seu uso. No caso brasileiro, essa institucionalizagio passa, primordialmente, pela iniciativa politica do Estado, que preenche tuma func2o importante de reformar ideologicamente a consciéncia social e de dara nogio de competéncias 0 cariter oficial de uma instituigio. A partic da anilise de documentos emanados do Governo Federal que conformam o processo de institucionalizacio da ogi eda lgica das competéncias via sistema educacional no Brasil, ¢ possivel identifica peculiaridades que se nfo contrastam com conceitos ¢ anilises vindas da Sociologia do ‘Trabalho sobre tal patadigma, pelo menos colocam variantes histérico-coneretas que merecem ser discutidas. Palavras-Chave: Requerimentos educacionais € profissionais, nogio € logiea de competéncias, reformas educacionais. Abstract: This work approaches the process of Brazilian institutionalization of the notion of competences and also a determined social logie of its use. In Brazilian case, this institutionalization is related, primarily, to the State political initiative that fulfills na important function which is to reform ideologically the social consciousness, as well as to asctibe the official charecter of na instituition to the notion of competencies. Starting from the analusis of Federal Government documents which mold the process of institutionalization of both the notion and the logic of competencies through the Brazilian educational system, it is possible to identify peculiarities that, if do not contrast with concepts and analyses carried on by the Sociology of Work on such paradigm, at least pose histotical concrete vatiations which deserve 2 careful discussion. Key-words: Educational reforms, notion and logic of competencies, educational and professional requirements. 1. _ Professor tur nosentada da Focuidade de Educog6o da UFMG @ membio do Nicleo de Estudos sobre Tiabalhe e Educagéo dessa faculdade.€-mails: lucilia@tae.utmg.br & ‘smachad@uaicom br 92 Pro-Posig6es - vol. 13, N, 1 (37] - Janfabr. 2002 Inodugéo Esse artigo aborda, de forma ainda exploratéria, 0 processo de institucionalizagao*, ‘no Brasil, da nogao de competéncias e de uma determinada ldgica social de seu uso. A nogio de competéncias, independentemente das diversas formas que assume, deti- va do postulado basico de que existe uma grande diferenga entre dispor de estoques de recursos cognitivos, técnicos ¢ relacionais e conseguir mobilizé-los, articulé-los ¢ utiliza. los de modo operativo € eficaz na realidade pritica do trabalho ou mesmo da vida social. © termo competéncia tem sido utilizado para identifica, classificar nomear capacidades pessoais de operacionalizacio e de efetivacio eficiente desses recursos diante de situa- ‘Ges concretas. No contexto atual da crise do capital - que atinge por extensio a realidade do trabalho ‘ede modo particular 0 assalariado -, essa nogZo vem compondo, ao lado de outras como «qualidade, exceléncia, competitividade, empregabilidade, trabalhabilidade, laboralidade, uma orientagio discursiva e proposigdes que tém sido utilizadas como eixo normativo na elabo- ragio ¢ implementacio de politicas voltadas para o trabalho, o emprego a educagio, Ela tem sido utilizada como um dos instrumentos de transformacio de comporta- ‘mentos institucionais e individuais orientada 4 adapta¢io ao contexto social atual, carac- terizadlo por profundas modificagdes nos processos concorrenciais, no mundo do traba- Iho, nas formas de regulac2o da relacao entre oferta e demanda de forga de trabalho € nas estratégias de mobilizagio € de gestio dos trabalhadores. (O fenémeno da busca de institucionalizagio da nogio de competéncias nfo se encon- ta, portanto, isolado do conjunto das transformagdes socictitias mais amplas, no sendo também exclusivo da realidade brasileira, Ele recebe, ainda, os influxos de um proceso de crescente homogeneizacio ideoldgica mundial, que na literatura critica francesa recebe a denominagio de “pensamento tinico”, ao pretender dar respostas universais para pro- blemas, que aparentemente sio gerais, mas que fundamentalmente diferem 4 medida que se percebe que cles atingem diversamente as classes sociais, os paises, as instituigdes, os géneros, a etnias € as fainas etirias, A institucionalizagio da nogio de competéncias vem integrando um processo de de- sintegragio de padrdes de interagio e de organizagio social baseados em valores, normas € comportamentos oriundos da chamada relagio salarial taylorista-fordista. Em alguns paises, esses padrdes vinham se apresentando mais formalizados, legiimados ¢ estiveis, ‘mas em outros, como no caso brasileiro, mais incipientes. A relagio A qual se faz referén- cia se caracteriza por uma ordem de trabalho voltada para a socializagio ea integeacio da forca de trabalho & organizagio da produeio industrial de massa, com formas de controle especiais, inclusive no nivel da constituigio das relagdes de consumo. Ela possibilitou que teabalhador tivesse seu estatuto de assalariado reconhecido pelo direito do trabalho € constituiu todo um conjunto de dispositivos de regulacZo social do emprego ¢ do traba- 2. ODcienéio de Ciéncios Socios 1987: p. 611] assim dete insttucionaiagso: “Otero 6 usado ern lnguagem sociei6gicae urcica para ndcor: a} o proceso pelo quaise formam pactées estOves dle Interagéo e organizagéo social baseados em comporlamenios, norms @ valotes frmalzodos @ legtimadios: b/1no caso das insitucées jurdicas, & 0 processo de reguarzagao desses elementos raves de ume noma” 93 Pro-Posiges - vol. 13, N. 1 (37) - Janjobs. 2002 Iho, nos quadros dos quais estabeleceu-se formalmente, em alguns paises, o conceito de qualificacio como base de codificagio social para fins de insergio nas relagdes de traba- Iho ¢ de identidade sécio-profissional © quadro institucional de regularizagio dos elementos da relacio salarial taylorista- fordista através de acordos sociais ¢ normas juridicas vem sendo flexibilizado ¢ desestruturado, a partir da expansio do processo de mundializagio do capital (abertura financeita ¢ dos mercados) e de seus dois principais corolirios: a) mudangas nas bases tecnoldgicas fisicas, organizacionais € gerenciais da produgio ¢ do trabalho ¢ b) implementagao de politicas de privatizacio impondo a predominincia dos critérios do mercado na concessio ¢ administragio dos recursos e a transferéncia de responsabilida- les estatais a0 setor privado, ‘Tais processos tém feito emergir, 20 lado do crescimento da concentragio e da centra- lizagio da riqueza, fendmenos complexos como o erescimento do desemprego estrutural, uma maior diferenciagio ¢ segmentacio da classe trabalhadora, a tendéncia de responsa- bilizar individualmente os trabalhadores (especialmente os desempregados, subempregados ‘© sem ocupagiio) pela sua situagao sdcio-econémica, o rebaixamento da protegio social, 0 aprofundamento das desigualdades ¢ das segregacdes sociais de todos 0s tipos. No campo da gestio do trabalho e do emprego, duas dinimicas se instalam ¢ se reforcam mutuamente: a de flexibilizacio das relagdes de trabalho ¢ dos direitos sociais, adquitidos ¢ a que impoe a prerrogativa de um conceito de qualidade que significa, na sua esséncia, aumento de controles sobre os ganhos de produtividade e de lucratividade, a despeito da sobtecarga ¢ intensificacio do trabalho dos que conseguem barganhar sua forga de trabalho ¢ das dificuldades de sobrevivéncia da maioria crescente dos que nem. chegam a isso. A institucionalizacio da gestio das competéncias individuais, que tem como funda- mento bjsico a implicagéo subjetiva, ativa, produtiva e resolutiva do trabalhador nas atividades de trabalho, tem sido empreendida pelas empresas como parte das novas estratégias de modernizagio gerencial. Esse processo envolve dois movimentos articulados: ) a formalizagio de valores e de ormas alicergados na nogio de competéncias individuais tendo em vista a adocio € a esabilizagio de novas formas de regulacdo das relagdes de trabalho e de orgenizagio social, ¢ b) a busca de legitimagao social desses valores e normas. 3. Quando se dscute, ctuaimente, « nogGo de compaténclas no dito da gosta do abana @ da ‘ect1ca¢Go basco @ profssional, igurs ctifios tém senido de rferéncra como incleadteres de andliso @ de avciagso da condigGo daquele de quer se fala: abor dsingul constr uma siagao- problema: saber atibui um rolamento efcazd solucdo dese probiema: Go Gar edie hatammento, set ‘copaz de comootbilar de modo eficiente, a economia de custenlempoyestorgo com a qualidade ‘ec.dsingdo: consegul com iso, provocarcigumattansfornagéo no amber, no estad0 dos CO, ‘ou soja, hovar.Entendie-se, ainda, que as pessoas que assim agem setlam competents pORUe ossuisom uma visdo slstémica: apicariam ariculadamente clferentes infornagoes @ recursos (concettos teéricos, procedimentos técnicos © dados de siuagao, ete; saberiam kientiicor os Ccontingéncias das siuagdes cticos Imprevstos e/ou novas: saberiam aprovellar experéncles © “conhecimentosvindos de outa siuogOes; reser taiom atides de pro-atvicade, tls coma ini ‘eautonomia Pode. ainda, ocrescentar uma outa raxdo bem provavek:tolam davenvoMco agua ose da copacidade de transgressdo, ou seja, de desatar costumes, normas, referenclas lradicioneimente empregadas no ratamento de problemas @ no enttetamerto do stuagées. 4 Pro-Posiges - vol. 13, N. 1 (37) - Janfabe, 2002 Essas novas formas de regulacio, além de buscar responder is novas condigdes de utilizagio do trabalho, surgidas com a mundializacio do capital, com as mudangas na hase técnica e material da produgio social e com a redefini¢io do conceito de produtivi- dade do trabalho, objetivam, ainda, responder as expectativas sociais frustradas pela inca- pacidade dos sistemas produtivos de absorver as demandas dos individuos de insergio no mercado de trabalho. Neste sentido, elas visam estabelecer novos conformismos sociais, capazes de levi-los a resignagio e & aceitacio, como inevitiveis, de situages tais como a precariedade do trabalho, a incerteza do futuro profissional ¢ a individualizagio da res- ponsabilidade com relagio & sobrevivéncia no mercado de trabalho. Tais referéncias tém orientado também os ajustes no sistema educacional, Estes se referem, fundamentalmente, 4 adogio de processos de racionalizagio da gesto adminis- tcativa, financeira e pedagégica dos estabelecimentos escolares baseados em critérios de eficicia, exceléncia ¢ produtividade; a uma maior aproximagiio do sistema educacional e de formacio profissional com o sistema produtivo e entre os curriculos e as necessidades do mercado. Embora, nem tudo na realidade das selagdes sociais de tcabalho tenba sido radical- ‘mente transformado no sentido de uma total ruptura com a légica taylorista-fordista da produgio, ¢ isso mesmo nos paises centrais, pode-se conjeturar que todas as formas de sociabilidade, relacionadas ao trabalho, especialmente ao trabalho assalatiado, foram afe- tadas, de algum modo, pela mudanga conceitual introduzida pelo paradigma da produgio integrada c flexivel, dentre as quais encontra-se o sistema educacional. Requerimentos Educacionais e Insttucionalzagdo da Nogéo @ da Logica de Competéncias ‘© processo de institucionalizagio da nogio e da logica de competéncias inicia-se com © retorno e a intensificagio de questionamentos dirigidos 4 educagio ¢ & escola, a partir de conjeturas sobre a existéncia de inadequagées entre as qualificagdes desenvolvidas € certificadas pelo sistema educacional e as novas competéncias que vém sendo requetidas pela realidade atual do trabalho e da producio. Como decorréncia desses questionamentos, ‘a questio da qualidade, da eficiéncia e da produtividade da educagio e da escola érecolocada ‘com forga, mas sob um novo prisma. Esses questionamentos tém focalizado, entretanto, aspectos unilaterais da relagio tre sistema educacional e sistema ocupacional. Via de regra, os chamados novos requeri- mentos educacionais e profissionais tém sido apresentados, de forma unissona, como realidades dadas ¢ inerentes & natureza das mudaneas tecnol6gicas que vém ocorrendo na sociedade, atingindo os padres da concorréncia econémica e o funcionamento dos mer- cados de trabalho. Essa, no entanto, é uma visio determinista que escamoteia 0s sujeitos sociais reais das transformagdes em curso e que nao problematiza as relagdes entre tais processos ¢ as formas predominantes de uso social da forca de trabalho. Em segundo hugae, predomina nesse discurso sobre novos requerimentos de forma- io, o suposto de que estariam ocorrendo mudancas na divisio técnica do trabalho e que tal processo, com carater amplo, teria, por propensio, uma re-qualificagio geral dos traba- Ihadores. Tal assertiva se apéia em outras suposigdes: a de que os trabalhadores estariam 95 Pro-Posg6es - vol. 13, N. 1 (37) - Jano. 2002 sendo requisitados 2 uma maior participacio nas atividades de concepgio ¢ de controle da qualidade da producio; a uma maior mobilidade einiciativa nos processos de trabalho; A elevacio de suas responsabilidades na execugao das tarefas e a um maior envolvimento, em atividades permanentes de aperfeigoamento, Estas conjecturas, no entanto, tém per- mitido ver apenas alguns galhos da floresta e nio a floresta inteiea. Apesar desses reducionismos, as politicas educacionais tém se referenciado nesse tipo de anilise ¢ adquirido uma dimensio mais clatamente economicista e produtivista. O viés econdmico nfo tem se traduzido propriamente por uma real e clara preocupacio com a problemética do emprego e da inser¢io qualificada no mescado de trabalho, mas primor-

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