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—— DE UM—— OLHAR E OUTROS CONTOS SUMARIO ACRUZ 7 AHERANGA 10 MENSAGENS ANONIMAS 17 MARCAS DE UM OLHAR 23 AFORASTEIRA 37 CONEXAO PLENA 40 ACAVERNA 44 TEORIA CORRETA 48 NOITE DE ESPLENDOR 53 PROVA DE AMOR 56 ONOMADE 60 FASCINIO 67 CASTELOS DE AREIA 69 INSPIRAGAO 73 COPIA FIEL 80 FANTASMAS 84 VINTE E CINCO ANOS DEPOIS 91 INDELEVEL 97 ACARTA 101 GEM INSOLITA 106 PREZADO LEITOR, Depois de trinta obras publicadas, chego finalmente a0 meu primeiro livro de contos. Digo finalmente porque havia muito que aguardava este momento, intimeras vezes adiado por projetos repentinos, carimbados de URGENTE. De onde surgiram as ideias para estas vinte historias? Eis uma questo das mais complexas, pois a criagdo literaria émisteriosa, geralmente nio deixa vestigios. Faz-se uma forga herciilea para se detectar o momento da concep¢io deste ou daquele texto, mas fica-se perdido no meio da viagem. Assim, sio pouquissimos os contos de origem consciente. Marcas de um olhar, por exemplo, nasceu apos eu ter me deliciado com A terceira margem do rio, de Guimaraes Rosa. Tao logo encerreia leitura desse primoroso conto, a mio correu para o teclado e entregou-sea fabricagio de uma hist6ria que também retratasse a figura do pai. Teoria correta foi inspirado num filme, ainda em preto ¢ branco, que vi na segunda metade do século pasado. E 0s outros contos? De onde surgiram? De algum trauma que deseja ser quebrado? De algum fantasma que assombra o meu subconsciente? Nio sei. Resolvi perguntar A Literatura. Ela nio me respondeu. Ao contrério, encheu-me de novas indagagdes. Desconfio que ela faré o mesmo com vocé. Alades Goulart — A CRUZ —— Nove horas da manhi ej exausta. Faltam-Ihe forgas até para arrancar a roupa de dentro da maquina. Vencida pelo desanimo, desiste, antes mesmo de estender a primeira blu- sa no varal. O rédio, seu parceiro de todas as manhas, jaz calado sobrea geladeira. A louga suja, ainda da véspera, ador- mece na pia. Na mesa, trés biscoitos e uma xicara com café frio eabandonado. Osiléncio fanebre € somente quebrado pelo insis- tente tique-taque da parede. Se pudesse, ela pegaria os por teiros daquele relégio e os giraria para trés. Daria muitas, muitas voltas, uns seis anos de voltas. Isso mesmo! Seis anos! Pena que os ponteiros, soberbos, indiferentes 20 pauiado € cegos ao sofrimento alheio, jamais retrocedem. ‘Tenta se distrair com a televisio. Mios trémulas, com- primindo 0 controle remoto como quem agarra um cruci- fixo, implorando que ele a remova da tela real ¢ sombria, ainda que por minutos. O polegar parte em busca de um esconderijo para a alma, perambulando por todos os canans nenhum programa, porém, €capar de amensrat suas forbs, Bem que podiam ser cicatrizes, mas nao sto. Avcives GouLART Sio feridas; abertas, quentes, flamejantes. Desiste da TV. Deixa-se cair no sof, cerra 0s olhos ¢ bate a porta do sono, refiigio de almas sofridas. Masa porta recusa-se a abrir. Levanta-se, Num andar tropego, alcanga o quarto. No espelho do armério, no hé mais os cabelos bem tratados, a pele jovem e macia, 0 sorriso aberto. A beleza, a alegria, tudo isso ja se perdeu no passado. Caminha até a janela do apartamento. Poe-se a observar tudo em volta. Prédios e mais prédios, gigan- tescos tumulos de concreto. Seus olhos correm instan- taneamente para a igrejinha no topo do morro. Uma cruz, Quantas vezes ali jé fixou o olhar por horas, supli- cando ajuda. Logo ela, t4o forte, que jé suportou tantos chutes, tan- tas chicotadas da vida... mas aquele corte é mais profundo que qualquer outro. A mais intensa das dores, 0 pior dos sofrimentos que uma familia pode experimentar. Olha novamente o reldgio. Tem de se recompor. Afinal, ele deve estar chegando. Uma nova velha etapa vai comegar. Neste momento, uma chave gira na fechadura ea porta se abre devagar. £ ele, acompanhado do pai. Ojovem esté cabisbaixo, entorpecido, sedado. Ela no se contém. Em prantos, joga-se nos bracos do filho. Aquela cena, embora semelhante a um epilogo de novela, nada tem de final; é apenas 0 reinfcio de um capitulo, uma reprise de tantos outros. MANCAS OF UM OMAR F OUTROS CONTOS O comego da histéria foi marcado por amizades equivocadas; depois, a dependéncia maligna, trazendo afas- tamento, discussdes, brigas, dor, lagrimas... Mais tarde, veio 0 longo e dispendioso tratamento. O casal nao mediu esforcos. Sacrificaram joias, carros, iméveis. Venderiam até a propria existéncia, se preciso fosse; s6 queriam ter o seu filho de volta. Apés dedicados ¢ angustiantes meses, a alta médica fez os sorrisos ressurgirem e os sonhos renascerem. Mas 0 happy end nao surgiu na tela. As forcas inimigas contra- atacaram, desfazendo lacos, rompendo estruturas, aniqui- lando sonhos. Massacrando como um trator. Entra novamente em cena a desesperanga. Tudo, tudo volta ao ponto de partida; recomega 0 tratamento. Em passadas timidas e silenciosas, 0 jovem vai para oquarto. O casal, maos fortemente entrelagadas, caminha em diregio a janela. ‘Agora sio quatro os olhos que buscam na cruz a forca necessdria para prosseguir. —— A HERANGA — Negécios urgentes da familia. Foi com esse argumento que ela convocou os filhas para uma reuniio. No dia seguinte, estava 0 quarteto diante da genitor, sem disfarcar 0 tom irdnico. Reunido de negécios erapan gente abastada, zombavam eles, ¢ ali s6 havia proletirios. Indiferente As criticas ¢ com certo ar de mistério, amie abriu um album de fotos antigas ¢ mostrouo tioZxa, homem bondoso que ajudou a crid-la, enchendo-lhe de carinho ¢ ensinamentos uteis durante a infincia, Nio mais 0 viu quando ele, perto dos trinta anos, absicou & vida cosmopolita ¢ partiu para o interior de Mato Gros, de onde nunca mais sain. Até enti, o assunto nio despertava a atengio dos quatro moses, que ainda nio entendiam o porqué di hamada de emengencia. Afinal, nenhum deles conhesi9 taltio avd, ndo obstante o carinho com que seu nomect nunciade ao longo des anos. A conversa so passou a atrair os jovens quandolhs foi dito que o reteride pare agora aos oitenta ¢ quit? MARCAS DE UM OLMAK F OUTROS CONTOS anos, fazendeiro rico, solteiro, sem filhos, adoentado, esta- va prestes a concluiro seu testamento. Antes disso, gostaria deconhecer os rapazes. As passagens aéreas j4 estavam com- pradas para a manha seguinte. ‘Todos os compromissos foram cancelados e, antes do almogo, os quatro irmaos transpunham a porteira da fazen- da, pasmos com a vastidao e beleza da propriedade. Foram gentilmente recebidos pelo capataz, que logo os conduziu a presenga de um homem idoso, sentado numa cadeira de rodas, na varanda do casardo. Se algum deles esperava encontrar um velho matuto, ingénuo, ignorante, enganou-se redondamente. Apesar de certa dificuldade respiratéria, tio Zeca comunicava-se com fluéncia, fiel As normas gramaticais e dando-se ao luxo de utilizar metdforas e vocdbulos rebuscados. Ele fez um breve relato da sua vida, explicou a deci- sio de se afastar dos centros urbanos e viver para a terra. Terra que retribuiu a gentileza ¢ Ihe concedeu aprecidvel fortuna apés anos de suor e calos nas maos. Agora, porém, sentindo aproximar-se a inevitavel viagem para outros territ6rios, queria dar rumos a heranga. Deixou claro que parte da riqueza ja havia sido destinada ao capataz, fiel escudeiro de muitos anos; outra parte, a velha eficiente cozinheira. Mas fez questao de reservar a terceirae 1ltima fatia para alguém da familia, sangue do seu sangue. E sonhava com mios jovens, batalhadoras ¢ inteli- gentes para semear prosperidade ¢ riqueza. Mas como selecionar as maos adequadas? ALcIoES GOULART Eis 0 motivo de estarem ali: para serem testados, A cada um seria dada a quantia simbélica de cinquenta reais. No prazo de duas semanas, um novo encontro revela- ria como 0 dinheiro fora gasto. Aquele que narrasse a expe- riéncia mais proveitosa, mostrando-se 0 mais sagaz, iria abocanhar 0 tiltimo pedago do bolo. Foram-se os rapazes com os cinquenta reais ¢ as zar © dinheiro de forma a mentes fervilhando: como uti impressionar 0 velho tio? Decorridos os quinze dias, l4 estavam eles de volta, firmes na esperanca da grande conquista. Nacama do seu quarto, satide mais comprometida, © rico fazendeiro pediu que entrasse um por um. A comegar pelo mais velho. Serafim entrou vestindo um terno elegante. Preten- dendo passar a imagem de empreendedor, dono de grande tino comercial, apresentou a nota de cinquenta reais acom- panhada de outra de cinco, Emprestara dinheiro a juros ¢ obtivera lucro de dez por cento. Um étimo negécio, princi- palmente considerando 0 prazo de apenas quinze dias. ancido ouviu tudo com atengio. Ao final, agradeceue pediu para chamar o préximo. Usando chapéu de fazendeiro ¢ um par de botas, Raimundo exibiu a foto de trés galinhas, uma cabra, dois porcos ¢ um saco de sementes. Nao hé melhor negécio que investir na criagdo de animais, na semeadura e na colheita, afirmou em tom teatral. O rico fazendeiro ensaiou um riso 0 dispensou cordialmente. MARCAS DE UM OLHAR F OUTHOS CONTOS Aestratégia de Aristides foi diferente. A julgar pelas estatuetas de Padre Cicero espalhadas pela fazenda, tio Zeca certamente era homem de muita fé. Com voz de quem tem coracio leve e brando, entrou, curvou-se € pediu a béngao ao velho. Esforgando-se para nao deixar fugir oar bondoso, contou haver doado o dinheiro a dois mendigos famintos. Quem dé aos pobres empresta a Deus, frisou. E agora estava ali para, quem sabe, ser recompensado por gesto ta0 magna- nimo. Sem demonstrar empolga¢io, 0 velho o parabenizou pelo espirito caridoso e solicitou a presenga do cacula. Era a vez de Rosevaldo. Mal pisou no quarto, foi surpreendido com os olhos arregalados do velho na direcao do objeto que trazia na mio. — Un livro! Orapazassustou-se: —E... Sabe, tio, esse livro tem um motivo especial para estar comigo... —Livro é sempre especial — interrompeu 0 anciao. —Devo aos livros tudo 0 que aprendi e conquistei na vida. Quando deixei a cidade e vim para o interior, comprei um pedaco de terra perto de uma escola carente de tudo. Faltava professor, faltava merenda, faltava material, so no faltava livro. A biblioteca, gentilmente doada por uma organizagio estrangeira, era rica e variada. Se os alunos nao degustavam aquele tesouro como poderiam, eu me aproveitava dele cada minuto disponivel, aprendendo t do plantio. Apliquei os conhecimentos com sabedoria ¢ cheguei aonde cheguei. Nao posso deixar de citar tambem cas agrarias e segredos ALcIDEs GOULART as fabulosas historias de Jorge Amado, Machado de Assis, José de Alencar, Erico Verissimo € tantos outros. Voce nig pode imaginar como 0 meu coragao transborda de felicida. de ao saber que, na minha familia, ha alguém que langa sobre os livros olhos tao famintos quanto os meus. — Bem, na verdade, o meu carinho pelos livros esta bem longe do seue... — Por favor, Rosevaldo, modéstia nao cabe neste momento. Vé-se logo que éamante da leitura. Sendo ofose, no teria investido seu dinheiro dessa forma. Imagino que tenha muitos livros, que no seu quarto haja livros até pendurados no lustre, ndo é assim? — Pra dizer a verdade, tio, tenho poucos livros no meu quarto. — Entendo... ndo sdo suficientes. Pois vai ter mais, muito mais. Vocé € 0 meu escolhido. Venha comigo, quero Passar as suas maos parte do meu patriménio, Indubitavelmente a mais valiosa delas. Tenho certeza de que nenhum dos seus irmaos cuidaria dela com tanto apreco E, movimentando-se com dificuldade na cadcira de rodas, atravessou algumas portas até alcangar um cémo- do repleto de estantes. Todas apinhadas de livros. — Esta é a minha maior fortuna: 0 conhecimento que borbulha nas paginas dessas obras. Queria deixé-lopa alguém que usufrufsse da melhor forma possive. alguém évocé, querido sobrinho. Vinte mil e quatrocentos livros. A herangaestavail: devidamente arrumada e catalogada. MARCAS DE UM OLMAR E OUTROS CONTOS ‘Avoz de Rosevaldo sumiu, 0 espirito murchou. Que fortuna era aquela? O que fazer com uma mon- tanha de papel? Por um instante, pensou em contara verda- de. Que nao era fa de leitura coisa nenhuma. Que nem livros possufa, a nao ser trés ou quatro sobre a escrivaninha, que serviam para elevar a altura do monitor do seu PC. Que vol- tara com os cinquenta reais para devolvé-lo ao tio, pois nao achara nenhum meio interessante de investimento. Mas que nem o dinheiro tinha mais, porque gastara tudo num lan- che especial no avido, acompanhado de umaatraente loura que conhecera na viagem. Que o livro fora uma gentileza da moga pelo lanche. E que nao se livrara do presente por- que o nimero do telefone dela estava na tiltima pagina. Mas de que adiantaria contar a verdade? Nenhuma vantagem ganharia. $6 iria desapontar o tio. Talvez seu esta- do de satide até piorasse. Nao. Era melhor disfar¢ar, mos- trar-se eufdrico com a heranga, proporcionar ao bom ho- mem momentos de alegria nos tiltimos instantes de vida. Jé em casa, foi alvo de galhofas por parte dos irmaos. ‘Além da heranga decepcionante, a mulher do avido lhe dera um numero de telefone inexistente. No més seguinte, a mae informou o falecimento do tio e, dias depois, chegava & casa de Rosevaldo uma carreta abarrotada de livros. Irritado, recusou-se a receber o presente. Simples- mente determinou que aquelas toneladas de papel sumis- sem da sua vista e fossem despejadas em qualquer lugar, bem longe dali, ALcIOES GOULART Pensou ter decretado o capitulo final daquela tis, historia. Puro engano. No dia seguinte, correu a noticia em todo baitrp € até no noticidrio da TV, de que mendigos e catadores de papel haviam encontrado milhares de notas de cinqury _—— MENSAGENS ANONIMAS —— reais entre paginas de livros velhos num terreno baldio, Dizem que Rosevaldo nunca mais foi o mesmo Agora vive em bibliotecas ptblicas, folheando livros Lera correspondéncia era a primeira coisa que fazia antigos, amarelados, a caga de tesouros. 0 bem-sucedido empresério quando adentrava sua sala, no tiltimo andar do luxuoso prédio de vidro fumé. Naquela manhi, despertou de imediato sua atengo um envelope lilds com tarja preta. Nao constava o nome do remetente, Nao era o tipo de carta que costumava chegar a0 presidente da maior empresa de cosméticos do pais. Curioso, abriu 0 envelope, do qual retirou um pe- queno pedago de papel. Em todo jardim, margarida é uma flor. A tinica exce- a0 & 0 jardim da New Look, onde Margarida é uma erva daninha, sem honestidade, sem cardter. Uma acusagao andnima? O que representava isso? Chamou 0 assessor, mostrou-Ihe a mensagem e pe- diu-lhe um relatério com informagdes sobre todas as funciondrias de nome Margarida. Da matriz ¢ das filiatis. No fim do expediente, veio a resposta: —Doutor Evaristo,a tinica Margarida da New Look €funciondria aqui da matriz. Pertence ao Departamento de Compras. Trabalha na empresa ha trés anos € meio. ALcI0es GOULANT Comecou como recepcionista, depois passou por alguns setores até se tornar secretaria do gerente Macedo, fungio que ocupa no presente momento. Pesquisa pregos, faz con- tato com fornecedores, envia pedidos de orcamento, scleciona as condigdes mais favoraveis, depois passa todos os dados ao Macedo. — Eo que o Macedo diz sobre ela? — Ele quase caiu da cadeira quando lhe falei da carta anénima. Disse que Margarida é pontual, organizada, répi- da, objetiva, enfim, sinénimo de eficiéncia, além de ser uma das pessoas mais honestas com quem jé trabalhou. Lida com 0s fornecedores de forma cordial, mas firme, profissional. Recusa quaisquer tipos de favorecimento pessoal e 0s pre- sentes que lhe sio frequentemente oferecidos. Macedo acre- dita que a acusa¢do s6 pode ter partido de um fornecedor inescrupuloso, tentando prejudicar a carreira da moga por -vinganga ou simplesmente por querer que“alguém mais fle- xivel” assuma o lugar dela. —Eoque vocé acha? — Bem, doutor Evaristo, depois da conversa como Macedo, resolvi fazer uma investigacio por conta propria Entrei em contato com trés fornecedores e todos elogiaram © grau de profissionalismo da Margarida. Ainda nio satis- feito, na hora do almogo fui ao Departamento de Compras, vistorici os orgamentos dos ultimos meses ¢ nio constate nada irregular. Pelo contrario, posso garantir que as com- pras foram otimos negécios para a New Look. MARCAS DE UM OLMAR E OUTROS CONTOS Satisfeito com as informagées, o presidente jogou 0 bilhete no lixo. Caso encerrado. Na semana seguinte, porém, eis que lhe chega as mos novo envelope lilés com tarja preta. Existem vitrios tipos de margarida: margarida-do-cam- po, margarida-amarela, margarida-de-érvore... A da New Look é margarida-veneno. Digo e repito: Margarida nao é flor que se cheire. Cui- dado com ela! Novamente o assessor foi convocado. ‘Apesar das referéncias positivas, foi determinada uma varredura nos documentos que jé passaram pelas mios da funciondria. Que se verificasse também o relacionamento com 0s colegas. Teria inimigos no departamento? Alguém interessado em sua demissio? Trés dias depois, a resposta: —Doutor Evaristo, apés minuciosa apuracio, posso reafirmar que Margarida é funciondria das mais honestas ¢ competentes. Quanto ao entrosamento coma chefiaecom os colegas, nio hi nenhum aspecto negativo a comentar. Pelo contrario, todos sio unanimes em elogiar sua conduta pro- fissional e pessoal. Simpatica, bem-humorada, jamais teve desavengas no departamento. —Eo que voce sabe sobrea vida pessoal dessa moga? —Esolteira, mora no subtirbio, nao ¢ chegada a noi- tadas ou badalagdes, tem um noivo, € 0 casamento parece que nao est longe. Se o senhor me permite opinar, doutor ALcIDES GouLAnT Evaristo,creio que ndo deviamos dar crédito a essas mensa. gens covardes ¢ levianas. Concordo com 0 Macedo: isso deve ser coisa de algum cliente inescrupuloso que esbarra na seriedade com que ela trabalha. Quando o assunto parecia sepultado, uma nova mensagem surgiu: Para conhecer bem a margarida, nao basta observaras pétalas. E preciso descer pelos caules, chegar a raiz. E ld que esta 0 veneno! Irtitado, 0 presidente amassou o papel e fez mengio de jogi-lona cesta de lixo, porém incomodava-lhe a simples ideia de que 0 desvio de cardter de um funciondrio pudesse comprometer a imagem da propria empresa. Imagem que cle aprendera a preservar com 0 falecido pai, de quem herdara todo o patriménio, material e moral. Talvez fosse melhor mudar a estratégia de apuracio dos fatos. Pegou o telefone e fez contato com um investigador particular, a quem jé solicitara alguns servigos no passado. A tal Margarida iria ter os passos seguidos e vasculhados. Eassim foi. Decorridas trés semanas, 0 detetive colo- ‘cou sobre a mesa uma pilha de fotos e relatérios. — Solteira, mora com a mie em um apartamento proprio. A compra do imével foi financiada em quinze anos. Moga gentil, alegre, educada. Otimo relacionamento com osindico, vizinhos e porteiros. Durante a semana, sai de cast direto para o trabalho ¢ do trabalho para casa. Nao para em lugar nenhum. Nos sabados e domingos, sai como noivo: supermercado, cinema, teatro... Nesses wltimos MARCAS DE UM OLHAR & OUTROS CONTOS dias, posso assegurar que nada fez que comprometesse sua boaconduta, — Entdo nao h4 com que me preocupar? — Pela minha experiéncia de vinte anos, afirmo que tais mensagens devem ser desconsideradas; prova- velmente partem de gente invejosa aqui da empresa. Se 0 senhor quiser, posso dar continuidade as investigacoes, passando-me por um funcionsrio recém-contratadoe... Nao. O empresério preferiu arquivar o assunto. Jé fora Jonge demais, permitindo-se conduzir por bilhetes anonimos. Na semana seguinte, porém, o j4 conhecido envelope ‘oesperava ansiosamente: Margarida nao éa flor preferida nos funerais, mas seré ela que perfumard o enterro da New Look. Os olhos do presidente faiscaram. A primeira reacao foi de ligar para o detetive e infiltra-lo no Depar- tamento de Compras. Pensou melhor, contudo e concluiu que, fosse a identidade verdadeira do investigador descoberta, grande constrangimento tomaria conta das salas e corredores da empresa. Todavia, o incémodo o impelia a tomar alguma pro- vidéncia. Num gesto impulsivo, levantou-se, saiu da sua sala, pegou o clevador e foi direto ao Departamento de Compras. LA chegando, conversou sobre assuntos variados e fez inimeras perguntas sobrea rotina do departamento. Os funciondrios prestaram os esclarecimentos necessarios, destacando-se Margarida, com profundo conhecimento, clareza e organizagao de ideias. ALCIDES GOULART Retornou o presidente para sua sala, convicto da total inocéncia da funciondria ¢ impressionado coma sua capacidade. Dias se passaram e a chuva de bilhetes também passou. Fosse quem fosse o remetente, jd teria desistido dos ataques inescrupulosos. O més seguinte foi marcado por uma reunio da presidéncia com diretores e gerentes acerca da sucursal que iria ser inaugurada no sul do pais. Diversos nomes foram colocados sobre a mesa para os cargos de confianga da nova filial. O presidente acolheu todas as sugest6es, com excegio de uma: 0 cargo de gerente de compras jé possuia dono. Ou melhor, dona. O presidente fez questao de felicit4-la pessoalmente pela promogao e preferiu manter inteira discrigdo acerca dos bilhetes anonimos. Mass bilhetes nao seriam novidade para Margarida. Ela sabia de cor ¢ salteado cada palavra, cada virgula, cada ponto. —— MARCAS DE UM OLHAR —— Tudo comegou numa noite de quarta-feira, véspera do meu aniversdrio de quatorze anos. Eu estava no quarto, mergulhado nas emogées do futebol, quando, de repente, vozes alteradas entraram em campo e deram inicio a um jogo acirrado. A disputa ndo era na televisdo; vinha l4 da sala. Meu pai e minha mie, outra vez. O perfil das discuss6es entre os dois nao costumava variar. Ela sala do prumo com extrema facilidade, gesticu- lando, falando alto, repetindo intimeras vezes o que tinha acabado de dizer, enquanto ele mantinha o tom baixo da voz, raramente se descontrolava, paciéncia de monge. Talvez por conta desse bom temperamento do meu pai, briga li em casa era como um balio pequeno, do tipo japonés, que se apaga antes de atingir uma altura elevada. Se havia uma coisa que eu nao fazia era tomar parti- do de um ou de outro. Era melhor deixar o balaozinho cair, sumir na escuridao, sem causar incéndios, sem deixar mor- tos nem feridos. Mal sabia eu, entretanto, que o desentendimento daquela noite tinha labaredas intensas, com focos de magoa, ALciors GOULART rancor € até agressividade. Preocupado com o tom das vores, mais alto ¢ tenso do que o costumeiro, inclusive por parte do meu pai, deixei a porta entreaberta para entendero que estava se pasando. Soltando fumaga por todos os poros, minha mieexi- gia explicagdes. Por que ele nao tinha comprado o meu pre- sente de aniversdrio, conforme o prometido? O que tinha feito com o dinheiro? Por que voltava com bafo de dlcoole, ‘© que maisa irritava, com perfume feminino? Foi a primeira vez que presenciei minha mie o acusando de traigdo. Geralmente as discusses eram por motivos corriqueiros, sem ofensas, sem xingamentos. Erao dinheiro que no cabia no més, o futebol no hordrio dano- vela, a impada queimada do quintal, o muro que precisava de uma demio de tinta. Eram leves as consequéncias, nio chegavam a abrir feridas. Uma ou duas horas de caras amarradas, nada mais sério. Num tomatipicamente éspero, meu pai argumentou no ter tido contato com mulher nenhuma, que era tudo imaginagao dela. Que nao tinha ido além de dois copos de cerveja e, quanto ao dinheiro, havia sido assaltado no 6nibus quando voltava do servico. Ele era pedreiro, trabalhava bastante, descansava $6 aos domingos, quando fazia questdo da companhia da fa- milia. Nao era do tipo dominador ou fanfarrdo; falava so- mente 0 que considerava essencial. Se da boca nao salam tantas palavras, 0s olhos diziam uma infinidade de coisas. Olhos que brilhavam quando ele falava da infancia > a ai MARCAS DE UM OLMAR E OUTROS CONTOS. em Alagoas, dos banhos de rio, das noites de lua cheia, do céuestrelado. Ou quando me ensinava a virar cambalhota, a fazer embaixadas, a chutar a bola com o peito do pé. Os olhos também cintilavam quando ele assistia aos jogos do seu querido América. Diante de uma vit6ria sobre 0 Flamengo, entio, 0 brilho ficava maior que o do sol. Minha mie nao aceitou as explicagdes. Mentira deslavada, ela esbravejava, visivelmente transtornada. Além de nao ter comprado o presente do filho, tinha usado 0 dinheiro com uma vagabunda qualquer. Vagabunda... foi esse o termo usado na primeira vez; depois, veio uma sequéncia de palavrdes, Nunca tinha ouvido minha mae usar linguagem tao chula. ‘Apesar da intensidade da discussao, talvez nada de grave teria ocorrido se eu tivesse fechado a porta do quarto ¢ prendesse minhas atengdes unicamente ao que dizia 0 locutor do jogo. Meus ouvidos, porém, ficaram grudados na disputa l4 da sala, torcendo que soasse o apito final, que obalio se apagasse. © que nao aconteceu. Dessa vez, a bucha estava encharcada demais, ea explosio se deua partir do momen- to em que minha mie se colocou a frente do meu pai, nio permitindo que ele fosse para o quarto. Nao iria passar dali enquanto nao confessasse onde o dinheiro tinha sido gasto €0 porqué do cheiro de mulher na sua roupa. Jé ndo era um simples balio pegando fogo, mas um, incéndio de grandes proporgdes. Exausto ¢ no menos transtornado, meu pai exigiu que ela saisse da sua frente, ALcipES GOULAKT mas nao foi atendido. Foi ai que ouvi “Me larga, voce estt me machucando, aii Inacreditavel: meu pai agindo com violéncia. Logo ele, que sempre se controlou; logo ele, que nunca tinha er. guido a mio para me bater, mesmo quando eu era pequeno ‘emerecedor de umas palmadas. Na rua, também era pacato, nio se envolvia em confusdes ou brigas. AtOnito, vi minha mie sendo empurrada contra 0 sofa. Um impulso me fez partir para cima do meu paie desferir-Ihe um tapa nas costas. Ele chegou a desequilibrar- se, recompondo-se logo em seguida. E virou-se para mim, coma mio levantada. Sem recuar, apontei a safda: “Va embora e nio volte nunca mais!” Ele recolheu a mao, nao xingou, nio disse nada. Contra-atacou sim, mas com a mais poderosa das suas armas: o olhar. Comprido, fulminante, arrebatador. Que durou segundos, mas pareciam séculos. Em seguida, tomou 0 caminho da rua, firme, sem dat uma palavra, sem olhar para trés. Minha mie, ainda no sofa, caiu num choro convulsivo. Eu a tomei nos bragos como um super-herbi depois do gesto salvador, apesar da kriptonita que fazia minhas pernas tremerem. Ficamos ali, abragados, por um bom tempo. Depois das légrimas, 0 que se via nos olhos da minha mac eraa busca do reequilibrio familiar, Procurava ela ago™ MARCAS DE UM OLMAK £ OUTROS CONTOS. atenuara atitude dele, dizendo que o empurrao nio tinha sido forte; que aquilo ndo podia ser considerado uma agres- si0, mas sim um gesto impensado num momento de perda do autocontrole, talvez sob efeito do Alcool ou das pressdes do dia a dia. Sobre a tal vagabunda, nio disse uma palavra, empenhada que estava em nao criar em mim um clima de revolta. E.cu, num silencio nervoso, sem saber 0 que dizer, sem saber 0 que pensar, sem saber como agir numa situag4o jamais vivida, Passamos 0 resto da noite no sofa, esperando ouvir 0 girar da chave na fechadura. Nada. Para me tranquilizar, minha mie assegurava que ele voltaria logo, cabega jé resfriada e continuaria a sero bom marido e pai de sempre. Previsdo que nao se concretizou, infelizmente. Pois no dia seguinte¢ nos outros também, acampainha 0 telefone mantiveram-se em siléncio finebre. Minha mie nio safa, aguardando ansiosamente o retorno do homem que amava. Teve um dia em que voltei mais cedo da escola e, quando abri a porta, vi a decepgto nos olhos dela. Pensou que fosse ele. Cabisbaixa, esfregou 0 avental no rosto € voltou para a cozinha. Ainda que abatida, minha mae nao deixava de pro- nunciar o nome dele seguido de clogios ¢ boas recordaydes. Ela falava dos sdbados em que ele entrava em casa com olhos, de crianga peralta, bolsos cheios de balas, jujubas ¢ pagocas, ALcIDES GOULART para depois despejar tudo na mesa da cozinha. Lembray, também os domingos maravilhosos que passivamos ny Quinta da Boa Vista ¢ na ilha de Paquet. Eu ouvia em silép. cio, percebendo na minha mae a preocupa¢io em mantery meu pai perto do meu coragao. Na verdade, ela nem precisava se preocupar com ‘os meus sentimentos, pois o que eu mais queria era tély de volta. Eujéo havia perdoado. Ele? Teria me perdoado? Eu o agredi, sim, o expul sei de casa, sim, mas foi uma reagdo instintiva a uma cenaa que nenhum filho suportaria assistir passivamente. Tal argumento perdia forga, entretanto, quando via tristeza nos olhos da minha mie. Ai eu me perguntan se deveria ter mesmo interferido naquela noite. Ou queo tivesse feito, porém de forma mais amena. Minha mice fez de tudo para nado me deixar marcas de culpa. Nunca reprovou meu ato. Muito pelo contriria dizia que tinha sido um gesto natural de filho e que, sehavt um errado naquele epis6dio, nao era eu. $6 nao afirmava que era do meu pai o erro. Tes no fundo, ela se sentisse a grande culpada, por ter dadoiti- cio a discussio. A medida que os dias passavam, 0 vazio ia se op Thando pelos cémodos. Minha mie, cada vez mais desolat choramingava por todo canto. Embora meu rosto ni? vivesse molhado, a tristeza ndo era menor. Saudade, mult saudade. Dor, muita dor. Manha, tarde e noite, a imagem® . as MARCAS OF UM OLMAR E OUTROS CONTOS meu pai me desferindo aquele olhar nao parava de arder dentro de mim. ‘Trés semanas e nada. Minha mie resolveu, entao, procuré-lo nos prédios onde ele costumava prestar servigos, mas ninguém sabia do seu paradeiro. Noticias s6 chegaram através de um telefonema da irma. Tia Marta informou que ele tinha viajado para Maceié, onde estava morando e trabalhando. Pediu que tivéssemos paciéncia, porque ele era meio esquisito. Con- tou que, certa vez, na adolescéncia, tinha desaparecido de casa por trés semanas apés uma desavenca familiar. Outros chas de sumico vieram depois, até que, jé adulto, veio morar definitivamente no Rio. ‘Nao hé o que fazer, tentava minha mae me confortar, a ndo ser dar tempo ao tempo. Ele ha de ter saudades voltar; afinal, nés somos a familia dele. Familia dele. incertezas provavelmente ruminavam os pensamentos da minha mie: ele teria ido para Maceié disposto a comegar uma nova vida, uma nova familia? Teria viajado com alguém? Estaria dividindo 0 teto com uma companheira? Como nio era suficiente o que ganhava com os sal- gadinhos caseiros, minha mie pensou em procurar uma agéncia de emprego, mas acabou nio sendo necessirio, pois, um depésito salvador caiu na sua conta bancaria. O bastante para pagar as contas do més. Nao havia duividas: meu pai, ainda que distante, nao nos deixou desamparados, prova de que nao havia nos abandonado. Minha mie, enfim, sorriu, Avciors GOULART Mas nio por muito tempo. Soubemos pela tia Many que ele id nio se encontrava mais na capital alagoana. Tinhy viaiado sem informar o destino, sem deixar contato, pro. metendo que ligaria vez por outra para dar noticias, O tempo foi caminhando. Os depésitos mensaisnig falhavam, mas nenhuma carta chegava, um telefonemase. quer. Ah, como eu sonhava com seu retorno, antevia sua entrada pela porta da frente, seu olhar amigo, sua voz serena me chamando de filhao. Apesar dos insistentes convites das amigas, minha mie nio se interessava em sair. Seu tinico foco era o meu bem-estar ea casa arrumada para o dia em que ele voltass, Até retirou do guarda-roupa uma flamula do Américaea fixou na parede da sala, bem em frente a porta de entrada Nio havia melhor forma de lhe dar as boas-vindas. América. Eu bem que poderia ter seguido os sew passos, mas por influéncia de um amigo de infancia, acabei me tornando vascaino. Meu pai parecia nao seimportar.“Nio quero ver meu filho torcendo por um time que vive s6 das glérias do pasado, nao quero ver meu filho sofrer” Nioen isso, entretanto, o que seus olhos revelavam. Eles guardavam uma esperanca de que eu o acompanhasse um dia. E nio € que a saudade conseguiu tal proeza? ls mesmo! Fui assistir a varios jogos do América. Torcidt Pequena, mas simpitica, inflamada, com que me identifi quei rapidamente. Eu vibrava, pulava, reclamava do srbitl® como o mais fanatico dos torcedores, enquanto meus olh®s s agitavam por todos os lados, na esperanga de vé-lo. Eeult MARCAS DE UM OLHAR F OUTROS CONTOS imaginava a enorme alegria que ia tomar conta dele se me encontrasse na arquibancada com aquela camisa rubra. Nao tive coragem de mostrar a camisa aos amigos. Nio entenderiam. Eu mesmo nio sabia direito como justi- ficar, se era uma tentativa de reparar um erro ou uma forma de preencher um enorme vazio chamado saudade. As duas razoes, provavelmente. O tempo nao me trouxe novidades, a nao ser uma voz mais encorpada, menos espinhas no rosto e mais fios de barba, Minha mie ganhou cabelos brancos, rugas na face e um semblante conformado; quando nao estava fritando salgadinhos, dedicava-se as plantas do quintal ¢ aos seus, livros religiosos. ‘Aos dezenove anos, ingressei no mercado de traba- lho. Técnico de computadores. Improvisei uma pequena oficina nos fundos de casa para trabalhar a noite. Durante o dia, os servicos eram executados nas casas ¢ escritérios dos clientes, Muitas vezes me pegava nas esquinas, nos corredo- res, nos elevadores, procurando nas pessoas o rosto que agora s6 via em retratos e sonhos. Entregando-me de corpo ¢ alma ao trabalho, o dinheiro aumentava a cada més, ¢a situagio 1d em casa ficou mais confortével. Foi até possivel comprar um carro; usado, mas eraum carro. A ajuda financeira do meu pai nio se fazia mais necesséria, Pedi a tia Marta que transmitisse esse recado acle no primeiro contato que tivessem. No més seguinte, odinheiro jé nao apareceu mais. A.cIOES GOULART Fiquei feliz. Se meu pai suspendeu os depésitos, ¢ porque jitinha chegado até ele a noticia de que seu filhio jf eraum homem, trabalhador, bem-sucedido, dono de auto- movel. Estaria cheio de orgulho, com certeza. Estaria orgulhoso mesmo? Eagora, ele teria vontade de me reencontrar? Deixei essas perguntas soltas no ar. O grande volume de trabalho preenchia meus pensamentos, ndo me permitia Jongasreflexdes. Aos vinte e trés anos, conheci Sofia, recepcionista de uma empresa para a qual eu fazia manutengo. Quinze meses de namoro foi o tempo necessario para que decidis- semos nos casar. Iriamos morar 14 em casa. Minha mie adorou a ideia; as duas se davam muito bem. Sem noticias do meu pai, liguei para tia Marta, con- forme fazia ocasionalmente. Dessa vez, porém, fui maisin- cisivo. Exigi a presenga dele no meu casamento. Nio me importava se tivesse nova familia, podia levar um caminhio cheio de filhos se quisesse. Eu queria apenas dar-Ihe um abrago e deletar definitivamente o virus que ainda danificava o meu sistema. Tia Marta disse que ia ver o que podia fazer. Uma enorme ansiedade tomou conta de mim nos dias que antecederam o grande momento. Mais que a cerimOnia em si, mais que a festa, mais que a lua de mel, 0 que me eletrizava era a forte intuigao de que reencontrariao meu pal Esc isso realmente acontecesse, sobre 0 que convet™ sariamos? Nao, nao seria o momento ideal para remexer® MARCAS DE UM OLMAR E OUTKOS CONTOS passado, falar da fatidica noite... Melhor seria abordar so- mente assuntos mais amenos: meu trabalho, o carro, a Sofia. E jé imaginavaa expressio de surpresa dele quando eu reti- rasse do bolso a minha foto com a camisa do América. No verso, a dedicat6ria: Pai, eu teamo. Enfim... o grande dia. Procurei ir logo para oaltar, de onde teria uma visio privilegiada de toda a igreja. Nem € preciso dizer que eu tremia em dobro. Tenso como todo noivo antes de ver a noiva; tenso como todo filho prestes a reencontrar 0 pai. A todo instante, a mio direita conferia se as alian¢as estavam_ no bolso, enquanto a esquerda fazia o mesmo com a foto. Num outro bolso, um lenco de sobreaviso, para me dar suporte no dia que tinha tudo para sero mais emocionante da minha vida. Os meus olhos corriam todos os bancos da igreja, todos os cantos, todos os pedacinhos de rosto que apa- reciam por trés das colunas. Algo me dizia que ele estava ali, olhos fixos em mim. Mas foi sé na tradicional safda dos noivos pelo vio central da igreja que meu coragio explodiu no peito. Lino Ultimo banco da ala direita, encostado a parede, meus olhos ir. Um homem de se depararam com um rosto bem fami terno preto. Sim, ele mesmo! Sozinho. Fisionomia leve,con servado, bem disposto, Sorria para mim, os olhos molhados de orgulho ¢ emosao. Tive o mpeto de correr para abraya- Jo, mas Sofia, ignorando o que se passava, me segurou firme até o fim do ritual. ALcIDES GOULART. Diante da quilométrica fila de parentes € amigos, eu recebia os cumprimentos de forma econdmica; os abragos eram breves, pois toda energia estava sendo reser- vada parao mais importante dos momentos, 0 mais caloroso dos abracos. ‘Ah,meu pai... Finalmente... Depois de tantosanos... A fila andava, mas nio répido o bastante. Coracio aos pulos, eu esticava os olhosa cada minuto para ver seele se aproximava. Nada. Talvez preferisse ser 0 tiltimo; melhor assim; poderiamos conversar livremente. Restavam agora menos de dez convidados. E 0 meu pai nio estava entre eles. Nao aguentei. Deixei todos me esperando e fui procuré-lo dentro e fora da igreja. Em vio. Tinha ido embora sem me abracar, sem falar comigo. Por qué? Por qué? Seri que ainda guardava mgoas de mim, depois de tanto tempo? Nao. Se fosse assim, nao teria comparecidoa ceriménia, muito menos langado aquele olhar tao afetuoso. Ainda na festa, narrei o ocorrido a Sofia, que, entre carinhos e beijos, tratou de suavizar minha angustia. O im- portante, disse cla, foi que ele nao tinha se esquecido de mim € que eu agora podia substituir 0 olhar daquela noite pelo olhar radiante da igreja. As palavras dela somadas a euforia de recém-casado gira como uma pomada analgésica. Se a ferida nio foi inteiramente fechada, pelo menos o sangramento foi estan cado por um bom tempo. MARCAS DE UM OLHAR E OUTROS CONTOS Onze meses depois, a cegonha esparramou alegria la em casa: Renato, nome do meu pai, sugerido por mim e prontamente aceito por Sofia. Eu imaginava a alegria do meu pai quando soubesse que o neto tinha o nome dele. No domingo pasado, Renatinho completou seis meses. Minha mie e Sofia resolveram fazer um bolo. En- quanto as duas animadamente preparavam as coisas na co- zinha, eu me esbaldava no chao da sala, rindo comas caretas do meu filho. Minha mae sentou-se ao meu lado, pensei que vinha se divertir também, mas vi nos olhos dela uma tensio to grande quanto aquela com que seguroua minha mao. Voz trémula, disse que estava na hora de me contar uma coisa sobre o meu pai. O que seria? Ele teria entrado em contato com ela? Havia formado outra familia? Pior, muito pior. Contou que meu pai, to logo saiu de casa, foi passar uns dias em Maceié, mas de l4 nunca saiu, por ter sido vitima de um atropelamento seguido de morte. Foi enterrado l4 mesmo, na sua cidade natal. Minha mie nao soube da tragédia de imediato. Foi tia Marta quem Ihe contou tempos depois. Quanto aos depésitos, era ela quem os fazia pela meméria do irmio falecido. Chegou a hora dele, Deus 0 chamou, disse minha mie varias vezes, resignada, enquanto Renatinho, alheioa tudo, divertia-se passando a maozinha no meu rosto coberto de ligrimas. ALcIDES GOULART Dominando a emogio, minha mie confessou que nunca teve coragem de me contar. Temia uma reagio dristi- ‘cadaminha parte, como tomar posse de uma culpa quenio me pertencia ou cultivar traumas e depress0es, conforme havia ocorrido com ela. Achou melhor nao arriscar até que chegasse a hora ‘oportuna, quando eu estivesse bem fortalecido para supor- taro impacto da noticia. Sentiu que hora tinha chegadoao me ver no chio brincando com Renatinho. Nada fortalece mais um homem do que a alegria de brincar com 0 seu filho, ela disse com os olhos marejados. E finalizou, pedindo que eu guardasse na memériao, reencontro na igreja. Certamente meu pai, onde quer que estivesse, encontrava-se feliz, realizado, Naquele dia, nao tirei mais o meu filho do colo, comendo bolo entre risos ¢ ligrimas. Alegria, Tristeza. Sau- dade. E também, devo confessar, uma dose de alivio, saber que nio foi por m4goa que meu pai no tinha voltado para casa. Foi reconfortante saber que ele nao nos tinha abandonado aquele tempo todo, que ele nunca deixou de nos amar. Na manha seguinte, acordei disposto, alegre, com a sensagio de ter sido abracado enquanto dormia. Levei meu filho a uma loja de material esportivo, de onde ele sai vestido com o uniforme do América. Eno seu rosto meigo, singelo, abriu-se um olhar radiante. Um olhar que eu conhecia bem, um olhar que nunca vou esquecer. —— A FORASTEIRA —— ‘A chegada de Jupiara sacudiu o vilarejo de Aguas Calmas. Impacto ainda maior do que 0 show de Pedro Boaventura, famoso cantor da capital. Osubito terremoto nio se devia a formosura daquela morena de trinta anos, mas aos dizeres de uma tabuleta afi- xada no portio da sua casa. Segundo 0 antincio, a moga po- dia prever o futuro, transformar pobres em ricos, acabar com omau-olhadoe recuperar mores perdidos. Em menos de duas horas, uma gigantesca fila formou- se diante da residéncia e abragou dois quarteirdes. Todos com uma nota de dez reais na mio, valor promocional de inauguragao. A fila andava répido. Cada consulta niolevava mais que cinco minutos. Bastavam duas ou trés cartas vira- das na mesa eum conjunto de palavras bem conectadas, para ‘cliente sair com um enorme sorriso de satisfagio. Alguns ‘com a certeza do sucesso da proxima lavoura; outros, com pistas de um tesouro valioso enterrado naquela regido: outros ainda, certos de reconquistara pessoa amada. A novidade correu a cavalo ¢ pulou as cercas da fazenda do poderoso Coronel Barroso. Coincidentemente, ALCIDES GOULART estava cle em meio a um dilema de adquirir ou nao umas terras na cidade vizinha. O alto valor do investimento nig Ihe facultava enganos, por isso a necessidade de profunds reflexio, projesio dos prés contras, avaliacdo das sconsequéncias,a fim de no contabilizar amargos prejutzos no futuro. Quando lhe falaram dos poderes da cartomante, nio se deixou contagiar no primeiro instante, mas, na manhi seguinte, saiu da cama com forte intuigao de que deveria marcar uma consulta com a forasteira. Algo de itil poderia, quem sabe, ouvir daquela mulher. Ordenou que seu capataz solicitasse uma sessio no- rua, pois repudiavaa ideia de ser visto misturado ao povo com uma nota de dez reais na mio. Jupiara recusou. Nao era de seu feitio atender ap6s as dezoito horas, com as cartasjé extenuadas. Bastou, porém, um pouco de insisténciae uma oferta bem mais substancial, para as cartas se mostrarem dispostas a fazer hora extra. Asnove da noite, hordrio em que a cidade degustava a novela televisiva, 0 fazendeiro rico e vitivo chegou escon- dido sob um chapéu e um casacio. Foi recebido por um belo sorriso € mil gentilezas. Até um baralho novo foi usado. Na mesa, frente a frente com a dita paranormal, 0 homem nio conseguia se concentrar na mensagem das cartas. Olhos embaralhados diante da deusa de vestido vermetho com generoso decote, Em menos de cinco minutos, as ¢ um destino fortuito. Para ambos. Em frente a, suadama A = MARCAS DF UM OLHAR F OUTHO® CONTOS de copas. Os olhos dela também brilhavam, diante do seu reidde ouros. No dia seguinte, a tabuleta ja nao se encontrava mais no porto da casa. ‘Abela morena passou a ser vista na fazenda do co- ronel Barroso. Chapéu elegante, botas envernizadas, queixo empinado, distribuindo ordens aos empregados. Quanto a0 negécio das terras, foi fechado, ea documentacio ficou logo pronta. Tudo em nome de Jupiara Barroso. —— CONEXAO PLENA — Ja ouvira falar de amor a primeira vista, paixig transmitida pelo olhar, pelo sorriso, pela voz. Ocorreushe, porém, algo diferente, mais moderno e nao menos romintico, segundo suas proprias palavras: amot ao primeiro clique. Assim que esbarrou em Aline, numa sa de bate-papo virtual. Amor online. Amor Aline. ‘Aquele jovem de dezoito anos nunca havia atingido conexio tao plena até entdo, apesar do grande ntimerode meninas com quem jé havia inicializado um namoro. Mas aqueles relacionamentos nao chegavam a ficar armazenados, simplesmente transitavam por unidades removiveisesepet- diam entre ruidos e interferéncias. Ou por pura falta decom patibilidade, como acontecera na maioria dos casos. Ose mecanismo de busca sonhava com um perfil tinico, enca™ tador, porém sé encontrava, nas mentes femininas, espa? vazio ou pastas abarrotadas de frivolidades. Mas Aline possufa uma configuragio singular,eraum versio especial. Diferente das demais, nunca parecia esti apressada, nao abreviava as palavras, mostrava grande sens MANGAS DF UM OLMAK F OUTHOS CONTOS bilidade na selecao das fontes. Letras coloridas, sublinhadas, emitalico, em negrito, estilos apropriados para cada emogao. Eo mais importante: suas reflexdes ¢ opinioes acer- ca de filmes, livros ¢ outros assuntos indicavam que ali funcionava uma méquina pensante, autonoma, viva,nao uma simples impressora ou copiadora. ‘A partir daf, o jovem passou a reprogramar suas ho- ras, parou de responder a emails rotineiros, passou a olhar 0s amigos como spans, enviou o videogame para a quaren- tena. Era Aline o tinico item da sua pasta de favoritos, a Gni- casenha salva na memoria, a tinica janela que se interessava emabrir. Alguns o recriminaram; nao poderia estar trocando arquivos estaveis por tempordrios. Mas ele, seguro de si, des- ligou o headphone das criticas e entregou-se a maximizaco dos sentimentos. Para felicidade desse usudrio, nao era o seu mouse 0 tinico a reluzir de euforia. Do outro lado, Aline foi mortal- mente atingida pelo cursor do Cupido etombou estatelada na rede, contaminada também pelo virus do amor. Naquela conexio tio intensa, de banda tio larga, o casal preferiu manter as webcans ofiline. Nada de fotos, fil- magens. Ocultaram nomes verdadeiros, links, extensdex. N30 abriram diretérios, nio revelaram arquivos. Proibiram-se de mostrar placas, terminais ¢ elementos externos. Importava, tio somente, a pureza romantica digitada em cada teclado. E assim passavam horas em continuo feedba copiando e colando sonhos, editando fantasias. ALcIDES GoULART Quando a barra de rolagem do tempo atingiy , marca de sete semanas, a conexdo dava sinais de super, quecimento. Chegara a hora, entao, de digitalizar sen mentos, imprimir olhares. © momento de exibir sey dados, revelar suas identidades. Hora de navegarem juntos, de-cabos entrelacados. Finalmente, o grande dia. O rapaz passou hora diante do espelho, entregue a um upgrade estético, instal do cremes, deletando espinhas, desfragmentando fios dec belo. Radiante como um disco recém-formatado, partiupar osite de encontro. Em alguns minutos, teria acesso diretoa servidora do seu coracao, que prometera se exibir com un vestido vermelho no banco de madeira em frente & tinica sorveteria do shopping. LA chegando, no horario marcado, o duro golpe,ca paz de derreter qualquer disco, por mais rigido que fose Mal podia acreditar no que visualizava. Sentada no banco estava uma dama de vermelho. Uma senhora aparentando uns setenta anos, cabelos tingidos de magenta, maquiagen exagerada, periféricos pendurados nas orelhas e no pescog: Todo o hardware do jovem estremeceu,o processidt do peito entrou em descompasso, os coolers pararam girar, travou-se o sistema. Agora entendia por que a sua Aline tinha perfil di ferenciado. Era uma velha. Velha como um computado! de valvulas. Fraco, antivirus desativado, alinhamento descent lizado, necessitando urgentemente de suporte técnico,¢k _— ——t—~— MANGAS OF UM OLHAR E OUTROS CONTOS: reuniu forgas para sair daquele portal e voltar para a sua homepage. Num misto de decepsao e irritacdo, bloqueou 0 acesso da sua ex-dama de vermelho, removeu-a da sua tela para sempre. E, desinteressado por novos downloads, deixou-se mergulhar num abismo offline. Tivesse ele ficado em standby por mais alguns minu- tos no lugar combinado, teria visualizado a tal senhora levantar-se e juntar-se a0 marido e aos netos na fila da lanchonete. Teria visualizado também o banco de madei- ra receber novo cadastro, uma outra dama de vermelho. Esta, sim, jovem bonita, rosto delicado, olhar meigo, com o brilho de esperanga de uma tela que sonha receber imagens multicoloridas. Mas, com o passar dos minutos de espera ¢ ansieda- de, 0 brilho daqueles olhos femininos e sedutores foi per- dendo a resolugdo, 0 semblante ganhou bordas e sombreamento. A seguir, uma queda de energia que nenhum nobreak do mundo conseguiria evitar. Instalava-se uma pro- funda depressao em seu software, gerando um output deli- grimas e incontdveis danos em seus componentes. Triste fim. Numa noite em que a conexio poderia alcangar sua plenitude, sucumbiam, em cada canto da lixei- ra, dois jovens coragdes fragmentados. Em outra dimensio, diante de uma tela widescreen, joystick na mio, o hacker chamado Destino divertia-se com seu desempenho naquele jogo maquiavélico. E se preparava Paraa fase seguinte. ~—— A CAVERNA — | Abriu os olhos com dificuldade. 0 estado detin, © impedia de ter ideia exata de onde se encontrave Poy, Pouco, todavia, a realidade foi se descortinando eosparig Tochosos ganhavam nitidez. Uma caverna. ssomesma caverna onde jamais estivera. Fisicamente debilitado, como quem chega deur, guerra, levantou-se. Mal dava para permanecer dep. 0; joelhos tremiam eas pernas davam tudo desi parasustent: © corpo. Mesmo cambaleando, conseguiu movers metros frente, sobre um solo infestado delodo, ondeat Passo era um sacrificio. Mas, afinal, que caverna era aquela? Como oraz ali? Onde estava sua casa, a santa esposa, 0s filhos, ogi te, os assessores, os amigos das festas e das farra? Sequestro? Teria sido sequestrado? Seria agus: cativeiro? Mas, entdo, por que nao havia ninguémavigi? Além disso, politicos renomados nao costumam st desse tipo de crime. Sentiu frio, muito frio. $6 entao reparou ques”? MARCAS OF UM OLnAs F CsThCZs COMTO™ sem camisa, Em vio abragou 0 proprio corpo. A respiracao tornou-se mais comprimida, ainda mais ofegante. Um resto de luz 6 era possivel gracas a0 raio de sol que se infiltrava por umas frestas da parede. Olhou para frente, para trds, para os lados. Nenhuma entrada, nenhuma saida, Medo. No teto, estalactites afiadas e ameacadoras, 4vidas por um ataque fulminante, sem falar nos mo semelhantes a morcegos, que voavam, barulhentos, em busca de algo que lhes saciasse a fome. Mergulhada naquele ar rarefeito, a cabeca mal se mantinha equilibrada, e a sensagio de desmaio ia e v Mas nao podia ceder, tinha de resistir, preservar con. ‘0 sangue que os vampiros do teto esperavam 2 hora cei de sugar. De repente, seus olhos captaram, sobre uma pedra, um projetor de filmes. Nao fazia o menor sentido. Como tal equipamento fora parar ali? Esfregou os olhos, podia ser uma alucinagio, Nao, nao era. O aparelho estava li. Certamente incapaz de funcionar, pois inexistiam tomadas nas paredes, tampouco qualquer tipo de corrente elétrica. Aproximou- secom certo cuidado, temendo cair numa armadilha. Deveria ligaro aparelho? Apés ruminar a divida por alguns minutos, cedeu ao impulso. Afinal, o que de pior poderia Ihe acontecer? Pressionou o botio ON ¢, surpreen- dentemente, um foco deluz iluminoua parede frontal. Como era possivel? Bateria, talvez. Mesmo sem entender em que stros jogo macabro estava envolvido, sentiu que devia dar conti- nuidade. Foi a vez, entio, do botio PLAY. Aucies GOULART Eo que viu projetado na tela rochosa o deixou petri- ficado. Um filme, No qual era ele 0 protagonista. Cenas ¢ mais cenas, desde a época de adolescente até os seus atuais sessenta anos. Um filme biogréfico. Um espelho da sua vida, Levou a mio ao peito, em estado de choque. Afinal, o que significava tudo aquilo? Quem filmara aquelas cenas? De onde viera o filme? Quem estava por tris desse enigma? Sabia que o filme era a peca chave daquele quebra- cabega. Tentou concentrar-se em cada cena, observar os de- talhes, relembrar os momentos ali registrados. E, diante de cada lembranca, uma lamina afiada corria-lhe sobre a epiderme, rasgando 0 corpo, da cabeca aos pés. A testa late- javaea propria respiracdoo sufocava. Um filme delator. Mas, sobretudo, verdadeiro. Cenas com legendas de egoismo, descaso, irresponsabilidade, dis- timinagio, falsidade, hipocrisia, mesquinhez, desonestidade, traigdo, covardia, édio, vinganca, corrup¢io... No era ficgdo. Tudo ali era a mais crua verdade. E cada verdade perfurava-lhe 0 corpo, varava-lhe as visceras, atingia oamago. Como pudera ser tio vil, leviano, irrespon- sdvel esses anos todos? Como desperdicara fatia tao signifi- cativa de uma existéncia que lhe fora presenteada de forma to generosa? Nao, ndo podia alegar fome, miséria, dificul- dades financeiras, desamparo familiar ou satide debilitada. Pelo contrério, a vida Ihe encheu de privilégios e regalias. Entio, por que escolhas tao escusas ¢ sombrias? Como fora capaz de transformar botdes de flores em ervas daninhas? MARCAS DE UM OLHAR E OUTROS CONTOS Essas perguntas chicotearam seus pensamentos nas tiltimas semanas. Pontadas no couro cabeludo, tonturas, intuigdes tenebrosas. Eis porque andava acabrunhado, taci- turno, sem que ninguém da familia conhecesse a razao. Aumentava o frio da caverna a cada minuto; a cabe- a, dura como rocha, prestes a explodir; murmirios ecoa- ‘vam das pedras; risadas maquiavélicas brotavam das fendas; das paredes, escorria um liquido vermelho e viscoso. ‘As punhaladas, tio profundas, nao cessavam, tiravam- Ihe as forgas fisicas, mas nao a lucidez, 0 que intensificava ainda mais o sofrimento. Era essa lucidez doida que lhe revelava todo o mistério: era vitima de um algoz desconhe- cido ¢ poderoso, que lhe acoitava por tudo de errado que fizera até entdo. Sentia-se numa camara de tortura, dentro da propria consciéncia. Cada vez mais enfraquecido e agonizante, questio- nava-se sobre o que estava por vir. As estalactites viriam lhe cravar o peito? Iniciar-se-ia o ataque mortal daqueles mons- tros voadores? Ou talvez o verdugo, sensibilizado com os primeiros sinais de arrependimento, Ihe concedesse novas oportunidades? Ajoelhou-se, cerrou os olhos com firmeza e, numa atitude desesperadora e inédita, orou. —— TEORIA CORRETA —— ‘Quando crianga, nem a bola nem os carrinhos atrafam_ seu olhar. O patinete parecia-lhe rudimentar demais, ¢ 0 videogame, apesar das imagens tridimensionais, nao era ca- pez de colorir suas aventuras. Os demais brinquedos, igual- mente renegades, viviam submersos num cesto, fazendo,es- poradicamente, a alegria dos primos e demais visitantes. No seu quarto, lugar cativo s6 para os foguetes ¢ as aves reluzentes, que rasgavam 0 cu imaginério rumoa um expaco muito além do teto, pousando em longinquos pla- netas ¢ estabelecendo contato com extraterrestres, alguns amistosos, outros abomindveis. Desses contatos, surgiam amizades duradouras ou batalhas que faziam estremecer todas as galixias. A medida que 0 menino crescia, as espagonaves turbinadas de aventuras, a0 contririo do que se esperava, nao foram abatidas pelos misseis da maturidade. Manti- nham-se intactas, brilhantes, incentivadas pelo avd, alto funcionario aposentado da NASA, 0 mais assiduo frequentador do quarto, Ali os dois passavam horas, pla nejando as viagens, ajustando os transmissores, regulando MAKCAS DF UM OLMAK OUTHOS CONTOS 0 robds, polindo os capacetes, envernizando as conversa ¢ossonhos. — Sabe, vO, quando eu crescer, vou viajar num foguete de verdade. Vou explorar planetas, fazer mil descobertas. Ohomem era sé empolgacao: —Oseu sonho é0 meu. E tenho certeza de que vocé vai comprovar a presenga de vida nesses planetas. Mas nao pense que serio monstrinhos verdes € horrendos que vai encontrar. Isso & coisa da ficgao cinematogrifica. —Como o senhor imagina os extraterrestres, vO? — Iguais a n6s e iguais a todos os habitantes do universo, —Iguais?! Como assim, v6? Vocé acha que as criaturas de todos os planetas tém cabelo, nariz, dois olhos, boca, —Por que haveriam de ser diferentes? O universo no passa de uma drvore, com milhdes de galhos, mas a raiz éa mesma. E 0s frutos carregam a esséncia dessa raiz, entende? Osolhos do menino brilhavam. — Um dia vou ter essa resposta, vou sim. Anos se passaram, ¢ 0 destino, pressionado pelos con- tatos do avd e sensibilizado com 0 sonho do jovem, abriu- Ihe as portas da NASA. Biol6gica e psicologicamente bem condicionado, destacou-se no curso de geologia, nas aulas de robdtica, nos testes de sobrevivencia na selva, na agua, no gelo, Primeiro colocado em todas.as provas. Concretizou parte do sonho ao ser efetivado como astronauta, ALcines GOULART A outra parte viria a ser realizada anos depois, jé sem apresenga carnal do avd. Foi-Lhe concedido, finalmente, maior presente da sua vida: uma viagem pelo espaco. Destino: Vénus. No grande dia, a emogao parecia voar acima de qual- quer satélite. E por baixo do uniforme de viagem, presa ao peito, uma foto do avd sorridente, que nao poderia ficar ausente daquela conquista. Olangamento foi perfeito e, apés operagdes basicas ao redor da crosta terrestre, o foguete partiu para sua grande missio. Setenta e duas horas de uma viagem serena em quea tinica turbuléncia vinha do peito carregado de expectativas. Aaterrissagem em solo venusiano transcorreu sem contratempos. Chegara, enfim, 0 instante magico de sair da nave. Eo fez sem movimentos bruscos, como repetira cen- tenas de vezes no treinamento. Do lado de fora, nada enxergou além de vasta drea desértica, mas ainda era cedo para tecer conclusdes. Coma ajuda de um aparelho, certificou-se do que j4 constatara dentro da nave: a atmosfera era rica em oxigenio. Removeu © capacete, inspirou, expirou indmeras vezes. Tudo certo até entio. Quando se preparava para explorar 0 local, eis que surge um punhado de nativos. Cinco homens, trés mulhe- res, duas criangas; todos com tronco, cabeca, membros. No rosto, dois olhos, um nariz, uma boca. Nao fossem os membros superiores ¢ inferiores igeiramente mais longos¢ finos, seriam idénticos aos terrestres, MANGAS DE UM OLHAK E OUTROS CONTOS “Vocé tinha razdo, vo!", ele exclamou, apertando a foto no peito. “Os seres so iguais em todo 0 universo.” — Seja bem-vindo! — um deles aproximou-se € apertou-lhe calorosamentea mao. —Vocés falam minha lingua?— ele reagiu, surpreso. —Podemos falar qualquer idioma do seu planeta. —O que mais vocés sabem sobre a Terra? —Dispomos de quase todos os seus dados, porém &a primeira vez que temos um terréqueo diante de nés. Venha, venha conosco. Vocé deve estar exausto apés tao longa jornada; faz jusa um bom descanso. ‘Acompanhado dos anfitrides endo cabendo em side tanta euforia, o forasteiro ingressou num veiculo sem rodas, que deslizou rapidamente até parar em frente a uma porta de madeira, Entraram todos. Tratava-se de uma residéncia do tipo terrestre, com sala, quarto, banheiro, cozinha, geladeira, fogio.... —Puxa! — ele festejou, radiante. — Por esta, acho que nem o meu avo esperava! Assim que os gentis nativos se despediram, ele correu paraa banheira, onde se deliciou em 4guas mornase espumantes. Depois, 0 repouso merecido, langando-se prazerosamente sobre o sofi eabragando as almofadas, ale- gre, vitorioso, realizado, enquanto imaginava como Terra reagiria ao ver as fotos ¢ 0s videos daquele lugar. A cimera! Havia deixado a camera na nave. Iria busci- la de imediato. Nao conseguiu, porém, abrir a porta da frente. O mesmo aconteceu com a dos fundos. Acces GOuAKT Mas... O que estava acontecendo, afinal? Por que as portas da casa estavam trancadas? A resposta chegou quando resolveu abrir as cortinas da sala: barras de ferro, Uma jaula. Estava preso numa gigan- texca jaula. Ld fora, venusianos, em grande niimero, 0 obser- vavam com incrivel curiosidade, Em frente a jaula, uma placa informava: CRIATURA TERRESTRE EM SEU HABITAT NATURAL. Agarrado as barras, a foto do avd entre os dedos, desespero escorrendo-Ihe pelo rosto, foi tombando até ficar de joelhos. — Voce tinha razio, vd, vocé tinha razao. criaturas sio iguais em todo o universo. As (orsperado num eurta-metragem em pretoe branco dos meados da séeul passado) —— NOITE DE ESPLENDOR —— Ao redor da piscina suntuosamente iluminada, os participantes da festa, em meioa licores eacepipes, observa- vam os imponentes carros que chegavam a cada minuto. Foi entre uma Ferrari e uma Mercedes que deu entrada um fusca verde-alface, motivo de chacotas, inclusive por parte dos garcons e das copeiras. Metido num terno de segunda linha, um rapaz saiu do carro, recebeu os cumprimentos do anfitrido ¢ logo se embrenhou entre os ilustres convidados. Ninguém sabia quem era aquele jovem, mas nio havia duivida de que se tratava de um estranho no ninho, alguém que estivesse ali por exagerada condescendéncia do excén- trico milionrio. Talvez um funcionsrio da instituigio de caridade de que era mantenedor. Ele foi apresentado a uma roda de rapazes e mogas, mas bastaram cinco minutos para um a um pedir licenga, afastar-se discretamente e procurar outro grupo. E assim foi, até que ficou acompanhado somente de uma jovem de vestido simples e olhar singelo. Nao se importando com 0 descaso dos demais, os dois mantiveram uma con- versa bem descontraida. ‘Aciocs GOULART rapaz ficou sabendo que estava diante da neta da babi que cuidara do anfitrito quando crianga. Uma moca de familia humilde, Por sua vez, 0 jovem revelou que ga nhara a credencial para a festa por ser o mecanico da frota do miliondrio. Feitas as apresentacdes, a conversa foi ganhando animagio. Em menos de duas horas, ja riam a valer e dangavam com 0s corpos bem colados, sob um céu salpicado deestrelas. — Agora tenho que ir, vou pegar um t4xi. Daqui a pouco vai dar meia-noite e voltarei a minha condigao de Cinderela — ela brincou. Eleimediatamente prontificou-sea levi-la em casa, Dentro do fusca, o clima era de carruagem. Dois coragdes magicamente tocados, dando inicio. a um conto de fadas. Dalia instantes,a moga pediu para saltar em frente a um luxuoso prédio defronte praia. — Moro aqui. Na cobertura — confessou, enver- gonhada. ‘Aocompanheiro em estado de perplexidade, revelou ser filha do presidente do maior estaleiro do pais. Isso mesmo. Era rica, riquissima. Desculpou-se pela farsa¢ explicou que, nio tolerando 0 jogo de interesses, a hipocti- sia, a podridio que reinava no meio em que vivia, resolveu ir A festa disfarcada de Cinderela. Na verdade, uma Cinderela a0 contririo, pois a sua fantasia era a pobreza. Tudo pelo sonho de encontrar um principe nio encantado pelos cifrdes do seu pai, mas pelo patriménio do seu cora¢io. ve MARCAS DE UM OWA E OUTROS CONTOS Concluiu, entio, estar feliz com o desfecho do plano, pois enxergara sinceridade nos olhos dele, mogo humilde, mas de pensamentos nobres. Oencontro terminou com um beijo sincero e apai- xonado, testemunhado apenas pelas estrelas. O jovem voltou para casa com coragao de principe. Que sorte achar alguém como ela, imune ao cheiro do dinheiro € a0 consumismo banal! Um coragao livre das amarras do poder e dos jogos de interesse, & procura de outro do mesmo quilate. Nem foi preciso abrir 0 portio automitico da sua mansio. O mordomo o aguardava para trocar as chaves do fusquinha pela BMW. Na luxuosa cama, coberto por um lencol de seda, o principe, ainda acordado, j sonhava com o préximo encontro com a sua Cinderela, alguém muito parecido com ele, De mesma classe, de mesma nobreza, de mesmas ideias. —— PROVA DE AMOR —— Portelefone chegou a resposta que lhe arrancara 0 sono das ultimas noites, Apds uma saraivada de testes ¢ entrevista fora dassificada paraa grande final, Agora, s6 restavaa entre- Vista téte-a-téte com o presidente da multinacional, O ultimo degrau para o paraiso, o emprego tio sonhado, Chegou meia hora antes do hordrio marcado. A secretiria gentilmente lhe serviu um café ¢ informou que somente dois candidatos haviam sido selecionados para a ultima e decisiva etapa, LA dentro da sala, encontrava-se 0 outro finalista, sendo sabatinado pelo Big Man. Lutando contra a ansiedade, a candidata folheava uma revista, tamborilava o pé direito no chio, jogava o cabelo para tras acada minuto. Que tipo de perguntas teria de res- ponder? Como 0 todo-poderoso a olharia? Corresponderia as expectativas? E quem seria 0 outro candidato? Homem ou mulher? Jovem ou maduro? A resposta se deu com a abertura da porta, saindo um moreno alto beirando os trinta anos. Ela quase nio acreditou. Gérson! Sim, ele mesmo. O mesmo Gérson que namorara durante 0 quarto periodo da MARCAS OF UM OLHAN HF OUTHOS CONTE faculdade, tinica fase da vida em que scu coragdo erguera uma taga ao amor. Quis o destino que se encontrassem ali, apds dez anos, como oponentes na disputa de uma unica vaga numa das maiores empresas do pats. Com o mesmo sorriso que a arrebatara no pasado, udou com um cordial © mogo veio ao seu encontro € a beijo no rosto, Sentou-se ao seu lado. Trocaram frases cur tas, sem importincia. Também trocaram telefones. Prometendo entrar em contato, o mogo se despediu cadeixou de joclhos trémulos. Sorte que nao foi chamada imediatamente. Foram quinze minutos investidos em exercicios respiratorios, aprendidos no ioga, que lhe devolveram um pouco do equi brio de que tanto necessitava. A entrevista foi mais tranquila que supunha. O pre- sidente da empresa era sujeito simples, atencioso, ¢ a mosa saiu com a certeza de que causara otima impressio. A partir daquele dia, 0 telefone passou a ser 0 companheiro inseparivel, fonte provivel de convites que iriam encher dois potes vazios até entio: 0 profissional eo afetivo. A ansiedade a castigava, mas precisava manter a calma. Gérson ligaria, Se ele pediu o mimero, ¢ porque en- traria em contato. Mas as incertezas também a beliscavam: poderia ele ter sido apenas gentil? E ainda que ligasse, isso significaria 0 retorno de um romance que tinha tudo para darcerto? Epor que nio dera? ‘ALcIDES GOULART Imaturidade dele, ela explicava para si. Na flor dos seus dezenove anos, despedindo-se da adolescéncia, ele agi rade forma infantil. Depois de trés meses de um namoro alegre, bem vivido, em meio a festas, cinemas, parques ¢ shoppings, eis que, de uma hora para outra, 0 rapaz exigiu- The uma prova de amor. Ela recusou. Ainda nao era o momento. Jé lhe entregara o cora¢io, a alma, mas 0 corpo deveria esperar um pouco mais. Ele insistiu, Nao abria mio da provadeamor. Antea recusa, ele foi implacivel na decisio. Um adeus frio, seco, de poucas palavras. No més seguinte, j4 desfilava pelos corredores, enrodilhado com outra. Tio grande eraa dor devé-loem bragos que nao eram 0s seus, que mudou de horério, Transferiu-se para o perio- donoturno, coma desculpa de precisar trabalhar durante o dia, No campo sentimental, nunca mais se aprumou, Expe- rigncias diversas, algumas até longas; nenhuma, porém, abeirouoamor. Agora, dez anos depois, 14 estava ele, Gérson, 0 héspede fixo dos seus pensamentos, o inquilino nunca des- pejado. Vé-lo depois de tantos anos reativou a energia que vivia adormecida. Trés dias transcorridos, sem que alvissareiras noticias chegassem. Nem da firma, nem daquele a quem agora s¢ entregaria de corpoe alma. Gérson iria desejé-la novamente? Por que ndo? Afi nal, foil uma interrupgao sem brigas, sem traigdes, ser cica- MARCAS DE UM OLHAR E OUTHOS CONTOS: trizes. Certamente ele também guardava belas recordacdes dos filmes que viram juntos, das misicas, dos momentos de caricias. Iria gargalhar da propria imaturidade ao lem- brar que exigira uma prova de amor. Provadeamor... Otelefone tocou. Gérson atendeu, ansioso. © Depar- tamento de Recursos Humanos solicitava-lhe a documenta- ‘¢do para contrataco imediata. Vibrou como nunca. O susto foi grande no dia seguinte, quando Ihe foi dito que, na verdade, s6 fora chamado diante da desisténcia da candidata primeiramente escolhida, que alegara proble- mas pessoais. Ela permanecia imével, ao lado do telefone. Nao se arrependera da grande chance profissional desperdigada. O que desejava naquele momento era preencher 0 outro pote. Gérson iria ligar logo; iria, sim. Afinal, a exigéncia fora cumprida, a prova de amor fora dada. —— O NOMADE — Democracia na sua plenitude. Foi assim quesejuy ficou aquela emenda constitucional, iniciativa do preside te recém-empossado, que se intitulava o baluarte daliberi, de irrestrita. De pensar, de falar, de agir. E de se denominar também. A partir daquea de todo cidadao poderia escolher seu proprio nome. Nio': via nada mais sacrificante do que carregar, por toda ii um rétulo indesejavel, imposto por pais desatentos oud quilibrados. Previa 0 novo artigo da Constituicao que, ap dos dezoito anos, todo cidadao poderia livremente ale: seu primeiro nome. Tal mudanga poderia ser soliciuds! mitadamente, durante toda a vida. A jovem Berenice, exemplo, bastaria comparecer ao cartério, pagar uma de valor irris6rio ¢ sair dali como Desirée. Nio satife: poderia voltar no dia seguinte e mudar para Stephanie Alheio as alteragdes da Carta Magna, nascia opey" Diogo. Uma infincia alegre, sob o manto protetor dep! tuosos. Esperavam eles, que o menino nunca penase correr A nova lei e descartar o nome escolhido com tan'o2” Eaté acharam graga quando, aos trés anos, 0 garoto, junto com seus animais de pelicia, apresentava-se como Leon, um felino rapido ¢ valente. Coisa de crianga. ‘Também nao se incomodaram quando 0 filho, aos seis, fa inveterado da hist6ria do génio da limpada, espalha- vaque seu nome era Aladim. E assistia 20 desenho animado de segunda a domingo, trés sess6es por dia, deitado no seu tapete voador. Atéquea lampada migica foi quebrada pelo do poderoso Thor. Mas 0 novo nome nio durow muit foi derrotado, tempos depois, por um heréi blindado. Nukito. Gigantesco robé japonés. As chamado pelos colegas da escola e do bairro. ‘Todos divertiam-se com aquelas seguidas mu e até faziam apostas acerca do nome que viria a » O garoto passou a ser assunto obrigatorio em todos os circulos, rendendo-lhe comentarios irénicos ¢ piadas, mas também uma boa dose de prestigio. ‘Aquela euforia desenfreada nio era compa: Pelos pais, que, todavia, acharam melhor nao transfo uma simples brincadeira num tsunami. Era apenas uma fase Passageira, coisa da idade, talvez para chamar atensio. Masa sede do menino era voraz. Aos doze, apresen- tava-se como Bruce, o nome secreto do Batman. Tempos depois, assumiu o nome de um skatista campedo ¢, mais tarde, do criador de uma rede social, Os dezoito anos se aproximavam, ¢ a despedida da adolescéncia merevia uma celebrasdo. O garoto pediu uma >, pois passou a ser ™ Accwwes GOULART festa tematica de futebol, ao que foi prontamente atendido pelos pais, que fizeram questio de pendurar uma faixa na mesa do bolo: Diogo, nosso craque. O nome do filho vinha sublinhado ¢ em letras garrafais, a fim de mostrar a todos que, a partir daquele momento, seria o nome de batismo queo acompanharia vida afora. Logo apis o tradicional Parabéns pra voce, a surpre- sa. Ao oferecer aos pais as duas primeiras fatias do bolo, 0 menino agradeceu-lhes 0 carinho e comunicou a todos que havia um motivo especial para ter escolhido o futebol como tema da festa: iria mudar oficialmente seu nome em home- nagem a um genio da bola. Aplausos e vibragées. Com excegio dos pais ¢ familiares, boquiabertos, decepcionados. Oaniversariante falava sério? Iria realmente jogar fora ‘onome quelhe fora concedido com tanta ternura? Arresposta chegou no dia seguinte, quando 0 rapaz entrou em casa com um largo sorriso eo novo documento oficial de identidade. Com o nome de Neymar. Orientados por uma psicdloga, os pais nio espernearam, ndo arrancaram os cabelos. Haveriam de agit com muita prudéncia; afinal, 0 caso nao era tao grave assim, comparado a outros vicios devastadores da juventude. ‘A fase Neymar foi interrompida aos vinte anos, quan- do o rapaz levou a jovem Dalila a sua casa ¢ a apresentou como namorada. Suspiraram aliviados os pais, certos de que finalmente a imaturidade havia ganhado cartao vermelho. MANCAS DE UM OLMAK F CxsthOs Comtor Oalivio s6 durou até quando lhes foi mostrada uma nova cédula de identidade. Nela, o retrato atual do filho, cabelos compridos, ao lado de um nome de forca descomunal. Sansio ¢ Dalila experimentaram um amor épico nos primeiros meses, mas quiseram os deuses do Olimpo que, logo apés o primeiro corte de cabelo, o relacionamento fosse perdendo forcas. A familia sonhou com 0 seu retorno ao nome de batismo; preferiu ele, contudo, extrair das telas cinemato- graficas a sua nova identidade: Brad Cruise, fusio de dois astros de Hollywood. Falhou a estratégia dos pais em transferir ao tempo a tarefa de frear aquela estranha sindrome. Ao contrario, 3 medida que os dias passavam, inflamava-seo furor nomade. A todos filosofava que nome nao é algo estatico; €0 espelho daalma, devendo, portanto, retratar cada fase vivida pelo ser humano. Aos vinte e trés anos, revivendo o frenesi futebo- Iistico, resolveu homenagear um campeio mundial: Ronaldo, E teria se conservado assim por um bom tempo se nio ti- vesse conhecido Sueli. A sua metade, como ele anunciava a todos. E dizia também que, assim como seus corpos se misturavam nos lengéis, todas as suas esséncias, inclusive os nomes, deveriam fazer o mesmo. A moga, embriagada pelo turbilhao de sentimentos ¢ palavras, aceitou. Ele agora se chamava Suenaldo; ela, Ronali. Agora os dois eram um s6, como pregam os compén- dios do amor, Ronali, entretanto, depois de algum tempo, ‘Avcioes GouLarT arrependida, teve saudades do nome de bergo. Suenaldo nig aceitou, Seria umaafronta, um rompimento de um juramen. to eterno, além de um sinal evidente de que nio desejava mais mesclar suas vidas. Bem que a jovem tentou contornar, masa mistura se desfez. Para escapar da depressio, ele mergulhou no flashback musical. Os discos de vinil dos Beatles eram carregados para todo lugar. Passoua frequentar aulas de bateria, usando um casaco de couro, que estampava sua nova fase: Ringo. ‘Tendo que encarar a falta de afinidade como instru- mento eas constantes queixas da vizinhan¢a, as mios larga- ramasbaquetas passaram a segurar halteres. Transformou- seem rato de academia, ¢ 0 espelho passou a ser sua maior referencia. Olhos presos ao crescimento do peitoral, do deltéide e dos biceps, levou algum tempo para escolher a nova identidade. Apés dezenas de garimpagens na internet, ficou em divida entre Ulisses, Maciste ou Hércules. Acabou optando pelo ultimo. Diante dolongo tempo que permanecia contemplan- do-se no espelho, alguém Ihe sugeriu que mudasse para Narciso, mas Hércules nio topou. Durou bastante aquele pe- riodo de fascinacdo. Até que no peito, outra hipertrofia se fez: 0 verdadeiro amor. Pelo menos, era 0 que ele espalhava aos quatro cantos do universo. Sentia-se, pela primeira vez, completamente apaixonado. Morreria se nao tivesse o amor de Julia, morreria para salvar Julia, morreria com Julia. Viveriam juntos e morreriam juntos. Inspirado pela famost tragédia shakespeariana, pensou em se transformar em MARCAS DE UM OMAR £ OUTKOS CONTOS Romeu. E propés que Jilia virasse Julieta. A moga, temerosa deum fim trégico, preferiu mudar de parceiro. Sentindo-se desolado, vitima das agruras das relagdes humanas, voltou-se para os animais. Passou a adotar caes ¢ gatos de rua. E quando alguém Ihe perguntava o nome, respondia em tom baixo, esforgando-se para transparecer um olhar de humildade: Francisco de Assis. Nao foio ultimo. Muitos outros esticaram 0 cordao denomes. Lideres mundiais, personagens hist6ricos, lutadores de boxe, pacifistas, campedes olimpicos, ambientalistas, escritores, artistas... Nao lhe faltava inspiraao para novas possibilidades. O pratear dos cabelos nao o fez passar de nomade asedentério. Ao contrério, parecia ter feito um pactocom o destino; a cada novo fio de cabelo branco, uma nova designacdo. Ao comemorar 0 sexagésimo aniversirio, foi citado no Guiness Book, como o grande recordista mundial dos nomes. Perguntado se ndo houvera chegado a hora de definir sua identidade, riu e cantou: “O importante é que emogées eu vivi.” Por conta dessa resposta, nem era preciso Ihe perguntar o nome atual. Nenhum outro senio Roberto Carlos, Aos citenta e trés anos, enfermo, ciente de que nio Ihe restava muito tempo, o entio Newton mergulhou num grande dilema: com que nome deveria cruzar a barreira da vida? Como gostaria de ser chamado ao ingressar no reino

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