Você está na página 1de 10

CATEQUIZAÇÃO E RESISTÊNCIA INDÍGENA: UMA PROPOSTA DE

ATIVIDADE COM FONTES HISTÓRICAS NA SALA DE AULA


Giovana de Cássia Ramos Fanelli1
Grupo de Reflexão Docente n. 14 - Ensino de História indígena
Resumo:
Junto a um processo de domínio colonial nas Américas, esteve aliado também um projeto de
cristianização dos diversos povos originários presentes no continente. Mas o processo de catequização
foi mera imposição e não ocorreu sem resistência ou luta? O objetivo dessa comunicação é discutir uma
proposta com a utilização de excertos de cartas de José de Anchieta e outras fontes que tratam de missões
evangélicas na atualidade, e que evidenciam os embates entre os religiosos e os povos originários. A
proposta apresenta um diálogo passado-presente, discutindo o que significa a imposição de uma religião
a um grupo por um lado, suas formas de resistência por outro e, na atualidade, a importância do direito
à liberdade religiosa e suas práticas culturais como um direito humano, garantido na Constituição de
1988.
Palavras- chave: catequização; resistência indígena; história indígena; fontes na sala de aula.

1. Introdução

Após a promulgação da Lei 11.645/08, que inclui a história e cultura indígena no


currículo nacional da educação básica, ocorreu uma presença maior dos povos indígenas nos
livros didáticos de história, que sabemos que se constitui como um material amplamente
utilizado pelos professores em sala de aula. Entretanto, segundo Coelho (2019), essa presença
não significa necessariamente que os povos indígenas são representados como protagonistas na
constituição da História do Brasil. A pesquisa de Bichara (2020) sobre as representações dos
povos indígenas nos livros didáticos de história, das séries finais do ensino fundamental II,
revela que nos capítulos em que são inseridos os indígenas, os agentes de mudança, de
estabelecimento de relações e da construção da sociedade colonial, por exemplo, ficam a cargo
dos sujeitos identificados com o mundo Ocidental, cristão, masculino e branco.

Como ainda há uma permanência nos livros didáticos em colocar os povos indígenas
como expectadores da história, e não partícipes fundamentais, o objetivo é propor uma atividade
em que se evidencie justamente o protagonismo desses sujeitos, proporcionando ao professor a
possibilidade de discutir diversas formas de resistência à evangelização no início da colonização
e, estabelecer comparações com o tempo presente, refletindo sobre as investidas de missões

1
Mestra pelo PPG em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade de São Paulo. Professora
de História para o ensino fundamental II e EJA da rede municipal de São Paulo. E-mail: giovana-
ramos@hotmail.com
1
evangélicas sobre os povos originários, especialmente os povos isolados, e as formas de
organização e luta contra tal prática a partir dos movimentos indígenas atuais.

A atividade está organizada para ser desenvolvida em duas aulas, para alunos do 7º ou
8º anos do ensino fundamental II, já que comumente, o assunto da colonização do Brasil é
desenvolvido entre o final e o início dessas séries, respectivamente. A primeira parte da
atividade visa discutir a empreitada catequética no início da colonização ibero-americana e
algumas formas de resistência. Para tal, foram escolhidos dois excertos de uma mesma carta de
José de Anchieta, e um excerto da obra História da resistência indígena (2017), escrita pelo
antropólogo Bendito Prezia, que trata de um movimento Guarani contra a colonização
espanhola, conceituado como desbatismo. A segunda parte da atividade objetiva discutir o
direito às práticas culturais dos povos originários na atualidade como um direito garantido na
Constituição Brasileira, e as ofensivas de missões religiosas evangélicas que possuem outros
interesses, além da catequização. Aqui escolheu-se dois artigos da Constituição Federal que
trata dos direitos indígenas, e o Manifesto dos Povos e Lideranças Indígenas do Brasil: mais
pajés, menos intolerância (2018), escrito coletivamente por uma série de entidades de
movimentos e lideranças indígenas.2

Antes de apresentar a proposta da atividade, se faz necessário discutir o que foi o


trabalho missionário e seus objetivos.

2. O trabalho missionário e convivência nas missões

Junto ao processo de colonização da América e de outros continentes pelos europeus,


esteve atrelado também um projeto de cristianização das populações nativas. Segundo Almeida
(2010), a política de aldeamento foi fundamental para o domínio americano: os indígenas
poderiam fazer parte de tropas militares, compor a mão-de-obra para a constituição das
sociedades coloniais e ocupar os espaços conquistados (ALMEIDA, 2010, p. 71). Além de
torná-los cristãos, o objetivo era transformar os indígenas em aliados e súditos da Coroa
Portuguesa.

Com a finalidade de criar uma sociedade sem os vícios e perversidades da sociedade


cristã europeia (SILVA, 2016), os jesuítas iniciaram os trabalhos de constituição das missões

2
O documento é assinado por 28 lideranças e 15 associações. Por se tratar de um documento longo e com muitas
assinaturas, é interessante consultá-lo em sua íntegra. Ver o endereço virtual do documento nas referências.
2
em que desejava-se proibir costumes dos nativos considerados “bárbaros”, como a
antropofagia, a poligamia, e o nomadismo, além de impor uma dura e rígida disciplina de
trabalho e orações.

Apesar das relações assimétricas entre missionários e aldeados, a ideia de que as missões
eram locais de mera subjugação e imposição de um novo modo de ser, em que os indígenas
perdiam suas culturas e identidades, está absolutamente ultrapassada. É importante sinalizar
que a vida nos aldeamentos provocou mudanças culturais dos sujeitos envolvidos, onde houve
apropriações e reinvenções identitárias dos nativos aldeados3 – que nem por isso deixaram de
ser índios; assim como as concessões realizadas pelos jesuítas perante às relações estabelecidas
com os indígenas, também transformaram o modo de ser desses religiosos. Essa questão está,
inclusive, ausente dos livros didáticos, como afirma Bichara (2020, p.114) “Na abordagem
sobre as Missões, a literatura didática cita certa resistência indígena, porém, são os costumes
do mundo ocidental que prevalecem”.

As missões foram locais de trocas, negociações e acordos que nem sempre eram
cumpridos (SILVA, 2016). Aos jesuítas era necessário manter um bom diálogo com as
lideranças indígenas que lá viviam e que continuavam a ter um papel de relevância. Os mesmos
ajudavam na governança da missão e muitas das vezes recebiam “cargos, títulos, patentes” da
Coroa (ALMEIDA, 2010, p. 91). Entretanto, isso não era condição para que se evitasse
indisciplinas, fugas em massa e outros conflitos que pudessem ocorrer nos aldeamentos.

A conversão ao cristianismo também não deve ser entendida de forma absoluta. Aos que
se convertiam, é importante entender que todos os rituais ensinados pelos religiosos, tais como
orações, procissões e festas sagradas, tinham sentidos e significados que perpassavam a visão
de mundo própria dos indígenas. A evangelização dos jesuítas, em contrapartida, precisou ser
ajustada à realidade vivenciada: apesar de demonizados, o modo de pregar era assemelhado aos
dos pajés para conseguir a atenção dos aldeados.

Outra questão fundamental que Almeida (2010) coloca é que, ao agregá-los ao mundo
colonial, os religiosos ensinaram “novas práticas políticas e culturais que foram habilmente
utilizadas por eles para a obtenção de possíveis ganhos na nova situação em que se
encontravam” (p.72). Assim, souberam utilizar a legislação colonial ao seu favor já que a
mesma, apesar de deveres, lhes garantia alguns direitos. O trabalho de Resende (2003), por

3
Que se tornaram cristãos e súditos do rei de Portugal.
3
exemplo, mostra como indígenas de Minas Gerais se utilizaram da legislação colonial para
contestar a escravização ilegítima.

Não cabe aqui fazer um histórico pormenorizado das diversas fases da atuação de
religiosos e dos diferentes objetivos da catequização ao longo da história do Brasil. De forma
muito geral, podemos dizer que durante os séculos XVI ao XVIII, o trabalho catequético ficou
a cargo, sobretudo dos jesuítas4. Com a expulsão da ordem dos inacianos em definitivo por
Pombal, houve mudanças nos aldeamentos, que apesar da importância da cristianização, a
tônica passou a ser a “civilização do gentio” e sua incorporação como de mão-de-obra. No
Brasil independente, essa questão continuou a ditar os aldeamentos. Com o Brasil republicano
e a separação do Estado da Igreja, a política indigenista ficou a cargo do SPI (1910-1967) e
depois, da FUNAI (1967 aos tempos atuais). As missões religiosas católicas continuaram a
atuar neste período, como é o caso dos salesianos na região da Amazônia e do Mato Grosso,
mas também houve a inserção de instituições protestantes, como o Summer Institute of
Linguistics (SIL), que em convênio estabelecido com a FUNAI, atuava para grafar as línguas
indígenas, traduzindo-as para a Bíblia.

Com o II Concílio do Vaticano (1962-1965) e a Conferência Geral do Episcopado


Latino Americano, ocorrido em 1968, na Colômbia, a Igreja Católica passou a buscar um novo
diálogo com os povos indígenas da América, modificando sua posição missionária, bem como
apoiando-os em suas lutas por terra, autodeterminação, educação diferenciada, saúde e etc. Em
contrapartida, missões evangélicas passaram cada vez mais a disputar “almas”, sobretudo entre
os povos nativos de contato mais recente e isolados, algo que, após a promulgação da
Constituição de 1988, é proibido pelo artigo 231.

3. As resistências indígenas e o trabalho com fontes históricas em sala de aula

A utilização de fontes históricas na sala de aula, sejam elas escritas, orais, iconográficas,
fílmicas etc., tem usos bem diferentes de como o historiador emprega em sua pesquisa. Para o
historiador, as fontes se constituem como matéria-prima primordial para o desenvolvimento da
pesquisa e escrita da história. Utilizado em sala de aula, o objetivo é estimular o debate com as
realidades passadas, em que os alunos possam desenvolver senso crítico e analítico em uma
“perspectiva temporal” (BITTENCOURT, 2018, p. 265). As fontes ou documentos históricos

4
Além dos jesuítas, houve a presença dos franciscanos, capuchinhos, beneditinos e carmelitas.
4
usados no ambiente escolar devem, portanto, ser utilizados para proporcionar uma situação de
aprendizagem sobre o tema que o professor está ensinando.

Bittencourt (2018) coloca que há múltiplos usos do documento em sala de aula: para
reforçar a ideia trabalhada em sala; explicitar uma situação do passado, evidenciando a ação de
determinados sujeitos; ou para introduzir um assunto, em que os educandos são chamados a
identificar o tema histórico que vão estudar.

A proposta que indico é a de reforçar e/ou contrapor ideias sobre o tema que já foi
trabalhado em sala de aula, reforçando o protagonismo indígena nas diversas formas de
resistência à catequização. Sendo assim, antes de iniciar a primeira atividade com as fontes
históricas, é interessante que os alunos já tenham tido algum contato com o assunto, seja através
das explicações do professor, onde este tenha explicitado os objetivos e o contexto da inserção
das missões na América, e/ou através da leitura do material didático de história utilizado em
sala, como o livro didático, por exemplo. O trabalho de leitura com o livro didático ou outro
suporte utilizado para introduzir o assunto, pode ser trabalhado também de forma analítica:
como o autor do livro trabalha e/ou constrói sua narrativa sobre esse tema? Quem tem papel
fundamental nas missões religiosas? O autor mostra se houve algum tipo de resistência à
catequese? Se sim, quais tipos? Aqui cabe um parêntese: é interessante que o professor explique
que nem sempre a resistência a algo ou alguém deve ser entendida apenas como confrontos
físicos, luta armada ou revolta. Ela pode se dar de formas mais sutis, como se percebe nos
trechos escolhidos da correspondência de Anchieta.

Na sequência, o professor pode inserir a primeira atividade com dois exercícios, que
consta de dois excertos de um mesmo documento e um texto. O primeiro exercício são os
excertos da Carta do Ir. José de Anchieta (1560) ao Padre Geral Diogo Laínes, Roma, em que
faz o relato do trabalho catequético. É importante que o professor contextualize quem foi José
de Anchieta, quando veio ao Brasil, quais locais da colônia ele esteve e por quanto tempo
permaneceu aqui. Para fins didáticos, os excertos foram nomeados em documento 1 e 2. Sendo
assim, segue o primeiro excerto da carta de Anchieta ou documento 1:

Há tão poucas coisas dignas de se escrever (...), porque se espera Vossa


Paternidade que haja muitos Brasis convertidos, enganar-se-à sua esperança.
(...) quando caem em alguma enfermidade, de que parece que morrerão,
procuramos de os mover a que queiram receber o batismo, porque então
comumente estão mais aparelhados. Mas quantos são os que conhecem ou
queiram receber tão grande benefício? (...) Adoeceu um dos catecúmenos
numa aldeia não longe de Piratinga. Fomos lá para lhe dar algum remédio,
principalmente para sua alma. Dissemos-lhe que olhasse por sua alma, e
5
deixando os costumes passados, se preparasse para o batismo. Respondeu ele
que o deixássemos sarar primeiro, e esta era a única resposta, que nos dava a
tudo o que lhe dizíamos. Nós lhe declarávamos brevemente os artigos da fé e
os mandamentos de Deus, que muitas vezes de nós havia ouvido, ao que
respondia ele contrariado, que já tinha as orelhas tapadas e não ouvia o que
lhe dizíamos. E contudo a outras coisas fora deste propósito respondia tão
prontamente, que bem parecia não ter cerradas as orelhas do corpo, senão as
do coração. (CARTA, 1560, p. 155 – texto adaptado).

Outro excerto da mesma carta, ou documento 2:

Adoeceu outro noutro lugar (...) crescendo cada dia mais a enfermidade
visitei-o eu, indo a outra parte, quando já estava in extremis. Comecei com
palavras a agradá-lo e induzir ao batismo. Ele, muito indignado, com a voz
que lhe restava, gritava que não o molestasse, que estava são. Trabalhei,
contudo por todas as vias (o que já alguns irmãos em vão haviam tentado) de
ganhá-lo ao Senhor. E esforçando-me nisto com muitas palavras, parecia que
já dava consentimento, ao qual disse: pois que assim é, batizar-te-ei e
alcançarás a eterna salvação. Ele não somente não consentiu, mas antes,
cobrindo o rosto, me afastou, sem responder mais palavra alguma. E noutro
dia, permanecendo na sua obstinação, morreu. (CARTA, 1560, p. 155-156 –
texto adaptado).

Uma das formas de explorar esses textos seria com as seguintes questões: quem é o autor
dos documentos? A quem ele se dirige? Em que ano foi escrito? De que trata esses documentos?
Quais as diferenças de resistências ao batismo entre os documentos 1 e 2? Por que para os
jesuítas era tão importante que os indígenas aceitassem o batismo?

A questão do batismo era algo fundamental para os missionários, pois significava que
ao se converterem ao cristianismo, abandonariam suas antigas práticas culturais e renasceriam
para uma “nova vida”. Lembrando que mesmo convertidos, os significados que atribuíam aos
símbolos cristãos eram muito diversos do que os significados que os europeus davam.

Ausente dos materiais didáticos que tratam sobre a temática indígena, mas não menos
importante, são os movimentos messiânicos ou milenaristas (BRIGUENTI, 2019) de luta contra
o domínio ibero-americano, em que o batismo era praticado ao contrário. Chamado de
desbatismo, foi um ritual em que os xamãs Guarani retiravam o nome cristão, considerado
causador de toda a perversidade colonial, e rebatizavam com o nome indígena. Ocorrido entre
os séculos XVI e XVII no Paraguai colonial, foi uma forte reação ao sistema de encomiendas.
Segue o segundo exercício, com o texto5 escrito pelo antropólogo Benedito Prezia:

A guerra santa de Oberá


Os Guarani dominaram, por vários séculos, a região do médio Paraguai e seus
afluentes. Dividiram com outros povos um imenso território que englobava

5
Aqui adotei a perspectiva de usar um texto de um pesquisador também como uma fonte a ser analisada.
6
metade do atual Paraguai, o sul da Bolívia, o Norte da Argentina, o Oeste dos
estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Eram valentes
guerreiros e seu nome pode ter vindo da palavra guarini, que significa guerra.
A conquista de suas terras não foi pacífica. De 1537 – ano da chegada dos
espanhóis – até 1615, houve mais de 25 rebeliões, sendo que algumas delas
colocaram em risco a própria presença castelhana. Esses levantes eram
geralmente liderados por karaí, como eram chamados os pajés itinerantes.
Correspondiam aos karaíba tupi, líderes religiosos e guerreiros, que pregavam
a rebelião contra a escravização espanhola e contra o cristianismo, que os
conduzia a perda das antigas tradições. Entre os vários movimentos de
resistência, destaca-se o ocorrido em 1579, liderados por Oberá, famoso karaí
que atuou na região de Guarambaré, ao Norte de Assunção, a capital da
província do Paraguai. Ia de aldeia em aldeia incentivando os indígenas a fazer
dança e cantos sagrados para receber a força de Deus e o poder para enfrentar
os inimigos. Pela influência do cristianismo, dizia-se nascido de uma virgem
e que, no seu nascimento, havia surgido um cometa, que com sua luz o
protegera e que, no momento oportuno, iria destruir os espanhóis com seu
fogo. Não sem razão, seu nome significava Resplendor. Na pregação, era
auxiliado por seu filho Guyraró, que se apresentava como pontífice, numa
referência à tradição católica, e por quatro mestiços, um deles filho de
português. Durante suas exortações, exigia que os Guarani catequizados
fosses “desbatizados”, que recusasse a usar nomes cristãos, retomando os
antigos nomes, e que voltassem às aldeias de origem para fugir da escravidão
espanhola”. (PREZIA, 2017, p. 65-66).

Para explorar o excerto acima, pode-se realizar as seguintes perguntas: de qual povo
trata esse texto? Quem eram os karaí? Por que eram contra o cristianismo? É possível dizer que
Oberá, líder da revolta de 1579, havia sido influenciado pelo cristianismo? Em que trecho do
texto fica expresso isso? O que significava ser desbatizado? Um dos objetivos desse exercício
é que os alunos percebam que os indígenas catequizados reelaboravam o cristianismo, e
poderiam utilizá-lo como uma forma de luta contra os conquistadores europeus.
Depois dessa primeira atividade, em que se refletiu sobre algumas formas de luta e
resistência contra as imposições religiosas dos primeiros contatos entre indígenas e europeus,
vamos para segunda atividade, que trata sobre o tempo presente. Os povos originários da
América lutaram, negociaram, construíram e foram fundamentais, não só na composição de
nossa história, assim como de todo o continente. Enfrentaram políticas de apagamentos de suas
identidades e de retirada de suas terras. A partir dos anos de 1970, inicia-se no continente
americano e no Brasil, diversos movimentos indígenas em que a pauta comum focava na
autodeterminação, no direito à terra ancestral, além de educação e saúde diferenciada.
Após o fim da ditadura civil-militar (1964-1985), inicia-se a escrita de uma nova
Constituição brasileira, chamada também de Constituição Cidadã. A articulação dos povos
indígenas através da União das Nações Indígenas (UNI) teve papel muito importante na
conquista de diversos direitos ancestrais, outrora negados. Direitos como manter sua língua e

7
suas práticas culturais, à ocupação do território ancestral, de poderem fundar organizações
próprias para lutar pelos seus direitos etc., acabou por soterrar quaisquer objetivos de
assimilação. Diante disso, o objetivo dos documentos abaixo é tanto discutir os direitos
garantidos através da constituição, como refletir sobre a denúncia da violação desses direitos.
Por se tratar de um documento pouco usual na sala de aula, é importante que o professor
conceitue o que é uma constituição, o que é uma lei e que, no caso da Constituição de 1988,
explique que muitos movimentos sociais participaram de sua feitura, inclusive os indígenas.
Segue o documento 3:
Constituição Federal
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará difusão das
manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas
e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens. (BRASIL, 1988)

O próximo documento foi apresentado no ano de lançamento do filme Ex-Pajé, dirigido


por Luiz Bolognesi, em 2018. Resumidamente, a película trata de como o pajé Perpera, da etnia
Paiter Suruí6, torna-se um ex-pajé. Depois que a comunidade passa a conviver com uma missão
evangélica, Perpera é obrigado a renunciar a sua liderança espiritual e a seus conhecimentos
medicinais. Exibido no Festival de Berlim, em 17 de fevereiro de 2018, diversas organizações
e lideranças indígenas aproveitaram para lançar o Manifesto dos Povos e Lideranças Indígenas
do Brasil: mais pajés, menos intolerância (2018), escrito coletivamente. Segue o documento 4:

Manifesto dos Povos e Lideranças Indígenas do Brasil


Mais pajés, menos intolerância
Mais pajés, mais Céu, mais espíritos, mais floresta, mais vida. Menos ódio.
Menos intolerância. Menos racismo. Precisamos superar a impossibilidade de
conviver em igualdade nas nossas diferenças, e passar a partilhar o mundo
com outros seres vivos, outros viventes, viver e se olhar e se reconhecer no
olhar do outro (...) vivendo juntos em nossas diferenças. (...) Durante muitos
séculos, os pajés equilibram a vida na Terra. Com seus cantos, rezas, curas e
sabedoria, massageiam o Planeta proferindo lindas palavras, as mais belas
palavras sagradas. São médicas e médicos, rezadoras e rezadores, curandeiras
e curandeiros, sabedores do mundo, com suas próprias ciências e sua filosofia.
Em nome de um deus, homens missionários agrediram nos últimos séculos
muitas outras formas de vida. Se nos anos 1970 a própria Igreja admitiu sua

6
Fica a sugestão de os alunos realizarem uma pesquisa sobre essa etnia e sobre as investidas das missões religiosas
contra os povos indígenas isolados na atualidade.
8
violência catequista, esse processo não arrefeceu. Assistimos hoje ao
crescimento de novas cruzadas de intolerância, sobretudo de missões
protestantes. Se aliam com os inimigos dos povos indígenas para deles
extraírem suas almas. (...) O genocídio matou os povos em seus corpos físicos
e o etnocídio em seu espírito, sua essência, sua forma de viver, que é a sua
cultura. Alguns leem na Bíblia a mensagem para invadir o mundo inteiro para
forçadamente pregar o evangelho para todas as criaturas, entendendo que
quem não se converter irá arder no inferno que essa própria religião inventou.
Essa corrida colonial provoca ainda hoje, talvez como nunca antes, uma
disputa por almas que esconde poder, dinheiro, controle de territórios,
mercados de almas. Hoje atravessamos muitas crises, ecológica, econômica,
política, a nossa frágil democracia foi atacada e os territórios indígenas estão
sendo invadidos e saqueados. Junto com o ferro e o fogo, vem a conversão
racista. Trocam as rezas pela bíblia e as medicinas por aspirinas. Epidemias
de depressão provocam os maiores índices de suicídio do mundo manchando
de sangue as lindas florestas do Brasil. Os espíritos da floresta estão bravos,
pedindo socorro, pois cada árvore derrubada, cada rio contaminado, faz com
que desapareçam. Assim disse um sábio pajé, a floresta é um portal cristalino,
e todos nós humanos precisamos dela. Se acabar a floresta, também acabará
nosso espírito. Os pajés precisam existir, e para existir, precisam ser
respeitados. Antes que seja tarde demais, que o mundo esteja esvaziado de
espiritualidade e o Céu caia sobre nossas cabeças! Basta de etnocídio! Mais
pajés! Menos intolerâncias! (APIB et al, 2018)

O documento acima é bastante rico e trata não apenas da denúncia do avanço das
missões evangélicas nos territórios indígenas, sobretudo de recente contato ou isolados, como
evidencia que por trás dessas missões há interesses econômicos e políticos bastante obscuros:
a exploração da floresta, a devastação do meio ambiente e a destruição de culturas inteiras, das
suas formas de viver, de ser, de pensar e se reproduzir, isto é, produzindo o etnocídio.
Trabalhando simultaneamente com os documentos 3 e 4, sugiro as seguintes questões:
cite duas denúncias presentes no documento 4 que ocorrem a partir da entrada das missões
protestantes em território indígena. O que o texto quer dizer com “conversão racista”? Através
da leitura dos documentos, qual artigo da Constituição está sendo desrespeitado de acordo com
o documento 4? Justifique. Na sua opinião, como podemos colaborar para que a liberdade
religiosa de todos os brasileiros, indígenas e não indígenas, seja respeitada? Dê exemplos.

Considerações finais
A forma como foi apresentada essa atividade didática teve como objetivo criar uma
situação de aprendizagem em que os alunos percebam a atuação dos indígenas na História do
Brasil, no passado e na atualidade, como protagonistas. Através das discussões propostas,
espera-se que possam exercitar o diálogo, a alteridade e a defesa de que uma sociedade diversa
seja essencial para nossa democracia. Outra questão é fazer com que os alunos percebam que
direitos estabelecidos em leis, que comumente foram obtidos através de muitas lutas políticas,
9
em uma sociedade desigual e com tantos interesses e conflitos, estão em permanente tensão.
Exercitar o pensamento crítico nas aulas de história, desapagando sujeitos históricos
invisibilizados, é sem dúvida buscar uma cidadania mais vívida, atuante, democrática e plural.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Política de aldeamento e colonização. In: _________. Os


índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
ASSOCIAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB) et al. Manifesto dos Povos
e Lideranças Indígenas do Brasil: mais pajés, menos intolerância. 2018. Disponível em:
<https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/liderancas-indigenas-
lancam-manifesto-contra-onda-de-intolerancia-religiosa> Acesso em 13/11/2020.
BICHARA, Taíssa Cordeiro. Cidadania da Tolerância: as representações do índio brasileiro
nos livros didáticos de História aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (1996-
2016). Universidade Federal do Pará. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia).
Belém, 2020.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Uso didáticos de documentos. In: _________.


Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2018.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência


da República, [2016]. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao>. Acesso em 13/11/2020.

BRIGHENTI, Clovis. Territorialidades e resistência históricas: panorama continental e


atualidade do povo guarani. In: AMARAL, Wagner Roberto do; ICHIKAWA, Elisa Yoshie
(org.) Conflitos e resistências para a conquista e demarcação de terras indígenas no Oeste
do Paraná: os caminhos e as expressões do fortalecimento das lideranças e da cultura guarani.
Ponta Grossa: Atena Editora, 2019.
CARTA do Ir. José de Anchieta (1560) ao Padre Geral Diogo Laínes, Roma. In: ANCHIETA,
José (1534-1597). Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Cartas jesuíticas 3.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

COELHO, Mauro Cesar. A História Indígena no ensino de história: princípios, desafios e


perspectivas. In: REIS, Tiago Siqueira et al. (org.) Coleção história do tempo presente:
volume 1. Boa Vista: Editora da UFRR, 2019.

SILVA, Giovani José da. Diálogos entre História e Antropologia em contextos coloniais e pós-
coloniais. In: SOUZA, Fábio Feltrin de; WITTMANN, Luisa Tombini (org.) Protagonismo
indígena na história. Tubarão, SC: Copiart; [Erechim, RS]: UFFS, 2016.

RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Gentios brasílicos: indios coloniais em Minas Gerais
setecentista. Universidade Estadual de Campinas. Tese (Doutorado em História). Campinas,
2003.

PRÉZIA, Benedito. Contra a espada e a Cruz. A guerra santa de Oberá. In: _________. História
da resistência indígena: 500 anos de luta. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
10

Você também pode gostar