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“Se a historia é nossa, deixa que ndis escreve”: Os rappers como historiadores - ie iff I 5 " i TADDEO, Luiz Eduardo. A guerra nto declavada na visto de lim favelado. Sto Paulo: 2013 (independents SDaasio de um detente". Ra: cionais MC's. CD Ao vive em Uberndia, 5, (nao oficad) * Apesar do cescente numero dde tabalhos sobre a historia do tempo presente seus méto dos © conceitos bisicos ainda ‘um tanto quanto fluids, Jean Lacouture con: sacera que ela é marcada pela proximidade temporal dos femas estdadlos ¢-0 contato mais ow menos direto que o pesgqtsador pode antes com. fssas tematicas, Para Robert Frank, essa especilidade tem por pariculanidade 3 tentaiva fe explorar os fundamentos de determinadas questies © sontecimentar, sus procesto= fas muitas relaghes de forca (qoe configuram limites e pres soesnosseus desdobramentes sfastando-se de outas perspec tivas eabordagens de suntes ecentes, como algune que 330 frequentesne meiojomalistico Ver LACOUTURE, Jean. bistosasmesiata, ie LE GOFF. Jacques. A listeria nove. S20 Pasto: Martins Fontes, 199, FRANK Robert. este "sire a temps présent. Paris: Institut Histo du Temps Present, 1993, e HOBSBAWM, Enc O (que a histona tem a dizer-nos sobre asocedade contempord fen Js Sobre etna, S80 Pau losCompantiadasLetres 1998, “Neste artiga peivilagie’ uma abordagem por intermadio da nyssica, masé posivel atacasa questdo também por outros as- pectos como litersro.Alguns rappers que aparecem citados aqui produziram.enfreoutras, 235 Seguintes obras: GHOEZ, Preto. a socetnae do obit a born. Sto Paulo: Btacko Hip ‘Hop, 2008, TADDEO, Carlos Eduardo, ep. cit, SOARES, Luiz Eduardo, ATHAYDE, Gelso © BILL, MV. Cabsps de orca. Rio de Janeiro: Objetva, 2005, ATHAYDE,Ceisoe BILL, (MV. Filgto: mensnos do trfica. Rio de Taneiro: Objetiva, 2010, SILVA, Reginaldo Ferteira dda (Feeréz). Capt pecido. S20 Paso: Laborcexto, 2000, ide, ‘Manual pritic do 60. Rio de Janeizo: Objetiva, 2003, der, [inguin seoate ee SP Rio de Jarcira: Objetiva, 2006, e INQUERITO, Renan Pauess alzcras. Campinas: 2013 (in- dependent). 8 “Se a hist6ria é nossa, deixa que néis escreve”: 05 rappers como historiadores ““thistonyis ours let us waite its rappers as historians Roberto Camargos Neste artigo, analiso como alguns In this article Iaddress how a fsw rappers ‘rappers se colocaram na condigao de fave een themselves as “historians” ofpre- “nistoriadores” do tempo presente, sent time who offer their public narratives oferecendo a seu piiblico narrativas meant toexplain the contemporary world, quesepropoemadarcentade-explicar 29 dissect Its contradictions and 20 re0eal © mundo contemporaneo, esmiuga: —__sruths supposedly not found in other nar- suas coniradigbes e revelar verdades natives (among the versions ofhistory they supostamente ausentes em outros criticize are those offered by the media and rolatosshistérias ca vida social segun- ever history books). As a result, rappers do eles, entre as versdes da histéria end up also cresting metw milestones and que criticam estao as midiaticas e até their own heroes, dimension that explore smacmo as que figuram mos Hvros de shen taking as example sucessful case of histdria). Como resultado, os rappers rapper Sabotage acabam criando também novos mar- cos e seus préprios herdis, dimensio que exploro ao tomar como exemplo bem sucedido ocaso de Sabotage, uma legenda do rap, PALABRAS cLavE: musica ray; usos do KETWORDS: rap music: uses of the past pasado; memérias, memories, 9 Assevero, sem medo de errar, que hoje sow um autodidata em morticinio. E bbem verdad que, do alto da minka 5* série no concluida do ensino priblice fundamental, nunca publique’ tses on dissertagbes, porém sou mais capaci- tado para escrever sobre a atmosfera agonizante abaixo da linha da pobreza do que qualquer socistogo playboy Luiz Eduardo Taddeo! Em uma das apresentacées que o Racionais MC’s realizou em Uber- landia, Mano Brown, antes de comegar a cantar os dramas de “Diario de um detento”, avisou ao publico, num desabafo raivoso e catartico, que “a histéria do Brasil vai ser escrita com sangue, com tinta vermelha de negro, favelado, sofredor, pobre da periferia”.? A miisica que veio em seguida, recebida com calorosos aplausos e gritos, mostrou quem tinha assumido essa tarefa de contar tal “historia do Brasil”. Afinal, a composigao dissecava um triste acontecimento do passado recente (0 massacre do Carandiru) ArtCaltura Uberlindia, v.20, 1.36, p. 7-92, janjun, 2018, articulando memérias, canto/fala e musicalidade, para sustentar ~ com base no caso dos presididrios ~ a opinido de quem via irresponsabilidade e autoritarismo nas acdes do governo do estado de Sao Paulo. Isso se afina com o que Brown e outsos rappers e grupos vém fazen- do por meio de suas cangdes: estabelecem um didlogo com 0 pasado e escrevem, a seu modo, uma histéria do tempo presente? em que a dureza de algumas experiéncias — segundo os rappers, negligenciadas nos relatos oficiais — é a principal matéria-prima. Gog, por exemplo, adverte que ““caminhamos pelo Brasil, assim, de uma forma simples, mas com um tex- to forte, [..] tentando passar a nossa verdade” > Thaide, na mesma linha, explica que “nao sou dono da verdade, mas tenho minha histéria’” * Essa visdo nos conduz.a algumas pontasdle um complexo emaranha- do de fios que tecem a vida social e que estdo presentes na produgao da maioria dos rappers: o prdprio tempo, o seu povo e os lugares de vivéncias ‘ou de origem. No seu entendimento, a tarefa que assumiram como narra- dores de uma época era inadidvel, pois alimentam a pretensio de serem as pessoas mais capacitadas para tanto. E assinalam que “eles [sujeitos ge- ralmente da classe média, como jornalistas, cineastas, académicos] contam nossa histéria de maneira equivocada’” ’ E por isso que os grupos ligados 20 rap trouxeram para o centro de sua arte temas como a experiéncia racista na sociedade, a valorizacao da juventude negra, as décadas de sofrimento 20 qual o povo pobre do pais foi submetido, a violéncia urbana e muitas outras faces da “brava gente brasileira” £ Sao essas caracteristicas, proprias do didlogo dos brasileiros com os aspectos “universais” da linguagem rap, que levam Teresa Fradique, uma estudiosa dos rappers portugueses, a destacar que no “discurso [...] é visivel a consciéncia de se estar a ‘fazer histéria’, a ‘inovar’ e a pesquisar novos caminhos, ou seja, a criar novos espacos geograficos, sociais e simbdlicos na cidade e nos seus arredores” ? Miisica popular e histéria Essas questdes me transportam para um artigo sobre a miisica po- pular brasileira escrito pela historiadora Heloisa Starling.” Nele, a autora pega carona em “Qualquer cancao”, composigao de Chico Buarque, para por em discussdo o fato de as miisicas constituirem uma forma de producao de conhecimento (mais ou menos enviesado, como qualquer outro) sobre o que se experimenta, seja na concretude do vivido ou na subjetividade das pessoas. A autora, que valoriza o papel que o cancioneiro nacional pode assumir na construgdo de leituras para a realidade social, ressalta que nao se deve esperar do artista uma representacdo fiel do mundo ou mesmo a competéncia de agir diretamente sobre ele ~ algo que, evidentemente, vale para qualquer tipo de narrativa ou de profissional. Entretanto, apesar de sua ressalva, que na verdade visa salientar que hd nas representacdes em qualquer relagao com a “coisa em si”, ela afirma que as cancdes “po- dem, muitas vezes, reconciliar cada um de nés com seu prdprio passado, narrando-o ands mesmos e a outros”. Essa concepgdo que converte, ou melhor, reconhece, a producdo musical em fonte de saberes sobre a experiéncia histérica é, de certo modo, recorrente entre os pesquisadores da cang’o popular no Brasil. Marcos Napolitano, por exemplo, comenta que “entre nés, brasileiros, a cancdo ] tem sido termémetro, caleidoscépio e espelho nao sé das mudancas sociais, mas sobretudo de nossas sociabilidades e sensibilidades coletivas ArtCaltura Ubedindis, v.20, 0.36, p. 7752 jan-jun. 2018) * Gog. Sie Produsto Cultural ‘po Brasil, maio 2010. SALVES, César Porgunten quer conhece: Thaide. 530 Paulo: [abortexto, 200, p. 17 Entrevista com MV Bill. O Gobo, 8 set. 202 STmagem bracileisa”. Con: sciincis Humana LP Enatergue [sc seus prope eves SG0 att Ter MA Records, 1993, SFRADIQUE, Teresa Nas smaggens.. do rio: retoicae = performances do rap ern Poe tugal. VELHO, Gilbesto (org) Antopolopiawwbane! cultura © sociedade na Brasil © em Por tugal. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p12, ® STARLING, Hefotsa Maria Murgel: Misia popular bras leita: outrasconversas sabre os yeitos cla Bese: BOTELLHO, adsé © SCHWARCZ, Lilia Morit (orgs). Agenda basilar: temas de uma sociedade em suidanga. Sap Paulo: Compe shia das Letras, 2011 “Qualquer cancao” (Chico ‘Buarque). Chico Buanque. LP ‘Vida. Reio de Feneiso: Poly- gram)/Padips, 1980, 2 Ginsburg ao ees sobre as relagies ene o eal © sua r= presentagio, argumenta que é preciso atento para oops Co, as distorgbes eimprecisdes dias prdticas de cepresentacto, fo que, na entanta, nao implica negactods exstinca de algo concrete. Sua pecepectivac par. ‘uoulaemente clara ao dislogar com Renato Serr: "Serea sabia ‘bem que todas esrasnarrasdes, inclependente do sou cazster ‘mais ou menos direto, tem Sempre uma relacio altaments problemitica com a realidade, Mas a realidade (2 coisa ex 3!) existe.” Ver GINZBURG, Cari O exterminio de padeus 9 principio da realidade. Zn ‘MALERBA, Jurandir (org). 4 istdria ert: teosae tusténia da historiogratia. 580 Paulo: Context, 2008, p. 226. # STARLING, Helotsa Maria Murgel. op. et, p. 366 7° 2 sig ' NAPOLITANO, Marcos. Pretexto, texto contexto na anilise da eangio. In: SILVA, Francisco Carlos T. (org) His- tsvin © agen. Rio de Janeiso: UFRY/Prein-Capes 1998, p. 199. "MORAES, José Geraldo Vine, de. Historia e muistea: can ‘#0 popular e conhecimento Fistdrico, Reviste Brasilia de Fistria v.20, 1.39, S40 Paulo, 2000, p. 203. "Contra tempo” Consciencia Auva, CD Ne mia do sistera, Campo Mourio: sd. (inde pendent), ® STARLING, Heloisa Maria Murgol op. at. p. 366. * MELLO, Caio B. A poesia sencenenada doe Racinats MC's Supertvit de negatividade © fim de linha sistomico, 5. ret/ Impresso, 2000, p.7, dem: 80 mais profundas" José Geraldo Vinci de Moraes, por sua vez, frisa que a miisica popular é portadora de elementos passiveis de ajudar a “desvendar processos pouco conhecidos e raramente levantados pela historiografia”, em especial no que concerne aos “setores subalternos e populares’. Os posicionamentos desses estudtiosos se assentam na constatacao de que as cangSes, em muitos casos, so produzidas a partir de informacdes relativas 4 vida social. No que se refere ao rap, bom dizer, os composito- res quase sempre reivindicam uma relagdo de proximidade com o vivido, como fazem os MCs do Consciéncia Ativa, que ponderam que “o meu rap nao é perfeito mas fala a realidade”.« Isso conferiu a elas 0 status de legitimas produtoras de um pensamento sobre o Brasil. Por obra e graga de sua postica, 0 cancioneiro abre “trilhas no emaranhado das coisas hu manas, opina sobre elas, discute quanto valem, da carater puiblico Aquilo cujo conhecimento estaria, num primeiro momento, fechado no cora¢ao do homem, e expde de modo transparente a verdade intima dos sentimentos humanos” Ainda na esteira de Starling, convém sublinhar que isso se deve, em parte, a que no Brasil a forca da palavra oral ¢ historicamente maior que o habito da palavraescrita. Em decorréncia disso, reflexdes e memériasencon- traram moradae ganharam contornos e elaboragbes bastante significativas, nas praticas orais. Essa heranca, que remonta a época colonial e ao fluxo de africanos para o pais, sedimentou um solo fértil para acolher o rap tempos depois. Por outro lado, caracteristicas sociais como a constancia ea magni- tude do analfabetismo e a existéncia de amplos setores da populacdo com acesso precario a educacao ou semiescolarizados contribuiram para que os tragos de oralidade fossem cominantes em determinadas praticas culturais. Aoralidade, encarada como um valor cultural importante, foi defendiciae “preservada” a despeito do avango do letramento e da ampliagao dos niveis de escolaridade. Dai que experiéncias artisticas predominantemente orais favoreceram a emergéncia de narrativas que criaram imagens do mundo, construiram leituras para processos histdricos, inventaram perspectivas de andlise, promoveram a luta para legitimar e/ou deslegitimar interpretacdes. A relevancia de um ambiente oral é particularmente expressiva no caso do género aqui enfocado, tanto que, para Caio Mello, “a transposigao do rap para a forma escrita mereceria no minimo uma explicacdo que jus- tificasse esse, por assim dizer, quase desrespeito’’* Tal observacao parte, sem civida, do entendimento de que o texto nao da conta de compreender ou traduzir totalmente a miisica, pois a complexidade dos sons, efeitos, intensidades e volumes por vezes ndo cabem nos limites da palavra escrita Ao analisar 0 CD Sobrevivendo no inferno, do Racionais MC's, ele escreve: Avexclusdo das letras do encarte do CD, antes de ser um descuido ou algumma im- possiilidade qualquer medida em que se dificulta 0 deslocamento do discurso desde seu lugar e contexto originais até outros que poderiam alterar-the potencialmenteo sentido, fazendo com que seus tiros acertassem outros alvos ou. no acertassem nenfura [.] 0s sentidos mais profundos do discurso, da narratiow [J] 56 podem ser compreendides quando secre oCD, inteiramente, rap por rap [..1 O que hd de intradusivele indescritivel na empostagio da voz em cada palavra proferida pelo rapper & muito, sobretiido como elemento fundamental para a constituicto dos sentidos.* pode ser entendica como mais wma forma de resisténcia, na Avvoz e a fala, concatenados com elementos sonoros e musicais di- ArtCaltura Uberlindia, v.20, 1.36, p. 7-92, janjun, 2018, versos, constroem um campo de reflexdes no ambito da produgao musical E assim, fazendo uso de suas cangées, que muitos compositores ambicio- nam informar aos seus ouvintes o que foi e o que é este pais.* Mas ha os que se propéem ir além. Sintonizados com o pensamento de que a musica produz conhecimento e transmite saberes, ambicionam prover & socie- dade concepgdes de que ela foi privada, investindo no que foi esquecido, escondido, esclipsado ou anulado em outros discursos sobre o social E dai que surgem muisicas com posicionamentos repletos de sentimentos que vao da desconfianga ao ddio em relagao a historia oficial e/ou as falas hegeménicas tdo ao gosto das classes dominantes. Em nada satisfeitos com essas narrativas ~ pelas quais "o burgués discrimina/ fala mal de mim, de voc’, da sua mina” e “apoia a chacina [do povo negro e pobrel/ desmerece © artista, o ativista®—, sugerem novos enredos que garantem aos rappers algum protagonismo no processo: “e por isso eu vou/ escrevendo minha propria histéria/ entre pedras e espinhos/ que no caminho sempre rola” E, portanto, de la, do chao histérico de uma experiéncia pessoal ou social- mente circunscrita, que despontam juizos que se ampliam e se arvoram em ponderagdes mais gerais, validas para a sociedade como um todo Dessa maneira, como aeiculo de trocas, durante todo 0 século XX, a cango popular cortou transversal- mente nossa pélis, independente de género e estilo, providenciando um estoque de referéncias para a vida piiblica brasileira passfvel de reconhecimento por wma andiéncia ampla, de nivel social ox cultural diversificado. De alguam modo, através dela, ou por sew intermédio, circularam ideias etransitaram publicamente pontos de vista num processo de troca, negociagto e confronto de opinides — que, decantadas do particularismo arbitrério ow indiossincrético, puuderam vir a transformar-se em opinito piiblica® Os sujeitos envolvidos nesse processo de reconfiguracao das expe- rigncias geralmente situadas em um passado imediato ou no seu presente mergulharam, entao, nas questdes da coletividade, problematizando, com frequéncia, a formacdo e a reprodugdo das relacées sociais. Os rappers cumpriram de forma magistral esse papel, polemizando e criticando diretamente a situacao do pais, concebido por eles como solo de terriveis desigualdades Detalhe intrigante é que para eles contam pouco os questionamentos acerca das intricadas relagdes entre noyoes de verdade, realidade e ficga0", de resto muito comuns em outros tipos de narrativa sobre o pasado, como nos livros ficcionais e nos filmes. Isso, em larga medida, guarda intima relagao com a ideia amplamente disseminada de uma associagao inesca- pavel entre rap e realidade/verdade, como reconheceu Mano Brown em conversa com os integrantes do Negredo, Ferréz e outros manos da Zona Sul de Sao Paulo: “essa cultura de cantar a realidade [..] 0 rap é a musica de realidade, nao foi [essa] a coluna que segurou toda essa estrutura de up de todo mundo aqui? Seus livros, minhas miisicas, o documentario?”= Nesses casos, tomando emprestadas palavras de Chartier e retirando-as de seu contexto original — uma reflexao sobre a instituigao histérica -, “o real é a0 mesmo tempo o objeto e 0 fiador do discurso”.” De fato, atribui-se aos raps um carter de verdade ~ nao no sentido das narrativas serem o reflexo do real, mas de serem opostas a ficgéo, & fantasia — que procura convencer 0 ouvinte valendo-se de estratégias de ArtCaltura Ubedindis, v.20, 0.36, p. 7752 jan-jun. 2018) Eduardo, do Facgio Cental, considera gue pascela impor tante do seu trabalho artistico consiste em fazer “9 poeeivel para conscientizar o no=2> ovo". Duck Jay-nio ica tras: "a proposta [do seu trabalho] ¢ [L]sempre conscientizassa’, Entrevista com Facga0 Cen. tual Rep Nacional, nov. 2006, © ‘entrevista com Duck lay. Rap [Nacional jan. 2008 = lesod especialmente evidente fem “Terrorista”. Realidace Cosel, CD Mas cl do un « Hortolandia: Face da Morte, 2002, em que o protagonists fia acto narrada pelos rappers interpela (pela ofalidade) eu interlocutor (cultor da palavra ceserta): “satisfagdo, jornaista gut € a materia que voce deleta/[..J/toda informacio distorida tem o seu prego/e¢ Justo que eu cabre caro, nada extaorinano” = Eo terror". COG. CD CPI 4s facela Brasilia: 2002 (inde pendent). © -Latar precisa” Gira Ver smelha. CD at hors do revide, 2008, Uma cutiosidade per finente a discussie: dove sos tntegeantes do Gina Vecmnelna Hertz e Verck, s20 graduz los em Historia e mestres x Eatucapio, =» Umeretccio mito proximo, slits, do que cealiza a micro- |nistoria, Sobre o assunto, ver LIMA, Heneique Espada. 4 imicrostéria alana: excal, tndicios © singularidades, Ro de Janeiro: Cvilizagto Bese: ei, 2006, © STARLING, Heloisa Maria Musgel. op. ep. 372 % 0 qe nto significa ignorar ssmplificagdesemaraquetsmos fem siias representagses do real conforme j aponte: em CAMARGOS, Roberta, Ray 2 pola: percepsoes da vida sexial brasileira, $0 Palo: Bor tempo, 2015, esp. no capitulo Repretentagees, experiencins verdades Sobre o assunto, ver, entre outros, GINZBURG, Carlo. O Foeosrasivos: verdadeito also, fcticia, Sto Paulos Companhia dae Lateae, 2007, 1 100% fave. Bras Atragao Fonogrifica, 2006. 1DVD (som, color. > CHARTIER Roger. instnes a ura do tempo. Belo Ho- zante: Auténtica 2008, p25, at © Essa eet € tao recorrente e forte no meio que wm grupo de Goisnia adotou come nome Testemunha Oculae. Owvie ‘Tesernunna Osulae. CD Frat dz rus. Gotania: Two Beer oF Not Twe Beer, 2003.0 titulo {do cisco fomece pastas do que fs rappers testemunham com, (08 proprios olhos: 0 cotidiano das russ, Ouvir “Tes coraptes”. Gog. (CD Tarja preta. Brasilia: So Balanzo, 2003, “O bagulho é dioica’. MV Bill, CD O Baguio { doudo, Rio de Janse: Chapa Preta, 2006, “Magico de 02" Recionais MC's LP Sobrsene do no inferno, op. at, “Carwer sando com os mortos", Facgio Central. CD Dirto do carp de exterminio, Hortolindia: Face da Mozte, 208, © Quvie “Intetacio”. Consci féncia X Atal. CD A reset. Brasilia: Discovery, 1999, "PL 2, “Hey bey” ou “Mutheres vrulgacee”Rasonsts MC Col. Racionais MC's, Sio Paulo: Zanbabwe, 1984. © Ouvie "Na zona aul". Sabo: tage, CD Rip compromiss. S80 Paulo: Cosa Nostra, 1999, em (ques temporaidade eo eepaco danarrativa virada dos séculos YOOX ea zona sul da capital Paulista, 580 minuciosamente Aescitos ¢ construidos como palco dahistoria Quvie “Protisese perige Rodrigo Ogi. CD Cries de ‘dade cna Sd Paulo: 2011 (in ependente, compesicao cujo sentido e cima 280 totalmente dependentes des sons roubs dor do coticiano e das muss de tama grande cidade. * CERTEAU, Michel 4 eso te da uetsria Rio de Janeiro Forense Universitaria, 1982, pull Carla Ginaburg porexemple, jf demonstrou como o mesmo procedimento € fundamental f muito presente no trabalho dos historadores, que sempre ‘buscam wm “efeita de weed die" para suse nazrativas, Ver GINZBURG, Carlo. fo © 05 rastros, op. © Cartto-postal Bomba, Dies: Marcus Barbiere, Angel Duarte ‘Anne Fstos. Brasil 50 Balan §9,2008. DVD (sen, colo) 82 armagao de enredo: a ideia de testemunha ocular®, combinagao de depo mentos orais inseridos na trama como citagao de um documento™, pro- mogao de didlogos entre personagens®, delimitacao espacial e temporal, incorporagio de sons do cotidiano*, criagdo uma atmosfera/clima musical que potencializa e dramatiza o relato feito. Com certa semelhanga com 0 trabalho do historiador, o rapper tenta produzir credibilidade e até “extrai da citagéo uma verossimilhanca do relato e uma validade do saber”.* Cabem, claro, alguns questionamentos. © compromisso declarado com a “verdade” garante alguma “exatidao” a essas narrativas? A mescla de elementos retirados da experiéncia — como defendem os rappers — de fato afasta dos raps 0 espectro da ficgao? ‘As relagdes mais ou menos diretas com a realidade social nao im- pedem que parte das composigdes dos rappers sejam consideradas como narrativas “histéricas”, como portadoras de uma consciéncia histérica. Nao ha como negar. Nas suas obras estao inscritas as transformagées sociais, os arranjos urbanos, as relagdes das pessoas com os espagos, 05 sentimentos, as lutas cotidianas, a desigualdade no acesso aos servicos publicos, a opressdo das normas sociais, a critica, a adesao seletiva ou negagao da ordem vigente e outras dimensoes da luta pela sobrevivéncia, Muitas delas, ao tratarem desses temas, partilham concepgoes politicas e éticas com a historiografia de sua época, mesmo obedecendo a regras ¢ procedimentos préprios. Complementarmente, tal como uma parcela da historiografia de seu tempo, na narrativa dos rappers ocorre uma inversdo do olhar que resulta em uma histéria vista de baixo, contando ao piiblico em geral o que foram as tiltimas décadas pelo ponto de vista de quem se coloca ao nivel das classes/personagens populares. Carregando mais em determinadas cores e menos em outras, os miisicos rememoram situagoes/ fatos/eventos, reconstroem parcialmente épocas e lugares, conferem signi- ficados a experiéncias multiplas. E isso que se percebe no contato com as miisicas, um trabalho de meméria que empresta a historia narrada pelos rappers inequivocos contornos de verossimilhanga.* Assim, vale a pena ouvir com atengao o mundo pensado/produzido por essas composicdes, um tipo de histdria que chega a ser complexa a ponto de termos de aprender a interpreta-la. Os compositores, quase sempre, mostram-se conscientes do que realizam ao contarem/cantarem narrativas que enfocam um pasado recente, como explica Gog: Sto momentos diversos. Sto acontecimentos em tempos diferentes, mifsicas dife- rentes, Mas olha 35, “Momento seguinte”, “Periferia segue sangrando”, “Mais suma historia” “Quando o pai se wai”, quando vocé pega cada um deles, cada wma dtessas criagdes ¢ voc8 monta, voc: “Caramba! Ota s6 que quebra-cabeca! Que Iouco, 1mm quebra-cabega socal. [.] 6 pra vocé ver, “Assassinos sociais”, “Fogo no pavio”, “Eu e Lenine — a ponte”, tudo isso, se voce perceber, acontecen comigo, mas aconteceu com vocé também € ocd consegue entender o que eu flo.” Essas explicagées de Gog abrem uma via de entendimento paraoseu processo criativo, para o modo como ele pensa o rap eo papel que atribui & sua postica. Nas entrelinhas, parece indicar que por intermédio do rap ele opera como um “historiador”, querendo entender e escrever uma histéria imediata. A proposta é desafiadora; afinal, aceitar que miisicas do universo rap possam transmitir algum contetido sério sobre o passado foge, ao menos ArtCaltura Uberlindia, v.20, 1.36, p. 7-92, janjun, 2018, em tese, do que aprendemos sobre o que é essa disciplina/campo do saber. Convém esclarecer: a relagdo que os rappers estabelecem com os as- pectos da vida social, com o passado, nao é da ordem do mero inventario, da colegao de experiéncias que passam a compor os seus relatos. O que eles fazem é expresso de uma pritica ativa que envolve seletividade, escolhas, recortes, pesquisa e a construcao de leituras préprias, sentidos e significados afinados com valores, vivéncias e expectativas especificas de um grupo social. Exemplar, a esse respeito, é o que diz Eduardo em uma das muitas entrevistas que concedeu a Mandrake e & equipe do portal de noticias Rap Nacional: 0s assuntos que serdo abordados vm da sua percepeto diante de tudo que voce vi, penso muito na maneira em que eu vow colocar cada pelavra na musica, é uit trabalho minncioso, é um castlo de cartas, se uma estiver errada, todas cairo (| sua missio nio é apenas noticia, sendo eu seria éncora de jornal, antes de ser um relato social se trata de wma mtisica esse relato sain do seu cérebro em forma bruta como noticia e demiinciae tend que ser lapidado dia aps dia para que se transforme no diamante, em musica, num rap contundente de atitude* Orup contundente, de atitude, é 0 que carrega uma visao de mundo, portador de uma interpretagdo que dé sentido para o que foi ou para 0 que é vivido — ou, pensando com Benjamin, que seja capaz de transformar vivencias em experiéncias comunicaveis. Nessa concepcio, 6a construcao de significados que difere as narrativas criadas pelos rappers de outras que por vezes abordam os mesmos temas e acontecimentos. E 0 caso, mais uma vez, de escutar com atengao o que Gog tem a dizer. Ao comentar a sua miisica “Sonho real”, que dialoga com algumas experiéncias da luta pela terra no Brasil e alude experiencia de alguns lutadores (citados no- minalmente no inicio da faixa) que inspiraram as suas reflexes, ele sugere que a perspectiva do rap é diferente e até oposta a apresentada em outros discursos, inclusive os jornalisticos e académicos. Para Gog, 0 rap €0 jormal do povo, ele faa alinguagem do povo, 0 que © povo quer ouvir, mas le dé uma cara de qualidade nisso |... 0 hip hop. como é que faria? Ele poderia até tirar wma foto dele, mas di munca o fizeram curcar, ele néo parou de caminhar, ele néo parou de respirar. Ele ainda tem sangue nas veias. Para mim, ele é mais wm rebelde brasileiro. Quer dizer, ele éatragto na quebrada, ele ndo &0 cara que € 86 derrota, Dentro da derrota dele tem virias vitrias.® assim: sex Zé, trabalhador, vivias derrotas que Onp, ai, nao 656 produtor de uma leitura sobre a histéria do tempo presente. Ele opera uma série de valores compromissados com os de baixo, comas classes populares, e da vazio a narrativas orientadas e sintonizadas com os desejos, pensamentos e angiistias que se acredita serem as existen- tes entre esses sujeitos. Os rappers, que segundo o hip hopper Marcelino Back $pin, estéo “preocupados com a informago"S, tm como uma de suas fungdes autodeclaradas oferecer aos ouvintes narrativas que ajudem. © seu puiblico a pensar a prépria histéria, mas nao pelo ponto de vista dos setores dominantes.* Eles compdem boa parte de suas muisicas pensando na histéria porque a vivenciaram ou conhecem quem a vivenciou e por cter que as pessoas nao devem esquecer o que aconteceu e, mais que isso, precisam ter clareza sobre questées relativas ao processo histérico e que ArtCaltura Ubedindis, v.20, 0.36, p. 7752 jan-jun. 2018) © Enteevista com Fassia Cen- ‘eal. Rep Nacional. nov. 2006, » Ver BENJAMIN, Walter, O anatrador. In: Magia ¢ réonca, arte police: ensaios sobre I teratuia ehistoria da cultura 8 (24 Sto Paulo: Beasiense, 2012. © Ohip hop brasieir assume ppaternidade ~ entrevista com Gog, op. cit, p. 117. Spensy Pimentel Cidhurce Powartento, 1.3, Brasilia, nov. 2007 + Subsiste, 20 lado da pre tensio de se ater a ralidade, vuma tentativa de cativar © ouvinte e tomi-lo receptive 3 conseiéncia pritica, moral fe historica que permeia az inarrativas dos rappers. Como observa Danielle Brasilense, “quando wm narrador sede, provoca emosdes © prende 0 leit pelo que o secunta tem de extraordininio,cleieva sas peopasconcepstes de mando, povémn com a certeza de que (Seas também fazem pare da concgacia moral do leitoe © com iss9, nio iri desagrads In” BRASILIENSE, Danvelle Ascoateibuigtes dos romances policiais do século XIX para fe nazrativas jomalistcas doe rmescontemporineos Rests Ecopés: Conuricagao € Gost, vv.17,m.3 Rio de Jancito, 014, pa © Casa do hip hop abre espaso para cultura de ua Ect eS, Prdo, ld mar, 2000. © Ainal, “sem rota propria, te levam como folha 20 vento/ comono velho ditada) sem len 0. sem documenta) te doa ‘Rando com a desinformasio Ouvie “Vace # intiuenciace pela andi. Bandeisa Negra, CD Transformaseo, Cabo Frio se. (independents). 3 © Apos escutar "56 a capa da gata” Linha Dura. CD Tekapo crus, Cuiabé: 2008 (indepen Gente), ouvinte # coma que convidado a pensae © ampliae ‘seu repertori de nformacdes Sobse otema do cack; 30 ouvie “Bras serneducasso” Face da Morte. CD Crime do racieimc Sto Paulo: Sky Blue 1999, ¢he possblitado problematizar © refletir sabre a reslidade ec cacional do pals: a0 atentar pata o: dramas cantacos em "Casteloteste”Facyao Central CD Oespeitesto do cro des ho roves. S80 Paul Facgio Central Produgies Fonograicas, 2005, percebem-se novos angumen: os para embasar posicions mentos criticos sobte a satide publica. E por ai va © C.BENJAMIN, Walter Sebre concede historia. Jn Mage técnica arte e politica op. cit © °Q verdadeire MC". Doc: tors MC's, CD Pre quem guise ser So Paulos Kasia, 1994, Guardadas as diferengas de epoca e de contexte © cabivel langar tuma ponte entre essa postura dos rappers € a dos sambistas dos anos 1939, no Brasil, Ao sazem em detesa do samba eles, com justo org, proclamavam-se “dowtoresem\ Samba’ e “mestes de escolas de samba". Ver PARANHOS, ‘Aadalbecta, Os desainadon: sn bas e bambus no “Estado Noo ‘Sto Paulo: Intermeios/CNP9/ Fapemig, 2015, cap.2, 5p. p sees. © -O verdatete MC op. © CHARTIER Roger. A mito Ao ator ea mente do ster. S30 Paislo: Editora Unesp, 2018 p. 256, © GINZBURG, Carlo, Apontae citar a verdace da Histon. Revista de Histéra.n. 23, Cam pinas, 1994, p. 92, =Umquilombola com oped da palavra, Ret, out 2006. Entrevista com Consciénca Humana, Rep Bra, ano 2.0, 18,2005 5 *Sangue B". Consciéncia Humana op. ct afetam as suas vidas. Nao interessam, portanto, narrativas que nao deem conta de estimular o pensamento e possibilitar a ampliagao da visao critica. Esse entendimento do ato de narrar acontecimentos/eventos/hist6- rias remete 4 nogdo de histéria de Walter Benjamin, seja pelas pontes entre ‘meméria ¢ experiéncia presentes nas narragées ou na atitude que sugere que 6 indispensivel lembrar e também esquecer (para ficar no relato de Gog citado logo acima, esquecer das derrotas para ver as vitérias dentro do mesmo proceso histérico, por exemplo). O trabalho dos rappers escova historia a contrapelo ao nao aceitar a hist6ria do vencedor, que se impoe como continuidade, como meméria e poder estaveis e mais ou menos inal- terdveis tenta jogar paraa sombra as memérias de outros grupos sociais.* ‘Memériae experiencia emergem, por essa via, como forma de pensa- mento, poiso movimento de lembrar e esquiecer produz imagens de relagdes possiveis entre passado e presente, nao do passado tal como existiu. Essas imagens so formuladas nos trabalhos de meméria empreendidos pelos MCs, a despeito de saberem que “nao somos formados’, porém "somos doutores/ empregamos no rap todos nossos valores” “ Importa frisar que ‘o que conta ai nao é a exatidao das narrativas, e sim a perspectiva histérica que anima o rap que “critica 0 governo de um modo anormal/ fala de um povo e da diferenga social/ canta, protesta e avisa dando um toque”. Pensar o trabalho artistico sob essa ética pode causar algum estra- nhamento; todavia, esse entendimento, de alguma maneira, se afina com reflexdes que tém ganhado forga entre os profissionais da Historia, Roger Chartier, por exemplo, adverte que “os historiadores de hoje nao possuem mais 0 monopdlio das representagées do passado”; basta verificar que as “insurreigdes da memidria e as sedugées da ficcdo proporcionam uma acirrada competicao” * Carlo Ginzburg, por outro lado, cita Aristételes ao tratar da mesma questao: “Herddoto nao seria menos historiador se escrevesse em versos, desde que continuasse a reivindicar um minimo de -verdade para suas proposigées sobre a realidade” “ E dbvio que o trabalho dos rappers no campo do conhecimento e da cultura é diferente do realizado pelos historiadores. Os compositores, evidentemente, compreendem tal di- ferenca, contudo nao abrem mao de que as suas representacdes do passado sejam reconhecidas como fidedignas e verdadeiras. Por isso o rapper Gil Amancio valoriza conhecimentos produzidos pelos poetas das ruas: “eu ainda sonho com o dia em que os mestres da cultura popular irao ganhar o titulo de notério saber e ocupar os espagos das universidades brasileiras” Ejustamente essa ideia do rap como produtor de conhecimento, como portador de uma infinidade de saberes sobre a vida social e a “natureza” humana que fez com que um dos integrantes do Consciéncia Humana, Aplik, pensasse sobre sua atividade como rapper. Ao passat em revista suas experiéncias como compositor e ouvinte do género, ele declarou, em entrevista a Rap Brasil, que, “a partir do momento que comecamos a fazer rap, nossa visdo sobre nés mesmos mudou”.®' Essa colocagao, principal- mente quando conectada a outros aspectos, ressalta a existéncia de uma consciéncia histérica entre os rappers que foi proporcionada—ou pelo menos agucada -, em parte, pela prdpria pratica do rap, apesar de que, em 2003, ele e seu grupo jé acreditavam fazer “um som pesado e conscientizado” Esse tipo de som remonta a tentativa de muitos rappers de tomar parte na construgao de relatos sobre o passado e sobre as experiéncias sociais, notadamente aquelas vivenciadas por trabalhadores pobres, moradores de periferias e favelas, que sofrem os efeitos perversos do racismo. Tal como ArtCaltura Ubedlindia, v.20, n. 36, p. 7752, jan-jun. 2018) alguns historiadores, em especial os dedicados & histéria social, ¢ inegavel a intengao dos rappers de converter sua pratica cultural em uma atividade politica, critica e militante. Eles ambicionam transformacées nos modos de ver, pensar e contar o mundo. Nando, do ClaNordestino, nao tem diivida quanto importancia do rap nesse processo e se considera “um aftodes- cendente escrevendo outros 500"® — ou seja, a histéria ndo contada e que €atinica com que ele e seus semelhantes podem se identificar. Essa ideia 6a que embala “Poucas palavras’, de Renan, do grupo Inquérito: [.] Vou dar um salve pra quem nao sabe O rap tem base, bagui nd é fase Hoje a facela 6 moda nas tela Cidade de Deus, Tropa de Elite, novela [Néis graca disco, lang loro, fs até sarau [Nos laon alma, depois poe pra secar no C1 6 que pros boy ainda 96 sou mano Que fala na gira, de treta e timo fd Poucas palavras, tio, vou ser breve Sea histéria é nossa, deixa que néisescr ve La Por af caminha, também, 0 Girias mente, o trabalho desen Nacionais ao comentar, mesmo que nto direta- ido pelos rappers: [1 Discos divertem Dioutgam Descobrem Dilat Deserevem Desenvoivem. Desfrutando das deliciosas descrigdes Dos doutores das dicgées (..* Em meio a todas essas questoes, persistem algumas perguntas: como entender essa linguagem?; como os historiadores se posicionam diante das narrativas dos rappers?; 0 que essas cangdes acrescentam & nossa compre- ensao do pasado? Tais indagagdes permeiam este texto, a0 longo do qual procuro pontos de didlogo com elas. Por ora, permitam-me uma provoca- do: 0s rappers, ou parte deles, podem ser, ou jd so, “historiadores”? Ao analisarmos esas muisicas que nutrem a pretensao de alcangar a verdade e/ou denarrar o pasado, é preciso ir com calma. Nao devemos sucumbir & “realidade” das misicas ou equiparé-las ao que realizam os historiadores quando fazem Histéria. Elas, por exemplo, nao evidenciam os procedimen- tos de montagem e interpretagao dos fatos, ou seja, entre os rappers nao pre- valece um conjunto de regras que controlem as operagdes de seu discurso, mesmo que alardeiem um compromisso ético. Nem poderia ser diferente, ja que os procedimentos na area do rap sao distintos dos que orientam a histéria escrita. Os rappers, nesse sentido, nao sao historiadores, mas, sim, artistas para os quais os acontecimentos do passado sao relevantes. Porém, relativizando as coisas, “jé so (au podem ser) historiadores, se, com essa palavra nos referirmos a pessoas que confrontam os vestigios do pasado ArtCaltura Ubedandia, v.20, 0.36 p. 77-52, jan-jun, * *Quantas historias pra con tar". ClaNordesting, CD a peste negra, Hortolandia: Face {da Morte 2003, -Poucaspalavras” Inguénto, CD Mudorge. Campinas: 2010 (independent). © °3D" Gieias Nacionais, CD Desa de densi, Taubsté: 2008 lundependent), 35 ROSENSTONE, Robert A. A storia nos flmes, 08 fmes ma ustri. Sao Paulo: Paz e Tecra 2010, p54 © "Como vou deixar voce" (Paulo Diniz) Paulo Diniz. LP (Quero aotar pra Bahia. Rio de Taneito: Odeon, 1970 = °A favela chorou", Sandie, RZOeFamiliaRZO. S30Paulo: 2012 (independents) * “Coma vou deixar voce op. ct © Para uma reflento sobre traumas, memérias e marcas que deteeminadas expenencas produzem, ver GAGNEBIN, Jeane Masi, Laniar, ere ésquecer. S80 Paulo: Edstora 34, 2006, esp. o capitulo "O ssctipea cite: metaocas da 98 favela chorow’, op. ct © Rapper Sabotage foi atingido por quatro tires, diz hospital, EoliudeS Pel fedigioen ine, Dajan 2008 © Moceecam. Vo, 29 jan, 2008, Acredita-se que 2 morte de Sabotage foi provocada por desafetos acumulados nas suas incursdes pelo mundo docaime © Policia encontea capuz 20 Indo do corpo do ryper Sabo: tage. Foland, Pel [edict on Tone, 24 jan, 2003, Refiguragio, de acordo com Ricoeur. €a transformacio dacxperiencia vivasoboeteto dda narcacao". RICOEUR, Paul spud GAGNEBIN, Jeane Marie, opvcte p. 172 36 (rumores, documentos, edificios, lugares, lendas, histérias orais e escritas) €05 usam para contar enredos que fazem sentido para nés no presente”. Nao ¢ isso, afinal, o que eles reivindicam? Sabotage Na cangio “A favela chorou” a primeira frase, lancada sobre o beat bem marcado pelo bumbo e pela caixa, vem na forma de sampler, desta- cando do contexto original algumas palavras contidas numa cangao do cantor pernambucano Paulo Diniz: “como vou deixar voo8?”" Na sequéncia aparece Sandrao, MC do consagrado RZO ~ sigla do Rapaziada da Zona Oeste -, em uma performance em tom intimista: [J] Como deixar a favela, Como deixar a famitia, Como deivar um fiko, Como deivar af Como deixar a caneta, Como deixar a sono, Como deixar a bisa, Como deivar a vida? {..J* Esses indicios de um abandono traduzem dor e envolvem uma extensa rede de afetos, relacdes e emocées. Por isso 0 sampler volta, dessa vez sonorizando mais quatro palavras: “como vou deixar vocé... se eu te amo?” tensao que brota do jogo armado entre os versos de Paulo Diniz e as ponderacdes de Sandrao ¢ fruto de feridas abertas, cuja tentativa de cura estano trabalho de meméria, na narrativa que elabora simbolicamente © trauma’ para superé-lo. As cicatrizes, oriundas de um evento tragico, esto nos versos []Aqui éa dor De wm adepto do tio Quem se apresenta Sabota A saudade d6i e er Neste ponto o ouvinte percebe que a musica é uma homenagem ao rapper Sabotage, que no dia 24 de janeiro de 2003 "foi atingido por disparos por volta das 5h30 [...]na zona sul de Sto Paulo”.® “Ele foi alvejado por um desconhecido pouco depois de deixar a mulher no trabalho’ # O maestro do Cando, outro modo utilizado pelos rappers para se referirem a Sabotage, “nao resistitt e morreu as 11h25".** Todavia, a cangao nao se presta apenas a homenageé-lo ou extravasar o sentimento de saudade que por certo tomou conta dos compositores (e de muitos outros brasileiros vinculados ou ndo a0 hip hop) que promoveram por meio dela um exercicio de refiguragao® da perda do amigo Maurinho. Era, igualmente, 0 ato que estabelecia sua presenca na meméria dos praticantes, ouvintes e simpatizantes da cultura hip hop. A canc3o, entao, segue na voz de Sandrao com a exteriorizagao de um sentimento e de um personagem, 0 Sabotage: ArtCaltura Uberlindia, v.20, 1.36, p. 7-92, janjun, 2018, Lo Mas em todo ugar [Nbs sentiremos sua presenca Peri Sua cara, sua lembranga éintensa Um mano humilde, com atitude ia Seu potencial ia além Qe mostrou com intensidade Que “respeito é pra quer tem” |... Accada frase, a cada verso, entram em agio os mecanismos da memé- ria, Em um movimento complexo que implica lembrangas, esquecimentos, siléncios e falas seletivas, é possivel notar a fabricacdo de um monumento, um ponto de referéncia que estrutura a meméria dos compositores e da coletividade & qual pertencem." Sob esse aspecto, a miisica de Sandrao, Celo-X e Familia RZO constitui um lugar de meméria.# Ajuda na definicao do que é comum a esse ou aquele grupo social e, consequentemente, 0 distingue de outros, alimenta e institui sentimentos variados — como o de pertencimento —e contribui para a elaboragao de fronteiras socioculturais, Recorrendo a Michael Pollak, eu diria que a narrativa consolidada por Sandrao e seus companheiros “acentua as fungées positivas desempenha- das pela meméria comum, a saber, de reforgar a coesao social, nao pela coer¢ao, ¢, sim, pela adesdo afetiva do grupo” Em outras palavras, até mesmo quem nao se ligava em Sabotage era induzido a olhé-lo sob outra Stica, a repensar 0s juizos formados sobre o rapper: ‘Nessa composicao age-se como no caso das testemunhas oculares. Ainda no rastro das reflexes de Pollak, acrescente-se que essas testemu- nhas “sabem que vao desaparecer [e] querem inscrever suas lembrangas contra o esquecimento”.” Ha nesse processo inclusive uma funcao atribuida 20 nao dito - marcado “pela angiistia de nao encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que diz ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos”?—, algo importante na monumentalizacdo das memérias que se quer instituir na histéria, Em fungao disso, caem numa regido de sombra aspectos da vida de Mauro que, quando morto, s6 silo recuperados para (e se cumprirem 0 papel de) reafirmar a historia de superacao do personagem Sabotage, em sua luta para dara volta por cima em uma vida dura que prometia condena- lo a invisibilidade publica. E 0 que se verifica quanto ao seu envolvimento com o mundo do crime e com o trafico de drogas.” Nada demais, ja que as natrativas — que lembram, registram, excluem, recalcam, destacam - so resultados de um trabalho de organizagéo. Em se tratando de Sabotage, ‘© que se quer perpetuar nao ¢ o Mauro que viveu em uma favela da zona sul de Sao Paulo e se meteu com expedientes condendveis, mas o papel positive cumprido por aquele que “iluminou mentes confusas/ em vari partes da cidade/ sd cultivava os amigos/ aos milhées, sem falsidade””: [..] Todos aqui saber que Sabota é mano eterno E oamor que tw plantou, nego E fonte no deserto Seja no samba, no rap, no reggae Todos tém sanudades La Vive em ondas sonoras Pele caracto da gente ArtCaltura Ubedindis, v.20, 0.36, p. 7752 jan-jun. 2018) A favela chorou”, op. cit. © Sobse meméria coletiva, ver HALBWACHS, Maurice. A meméria coerion, S40 Pasi: Venice 1990, © Ver, sobre oassunta, NORA, Pierre, Entre meméria e hist iat aproblematica dos lugazes Proje Histéria.n 10,50 Paul, ez 1993 POLAK Michael. Meméia, cesquecimenta,sleacio, Estto= Histérces, v.2, 0.3, Ria de Ja seizo, 1989, p.3. Tom, iden, p.7. "Idem, ton, p. 8. = Ver, Toni, Um bom lugar: biogtafia oficial de Mauro Mateus dos Santos. Sto Pat to: LiteraRua, 2013. Segundo ‘Gaimar Penteado, rapper teve dduas passagens pela poli em S8scuma por portede deogae fe outra por trfica. Ver Tias atingramoreiha bocaecoluna Penteado, Gilmar, Folie de 5 5 an, 2008, a7 ia & Mas "er. = Hem, *POLLAK Michael. Memésia, esquecimento, silencio, op stp.3, Verlowvie "Mil faces de um homer lal”, Racionais MC's, Directo: Daniel Grinspum, Brasil PretaPorte Filmes, 2012. sobre Carlos Marighella. “pro tetor das multides/ encatna oes decelebres malandes/ de ‘Sérebrosbrithantes| [marti site ou maldite sonhader/ tan. ido da mua coe"; "Zum" Slim Rimogeatia. CD amor idee mist, Sdo Paulo: 2006 (independente); “Revolugio Davi. Florianépolis: s/d. (in dependente), que reverencia a “guerniha [que] esta a, ela runca para como Luis Carles Presies, Rosa Laxembnago © Che Guevara = Ouvis, por exempla, “Rese téacia". NUC. Col. # Encontro Nacional Nagte Hip Hop Bras 2006, que rompe com alguns marcos consagrados, apontan do que "Princesa abel, uma farsa’, © sinda defende que "agora a gente € que escreve arnossa hsténaa”, Ovvis ainda *Nego negs”. Inguesito, op ct, que na mesma pecepectiva Gdestacs que “naa foi bem co Jeso que a histonsa te ensinon” Zumbi que lutou.apaincesa so * Ouvir, entre outras, “Deve mos honra”. Bandeisa Negra CD Transfrmapie, op A favela chorou’ op. ct. BC, Toni op. at, p23, © Ver “Rap € compromisso". Sabotage, CD Rap écompromis © Ver “Respeito ¢ pra quem tem”. Sabotage, CD Rap sn promise, op ct. idrson Sabot. Beas Mé-HFiimes 2/4. 1DVD (soa, colon) = saboagesomaesteo do Cana. Ditegto: Ivan 18P. Brasil: 13, Produgies, 215, 1 DVD (soa, colon) » Sabotage proper integrasio do samba 20 rap. Peo Alenan dre Sanches, Foe de S, Pu 27 jan. 2003. Favela é Sabota Que sempre oni estar presente [ Na esteira dessas construgées simbdlicas janeiro de 2003 passou a ser um marco e Sabotage, um icone cultuado de uma dada histéria de tempos recentes. Com sua capacidade de narrar e descrever por intermédio da mtisica, Sandro e seus amigos procedem a uma leitura de um processo social que, para uns tantos rappers, deve ser incorporada & histéria de um grupo social como a sintese de uma sensibilidade, de um estilo de vida, de um campo de expectativas e de tentativas de superacdo que sdo par- tilhados, acima de tudo, por gente da periferia. Essa fungao é explicitada em passagens como esta: “aqui alta cipula assim/ em sua meméria/ DJ Hadje também est aqui/ suas pick-ups contam historia” * Essa miisica 6 expressamente um desdobramento da maneira como 0 rappers se relacionam com o passado e buscam produzir/inventar alguma histéria. Isso envolve um trabalho de enquadramento da meméria, que “nao pode ser construida arbitrariamente[...] deve satisfazer a certas exigéncias de justificagao” ”* No seu esforgo de narrar “os outros 500” ~ retomando a figura de linguagem empregada por Nando, do ClaNordestino — eles, ge~ ralmente, deram as costas para icones/personagens hist6ricos e se puseram avalorizar outros”, instituiram marcos historicos alternatives”, repensaram narrativas hegeménicas” e, também, cuidaram de plasmar seus proprios referenciais e personagens exemplares. E por isso que Celo-X, tendo em mente Sabotage, recomenda a seus ouvintes: “ai, moleque, nao se esquece/ guarde na mente eternamente” Catapultar Sabotage ao patamar de um simbolo da histéria contada e cantada nos rays foi uma obra coletiva, em grande parte alavancada pela morte prematura do artista que era filo de doméstica com catador de su- catas e que tinha um irmao deficiente mental e outro presidiario. Segundo seu bidgrafo, Toni C., militante conhecido do movimento hip hop, “Mauro deixou de ser uma pessoa para se tornar um mito, umaentidade, uma marca J um estado de espirito que habita 0 coragao e a cabega das pessoas”. Sua biografia, langada em 2014, e 0 documentario Sabotage: 0 maestro do Cando, cuja premiére aconteceu em janeiro de 2015, integram um processo de formatacao de sua imagem por muitos MCs nestes tiltimos anos. Sabotage ¢ presenca relativamente constante na produgao discursiva, dos raypers, principalmente de 2003 em diante. Quando ele mesmo nao é reverenciado, suas ideias sao altamente valorizadas. Alguns de seus jargdes sio extraidos de muisicas e falas em meios diversos e cultivados como axiomas que conteriam a sintese do espitito do rap. Exemplo disso é o1uso que se faz das afirmacées “o rap é compromisso”* e “respeito é pra quem tem” # Reserva-se a ele, por essa via, um lugar especial na historia do género, quando nao da cultura brasileira. Nao é por acaso que Andreas Kisser, do Sepultura, disse, em alto e bom som, que “o Sabotage [...] faz parte da cultura brasileira e ele tem que ser sempre lembrado”*, ou ainda que o cineasta Beto Brant acha que ele “é tipo um Bob Marley, Chico Science, [..] caras exemplares, assim... com uma obra muito forte” ** Pedro Alexandre Sanches, por sua vez, reconheceu em Sabotage as qualidades que foram. primeiramente identificadas pelos seus companheiros do hip hop: “postado na trincheira funda do rap, Sabotage era um desses mais talentosos artistas brasileiros jovens”. As falas que erigiram uma aura de figura exemplar surgiram, em ArtCaltura Ubedlindia, v.20, n. 36, p. 7752, jan-jun. 2018)

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