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É Só Brincar! Considerações Sobre o Brincar Na Clínica - Luanna A. Cheng
É Só Brincar! Considerações Sobre o Brincar Na Clínica - Luanna A. Cheng
RESUMO
Este estudo buscou compreender o brincar e a sua função na clínica psicanalítica, perpassando
pelos momentos históricos em que a criança não tinha voz tampouco era um sujeito de direito. A clínica
psicanalítica com criança, apesar das divergências históricas iniciais, pode olhar para a criança como
criança e, o brincar passou a ter uma função, expressando suas vicissitudes, medos e angústias. É no
brincar que a criança se comunica, que repete situações vividas nas brincadeiras. Essa repetição é a
atuação do que passa a ser sua forma de associar livremente. Para o analista, cabe a tarefa de ajudar
a construir os caminhos que possam sustentar o ideal não alcançando pelo atravessamento do Outro
e que se faz presente nos sintomas dessa criança e do seu advir.
INTRODUÇÃO
Durante a experiência do estágio no Centro de Referência para os Cuidados
de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violência (CERCCA),
localizado na Policlínica Lessa de Andrade, foi possível vivenciar o brincar na clínica
psicanalítica. Este brincar livre, que surgia do “nada”, passou a ser os enunciados de
associação livre. Segundo Garcia-Roza (2009, p.164) associação livre é, dentro do
possível, afrouxar a censura consciente e permitir que derivados, ainda que remotos,
possam aflorar à consciência e ser comunicados ao analista.
O estágio foi um dos pilares da formação em psicologia, em especial, por
permitir o trabalho com crianças que estiveram em situações de violências. Foi por
meio desse olhar na clínica, que o brincar surgiu como fonte inicial desse estudo. O
brincar como forma de expressão, de faz de conta, de reproduzir as falas e os gestos
de um adulto pela criança, das fantasias se tornarem realidade permeada de símbolos
e onde o tempo da sessão poderia esperar um pouco mais. Afinal, encerrar uma
brincadeira é retornar para a realidade e, como seria lidar com o que, provavelmente,
é um dos motivos dos sintomas que às trouxeram ao acompanhamento psicológico?
Para Souza (2021), brincar assegura o suporte necessário para que a criança
encontre a fantasia, dando um tratamento aos efeitos da linguagem sobre seu ser,
onde um Outro fala por ela simplesmente, reproduzindo aquilo que a alienação
sustenta. Além do mais,
O brincar também diz do mal-estar da criança, sendo muito
observável que comprometimentos importantes no desenvolvimento
infantil e nas relações familiares acarretam dificuldades em uma
criança brincar...A criança descreve, queixa-se, inventa, associa e
brinca. É preciso saber escutá-la e saber promover o devido espaço,
na clínica, para que assim também possa expressar-se (Souza
(2021)
e teorias estudadas ao longo do curso, como saber de que “estrutura clínica estamos
lidando”? Vamos brincar de quê? Em suma, toda a fantasia que envolvem os primeiros
atendimentos na clínica.
Assim, este estudo teve por objetivo compreender o brincar e a sua função na
clínica psicanalítica, buscando entender sua relação com o processo de análise e de
nomeação dos sentidos e significados que a criança traz consigo para serem
explorados ao longo desse processo criativo de construção e expressão de seus
conflitos e sofrimentos.
MÉTODO
Este estudo caracteriza-se por uma pesquisa de revisão bibliográfica realizada
por meio de levantamentos nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS),
do Scientific Electronic Library – SciELO e do Periódicos Eletrônicos em Psicologia –
PePSIC. Para realização das buscas foram utilizados as seguintes palavras-chaves:
“Brincar”, “Psicanálise”, “Criança”. Segundo Marconi e Lakatos (2003), as fontes para
a escolha do assunto podem originar-se da experiência pessoal ou profissional, de
estudos e leituras, da observação, da descoberta de discrepâncias entre trabalhos ou
da analogia com temas de estudo de outras disciplinas ou áreas científicas.
Além disso, outras fontes de livros e artigos foram incluídas pela indicação de
especialistas da área de conhecimento. Para a realização deste estudo bibliográfico,
optou-se por uma organização que ocorreu pela escolha do tema, localização das
informações, discussão, fichamento dos achados, análise, interpretação e redação do
manuscrito (MARCONI e LAKATOS 2003).
assim como vencer o medo dos perigos internos; faz possível uma prova do mundo
real, sendo por isso uma “ponte entre a fantasia e a realidade” (ABERASTURY, 1982,
p. 48), funcionam como suportes dos significantes. Ao analista cabe olhar como a
brincadeira vai se guiando, quais espaços ela abre na construção de novos
significantes para a criança, através do espaço entre criado.
O espaço entre ou o terceiro é tomado como o Outro da linguagem, o
inconsciente que está na análise entre analista e analisante é o inconsciente que não
é nem de um nem de outro, mas se materializa na fala do analisante e nas
intervenções do analista (LANDI e CHATELARD, 2015). Essa atividade, também fala
do analista e de suas experiências anteriores, do seu desprendimento quanto ao se
deixar envolver na fantasia. Freud (1937, p. 167), no texto, Construções em Análise,
falou sobre o papel do analista em que,
Sua tarefa é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos
traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo. A
ocasião e o modo como transmite suas construções à pessoa que
está sendo analisada, bem como as explicações com que as faz
acompanhar, constituem o vínculo entre as duas partes do trabalho
de análise, entre o seu próprio papel e o do paciente.
O JOGO DE SE ESCONDER
As observações na clínica, levavam a uma repetição das brincadeiras em que
a criança se escondia ou pedia para ser escondida por trás de algum objeto, no intuito
de outra pessoa procurar por ela, mesmo parecendo óbvio e aparente o local que a
criança se encontrava. Era gerada toda uma expectativa até o momento do, “achei
você!”. Para Oliveira e Fux (2014), o desejo de ser descoberto parece estar mais
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evidente do que o desejo de enganar, haja vista que essa sensação divide espaço
com o temor de não ser descoberto.
Esse tipo de brincadeira se assemelha ao fort/da que Freud descreve no texto,
“Além do princípio do prazer (1920)”. Na observação, o seu neto, jogava pequenos
objetos para longe de si, um deles, um carretel de madeira enrolado em um cordão.
Ele jogava, de modo que o objeto desaparecia embaixo da cama, e proferia com
interesse e satisfação, um forte e prolongado “o—o—o—o”, que significava, pela
interpretação dos adultos, o “fort” (“foi embora”). Depois puxava novamente o carretel
“desaparecido” e saudava o seu aparecimento com um alegre “da” (“está aqui”). Essa
era a brincadeira completa, fazer desaparecer e reaparecer repetidas vezes os
objetos.
A interpretação deste jogo relacionava-se ao fato de deixar a mãe ir embora
sem protestar, encenando o próprio desaparecimento e retorno de forma ativa. A
criança não chorava, pois transformara em uma brincadeira repetitiva a experiência
para lidar com essa ausência, simbolizando um desaparecimento, uma perda, dando
representação à ausência (SOUZA, PEDROZA e MACIEL, 2020 e RODULFO, 1990).
Vê-se que as crianças repetem, brincando, o que lhes produziu uma forte impressão
na vida, que nisso reagem e diminuem a intensidade da impressão e tornam-se, por
assim dizer, donos da situação. (FREUD, 1920, p. 129).
Ao se esconder de forma ativa, a criança transforma a experiência de ausência,
de desprazer em uma experiência de prazer, especialmente, quando esta é
encontrada, passando a entender e suportar melhor as rupturas, as descontinuidades
do ser. Isso parece apontar para um certo domínio da criança diante do insuportável
da experiência (SOUZA, 2021). Cada nova repetição, mesmo que desprazerosa,
parece melhorar o controle que ela busca ter sobre a impressão, e também nas
vivências prazerosas a criança não é saciada pelas repetições, insistindo
implacavelmente para que a impressão seja igual (FREUD, 1920, p. 146).
Segundo, Leitão e Cacciari (2017), a repetição é um ato que abre caminho à
atuação (acting out), e que, de modo geral, se apresenta na análise como uma força
que atualiza componentes psíquicos, em que o analisando repete ou atua, o que “não
pode” ser recordado. A cada repetição, portanto, surge a possibilidade de se elaborar
o que não pôde ser rememorado e verbalizado, tornando esta outra linguagem, a
atuação, uma via demasiadamente importante em uma análise.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve por objetivo compreender como surgiu a psicanálise com
crianças e as especificidades dessa clínica, que se diferencia da psicanálise com
adultos. Ao longo do processo histórico, foi se dando voz à infância e suas
particularidades, no intuito de ouvir esses sujeitos, até então sem voz, suas
vicissitudes, medos e angústias, que os acompanham antes mesmo deles serem
linguagem.
Foi através das inquietações da prática profissional ao longo do estágio na
clínica com crianças no Canto do Brincar que o tema foi aprofundado.
Compreendendo o lugar que a analista se coloca, se despindo de técnicas e teorias e
deixando-se conduzir pela produção do brincar. O Brincar no sentido de ação, de
construção junto à criança as suas simbolizações. Nesse processo, foi preciso
entender o que a criança está comunicando, que fantasias estão sendo criadas em
seu mundo imaginário, quais os significados de suas repetições e o porquê de certas
brincadeiras, a criança sai de cena, como no jogo de se esconder.
O brincar é a forma livre de expressão, cabe também ao analista, se projetar
na brincadeira, no fazer de conta, tornar esse momento terapêutico também para si.
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Afinal, é só brincar! Pode parecer simples, mas requer sair das camadas criadas sobre
o fato de que essa fase das brincadeiras já se passou em algum momento da vida, é
não ter “jeito” para brincar e tampouco saber falar com a criança e para ela, bem como
saber escutá-la e silenciar quando é preciso. Nesse processo, é estar disposto aos
atravessamentos que incidem sobre esse sujeito e que atingem também o analista,
que se vê em muitos momentos atualizando-se nesse discurso.
Por fim, destaco que é preciso uma disponibilidade física e psíquica, para não
se (im)por como uma figura de autoridade, aquele que interpreta mais do que o próprio
sujeito, afinal as demandas chegam mediadas por tantas vozes, não seria o analista
a ser mais uma dessas vozes ecoando sobre a criança.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios. São Paulo: Cia das Letras, p-
227-236, 1908.
__________Análise da fobia de um garoto de cinco anos (“o pequeno Hans”).
São Paulo: Cia das Letras, p-120-178, 1908.
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SOUSA, Taísa Resende, PEDROZA, Regina Lúcia Sucupira e MACIEL Maria Regina.
O brincar como experiência criativa na psicanálise com crianças. Fractal: Revista de
Psicologia, v. 32, n. 3, p. 269-276, 2020.
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