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É SÓ BRINCAR!

CONSIDERAÇÕES SOBRE O BRINCAR NA CLÍNICA PSICANALÍTICA COM


CRIANÇAS

Autora: Luanna Alexandra Cheng1

RESUMO

Este estudo buscou compreender o brincar e a sua função na clínica psicanalítica, perpassando
pelos momentos históricos em que a criança não tinha voz tampouco era um sujeito de direito. A clínica
psicanalítica com criança, apesar das divergências históricas iniciais, pode olhar para a criança como
criança e, o brincar passou a ter uma função, expressando suas vicissitudes, medos e angústias. É no
brincar que a criança se comunica, que repete situações vividas nas brincadeiras. Essa repetição é a
atuação do que passa a ser sua forma de associar livremente. Para o analista, cabe a tarefa de ajudar
a construir os caminhos que possam sustentar o ideal não alcançando pelo atravessamento do Outro
e que se faz presente nos sintomas dessa criança e do seu advir.

Palavras-chave: brincar; infância; psicanálise com criança.

INTRODUÇÃO
Durante a experiência do estágio no Centro de Referência para os Cuidados
de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violência (CERCCA),
localizado na Policlínica Lessa de Andrade, foi possível vivenciar o brincar na clínica
psicanalítica. Este brincar livre, que surgia do “nada”, passou a ser os enunciados de
associação livre. Segundo Garcia-Roza (2009, p.164) associação livre é, dentro do
possível, afrouxar a censura consciente e permitir que derivados, ainda que remotos,
possam aflorar à consciência e ser comunicados ao analista.
O estágio foi um dos pilares da formação em psicologia, em especial, por
permitir o trabalho com crianças que estiveram em situações de violências. Foi por
meio desse olhar na clínica, que o brincar surgiu como fonte inicial desse estudo. O
brincar como forma de expressão, de faz de conta, de reproduzir as falas e os gestos
de um adulto pela criança, das fantasias se tornarem realidade permeada de símbolos
e onde o tempo da sessão poderia esperar um pouco mais. Afinal, encerrar uma
brincadeira é retornar para a realidade e, como seria lidar com o que, provavelmente,
é um dos motivos dos sintomas que às trouxeram ao acompanhamento psicológico?
Para Souza (2021), brincar assegura o suporte necessário para que a criança
encontre a fantasia, dando um tratamento aos efeitos da linguagem sobre seu ser,

1 Aluna do curso de Psicologia da faculdade de Ciências Humanas – ESUDA (Recife-PE).


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onde um Outro fala por ela simplesmente, reproduzindo aquilo que a alienação
sustenta. Além do mais,
O brincar também diz do mal-estar da criança, sendo muito
observável que comprometimentos importantes no desenvolvimento
infantil e nas relações familiares acarretam dificuldades em uma
criança brincar...A criança descreve, queixa-se, inventa, associa e
brinca. É preciso saber escutá-la e saber promover o devido espaço,
na clínica, para que assim também possa expressar-se (Souza
(2021)

Ao trabalhar com crianças é fundamental compreender que lugar eles ocupam


no desejo do Outro, quais as queixas que eles trazem à clínica, não no sentido dessa
criança não se enquadrar em um determinado escore de desenvolvimento esperado
para a sua idade cronológica, mas compreender quais expectativas não foram
alcançadas entre o ideal e o real. Rodulfo (1990, p. 17), alerta para o perigo que
implica observar a criança apenas no sentido mais estreito e cotidiano, para entender
esse sujeito é preciso retroceder aonde ele ainda não estava.
Isso se deve também ao analista e a sua posição diante das demandas que
chegam à clínica, e sobre como se colocar à disposição da escuta dos sintomas e ao
mesmo tempo, como observar a dinâmica familiar na qual essas queixas foram
produzidas. Nesse quesito, não estamos falando sobre uma organização do sujeito
para atender às expectativas lançadas nele, mas trata-se do que ele vem
comunicando e que o outro não consegue perceber por resistências à se dispor à essa
linguagem própria. Isso remete ao que Winnicott (2019, p. 95) propõe,
“O sem sentido organizado é, por si só, uma defesa, assim como o
caos organizado representa a negação do caos. O terapeuta que não
consegue realizar essa comunicação se empenha na busca fútil por
algum tipo de organização do sem sentido e, por consequência, o
paciente se vê forçado a deixar a área do sem sentido, já que não
consegue comunicá-lo”.

É no brincar, que as defesas tanto da criança quanto do analista são postas em


xeque, é necessário olhar para o sem sentido que é criado, para a posição que o
analista é posto ou descartado da cena analítica, do querer estar com ou na ausência
desse outro. O brincar das crianças já é por si só uma forma de linguagem, não sendo
somente um mediador para a relação terapêutica, mas o próprio “terapêutico”
(LEITÃO e CACCIARI, 2017).
“É só brincar!”, frase essa, proferida pelo supervisor do estágio, e que de certa
forma apaziguava os momentos iniciais de uma profissional em formação, mas
também trazia inseguranças sobre como assim, é só brincar? Onde ficam as técnicas
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e teorias estudadas ao longo do curso, como saber de que “estrutura clínica estamos
lidando”? Vamos brincar de quê? Em suma, toda a fantasia que envolvem os primeiros
atendimentos na clínica.
Assim, este estudo teve por objetivo compreender o brincar e a sua função na
clínica psicanalítica, buscando entender sua relação com o processo de análise e de
nomeação dos sentidos e significados que a criança traz consigo para serem
explorados ao longo desse processo criativo de construção e expressão de seus
conflitos e sofrimentos.

MÉTODO
Este estudo caracteriza-se por uma pesquisa de revisão bibliográfica realizada
por meio de levantamentos nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS),
do Scientific Electronic Library – SciELO e do Periódicos Eletrônicos em Psicologia –
PePSIC. Para realização das buscas foram utilizados as seguintes palavras-chaves:
“Brincar”, “Psicanálise”, “Criança”. Segundo Marconi e Lakatos (2003), as fontes para
a escolha do assunto podem originar-se da experiência pessoal ou profissional, de
estudos e leituras, da observação, da descoberta de discrepâncias entre trabalhos ou
da analogia com temas de estudo de outras disciplinas ou áreas científicas.
Além disso, outras fontes de livros e artigos foram incluídas pela indicação de
especialistas da área de conhecimento. Para a realização deste estudo bibliográfico,
optou-se por uma organização que ocorreu pela escolha do tema, localização das
informações, discussão, fichamento dos achados, análise, interpretação e redação do
manuscrito (MARCONI e LAKATOS 2003).

O INÍCIO DA PSICANÁLISE COM CRIANÇAS


Quando se pensa em Psicanálise com Crianças é fundamental compreender
os caminhos percorridos ao longo da história que as tornaram sujeitos de direitos e de
desejos, para além da posição de objeto ou de função, das quais foram submetidas a
uma interpretação do Outro. Para a psicanálise, a criança é atravessada pelo
Inconsciente, dotada de pulsões e imersa em uma linguagem – real, simbólica ou
imaginária.
Na origem da psicanálise com crianças, vale salientar de quais crianças se
falavam e o lugar que elas ocupavam na sociedade do final do século XIX e começo
do século XX. Até então, as crianças eram vistas como adultos em miniatura, não
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tinham voz, tampouco eram sujeitos de diretos, que necessitavam de cuidados


especiais, indispensáveis ao seu desenvolvimento (COSTA, 2010; MEDRANO, 2003).
A criança era/é colocada em um lugar de passividade, que segundo Dolto (2005, p.37),
ela ainda é prisioneira de todos os símbolos que carrega e o adulto projeta nela todos
os seus sonhos, vendo na criança a idade de ouro perdida.
Ao longo do tempo, foi preciso um deslocamento da posição adultocentrista,
com uma lógica marcada pelos preconceitos e sujeições a que as crianças estão
ligadas na sua história, para uma outra, capaz de abrir o campo de escuta e leitura ao
infantil e do infantil (MEDRANO, 2003). Nesse contexto, Freud (1908) no texto
Escritores Criativos e Devaneios, destaca que a ocupação favorita e mais intensa da
criança é a brincadeira, ele compara o brincar de uma criança com o ofício de um
escritor criativo, em que a criança constrói o seu mundo numa nova ordem, que lhe
agrada e que a faz despender seus afetos nessa construção.
Foi a partir do conhecimento sobre a infância que a psicanálise estabeleceu os
conceitos fundamentais sobre os quais edificou tanto a teoria quanto a prática
(MEDRANO, 2003), Freud destaca no texto de 1914, A História do movimento
psicanalítico que:
No começo, minhas declarações sobre a sexualidade infantil
basearam-se quase exclusivamente nos achados, da análise de
adultos, que remontavam ao passado. Não tive nenhuma
oportunidade de fazer observações diretas em crianças. Foi,
portanto, uma grande vitória quando, anos depois, tornou-se possível
confirmar quase todas as minhas deduções através da observação
direta e da análise de crianças muito pequenas - vitória que foi
perdendo a sua magnitude à medida que pouco a pouco
compreendíamos que a natureza da descoberta era tal que na
realidade deveríamos envergonhar-nos de ter tido de fazê-la. Quanto
mais se levassem adiante as observações em crianças, mais
evidentes os fatos se tornavam; porém o mais surpreendente de tudo
era constatar que tivesse havido tanta preocupação em menosprezá-
los (FREUD, 1914, p12).
Freud não fez a analise direta de crianças, mas supervisionou e orientou o pai
do pequeno Hans e a partir da publicação “Análise de uma fobia em um menino de
cinco anos”, e alguns pressupostos da psicanálise foram estabelecidos, como a
possibilidade da confirmação da teoria sexual infantil e a aplicabilidade da análise com
crianças (CAMAROTTI, 2010). De acordo com Freud (1909, p.87), apenas a união da
autoridade paterna e da autoridade médica numa só pessoa, a combinação de carinho
e de interesse científico, tornou possível, nesse caso, fazer do método uma utilização
para a qual ele normalmente não se prestaria.
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Em divergência à ideia de Freud sobre a presença do pai-analista, Hermine von


Hug-Hellmuth, pioneira na psicanálise com crianças, considerava que a criança não
confessaria jamais seus desejos e pensamentos íntimos e profundos aos pais e que
a franqueza psicanalítica do filho dificilmente seria suportada pelo narcisismo parental
(CAMAROTTI, 2010). Em sua análise com crianças, Hug-Hellmuth, utilizava jogos e
desenho afirmando que com esse material as crianças elaboravam as situações
difíceis e traumáticas. Em seu método, a interpretação do material inconsciente
combinava-se com a influência pedagógica (COSTA, 2010), ou seja, o analista deveria
ser ao mesmo tempo terapeuta e educador que cura (CAMAROTTI, 2010). Apesar de
não ser tão mencionada pela psicanálise, a sua obra influenciou outros psicanalistas,
dentre eles, Anna Freud.
Anna Freud recomendava ao analista de crianças desempenhar um papel
ativamente pedagógico, sendo que cada caso é diferente e se precisava de um
período de preparação para produzir uma demanda de análise – as entrevistas
preliminares. Ela acreditava numa impossibilidade de se estabelecer uma relação
puramente analítica com uma criança em função de sua imaturidade e dependência
do meio ambiente, faltava à criança o elemento fundamental para a entrada de um
paciente em análise, que é o mal-estar em relação a seu sintoma e a necessidade de
tratamento (SCHERBAUM, 2017, COSTA, 2010).
Outro nome que se destacou na psicanálise com crianças foi, Melanie Klein.
Ela considerava o brincar a equivalência da associação livre e uma forma de
expressão dos conflitos internos pela criança. Sua clínica teve por base a ideia da
relação de objetos, dos fenômenos de regressão, nas relações arcaicas e
inconscientes com a mãe e na exploração do estádio pré-edipiano (COSTA, 2010).
Pelo mecanismo de identificação projetiva - as crianças faziam transferências
positivas ou negativas, de acordo com o comportamento do objeto, aumentando ou
aliviando sua ansiedade (ABERASTURY, 1982, p. 67).
Já Freud, defendia a aplicação da análise infantil como medida profilática,
argumentando que os resultados são seguros e duradouros. Propôs modificações na
técnica utilizada com o adulto por considerar, dentre outros aspectos, que a
associação livre não tinha razão de ser pelo fato de a criança não possuir superego
(CAMAROTTI, 2010). Os mistérios do infantil nortearam a sua prática e a sua
produção teórica, afinal, ele atribuiu à sexualidade infantil características perversas e
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polimorfas, ao tentar reconstruir a história da subjetivação do sujeito, através de


fragmentos da vida psíquica infantil (MEDRANO, 2003).
Ainda que as ideias encontrassem divergências, é importante salientar que a
psicanálise com crianças possui algumas especificidades que a diferencia do trabalho
com os adultos. Em cada atendimento, há um manejo necessário e uma reflexão sobre
ele, existe uma teoria guiando a clínica e a clínica fundando, fundamentando e
recriando a teoria (SOUSA, 2020). A impressão é que sempre se tem algo de novo
(re)surgindo no decorrer dos atendimentos e é preciso não apenas a atenção do
analista, mas a sua disponibilidade de não se antecipar à interpretação, afinal, a
espera faz parte do processo.

A FUNÇÃO DO BRINCAR NA CLÍNICA PSICANALÍTICA


O brincar tem um papel fundamental no desenvolvimento da criança, permitindo
que ela entre em contato com o seu próprio repertório social e comportamental,
ampliando suas habilidades físicas e de comunicação por meio dos atravessamentos
de uma linguagem própria, influenciada por suas vivências que se fazem reais, através
do faz de conta de suas fantasias (MAHON, 2021). Para Alves e Sommerhalder
(2006), é brincando de ‘como se’ que a criança amarra passado, presente e futuro na
tentativa de dar sentido às experiências vividas na realidade, ou seja, ao brincar a
criança inventa e constrói um cenário onde faz circular seu desejo e dá sentido às
experiências vividas por ela.
O trabalho de análise com crianças, por meio da associação livre, tem seus
desafios, especialmente quanto ao nível cognitivo de elaboração de suas questões e,
quando não são atravessadas por um terceiro. Apesar da fala se fazer necessária
para a análise com crianças, é o brincar a forma mais natural de expressão, não só é
facilitador de sua própria linguagem, mas é uma ferramenta básica e universal, que
auxilia o paciente a reelaborar e ressignificar sua constituição psíquica, mesmo que
ainda em desenvolvimento na infância (SCHERBAUM, 2017).
Na Clínica, o trabalho de análise tem como premissa fundamental que a criança
encontre no brincar sua forma de se expressar livremente. Freud (1908, p.228) postula
que o indivíduo em crescimento para de brincar, aparentemente renuncia ao ganho
de prazer que retirava da brincadeira. Quem conhece a vida psíquica do ser humano,
porém, sabe que nada é tão difícil para ele quanto renunciar a um prazer que já
experimentou. Afinal, o oposto da brincadeira é a realidade.
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Nesse contexto, a criança e o adulto se aproximam, por via de um Inconsciente,


que sendo atemporal, trazem consigo as fissuras, as faltas, as falhas e os excessos
de condições vivenciadas. Essas marcas são atreladas às sensações de desamparo,
de angústias e de dores que buscam um direcionamento pulsional para reestruturação
de conflitos psíquicos, advindos de uma natureza infantil. De fato, toda psicanálise se
baseia na análise do infantil, daquilo que não é possível pôr em palavras, o que ainda
está no estatuto de coisa (SCHERBAUM, 2017; MEDRANO, 2003).
Ao longo do processo de análise, a criança e o analista, e suas subjetividades
e especificidades dão lugar a um processo trabalhoso de construção, acolhimento e
atribuição de sentidos e significados daquilo que ainda não tomou forma, tampouco
linguagem, é necessário pôr em palavras o que é sentido. Segundo Winnicott (2019,
p.91e 92), é no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança e o adulto têm
liberdade para serem criativos... se o terapeuta/analista é incapaz de brincar, ele não
está apto para o trabalho. Se o paciente é incapaz de brincar, algo precisa ser feito
para que se torne capaz disso, e só então a psicoterapia/análise pode começar. O
brincar é essencial porque é nele que o paciente pode ser criativo.
Para Medrando (2003), a psicanálise conseguiu levar o brincar a um
refinamento ainda não superado por outras teorias. Devolveu-lhe o caráter criativo e
desafiador implicado nas experiências lúdicas, facilitando a comunicação com os
outros e consigo mesmo, sendo o brincar terapêutico por si próprio. Durante o
processo analítico, as falas e as brincadeiras vão ganhando sentido, a partir do
encontro entre paciente e analista. Nesse caso, a dimensão do brincar vai se
expandindo para além de modo de expressão característico das crianças, estando
relacionado à continuidade do ser (SOUZA, PEDROZA e MACIEL, 2020).
A brincadeira não é nem uma questão de realidade psíquica interna nem de
realidade material externa, ela não está nem dentro nem fora do sujeito – não é interior
nem exterior, mas um espaço entre, o qual Winnicott (2019) denominou espaço
potencial ou espaço transicional. Por meio das brincadeiras, jogos, histórias,
desenhos, massinha, se esconder, do faz de conta e até mesmo da falta de sentido é
que a transferência se inicia no trabalho analítico.
Ainda que a brincadeira seja a mesma para diversas crianças, e o objeto
(brinquedo) seja o mesmo, sempre a criança dará um sentido próprio ao seu brincar,
articulando significantes próprios, por meio de suas experiências de vida
(SCHERBAUM, 2017). O brinquedo permite à criança vencer o medo aos objetos,
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assim como vencer o medo dos perigos internos; faz possível uma prova do mundo
real, sendo por isso uma “ponte entre a fantasia e a realidade” (ABERASTURY, 1982,
p. 48), funcionam como suportes dos significantes. Ao analista cabe olhar como a
brincadeira vai se guiando, quais espaços ela abre na construção de novos
significantes para a criança, através do espaço entre criado.
O espaço entre ou o terceiro é tomado como o Outro da linguagem, o
inconsciente que está na análise entre analista e analisante é o inconsciente que não
é nem de um nem de outro, mas se materializa na fala do analisante e nas
intervenções do analista (LANDI e CHATELARD, 2015). Essa atividade, também fala
do analista e de suas experiências anteriores, do seu desprendimento quanto ao se
deixar envolver na fantasia. Freud (1937, p. 167), no texto, Construções em Análise,
falou sobre o papel do analista em que,
Sua tarefa é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos
traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo. A
ocasião e o modo como transmite suas construções à pessoa que
está sendo analisada, bem como as explicações com que as faz
acompanhar, constituem o vínculo entre as duas partes do trabalho
de análise, entre o seu próprio papel e o do paciente.

Embora a criança tenha limitações em seu discurso no que diz respeito à


capacidade de verbalizar, ela é capaz sim de fazer associações livres, ainda que
diferentemente do adulto: por meio do brincar (LEITÃO e CACCIARI, 2017). Nesse
sentido, esse é o modo como a criança vai construindo junto ao analista as suas
atuações, repetições e elaborações.
Portanto, devemos estar à escuta das crianças, não em uma função impositiva,
mas conservando-nos autênticos, e dizendo às crianças que não sabemos, mas que
elas devem aprender a saber; que não construiremos o futuro delas, mas que elas o
construirão, dando-lhes esse papel de assumir seu destino exatamente como elas
querem assumi-lo (DOLTO,2005, p. 325).

O JOGO DE SE ESCONDER
As observações na clínica, levavam a uma repetição das brincadeiras em que
a criança se escondia ou pedia para ser escondida por trás de algum objeto, no intuito
de outra pessoa procurar por ela, mesmo parecendo óbvio e aparente o local que a
criança se encontrava. Era gerada toda uma expectativa até o momento do, “achei
você!”. Para Oliveira e Fux (2014), o desejo de ser descoberto parece estar mais
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evidente do que o desejo de enganar, haja vista que essa sensação divide espaço
com o temor de não ser descoberto.
Esse tipo de brincadeira se assemelha ao fort/da que Freud descreve no texto,
“Além do princípio do prazer (1920)”. Na observação, o seu neto, jogava pequenos
objetos para longe de si, um deles, um carretel de madeira enrolado em um cordão.
Ele jogava, de modo que o objeto desaparecia embaixo da cama, e proferia com
interesse e satisfação, um forte e prolongado “o—o—o—o”, que significava, pela
interpretação dos adultos, o “fort” (“foi embora”). Depois puxava novamente o carretel
“desaparecido” e saudava o seu aparecimento com um alegre “da” (“está aqui”). Essa
era a brincadeira completa, fazer desaparecer e reaparecer repetidas vezes os
objetos.
A interpretação deste jogo relacionava-se ao fato de deixar a mãe ir embora
sem protestar, encenando o próprio desaparecimento e retorno de forma ativa. A
criança não chorava, pois transformara em uma brincadeira repetitiva a experiência
para lidar com essa ausência, simbolizando um desaparecimento, uma perda, dando
representação à ausência (SOUZA, PEDROZA e MACIEL, 2020 e RODULFO, 1990).
Vê-se que as crianças repetem, brincando, o que lhes produziu uma forte impressão
na vida, que nisso reagem e diminuem a intensidade da impressão e tornam-se, por
assim dizer, donos da situação. (FREUD, 1920, p. 129).
Ao se esconder de forma ativa, a criança transforma a experiência de ausência,
de desprazer em uma experiência de prazer, especialmente, quando esta é
encontrada, passando a entender e suportar melhor as rupturas, as descontinuidades
do ser. Isso parece apontar para um certo domínio da criança diante do insuportável
da experiência (SOUZA, 2021). Cada nova repetição, mesmo que desprazerosa,
parece melhorar o controle que ela busca ter sobre a impressão, e também nas
vivências prazerosas a criança não é saciada pelas repetições, insistindo
implacavelmente para que a impressão seja igual (FREUD, 1920, p. 146).
Segundo, Leitão e Cacciari (2017), a repetição é um ato que abre caminho à
atuação (acting out), e que, de modo geral, se apresenta na análise como uma força
que atualiza componentes psíquicos, em que o analisando repete ou atua, o que “não
pode” ser recordado. A cada repetição, portanto, surge a possibilidade de se elaborar
o que não pôde ser rememorado e verbalizado, tornando esta outra linguagem, a
atuação, uma via demasiadamente importante em uma análise.
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Quando levamos em consideração essas repetições, estamos dando um lugar


não apenas às queixas que são trazidas à análise, mas o que a criança passa a
simbolizar nessa repetição, o que ela pode atribuir como significante do seu processo.
Pois, quando dizemos criança, em psicanálise, colocamos em questão a própria
construção do sujeito. Tomamos ou tocamos não apenas o que está relacionado com
os processos de sua trama de fantasias, mas todo o relativo às funções nas quais se
fundamenta para advir como sujeito (RUDOLF, 1990, p.31).
Ainda que toda uma teoria tenha sido criada a partir da observação do brincar
das crianças, é também nas observações práticas de cada caso que o analista deve
pautar suas observações. Afinal, de quem essa criança está se escondendo? Ou, qual
a sensação de por um momento se sentir “invisível”? Ela quer ser encontrada? Talvez,
essas perguntas entrem em mais um campo de interpretações do analista, mas de
certo, essas crianças “escondidas”, por um momento em sua fantasia se tornaram não
visíveis aos olhos de quem as procura, estão em um universo imaginário de proteção,
como um escudo, mediante os sintomas, medos, traumas, angústias, tanto seus como
das projeções do Outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve por objetivo compreender como surgiu a psicanálise com
crianças e as especificidades dessa clínica, que se diferencia da psicanálise com
adultos. Ao longo do processo histórico, foi se dando voz à infância e suas
particularidades, no intuito de ouvir esses sujeitos, até então sem voz, suas
vicissitudes, medos e angústias, que os acompanham antes mesmo deles serem
linguagem.
Foi através das inquietações da prática profissional ao longo do estágio na
clínica com crianças no Canto do Brincar que o tema foi aprofundado.
Compreendendo o lugar que a analista se coloca, se despindo de técnicas e teorias e
deixando-se conduzir pela produção do brincar. O Brincar no sentido de ação, de
construção junto à criança as suas simbolizações. Nesse processo, foi preciso
entender o que a criança está comunicando, que fantasias estão sendo criadas em
seu mundo imaginário, quais os significados de suas repetições e o porquê de certas
brincadeiras, a criança sai de cena, como no jogo de se esconder.
O brincar é a forma livre de expressão, cabe também ao analista, se projetar
na brincadeira, no fazer de conta, tornar esse momento terapêutico também para si.
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Afinal, é só brincar! Pode parecer simples, mas requer sair das camadas criadas sobre
o fato de que essa fase das brincadeiras já se passou em algum momento da vida, é
não ter “jeito” para brincar e tampouco saber falar com a criança e para ela, bem como
saber escutá-la e silenciar quando é preciso. Nesse processo, é estar disposto aos
atravessamentos que incidem sobre esse sujeito e que atingem também o analista,
que se vê em muitos momentos atualizando-se nesse discurso.
Por fim, destaco que é preciso uma disponibilidade física e psíquica, para não
se (im)por como uma figura de autoridade, aquele que interpreta mais do que o próprio
sujeito, afinal as demandas chegam mediadas por tantas vozes, não seria o analista
a ser mais uma dessas vozes ecoando sobre a criança.

REFERÊNCIAS

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