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Sociedade de risco Rumo a uma outra modernidade Tradugao de Sebastiao Nascimento editora 34 CaP{TULO I Sobre a légica da distribuigdo de riqueza 2 e da distribuicao de riscos Na modernidade tardia, a producio social de riqueza & acompanhada sistematicamente pela produgdo social de riscos. Consequentemente, aos pro- blemas ¢ conflitos distributivos da socicdade da cscassez sobrepSem-se 03 problemas e conflitos surgidos a partir da produgio, definigdo ¢ distribuicao de riscos cientifico-tecnologicamente produzidos. Essa passagem da ldgica da distribuicio de riqueza na sociedade da es- cassez para a légica da distribuigdo de riscos na modernidade tardia est li- gada historicamente a (pelo menos) duas condicées. Ela consuma-se, em pri- meiro lugar — como se pode reconhecer atualmente —, quando e na medi+ da em que, através do nivel alcancado pelas forcas produtivas humanas ¢ tec- nolégicas, assim como pelas garantias e regras juridicas e do Estado Social, € objetivamente reduzida e socialmente isolada a auténtica caréncia material. Em segundo lugar, essa mudanga categorial deve-se simultaneamente ao fato de que, a reboque das forgas produtivas exponencialmente crescentes no pro- cesso de modernizacio, sao desencadeados riscos ¢ potenciais de autoameaga numa medida até entéo desconhecida.’ Na medida em que essas condic&es se impdem, ocorre que um tipo his- térico de pensamento e agdo é relativizado ou recoberto por um outro. O conceito de “sociedade industrial” ov “de classes” (na mais ampla vertente 1 Modernizagao significa o salto tecnolégico de racionalizacao ¢ a transformagio do trabalho e da organizagao, englobando para além disto muito mais: a mudanga dos caracteces sociais e das biografias padrao, dos estilos formas de vida, das estruturas de poder ¢ con- trole, das formas politicas de opressao e participagao, das concepgbes de realidade e das nor- mas cognitivas, O arado, a locomaciva a vapor e 0 inicrochip sfo, na concepgaa sociocienti- fica da modernizagio, indicadores visiveis de um processa de alcance muito mais profundo, que abrange ¢ reconfigura toda a trama social, no qual se alteram, em tiltima instincia, as fontes da certeza das quais se nutre a vida (Koselleck, 1977; Lepsius, 1977; Eisenstadt, 1979}. Normalmente, distingue-se entre modernizagao ¢ industcializagio. Aqui, por razdes de sim- plificagdo da linguagem, ucilizaremos preponderantemente “modernizasiio” como om con- ceito generalizante. Sobre a logica da distribuigéo de siqueza 2B de Marx e Weber) gira em torno da questo de como a riqueza socialmente produzida pode ser distribufda de forma socialmente desigual e ao mesmo tempo “legitima”. Isto coincide com 0 novo paradigma da sociedade de ris- co, que se apoia fundamentalmente na solugao de um problema similar e no entanto inteiramente distinto. Como € possivel que as ameagas € tiscos sis- tematicamente coproduzidos no proceso tardio de modernizagio sejam evi- tados, minimizados, dramatizados, canalizados e, quando vindos & Juz sob a forma de “efeitos colaterais latentes”, isolados e cedistribufdos de modo tal que nao comprometam 0 processo de modernizacao e nem as fronteiras do que é (ecolégica, medicinal, psicolégica ou socialmente) “aceitavel”? ‘Nao se trata mais, portanto, ou no se trata mais exclusivamente de uma utilizagdo econémica da natureza para libertar as pessoas de sujcigoes tradi- cionais, mas também e sobretudo de.problemas decorrentes do prépriv de- senvolvimento técnico-econémico. O proceso de modernizagao torna-se *reflexivo”, convertendo-se a si mesmo em tema ¢ problema. As questées do desenvolvimento e do emprego de tecnologias (no 4mbito da natureza, da sociedade e da personalidade) sobrepdem-se questées do “manejo” politico ¢ cientifico — administragao, descoberta, integragao, prevengdo, acober- tamento — dos riscos de tecnologias efetiva ou potencialmente empregaveis, tendo em vista horizontes de relevancia a serem especificamente definidos. A promessa de seguranga avanga com os riscos e precisa ser, diante de uma esfera publica alerta ¢ critica, continuamente reforgada por meio de interven- gdes cosméticas ou efetivas no desenvolvimento técnico-econémico. Ambos os “paradigmas” de desigualdade social esto sistematicamente relacionados a fases especificas do proceso de modernizagio. A distribuigdo 0s conflitos distributivos em torno da riqueza socialmente produzida ocupa- ro o primeiro plano enquanto em paises ¢ sociedades (atualmente, em gran- de parte do assim chamado Terceiro Mundo} 0 pensamento ea agao das pes- soas forem dominados pela evidéncia da caréncia material, pela “ditadura da eacassez.”. Em tais circunstancias, na sociedade da escassez, 0 processo de mo- dernizagZo encontra-se e consuma-se sob a pretensdo de abrir com as chaves do desenvolvimento cientifico-tecnolégico os portdes que levam as recéndi- tas fontes da riqueza social. Essas promessas de libertagio da pobreza e da sujeicio imerecidas esto na base da aco, do pensamento e da investigacao com as categorias da desigualdade social, abarcando, na verdade, desde a sociedade de classes, passando pela sociedade estratificada, até a sociedade individualizada, ‘Nos Fstados de Bem-Estar altamente desenvolvidos do Ocidente, ocorre um processo duplo: de um lado, a uta pelo “pio de cada dia” — em com- 24 No vulcio civilizatério paragiio com a subsisténcia material até a primeira metade do século XX e com 0 Terceiro Mundo, ameacado pela fome — deixa de ter a urgéncia de um problema bésico que lanca sombra sobre tudo o mais, Em lugar da foe, surgem, para muitas pessoas, os “problemas” do “excesso de peso” (sobre © problema da “nova pobreza”, ver pp. 133 ss.}. Deste modo, porém, 0 pro- cesso de modernizagao é privado de seu fundamento de legitimidade até en- tio vigente: o combate 4 miséria gritante, em xazdo do qual se dispunha a arcar com certos efeitos colaterais (j4 nao inteiramente) imprevistos. Paralelamente, dissemina-se a consciéncia de que as fontes de riqueza esto “contaminadas” por “ameagas colaterais”. Isto, de forma alguma, é algo novo, mas passou despercebido por muito tempo em meio aos esforgos para superar a miséria, Essa pagina negra, além do mais, ganha em impor- tancia com o superdesenvolvimento das forgas produtivas. No processo de modemizagio, cada vez mais forgas destrutivas também acabam sendo de- sencadeadas, em tal medida que a imaginag&o humana fica desconcertada diante delas, Ambas as fontes alimentam uma crescente critica da moderniza- cdo, que, ruidosa e conflitivamente, define os rumos das discussdes pablicas. Argumentando sistematicamente, cede ou tarde na histéria social come- gam a convergir na continuidade dos processos de modernizacao as situagGes ¢ 0s conflitos sociais de uma sociedade “que distribui riqueza” com os de uma sociedade “que distribui riscos”. Na Republica Federal, encontramo-nos — esta é minha tese —, pelo menos desde os anos setenta, no inicio dessa transi- Go. Quer dizer: sobrepdem-se aqui ambos os tipos de temas e conflitos. Ain- da n@o vivemos numa sociedade de risco, mas tampouco somente em meio a conflitos distributivos das sociedades da escassez. Na medida em que essa transigéio se consuma, chega-se entdo, com efeito, a uma transformagao social que se distancia das categorias e trajetérias habituais de pensamento € aco. Oconceito de risco tem realmente a importancia socio-histérica que Ihe é aqui assinalada? Nao se trata de um fendmeno origindrio de qualquer agao humana? N&o serSo os riscos justamente uma matca da era industrial, em relacdo & qual deveriam ser nesse caso isolados? £ certo que os riscos nao sio uma invengéio moderna. Quem — como Colombo — sain em busca de no- vas terras ¢ continentes por descobrir assumiu riscos. Estes eram, porém, ris- cos pessoais, e nao situagbes de ameaga global, como as que surgem para toda a humanidade com a fissdo nuclear ou com o actimulo de lixo nuclear. A palavra “risco” tinha, no contexto daquela época, um tom de ousadia e aven- tura, e no o da possivel autodestruigdo da vida na Terra. Também as florestas sito desmatadas ha muitos séculos — inicialmente através de sua conversio em pastos e em seguida através da exploragao in- Sobre a légica da distribuigao de riqueza 25 consequente da madeira. Mas o desmatamento contemporaneo acontece glo- balmente — e na verdade como consequéncia inplicita da industrializagao — com consequéncias sociais ¢ politicas inteiramente diversas. Sao afetados, por exemplo, também ¢ especialmente paises com ampla cobertura florestal {como Noruega ¢ Suécia), que sequer dispdem de muitas indiistrias poluentes, mas que tém de pagar pelas emissées de poluentes de outros paises altamente industrializados com a extingdo de florestas, plantas e animais. Hf relatos de que marujos que caiam no Tamisa no século XIX morriam nfo afogados, mas intoxicades pelos vapores e gases toxicos dessa cloaca londrina. Também um passeio pelos becos estreitos de uma cidade medieval deveria ser o equivalente de ter o nariz acoitado. “Os excrementos acumu- lam-se por toda a parte, nas ras, a0 pé das cancelas, nas carruagens [...| As fachadas dds casas parisienses sio carcomidas pela urina [...] A constipagao socialmente organizada ameaca envolver Paris inteira num proceso de as- quetosa dissolugio” (A. Corbin, Berlim, 1984, pp. 41 ss.). E de se notar, porém, que as ameagas de entdo, a diferenga das atuais, agastavam somente © nariz on os olhos, sendo portanto sensorialmente perceptiveis, enquanto 08 riscos civilizatérios atuais tipicamente escapam A percepsio, fincando pé sobretudo na esfera das formulas fisico-quimicas (por exemplo, toxinas nos alimentos ou a ameaca nuclear}. Uma outra diferenca est relacionada a esse caso. Naquela época, elas podiam ser atribufdas a uma subprovisio de tec- nologia higignica. Hoje, elas tém sua causa numa superproducio industrial. Os riscos e ameacas atuais diferenciam-se, portanto, de seus equivalentes medievais, com frequéncia semelhantes por fora, fundamentalmente por con- ta da globalidade de seu alcance (ser humano, fauna, flora) ¢ de suas causas modernas. Sao riscos da modernizagao. S40 um produto de série do ma- quindrio industrial do progresso, sendo sistentaticamente agravados com seu desenvolvimento ulterior. Os riscos do desenvolvimento industrial sio certamente tio antigos qnanto ele mesmo. A pauperizacao de grande parte da populagio — 0 “risco da pobreza” — prenden a respiragao do século XIX, “Riscos de qualificacéo” e “riscos 4 satide” jd sdo hd muito tema de processos de racionalizagao ¢ de conflitos sociais, salvaguardas (e pesquisas) a cles relacionados. Mesmo as- sim, aos riscos que em seguida serao abordados em detalhe e que hé alguns anos inquietam o ptiblico corresponde uma nova caracteristica. No que diz respeito A comogiio que produzem, eles jé nao estao vinculados ao lugar em que foram gerados — a fabrica. De acordo com seu feitio, eles ameagam a vida no planeta, sob todas as suas formas. Comparados com isto, 08 riscos profissionais da industrializagao primaria pertencem a uma outra era, Os 26 No vulcio civilizatério perigos das forgas produtivas quimicas ¢ atémicas altamente desenvolvidas suspendem os fundamentos ¢ categorias nos quais nos apoidvamos até en- to para pensar e agit — espago e tempo, trabalho e dcio, empresa ¢ Estado Nacional, até mesmo as fronteiras entre blocos militares e continentes. A arquiterura social e a dindmica politica de tais potenciais de autoamea- ga civitizatéria sao o mais importante aqui. A argumentacao pode ser ante- cipada em cinco teses: (1) Riscos, da maneira como sao produzidos no estagio mais avancado do desenvolvimento das forcas produtivas — refiro-me, em primeira linha, A radioatividade, que escapa completamente & percep¢ao humana imediata, mas também 4s toxinas e polucntes presentes no ar, na gua e nos alimentos ¢.a08 efeitos de curto e fongo prazo deles decorrentes sobre plantas, animais e seres humanos —, diferenciam-se claramente das riqnezas. Fles desenca- deiam danos sistematicamente definidos, por'vezes irreversiveis, permanecem no mais das vezes fundamentalmente ivisiveis, baseiam-se em interpretagGes causais, apresentam-se portanto tio somente no conbecimento (cientifico ou anticientifico) que se tenha deles, podem ser alterados, diminuidos ou aumen- tados, dramatizados ou minimizados no Ambito do conhecimento e esto, assim, em certa medida, abertos a processos sociais de definigdo. Dessa for- ma, instrumentos € posigées da definigdo dos riscos tornam-se posiges-chave em termos sociopoliticos, (2) Com a distribuigdo ¢ o incremento dos riscos, surgem situagdes s0- ciais de ameaca, Estas acompanham, na verdade, em algumas dimens6es, a desigualdade de posigdes de estrato ¢ classe sociais, fazendo valer entretan- to uma légica distributiva substancialmente distinta: os riscos da moderni- zagao cedo ou tarde acabam alcangando aqueles que os produziram ou que Juccam com eles. Eles contém um efeito bumerangue, que implode 0 esque- ma de classes. Tampouco 0s ricos e poderosos estao seguros diante deles. Isto nao apenas sob a forma de ameacas & satide, mas também como ameagas A legitimidade, & propriedade e ao lucro: com o reconhecimento social de riscos da modernizago estio associadas desvalorizacdcs ¢ desapropriag&es ecolé- gicas; que incidem méltipla e sistematicamente a contrapelo dos interesses de lucro e propriedade que impulsionam o proceso de industrializagdo. Ao mesmo tempo, 08 riscos produzem roves desniveis internacionais, de um lado entre o Terceiro Mundo e os paises industriais, de outro lado entre os pré- prios paises industriais. Eles esquivam-se 4 estratura de competéncias do Estado Nacional. Diante da universalidade e da supranacionalidade do flu- xo de poluentes, a vida da folha de grama na floresta bavara passa a depen- der da assinatura e implementacio de acordos internacionais. Sobre a logica da distribuigdo de riqueza 27 (3) Ainda assim, a expansdo ¢ a mercantilizag3o dos riscos de modo al- gum rompem com a légica capitalista de desenvolvimento, antes elevando-a a um novo estégio. Riscos da modernizagao sdo big business. Eles sio as necessidades insaciaveis que os cconomistas sempre procuraram. A fome pode ser saciada, necessidades podem ser satisfeitas, mas os tiscos civili- zatérios sao um barril de necessidades sem fundo, intermindvel, infinito, autoproduzivel. Com os riscos — poderiamos dizer com Luhmann —, a eco- nomia torna-se “autorreferencial”, independente do ambiente da satisfacao das necessidades humanas. Isto significa, porém: com a canibalizagao eco- ndmica dos riscos que sio desencadeados através dela, a sociedade industrial produz as situages de ameaga e o potencial politico da sociedade de risco. (4) Riquezas podem ser possuidas; em relaco aos riscos, porém, somos afetados; ao mesmo tempo, eles aio atribuidos em termos civilizarérios. Di- to de forma hiperbdlica ¢ esquemética: em situacdes relativas a classe ou ca- mada social, a consciéncia é determinada pela existéncia, enquanto, nas si- tuagSes de ameaga, é a consciéncia que determina a existéncia. O conheci- mento adquire uma nova relevancia politica. Consequentemente, o potencial politico da sociedade de risco tem de se desdobrar e ser analisado numa so- ciologia e numa teoria do surgimento ¢ da disseminagao do conhecimento sobre os riscos. (5) Riscos socialmente reconbecidos, da maneira como emexgem clara- mente, pela primeira vez, no exemplo das discussdes em torno do desma- tamento, contém um peculiar ingrediente politico explosivo: aquilo que até ha pouco era tido por apolitico torna-se politico — 0 combate as “causas” no proprio processo de industrializacao. Subitamente, a esfera pablica ¢ a politica passam a reger na intimidade do gerenciamento empresarial — no planejamento de produtos, na equipagem técnica etc. Torna-se exemplarmen- te claro, nesse caso, do que realmente se trata a disputa definit6ria em torno dos riscos: nao apenas dos problemas de satide resultantes para a natureza e © ser humano, mas dos éfeitos colaterais sociais, econdmicos ¢ politicos des- ses efeitos colaterais: perdas de mercado, depreciac&o do capital, controles burocréticos das decisées empresariais, abertura de novos mercados, custos astronémicos, procedimentos judiciais, perda de prestigio. Emerge assim na sociedade de risco, em pequenos e em grandes saltos — em alarmes de niveis intoleraveis de poluigdo, em casos de acidentes téxicos etc. —, 0 potencial politico das catdstrofes. Sua prevencio e seu manejo podem acabar envol- vendo uma eorganizagao do poder e da responsabilidade. A sociedade de risco 6 uma sociedade catastréfica. Nela, o estado de excegio ameaga con- verter-se em normalidade. 28 No vulcao civilizatorio 1, DIsTRIBUIGAO DE POLUENTES DE ACORDO COM AS CIENCIAS NATURAIS E SITUAGOES SOCIAIS DE AMEACA A discussZo em torno do teor de poluentes e toxinas no ar, na 4gua e nos alimentos, assim come em torno da destruicdo da natureza e do meio ambien- te em geral, ainda é exclusiva ou predominantemente conduzida de acordo com categorias ¢ férmulas das ciéncias naturais, Desse modo, permancce in- cégnito o fato de que é inerente as “f6rmulas de pauperizaco” das ciéncias naturais uma relevancia social, cultural e politica. Em decorréncia, persiste © perigo de que uma discuss’ ambiental conduzida de acordo com catego- rias quimico-biolégico-técnicas acabe sendo involuntariamente levada em consideragao pelas pessoas unicamente como um mero dispositivo orgdnico. Desse mado, parém, ela é ameacada pela sobreposicao do equivoco oposto ao equfvoco pelo qual ela, com razao, repreentdia o renitente otimismo com © progresso industrial: atrofiar-se numa discussiio da natureza sem ser huma- no, sem questionar seu sentido social ¢ cultural. Foram justamente as discus- sdes da dltima década, nas quais todo o arsenal de argumentos criticos em relacdo A tecnologia e a industria se viu novamente expandido ¢ representa- do, que permaneceram essencialmente tecnocrdticas e naturalistas. Elas es- gotam-se na comutaco e invocacio de substncias t6xicas no ar, na 4gua € nos alimentos, coeficientes de crescimento demogrdfico, consumo de energia, caréncias alimentares, insuficiéncia de matérias-primas etc., com um tal ar- dor e incontrastabilidade, como se jamais tivesse havido alguém — um cer- to Max Weber, por exemplo — que houvesse perdido seu tempo demonstran- do que, sem a integragiio das estruturas sociais de poder e de distribuigao, das burocracias, das normas ¢ racionalidades vigentes, isto tudo seria vazio ou absurdo, ou provavelmente ambas as coisas, Furtivamente, insinuou-se uma concepgio segundo a qual a modernidade é reduzida 20 arcabougo da tecno- Jogia e da natureza no sentido de perpetrador e vitima. Assim abordada, es- capam a essa ideia (também tipica do movimento ambientalista) os conteti- dos ¢ consequéncias sociais, politicos e culturais dos riscos da modernizacdo. Tlustremos com um exemplo. © conselho de especialistas para questBes ambientais afirma em seu laudo que “no leite materno sfo frequentemente en- contrados beta-hexaclorociclohexano, hexaclorobenzeno ¢ DDT em concen- tragdes considerdveis” (Rat der Sachverstindigen fiir Umweltfragen, 1985, p. 33). Bssas toxinas estfio presentes em pesticidas que, nesse interim, j4 fo- ram retirados de circulacdo. Sua origem seria inexplicdvel (ibid.). Em outea passagem, afirma-se: “a exposigio da populagdo ao chumbo é, na média, inofensiva” (p, 35). O que se esconde por tras disto? Talvez — por analogia Sobre a légica da distribuigao de riqueza 29 —a seguinte distribuico: dois homens tém duas.magds. Um come ambas. Logo, na média, cada um comeu uma. Adaptada a distribuigéo de alimen- tos em escala mundial, essa afirmacao significatia: “na média”, todos os se- res humanos na Terra esto bem alimentados. O cinismo é evidente nesse caso, Numa parte do planeta, as pessoas morrem de fome, na outra, os efei- tos decorrentes da sobrenutrigdo acabaram por se transformar num dnus de primeira ordem, Pode ser que em relagao a poluentes e toxinas essa afirma- $40 nao seja cinica. Que, portanto, a exposicaio média também seja a expo- sigdo real de todos os grupos populacionais. Porém, temos certeza? Nao ser necessatio, ao menos para que essa afirmacao seja defensdvel, saber quantas toxinas mais as pessoas serio obrigadas a inalar e ingerir? Surpreendente a naturalidade com que se demanda pela “média”. Quem demanda a média jd est desse modo excluindo as situagées socialmente designais de ameaca Mas é justamente disto que nao se tem certeza? Existem talvez condigdes de vida e grupos para os quais um teor de chumbo-e-todo-o-resto “na média inofensivo” represente um risco de vida? A frase seguinte do laudo afirma: “somente nos arredores de emissores industriais sio encontradas por vezes concentragées criticas de chumbo entre as criancas”. Neste, assim como em outros laudos de impactos ambientais e de contaminago, o que se destaca nfo apenas a auséncia de todo tipo de diferenciacSo social. Destaca-se também 0 modo como se diferencia: numa perspectiva regional em relacdo A origem das emissdes e de acordo com di- ferencas etdrias — ambos critérios que se assentam numa concepgio biold- gica (ou mais amplamente: das cjéncias naturais). Isto nao é de responsabili- dade exclusiva das equipes de inspegdo. Corresponde unicamente ao pensa- mento cientifico ¢ social geral em relacio aos problemas ambientais. Estes so amplamente considerados como uma questiio de natureza e tecnologia, economia ¢ medicina. O que surpreende nesse caso é o seguinte: o impacto ambiental da industria e a destinigdo da natureza, que, com seus diversos efeitos sobre a satide e a convivéncia das pessoas, surgem originalmente nas sociedades altamente desenvolvidas, sio marcados por um déficit do pensa- mento social. Soma-se a esse déficit o grotesco: ninguém se da conta dessa auséncia — sequer os préprios sociélogos. Questiona-se e examina-se a distribuigdo de poluentes, toxinas, impacto sobre a Agua, o ar, o solo, os alimentos etc. Os resultados, regionalmente diferenciados, sao expostos ao ptiblico apavorado em “mapas ambientais” coloridos. Enquanto a situacdo do meio ambiente tiver de ser apresentada assim, essa forma de representacio e de consideracio sera evidentemente adequada. Enquanto forem extraidas dai consequéncias para as pessoas, a 30 No vuledo civitizatério concepgio de fundo entrard em curto-circuito: ou bem se presume abran- gentemente que todas as pessoas — independente de renda, educacao, pro- fissio e dos respectivos habitos e possibilidades de alimentagao, habitacio e lazer — so igualmente expostas nos centros regionais de contaminagdo ave- riguados; on entio, em diltima instdncia, deixam-se inteiramente de lado as pessoas € 0 alcance de sua preocupacao, tratando-se entio unicamente das substancias t6xicas, de seus efeitos e de sua distribuigao regional. Como consequéncia, a discussao sobre substancias téxicas, conduzida com categorias das ciéncias naturais, move-se entre a falacia de preocupages biolégicas e sociais ou uma consideracdo da natureza ¢ do meio ambiente que deixa de lado a preocupacao seletiva das pessoas, assim como os significa- dos sociais e culturais que elas Ihe imputam, Ao mesmo tempo, continua-se a desconsiderar o fato de que as ntesnzas substancias toxicas podem ter um significado inteiramente distinto para pessoas distintas, conforme a idade, © sexo, os habitos alimentares, 0 tipo de trabalho, os niveis de informagao ¢ educacio ete. Um problema especialmente grave é que investigag6es voltadas unica- mente a substancias téxicas isoladas jamais podem dar conta das concentra- Ges toxicas no ser bumano, Aquilo que pode parecer “inofensivo” num pro- duto isolado talvez seja consideravelmente grave no “reservatério do consu- midor final”, algo em que o set humano acabou por se converter no estgio avangado da mercantilizacao total. Trata-se, nesse caso, de uma falacia ca- tegorial: uma andlise de toxicidade que tome por base a natureza de forma geral ou produtos isolados ndo tem condicdes de responder A questio da inocuidade, de todo modo nao enquanto “gravidade” ou “inocuidade” ti- verem algo a ver com as pessoas que ingerem ou aspiram a substincia (ver com mais detalhe pp. 77 ss,}. £ sabido que a ingestao de varios medicamentos pode anular ou reforgar o efeito de cada um deles. Mas é sabido que (ainda} nem sé de varios medicamentos vive o ser humano. Ele também inspira as substdncias téxicas do at, bebe as da agua, come as dos alimentos etc. Em outras palayras: as inocuidades acumuilam-se consideravelmente. Tornam-se elas dese mado — como é 0 caso comum das adicdes de acordo com as re- gras da matematica — sempre mais inécuas? 2. DA DEPENDENCIA COGNITIVA DOS RISGOS DA MODERNIZACAO. Riscos, assim como riquezas, sio objeto de distribuigao, constituindo igualmente posig6es — posigdes de atneaca ou posigées de classe. Trata-se, Sobre a ldgica da distribuigdo de ciqueza 3t entretanto, tanto num como noutro caso, de um bem completamente distinto e de uma outra controvérsia em torno de sua distribuigéo. No caso das ti- quezas sociais, trata-se de bens de consumo, renda, oportunidades educacio- nais, propriedade etc., como hens escassos cobigados. Em contraste, as amea- gas sio um subproduto modernizacional de uma abundancia a ser evitada. Cabe ou erradicd-la ou entéo negé-la, reinterpretando-a. A ldgica positiva da apropriago é assim confrontada por uma ldgica negativa do afastamento pela distribuigio, rejeicdo, negacao e reinterpretacao. Enquanto renda, educago etc. forem para o individuo bens consumi- veis, tangiveis, a existéncia e a distribuicgdo de ameacas c riscos sera tedia- das de modo invaviavelmente argumentativo. Aquilo que prejudica a saiide ¢ destréi a natureza é frequentemente indiscernivel 4 sensibilidade e aos olhos de cada um e, mesmo quando parega evidente a olhos nus, exigiré, segundo a configuracio social, o juizo comprovade de um especialista para sua as- sercéo “objetiva”. Muitos dos novos riscos (contaminagées nucleares ou quimicas, substancias toxicas nos alimentos, enfermidades civilizacionais) escapam inteiramente & capacidade perceptiva humana imediata. Cada vez mais esto no centro das atengdes ameagas que com frequéncia ndo sfo nem visiveis nem perceptiveis para os afetados, ameacas que, possivelmente, se- quer produzirdo efeitos durante a vida dos afetados, e sim na vida de seus descendentes, em todo caso ameacas que exigem os “érgdos sensoriais” da ciéncia — teorias, experimentos, instrumentos de medic¢ao — para que pos- sam chegar a ser “visiveis” ¢ interpretdveis como ameagas. O paradigma dessas ameacas s&o os efeitos mutagénicos da radioatividade, que, impercep- tiveis para os afetados, acabam — como mostra o caso do acidente do reator de Harrisburg — por submeté-los inteiramente, sob enormes sobrecargas nervosas, ao juizo, aos equivocos ¢ as controvérsias dos especialistas. Agregando o dissociado: suposigbes de causalidade Essa dependéncia cognitiva ¢ invisibilidade das situagSes de ameaca civilizacional nao bastam, contudo, para sua definigo conceitual; elas j& contém em si novos componentes. Declaragées a respeito de ameacas jamais so redutiveis a meras declaragdes de fato. Constitutivamente, elas englobam tanto um componente tedrico quanto um normative. A constatagao de “con- sider4veis concentragdes de chumbo nas criangas” ou de “agentes pesticidas no leite materno” nao chega a ser, como tal, uma situagao de ameaca ci- vilizacional, ndo mais que a concentragdo de nitrato nos rios ou o teor de diéxido de enxofre no ar. £ preciso que s¢ adicione uma explicagio causal 32 No vulcio civilizatério b que faca com que isto seja visto como produto do modo de produgao indus- trial, como efeito colateral sistemético de processos de modernizacao. Nos riscos socialmente reconhecidos, portanto, sic previstos os atores e as ins- tncias do processo de modernizacdo, com todos os scus interesses parciais e dependéncias, ¢ colocados numa relagio direta, concatenada segundo o modelo de causa ¢ efeito, com ameagas ¢ fendmenos nocivos inteiramente allieios no que diz respeito a dimensio social, de contetido, espacial ou tem- poral. A mulher que, em seu apartamento de trés cémodos num subiubio de ‘Neuperlach, amamenta seu pequeno Martin de trés meses de idade encon- tra-se desse modo numa “relacdo imediata” com a industria quimica, que fabrica pesticidas, com os agricultores, que se veem obrigados, em razdo das diretrizes agricolas da Comunidade Europeia, a recorrer & produgdo massiva especializada @ A sobrefertilizacio, ¢ por af afora. Até onde se podem ou de- vern buscar efeitos colaterais é algo que continua em grande medida incer- to. Até mesmo na carne de pinguins antérticos foi encontrada recentemente uma superdose de DDT. Esses exemplos mosteam duas coisas: primeiro, que riscos da moderni- zagdo emergem ao mesmo tempo vinculados espacialmente e desvincula- damente com um alcance universal; e segundo, quio incalculdveis ¢ impre- vistveis sio os inttincados caminhos de seus efeitos nocivos. Nos riscos da modernizag4o, portanto, algo que se encontra conteudistico-objetiva, espa- cial e temporalmente apartado acaba sendo causalmente congregado e, desse modo, além do mais, colocado simultaneamente numa relacio de responsa- bilidade social ¢ juridica. Suposigdes causais, no entanto, por definigao es- capam — como desde Hume jé sabemos — A percepsio. Elas so teoria. Sempre tém de ser conceitualmente adicionadas, presumidas como verdadei- tas, acreditadas. Também nesse sentido os riscos sao invisiveis. A causalidade suposta segue sendo algo mais ou menos incerto ¢ provisério, Trata-se, nes- se sentido, também no que diz respeito A consciéncia cotidiana dé risco, de uma consciéncia tedrica e portanto cientificizada. Etica implicita Tampouco é suficiente essa concatenacao causal daquilo que esté insti- tucionalmente apartado. Riscos vivides pressupdem um horizonte normativo de certeza perdida, confianca violada. Desse modo, os riscos, mesmo quan- do irrompem calados, encobertos por cifras e formulas, continuam a estar em principio vinculados espacialmente, como a condensacao mateméatica de vis6es danificadas da vida digna de ser vivida, Por sua vez, estes precisam ser Sobre a légica da distrlbuigo de riqueza 33 acreditados, isto é, nao sao tangiveis por conta prdpria. Riscos sao, nesse sentido, imagens negativas objetivamente empregadas de utopias nas quais o elemento humano, ou aquilo que dele restou, é conservade ¢ revivido no processo de modernizagao. Apesar de toda a desfiguraco, nao se pode afi- nal evitar que esse horizonte normativo, no qual o que hé de arriscado no tisco comega a se fazer visivel, seja tematizado e experimentado. Por tras de todas as reificacées, cedo ou tarde emerge a questiio da aceitaciio e, com ela, a velha nova questo: como queremos viver? O que hd de humano no ser humano, de namral na natureza, que € preciso proteger? Nesse sentido, 0 propalado discurso da “catdstrofe” é a expressfio exagerada, radicalizada, objetivante de que tal proceso nao é desejado. Essas velhas-novas questées — o que é 0 set humano? como seguir adian- te com a natureza? — podem ser jogadas para ld e para cd entre o cotidiano, a politica ea ciéncia, No estdgio mais avancado do processo civilizatério, clas yoltam a gozar de prioridade na ordem do dia — também ou justamente nos momentos em que se revistam com a camuflagem das férmulas matematicas ¢ das controvérsias metodolégicas. Constatacées de risco sAo a forma sob a qual ressurgem — os centros da modernizagéo — na economia, nas ciéncias naturais, nas disciplinas técnicas a ética ¢, com ela, também a filosofia, a cultura ¢ a politica. Consratagées de risco sfio uma ainda desconhecida ¢ subdesenvolvida simbiose de ciéncias naturais e humanas, de racionalidade cotidiana e especializada, de interesse e fato. Ao mesmo tempo, no sao nem apenas uma e nem apenas a outra coisa. Sdo ambas e sob uma nova forma. JA ndo se podem mais especializar, isolar uma da outra, desenvolvendo e fi- xando seus préprios padrdes de racionalidade. Pressupdem uma colabora- cdo para além das trincheiras de disciplinas, grupos comunais, empresas, administeagdo e politica, ou entio — o que é mais provavel — acabam por explodir em meio a esses polos em definigdes contrapostas ¢ lutas emt torno das definigdes. Racionalidade ciemtifica e social Reside aqui a consequéncia fundamental e decisiva: nas definigdes de tisco, quebra-se 0 monopélio de racionalidade das ciéncias, Existem sempre pretensdes, interesses ¢ pontos de vista concorrentes € conflitivos dos distin- tos atores da modernizagao e grupos de afetados, que acabam sendo forgo- samente agregados nas definigdes de risco, no sentido de causa ¢ efeito, au- tores e prejudicados. Muitos cientistas certamente pdem mos a obra com todo o impeto e a paixdo de sua racionalidade objetiva, seus esforcos ob- 34 No vulcao civitizatério jetivantes aumentam como que proporcionalmente ao teor politico de suas definigécs. Mas, na esséncia de seu trabalho, eles continuam a depender de expectativas e valoragées sociais que, como tais, Ihes so prescritas: onde ¢ como devem ser tracadas as fronteiras entre as sobrecargas que ainda ¢ jd nao mais seréo acumuladas? Qual a margem de negociag&o no que diz, respeito aos pardmetros que para tanto se pressupdem? Deve ser levada em conta, por exemplo, a possibilidade de uma catdstrofe ecolégica para contemplar inte- resses econdmicos? O que sdo necessidades, o que siio supostas necessidades @.0 que so necessidades a serem modifleadas? A pretensao de racionalidade das ciéncias de determinar objetivamente 0 teor de risco do risco refuta-se a si mesma permanentemente: cla baseia-se, por um lado, num castelo de cartas de conjecturas especulativas e move-se unicamente no quadra de assergées de probabilidade, cujos prognésticos de seguranga nao podem, a bem da verdade, ser-refutados sequer por acidentes reais. Por outro lado, é preciso ter assumide um ponto de vista axiolégico para chegar a poder falar de riscos com algnma propriedade. Constatacdes de risco baseiam-se em possibilidades matematicas ¢ interesses sociais, mesmo e justamente quando se revestem de certeza técnica, Ao ocuparem-se com ri cos civilizacionais, as ciéncias sempre acabaram por abandonar sua base de légica experimental, contraindo um casamento polfgamo com a economia, a politica e a ética — ou mais precisamente: elas convivem numa espécie de “concubinato nao declarado”. Essa heteronomia oculta na pesquisa sobre o risco acaba por revelar-se como um problema justamente por conta da continua pretensdo dos cientis- tas ao monopélio da racionalidade. Os estudos de segutanga de reatores li- mitam-se a estimativa de determinados riscos quantificdveis em razdo de acidentes provdveis. A dimensionalidade do risco ¢, portanto, de saida redu- zida 4 manuseabilidade técnica, Para amplos setores da populagdo e para os opositores da energia nuclear é, ao contrario, precisamente 0 potencial catas- tréfico da energia nuclear que est4 no centro da questéo. Mesmo uma pro- babilidade de acidentes tao reduzida é alta demais quando wr acidente sig- nifica exterminio. Com algum recuo, especificidades do risco desempenham nas discussdes ptiblicas um papel que sequer é abordado nos estudos sobre o risco, como por exempio a proliferagao de armas nucleares, a contradicio entre humanidade (equivoco, fracasso} e seguranga, longo prazo ¢ irrever- sibilidade das decisdes tomadas envolvendo grandes tecnologias ¢ que colo- cam em jogo a vida das futuras geragdes. Em outras palavras, tornam-se evi- dentes nas discussdes de risco as fissuras c trincheiras entre racionalidade cientifica e social ao lidar com os potenciais de ameaga civilizacional. Todos Sobre a I6gica da distribuigio de riqueza 35 ignoram-se mutuamente. De um lado, so colocadas questées que sequer chegam a ser respondidas pelos outros, enquanto, de outro lado, sao ofere- cidas respostas e perguntas que, desse modo, sequer chegam ao fulcro daquilo que na verdade foi perguntado e que aviva os temores. E certo que racionalidade cientifica ¢ racionalidade social se distanciam uma da outra, mas ao mesmo tempo seguem interpoladas ¢ referidas de mul- tiplas maneiras uma na outra. Rigorosamente falando, a prépria diferencia- go torna-se cada vez menos possivel. O envolvimento cientifico com riscos do desenvolvimento industrial continua igualmente a referir-se 2 horizontes axiolégicos ¢ expectativas sociais, da mesma forma como, inversamente, a discussio e percepgio sociais dos riscos em relagao aos argumentos cientifi- cos, Ao mesmo tempo, a pesquisa sobre o risco acompanha ruborizada os eastros de quectionamento da “tecnofobia”, para cuja contengio fai can yocada e por conta do qual, alias, ela experimentou nos tiltimos anos um inesperado fomento material. A critica e a inquietac4o piiblica vivem funda- mentalmente da dialética da pericia ¢ da contrapericia. Sem argumentos cien- tificos ¢ critica anticientifica de argumentos cientificos, ela fica apdtica, on pior: pode mesmo nem chegar a perceber 0 objeto ¢ o procedimento, no mais das vezes “invisiveis”, de sua critica e de seus temores. Para parafrasear uma expresso célebre: racionalidade cientifica sem racionalidade social fica va- ia, tacionalidade social sem racionalidade cientifica, cega. ‘Nao se esbogard dessa forma uma imagem de harmonia universal. Ao contrario; trata-se de muiltiplas pretensdes de racionalidade concorrentes € conflitivas rivalizando por validade. Tanto num como noutro caso, s40 coi- sas distintas que se destacam, que so variavelmente definidas ou mantidas constantes. Se num dos casos 0 primado de transformagio reside no modo de producdo industrial, no outro caso residiré no manuseio tecnolégico das probabilidades de acidentes, ¢ por af afora. Diversidade definitéria: cada vez mais riscos © contetido tedrico e o referencial axiolégico, dos riscos condicionam outros componentes: a conflitiva pluralizagao e diversidade definitéria de riscos civiligacionais observavel. Atinge-se, por assim dizer, uma superprodu- go de riscos, que em parte se relativizam, em parte se complementam, em par- te invadem o terreno uns dos outros. Cada ponto de vista interessado procura armar-se com definigées de risco, para poder dessa maneira rechagar os ris- cos que ameacem seu bolso, Ameagas ao solo, 3 flora, ao ar, 3 agua ea fauna ocupam uma posicao especial nessa luta de todos contra todos em torne das 36 . No vulcio civilizatério definig6es de risco mais Incrativas, na medida em que dao espago ao bem co- mum e as vozes daqueles que nao tém voz prépria (talvez sé mesmo direitos eleitotais ativos e passivos estendidos as gramineas ¢ minhocas serao capa- 2es de trazer as pessoas & razdo). No que diz respeito aos referenciais dos ris- cos em termos de valores ¢ interesses, tal pluralizacao € evidente: aleance, ur- géncia e existéncia de riscos oscilam com a diversidade de valores e interesses. E menos claro se isto também afeta a interpretagao do contetido dos riscos. © nexo causal que se produz nos riscos entre as influéncias daninkas atuais ou potenciais e o sistema de produgdo industrial introduz uma diver- sidade quase infinita de interpretages especificas. No fundo, pelo menos a titulo experimental, pode-se relacionar tudo com tudo, decerto enquanto o modelo basico — modernizag&o como causa, dano como efeito colateral — for mantido. Muito nao poder4 ser corroborado. E mesmo © j4 corrobora- do tera de se afirmar contra diividas sistemAticas ¢ permanentes. Todavia, o essencial é que, mesmo em meio a imensa profuse de possibilidades inter- pretativas, sAo invariavelmente condigSes isoladas que sAo relacionadas umas 4s outras. Destaquemos o desratamento. Enquanto o besouro-do-pinheiro, 9 esquilo on o guarda florestal de plantdo eram considerados como causas ou culpados, aparentemente ndo se tratava ainda de um “risco da moderni- zagio”, ¢ sim de uma sacudidela na gestdio econdmica das florestas ou de voracidade animal. Abre-se uma arena inteiramente distinta de causas ¢ culpados quando um tal crro de diagnéstico tipicamente local, que sempre precisa ser con- flitivamente ultrapassado pelos riscos no caminho de seu reconhecimento, é finalmente superado e o desmatamento é percebido e reconhecido como um efeivo da industrializagao. Somente ento € que passa a ser um problema que exige solugdes de longo prazo, sistemicamente definidas, que ndo mais sejam revogaveis no nivel local, mas que sejam antes polfticas. Uma vez que uma tal mudanga de perspectiva se tenha verificado, surge uma nova infinidade de possibilidades: ¢ 0 didxido de enxofre, 0 nitrogénio, seus compostos fo- to-oxidantes, 0s hidrocarbonetos ou qualquer outra coisa que ainda hoje nos completamente desconhecida 0 que afinal nos presenteia com esse derra- deiro e eterno outonc — com a queda das folhas? Essas formulas quimicas apenas aparentam responder por si mesmas. Por tras delas, sio empresas, se- tores industriais, grupos econdmicos, cientificos ¢ profissionais que entram na linha de fogo da critica pablica. Pois toda “causa” socialmente reconhe- cida submete-se a uma enorme demanda de mudanga, e junto com ela o sis- tema de ago no qual ela surgiu. Mesmo quando essa pressfo publica é recha- cada, reduzem-se as vendas, perdem-se mercados, a “confianca” dos consu- Sobre a logica da distribuigio de riqueza 37 midores precisa ser reconquistada e reassegurada por meio de grandes ¢ ca- ras campanhas publicitérias. E 0 automével o atual “maculador nacional” ¢, em decorréncia, o verdadeiro “desmatador”? Ou é preciso finalmente ins- talar nas rermoelétricas filtros de dessulfurizacao e de desnitrificag3o de qua- lidade ¢ em sintonia com os padrdes técnicos mais modernos? Ou entio isto talvez de nada sirva, visto que o poluente que mata a floresta nos é trazido pelos mais diversos ventos das chaminés e canos de escape dos paises vizi~ nhos, sendo entregue, sem cobrar frete, “na porta (ou na rvore) de casa”? Para onde quer que aponte o holofote que rastreia causas, irrompe 0 fogo, por assim dizer; é preciso que os “bombeiros argumentativos”, rapi- damente mobilizados e parcamente equipados, apaguem e salvem, com um forte jato de contrainterpretagio, o que ainda der para apagar e salvar. Quem quer que subitamente se veja exposto no pelourinho da produgdo de tiscos, acabard refutando, na medida do possivel, com uma “contra-ciéncia” paulatinamente institucionalizada em termos empresariais, os argumentos que o prendem ao pelourinho, trazendo outras causas e portanto outros réus a tona. A imagem diversifica-se. O acesso a midia torna-se crucial. A incer- teza no interior da inddstria aprofunda-se: ninguém sabe quem sera o prd- ximo sob o holofote da moral ecolégica. Bons argumentos, ou pelo menos argumentos capazes de se impor publicamente, convertem-se em condicao prévia do sucesso profissional. Os artesdos da esfera publica, os “carpinteiros argumentativos”, tém sua grande chance profissional. Correntes causais e circuitos daninhos: a ideia de sistema Para dizer expressamente uma vez mais: todos esses efeitos produzem- -se independentemente do quao sdlidas parecam as interpretagdes causais a partir de uma dada perspectiva cientifica, No mais das vezes, as opiniées a respeito no interior das ciéncias ¢ das dreas em questio distanciam-se consi- deravelmente. © efeito social das definigdes de risco nao depende portanto de sua solidex cientifica. Sem embargo, essa diversidade interpretativa tem seu fundamento na prépria légica dos riscos da modemizacdo. Para concluit, procuraremos re- lacionar aqui os efeitos nocivos com fatores especificos dificilmente isolaveis no complexo sistema do modo de produgdo industrial. A interdependéncia sistémica dos altamente especializados atores da modernizagao na economia, na agricuftura; no direito e na politica cozresponde & auséncia de causas es- pecificas e responsabilidades isolaveis: é a agricultura que contamina o solo ou os agricultores sdo apenas o elo mais fraco na corrente dos circuitos da- 38 No vuleio civilizatério ninhos? Serio eles apenas mercados dependentes e subalternos para as vendas da indtistria quimica de ragdes e fertilizantes, sendo nesse caso necessdrio empregar a enxada para uma prudente descontaminacdo dos solos? Mas as autoridades poderiam ha muito ter proibido ou drasticamente limitado a yenda de venenos. Contudo, nao o fazem. Ao contrario: com o apoio da cién- cia, constantemente concedem patentes para “inofensivas” produgées de veneno, que cada vez mais afetam mais do que apenas os nossos rins. Estaré © mico preto, portanto, no meio da selva de autoridades, ciéncia ¢ politica? Mas elas, afinal de contas, no cultivam o solo, Entao é mesmo dos agricul- tores a culpa? Mas eles acabaram sendo espremidos pela pinga da Comuni- dade Europeia, tendo de promover uma superproducio com uso intensivo de fertilizantes para poderem, por sua vez, sobreviver economicamente. Em outras palavras: a altamente diferenciada divisao do trabalho impli- ca uma cumplicidade geral e esta, por sua vez, uma irresponsabilidade genera- lizada, Todos sao causa ¢ efeito, ¢ portanto uma ndo causa. As causas csfa- relam-se numa vicissitude generalizada de atores e condigées, reagées e con trarreagées. Isto confere evidéncia social e popularidade 4 ideia sistémica. Desse modo, evidencia-se exemplarmente onde reside a importincia bio- grafica da ideia sistmica: pode-se fazer algo e continuar a fazé-lo sem ter de responder pessoalnente por isto. Atua-se, por assim dizer, & prépria revelia. Atua-se fisicamente, sem que se atue moral e politicamente, O outro genera- Jizado — o sistema — atua em e através de cada um: esta é a moral civili- zacional do escravo, segundo a qual se atua social e pessoalmente como se estivéssemos sob 0 jugo de um destino natural, da “lei universal da queda livee” do sistema. E dessa mancira que se joga, diante do iminente desastre ecolégico, 0 “jogo do mico preto”. aE ESA O teor de tisco: 0 ainda-niio evento que desencadeia a ago Riscos nao se esgotam, contudo, em efeitos e danos j4 ocorridos, Neles, exprime-se.sobretudo um componente fuivro. Este bascia-se em parte na extensio futura dos danos atualmente previsiveis e em parte numa perda geral de confianga ou num suposto “amplificador do risco”. Riscos tém, portanto, fundamentalmente que ver com antecipacao, com destruigées que ainda nao ocorreram mas que sao iminentes, e que, justamente nesse senti- do, jd so reais hoje. Um exemplo a partir do laudo ambiental: 0 comité que emite 0 laudo refere-se ao fato de que as altas concentragdes de nitrato de- correntes da fertilizago com nitrogénio até o momento infiltrou-se pouco ou sequer chegon a se infiltrar nas camadas profundas dos grandes aquiferos Sobre a légiea da distribuigdo de riqueza 39 subterraneos dos quais extraimos nossa’ 4gua potavel. Elas, em grande me- dida, decompem-se no subsolo. Todavia nao se sabe ainda como isto ocor- re € por quanto tempo ainda ocorrerd. Muitas razdes indicam que nao se deve, sem mais reservas, projetar no futuro a continuidade do efeito filrante das camadas protetoras do subsolo, “Teme-se que, apés alguns anos ou dé- cadas, as atuais eluviacdes de nitrato, com um retardamento correspondente A vazio, terfo alcangade mesmo os len¢6is fredticos mais profundos” (p. 29). Em outras palavras: a bomba-relégio esr4 armada. Nesse sentido, os riscos indicam um futuro que precisa ser evitado. Em oposigao a evidéncia tangivel das riquezas, os riscos acabam impli- cando algo irreal. Num sentido decisivo, eles séio simultaneamente reais e ir- reais. De um lado, muitas ameagas ¢ destruigées ja so reais: rios poluidos ou mottos, destruigéo Hlorestal, novas doengas etc. De outro lado, a verdadeira forga social do argumento do risco reside nas ameagas projetadas no futuro. Sao, nesse caso, riscos que, quando quer que surjam, representam descruigées de tal proporgao que qualquer agio em resposta a elas se torna impossivel ¢ que, jd como suposicaio, como ameaga futura, como prognéstico sincreti- cameiite preventivo, possuem e desenvolvem relevancia ativa. O micleo da consciéncia do risco nao estd no presente, ¢ sim no futuro. Na sociedade de risco, o passado deixa de ter forca determinante em relacao ao presente, Em seu lugar, entra o futuro, algo todavia inexistente, construido e ficticio como “causa” da vivéncia e da atuacao presente. Tornamo-nos ativos hoje para evi- tar ¢ mitigar problemas ou crises do amanhé ou do depois de amanhi, para tomar precangées en relagao a eles — ou ent&o justamente nao. Em céleulos modelares, afunilamentos “prognosticados” do mercado de trabalho produ zem imediatamente um efeito sobre o comportamento educacional: 0 desem- ptego antecipado, iminente é um determinante crucial das condigdes ¢ postu- ras de vida atuais; a destruigao prognosticada do meio ambiente ¢ a ameaca nuclear colocam a sociedade de sobreaviso e conseguem levar amplos setores da geragdo jovem as ruas. Na discussdo com o futuro, temos portanto de lidar com uma “varidvel projetada”, com uma “causa projetada” da atuacdo (pes- soal e politica) presente, cuja relevancia e significado crescem em proporga0 dircta & sua incalculabilidade ¢ ao seu teor de ameaca, ¢ que concebemos {temos de conceber} para definir e organizar nossa atuagio presente. Legitimagao: “efeitos colaterais latentes” Isso pressupde, além do mais, que os riscos tenham sido bem-sucedidos num processo de reconhecimento social. Contudo, riscos sao inicialmente 40 No vuledo civilizatério bens de rejeigio, cuja inexisténcia é pressuposta até prova em contrario — de acordo com o principio: “in dubio pro progresso”, ¢ isto quer dizer: na duivida, deixa estar. Est igualmente associado a isto um modo de legiti- magio, que se diferencia claramente da distribuigao designal de riquezas so- ciais, Os riscos podem pois ser legitimados pelo fato de que sua produgao nao foi nem prevista, nem desejada. As situagdes de ameaca precisam, portant, na civilizag&o cientificizada, romper o privilégio da tabuizagdo que as cerca e “nascer cientificamente”. Isto ocorre no mais das vezes sob a forma de um “efeito colateral latente”, que ao mesmo tempo admite ¢ legitima a realidade da ameaca. O que nao foi previsto tampouco podia ser evitado, tendo-se produzido com a melhor das intengSes, revelando-se uma crianga problema- tica, indesejada, sobre cuja aceitacdo sera necessario agora decidir. O racio- cinio esquematico do “cfcito colateral latente” cquivale assim a uma espécie de licenga, a um destino natural civilizatério, que simultaneamente reconhe- ce, distribui seletivamente ¢ justifica efeitos a serem evitados. 3. RIscOS ESPECfFICOS DE CLASSE Tipo, padr4o ¢ meios da distribuicdo de riscos diferenciam-se sistema- ticamente daqueles da distribuigae de riqueza. Isto no anula o fato de que muitos riscos sejam distribuidos de um modo especificado pela camada ou pela classe social. A hist6ria da distribuigao de riscos mostra que estes se atém, assim como as riquezas, ao esquema de classe — mas de modo inverso: as riquezas acumulam-se em cima, os riscos em baixo. Assim, os riscos pa- recem reforgar, endo revogas, a sociedade de classes. A insuficiéncia em ter- mos de abastecimento soma-se a insuficiéncia em termos de seguranga ¢ uma profusio de riscos que precisam ser evitados, Em face disto, os ricos (em ter- mos de renda, poder, educacao) podem comprar seguranca e liberdade em relago ao risco. Essa “lei” da distribuigao de riscos determinada pela classe social e, em decorréncia, do aprofundamento dos contrastes de classe atra- vés da concentracio de riscos entre os pobres e débeis por muito tempo im- pés-se, ¢ ainda hoje se impée, em relagdo a algumas dimensdes centrais do tisco: 0 risco de tornar-se desempregado é atualmente consideravelmente maior para quem nao tem qualificagdes do que para os que s4o altamente qualificados. Riscos de sobrecarga, irradiagio e contaminagao, ligados & execugdo do trabalho nos correspondentes ramos da industria, s4o disteibus- dos de modo desigual conforme a profissiio. Sao principalmente as vizinhan- gas mais acessiveis aos grupos de menor renda da populacdo, nas redondezas Sobre a légica da distribuigio de riqueza 41 de centros de produgdo industrial, que sAo oneradas no longo prazo por conta de diversos poluentes no ar, na égua e no solo, Com a ameaga da redugao da renda, uma maior tolerancia pode ser gerada. Nesses casos, nao é apenas esse efeito social de filtragem ou amplificagio que produz inquietacdes especificas de classe. Também as possibilidades e capacidades de lidar com situagGes de risco, de contornd-las ou compensé- clas, acabam sendo desigualmente distribuidas entre distintas camadas de ren- da e educagéio: quem dispée do calgo financeiro de longo prazo pode tentar contornat os riscos através da escolha do local e da configuragao da moradia (on através de uma segunda moradia, férias etc.). O mesmo vale para a ali- mentagao, a educagio e para as correspondentes posturas em relago 4 co- mida ¢ a informagao, Um bolso suficientemente cheio é capaz de colocar al- guém: cus posigdo de refestelar-se com ovos de “galinhas felizes” ¢ folhas de “alfaces felizes”. Educagdo e uma postura sensivel & informacao abrem no- vas possibilidades de relacionamento e de esquiva. Podem-se evitar determi- nados produtos (por excmplo, figados de vacas velhas, com altos teores de chumbo) e, por meio de técnicas nutricionais bem-informadas, variar o car- dapio semanal de tal mancixa que os metais pesados presentes no peixe do Mar do Norte sejam diluidos, complementados, relativizados (ou mesmo intensificados quem sabe?) pelos aditivos toxicos presentes na carne suina € no ché, Cozinhar e comer convertem-se numa espécie de quimica alimentar implicita, nama espécie de cozinha do diabo com pretens4o minimalizadora, se bem que conhecimentos bastante sofisticados sdo necessdrios para que se consiga, em termos de “tecnologia nutricional”, passar a perna por conta propria na superprodugdo de toxinas e venenos na industria quimica ¢ na agricultura. Mas, ainda assim, é muito provavel que, em reagfo 4s noticias de contaminagao na imprensa ¢ na televisdo, surjam habitos de alimentagio e de vida “antiquimicas”, distribuidos em relagdo 4 camada social. Essa “an- tiquimica” cotidiana (com frequéncia trazida aos consumidores propriamente embalada como produto secundario da indiistria quimica) acabard por virar do avesso (e afinal jé fez. isto) todos os ambitos do abastecimento — da co- mida 4 moradia, da enfermidade ao lazer — em meio as camadas educadas, “conscientes em relagdo a alimentagao” ¢ de maior renda, Poder-se-ia deduzir a partir disto que, justamente em razao dessa postura refletida ¢ financeira- mente lastreada em relagio aos riscos, velhas desigualdades sociais sfo con- solidadas num ovo patamar. E justamente desse modo, contudo, que nao se chegaré A base da légica distribntiva dos riscos. Paralelamente ao aprofundamento das situagées de risco, reduzem-se as rotas de fuga eas possibilidades compensat6rias de carter privado, ao mes- 42 No vuledo civilizatério mo tempo em que se disseminam. A potenciagao dos riscos, a impossibilidade de contornd-los, a abstinéncia politica, assim como o amincio ea venda de possibilidades privadas de escape, implicam-se mutuamente. £ possivel que esses dribles privados ainda ajudem em relagao a alguns alimentos; mas jé no fornecimento de agua estao todas as camadas sociais interligadas pelo mesmo encanamento; e basta langar um olhar as “florestas esqueléticas” dos “idilios campestres”, distantes das indistrias, para que fique claro que as bar- reitas especificas de classe caem também por conta dos teores t6xicos do ar que todos respiramos. A iinica proteg&o realmente eficaz sob essas condigGes seria rdio comer, nao beber, rio respirar. E mesmo isto ajuda apenas em parte. Afinal todos sabem o que acontece as pedras — e aos cadaveres enterrados, 4. GLOBALIZACAO DOS RISCOS CEVILIZACIONAIS Reduzido a uma formula: a miséria é hierdrquica, 0 smog é democratico. Com a ampliacio dos riscos da modernizag&éo — com a ameaga A natureza, A saide, 4 alimentagdo etc. —, relativizam-se as difecengas ¢ fronteiras sociais. Isto ainda continua a provocar consequéncias bastante diversas. Objetiva- mente, porém, os riscos produzem, dentro de seu raio de alcance ¢ entre as pessoas por eles afetados, um efeito equalizador. Nisto reside justamente sua nova forga politica. Nesse sentido, sociedades de risco simplesmente nao so sociedades de classes; suas situagdes de ameaca nao podem ser concebidas como situagées de classe, da mesma forma como seus conflitos no podem sex concebidos como contflitos de classe. Isto fica ainda mais claro se tivermos em conta o feitio peculiar, o pa- drio distributivo especifico dos riscos da moderizagio: eles possuem uma tendéncia imanente a globalizagdo. A. producio industrial é acompanhada por um universalismo das ameagas, independente dos lugares onde sao pro- duzidas: cadeias alimentares interligam cada um a praticamente todos os demais na-face da Terra. Submersas, elas atravessam fronteiras. O teor de acidez do ar carcome n&o apenas esculturas e tesouros artisticos, mas ha muito corroeu também os marcos de fronteira. Mesmo no Canadé acidifi- cam-se 0s mares, mesmo nos extremos setentrionais da Escandinavia mor- rem as florestas. Essa tend@ncia a globalizagdo faz surgir suscetibilidades, que so por sua vez inespecificas em sua universalidade. Quando tudo se converte em amea- ca, de certa forma nada mais € perigoso. Quando ja nao ha saida, o melhor afinal & no pensar mais na questo. O fatalismo ecolégico do fim dos tem- Sobre a légica da distribuigio de riqueza 43 pos faz o péndulo dos 4nimos oscilar em todas as direcdes. Agir é de todo modo algo ultrapassado. Talvez os ubiquos e perenes pesticidas possam ser contornados com © retorno aos insetos, ou com uma taga de champanhe? O efeito bumerangue Contido na globalizacdo, e ainda assim claramente distinto dela, hd um padrao de distribuig&o dos riscos no qual se encontra um material politica- mente explosive: cedo on tarde, eles alcancam inclusive aqueles que os pro- duziram ou que lucraram com eles. Em sua dissemina¢o, 0s riscos apresen- tam socialmente um efeito bumerangue: nem os ricos e poderosos estao se- guros diante defes. Os anteriormente “latentes efeitos colaterais” rebatem também sobre os centros de sua produgio. Os atores da modernizago aca- bam, inevitdvel e bastante concretamente, entrando na ciranda dos perigos que eles préprios desencadeiam e com os quais lucram. Isto pode ocorrer de diversas formas. Tomemos novamente como exemplo a agricultura. O emprego de fet- tilizantes sintéticos crescen, entre 1951 e 1983, de 143 para 378 kg/ha, o con- sumo de insumos quimicos agricolas cresceu entre 1975 e 1983 na Alemanha Ocidental de 25 mil para 35 mil toneladas. A produtividade por hectare tam- bém aumentou; de modo algum, porém, tao rapide como o emprego de fer- tilizantes e pesticidas. Ele foi duplicado para os cereais e crescem 20% para a batata. A um aumento da produtividade aquém das proporgdes em rela- ¢4o ao uso de fertilizantes e insumos quimicos corresponde um aumento alént das proporgées dos danos 4 natureza, visiveis e penosos para os préprios agri- cultores: um trago marcante desse grave processo que se destaca é 0 forte declinio na populacao de diversas espécies da flora e da fauna silvestre. As “listas negras”, que protocolam essa ameaca de extinc3o como uma “certi- dao de ébito” oficial, tornam-se cada vez mais longas. “Das 680 espécies de plantas encontradas nos campos, $19 estio ameagadas. De forma dramatica, reduzem-se as populagdes de espécies de passaros vinculadas aos prados, como a cegonha- -branca, 0 magarico-real ou o cartaxo-nortenho; na Baviera, por exemplo, tenta-se salvar os dltimos representantes dessas espécies por meio de um ‘programa de incubadoras dos prados' [...] Entre os animais, sfio afetados os pdssaros que fazem seus ninhos no cho, espécies no topo de cadeias alimentares, como aves de rapina e corujas, libélulas, assim como espécies especializadas em alimen- “4 No voledo civilizatério tos rareantes, por exemplo, em grandes insetos ou no néctar dis- ponfvel ao longo de todo o periodo de vegetagio” (laudo, p. 20). Os antigos “efeitos colaterais imprevistos” tornam-se assim efeitos prin- cipais visfveis, que ameacam seus proprios centros causais de producdo. A produg3o de riscos da modernizagio acompanha a curva do bumerangue. A agricultura intensiva de carater industrial, fomentada com bilhées em subsi- dios, nZo somente faz aumentar dramaticamente em cidades distantes a con- centragdo de chumbo no leite materno e nas criangas. Ela também solapa de miitiplas formas a base natural da prépria produgao agricola: cai a fertili- dade das lavouras, desaparecem espécies indispensaveis de animais e plan- tas, aumenta o perigo de erosdo do solo. Lsse efcito socialmente circular de ameaga pode ser generalizado: sob a égide dos riscos da modernizagao, cedo ou tarde se atinge a unidade entre culpado e vitina, No pior, no mais inconcebfvel dos casos — 0 cogumelo atémico —, isto é evidente: ele aniquila inclusive o agressor. Torna-se claro, nesse caso, que a Terra se transformou num assento ejetével, que niio mais reconhece diferencas entre pobre e rico, branco e preto, sul e norte, leste ¢ ceste. O efeito, porém, s6 existe quando existir, e entao ele nao mais existi- 14, pois nada mais existiré. Essa ameaca apocaliptica nao deixa portanto quaisquer rastros palpaveis na imediatez de sua ameaca (ver Gunther Anders, 1983). Isto é diferente no caso da crise ecolégica, Ela também compromete as bases naturais e econémicas da agricultura e, em decorréncia, o abasteci- mento de toda a populagao. $40 visiveis, nesse caso, efeitos que repercutem nao apenas no Ambito da natureza, mas também nos coftes dos ricos e na satide dos poderosos. A boca larga ¢ independente de filiago partidaria, o que se ouve sao tons bastante estridentes, apecalipticos. Desvalorizacio e desapropriacio ecoldgicas O efeito bumerangue nio precisa se refletir, portanto, unicamente em ameaca direta 8 vida, podendo ocorrer também através de mediagSes: dinhei- ro, propriedade, legitimagdo. Ele no apenas atinge em repercussio direta 0 causadot isolado. Ele também faz com que todos, globaimente ¢ por igual, arquem com os énus: o desmatamento causa no apenas 0 desaparecimento de espécics inteiras de passaros, mas também reduz o valor econémico da propriedade da floresta e da terra. Onde quer que uma usina nuclear ou termoelétrica seja construfda ou planejada, caem os pregos dos terrenos. Areas urbanas e industriais, autoestradas ¢ vias de grande circulagao sobre- Sobre a Iégica da distribuigfo de riqueza 45 carregam o solo em seu entorno. Mesmo que no se saiba ao certo se ja ago- fa ou somente num futuro préximo é que, por uma tal raz4o, 7% do terri- torio alemo estaré em tal medida afetado por poluentes que jd no serd mais possivel praticar, com a consciéncia limpa, qualquer tipo de cultivo nessas areas. O principio ainda é 0 mesmo: a propriedade é desvalorizada e, de formas furtivas, “ecologicamente desapropriada”. Esse efeito pode ser generalizado. Destruigées ¢ ameagas de destruigdo da natureza e do meio ambiente, noticias sobre teores téxicos nos alimentos em bens de consumo, acidentes quimicos, t6xicos ou nucleares, iminentes ou, pior, ocorridos, tudo isto atua como uma furtiva ou galopante desvalo- sizagio e desapropriacao dos direitos de propriedade. Através da producao desenfreada de riscos da modernizagao, acaba sendo praticada — em passos ¢ salts sempte continuos, por vezes em crises catastréficas uma politica da terra que se torna inabitdvel. Aquilo que se combatia como “perigo comu- nista” realiza-se no conjunto das proprias ages, sob outra forma, seguindo o desvio da natureza contaminada. Para além das guerras ideolégicas, na are- na das oportunidades de mercado, todos praticam contra todos a politica da “terra arrasada” — com um sucesso retumbante, mas raramente duradouro. Aquilo que é contaminado ou tido por contaminado — no que diz respeito ao declinio do valor cconémico ¢ social, essa diferenca é praticamente irrele- vante — pode pertencer a quem pertence ou a quem bem entender. Sem qual- quer alteracio do titulo de propriedade legal, torma-se initil e sem valor. Tra- ta-se, portanto, no caso da “desapropriagao ecoldgica”, de uma desapropria- ¢fo social e econdmica com a manutengao da propriedade legal. Isto vale tam- bém para os alimentos, assim como para o ar, o solo ea agua. Vale para tudo © que neles vive ¢, sobretudo, para todos aqueles que vivem daquilo que neles vive. O discurso em torneo dos “venenos do espaco doméstico” torna claro que tudo o que compée nosso cotidiano civilizacional pode ser envolvido. A ideia basica por tras disso é das mais simples: tudo o que ameaca a vida neste planeta, estaré ameacando também os interesses de propriedade e de comercializacio daqueles que vivem da mercantilizacdo da vida e dos viveres. Surge, dessa maneira, uma genuina contradicao, que sistematicamen- te se aprofunda, entre os interesses de lucro e propriedade que impulsionam © processo de industrializagao ¢ suas diversas consequéncias ameacadoras, que comprometem ¢ desapropriam inclusive os lucros e a propriedade (paca nao falar da propriedade da prépria vida). Num acidente nuclear ou numa catdstrofe quimica, surgem assim, no estigio mais avangado da civilizagio, novas “manchas brancas” no mapa, monumentos Aquilo que nos ameaca. Inclusive acidentes téxicos, depésitos 46 No vuledo civilizatorio de lixo taxico subitamente descobertos transformam distritos em “distritos do fixo t6xico™, a terra em torno em “terra de ninguém”. Contudo, também existem diversas variantes preliminares ¢ insidiosas. O peixe proveniente de Aguas contaminadas ameaca n4o apenas as pessoas que © comem, mas tam- bém, por causa disto, os muitos que dele vivem. Quando 0 alarme do smog éacionado, o pais morre temporariamente. Regides industriais inteiras con- vertem-se em cidades-fantasmas, O efeito bumerangue define: inclusive as engrenagens das indtistrias poluentes param. Mas nfo s6 as suas. O smog ndo leva em conta o princfpio de causagao. Englobando-as e equiparando- -as, atinge a todas, independente de sua parcela de contribuigao na produ- 40 do smog. Assim, para as estancias climéticas de tratamento de satide, o smog cettamente nao representa boa publicidade ¢ nem indica um estouro de vendas. Estipular cm lei o dever de divulgar os picos de contaminagio do ar (de forma semelhante como se faz com aé temperaturas da agua ¢ do ar), de modo a atingir o grande ptiblico, acabaria fazendo com que as adminis- rragées de resorts e a indistria do lazer — até agora: partiddrias de uma politica de combate a definigdes — rapidamente se convertessem em defen- soras convictas de uma politica efetiva de combate & poluigao. SituagSes de risco no sao situacées de classe Dessa forma, com a generalizagio dos riscos da modernizagiio, ¢ de- sencadenda uma dindmica social que néio mais pode ser abarcada ¢ concebida em termos de classe. Propriedade de uns implica em privacio de propriedade para outros e, em decorréncia, numa relagdo de tenstio ¢ conflito social na qual podem-se formar e reforcar identidades sociais em continua reciproci- dade — “os 16 de cima, nés aqui de baixo”. Inteiramente distinto € 0 caso das situagdes de ameaca. Quem é afetado por petigos esté com problemas, mas no chega a privar 08 outros, 0s no afetados, do que quer que seja. Sofrer o impacto e no sofrer 0 impacto nao se polarizam como ter proprie~ dade e née a ter. Expresso numa analogia: A “classe” dos afetados no se ope uma “classe” dos no afetados. A “classe” dos afetados opée-se, na melhor das hipéteses, a “classe” dos ainda-nfo-afetados. Por conta do au- mento galopante dos pregos da incolumidade, inclusive os que hoje ainda sd “abastados” (em termos de satide ¢ bem-cstar} serdo impelidos amanhd as filas de “auxilio aos pobres” dos planos de sade e, depois de amanha, aos refigios dos parias, invalidos e incapazes. A impoténcia das autoridades dian- te dos acidentes t6xicos e escdndalos de lixo t6xico, assim como a avalanche de questies de legalidade, competéncia ¢ indenizag&o que irrompe nesses Sobre a légica de distribuigao de riqueza 47 casos, fala uma lingua bastante clara, Isto é: a imumidade em relagao aos ris- cos conyerte-se do dia para a noite em impacto irreversivel. Os conflitos que surgem em torno dos riscos da modernizagdo inflamam-se a partir de causas sistemdticas congruentes com 0 motor do progresso e do lucro. Elas relacio- nam-se 4 dimensao e ao alcance das ameagas ¢ das respectivas demandas resulzantes por reparacdo e/ou por uma mudanga geral de curso. Conside- rando-as, trata-se da questo sobre se podemos prosseguir com a dilapidagdo da natureza (a propria inclusive) c, consequentemente, se nossos conceitos de “progresso”, “bem-estar”, “crescimento econédmico” e “racionalidade cientifica” ainda valem. Nesse sentido, os conflitos emetgentes assumem o carater de disputas religiosas de vertente civilizacional em torno do caminho Correto para a modernidade. Estas assemelham-se sob certos aspectos mais as guerras religiosas da Idade Média da que aos conflitos de classe do século XIX e inicio do século KX. Tampouco diante das fronteiras nacionais os riscos € dilapidagdes in- dustriais demonstram qualquer respeito. Eles vinculam a vida de uma folha de grama da floresta bdvara, em iiltima medida, a eficdcia do acordo sobre © combate a poluicio transfronteiriga. A supranacionalidade do fluxo de poluentes nao pode mais ser confrontada unicamente no nivel nacional. Da- qui em diante, os paises industriais precisam ser diferenciados também de acordo com suas “balancas nacionais de emissio e imissio”. Fm ontras pa~ laveas, passam a surgir desigualdades internacionais entre diferentes paises industriais, com “superavit”, “equilibrio” ou “déficit® na balanga de po- Iuentes, ou dito de forma mais clara: entre os “paises poluentes” e aqueles que eém de arcar com 0 énus da sujeira dos outros, com o aumento na taxa de mortalidade, desapropriagdes ¢ desvalorizagées. Até mesmo a “comuni- dade socialista de estados irmanados” teré de se confrontar em breve com essa diferenciagéo ¢ com o material conflitivo nela contido. Situagio de ameaga como destino de ameaca A intratabilidade supranacional dos riscos da modernizagdo correspon- de 4 forma de sua disseminacao. Sua invisibilidade nZo deixa nem mesmo uma decis4o aberta ao consumidor. Eles sto “produtos casados”, ingeridos ¢ inspirados a reboque de outros. SA “passageiros clandestinos” do consumo normal. Viajam com o vento e coma agua. Podem estar em tudo e em todos, atravessando, junto com o essencial A vida — o ar que se respira, a comida, © vestudrio, o mobiliario etc. —, todas as zonas de protegao da modernidade, de resto tio rigidamente controladas. Diferente das riquezas — atraentes, mas 48 No vuledo civilizatério que podem igualmente repelir, diante das quais, contudo, € sempre necessatio 2 possivel escolher, comprar, decidir —, os riscos e danos esgueitam-se por toda a parte, furtivos ¢ sem qualquer inibicdo diante do livre {!) arbitrio. Eles fazem emergir uma nova forma de destinagio, um tipo de “imputabilidade civilizacional do risco”. De um certo modo, faz lembrat 0 destino associado ao estamento na Idade Média. Agora existe uma espécie de destino associa- dod ameaga na civilizagéo avangada, para o qual se nasce e do qual nem to- do 0 esforgo permite escapar, com a “pequena diferenga” {sendo a que tem maior eficécia) de que todos nos confrontamos com ele de modo similar. Na civilizagdo avangada, que surgin para abolir as destinagdes, para oferecer as pessoas possibilidades de escolha, para liberta-las de constrigdes naturais, acaba surgindo uma nova destinacdo, global, de alcance mundial, fundada na ateaca; destinagio esta diante da qual possibilidade de escolha individual dificilmente se sustenta, pela raz4o de que, no mundo industrial, os poluentes e venenos estiio entrelagados com a base natural, com a consu- magio elementar da vida. A vivéncia dessa suscetibilidade ao risco interdita @escolha torna compreensivel muito do impacto, da ira impotente e da “sen- sagio de nfo haver amanha* com que muitos, ambiguamente ¢ exercendo uma critica forgosamente construtiva, reagem 4 mais recente realizagio da civilizacSo tecnolégica: é possivel chegar a estabelecer e muanter uma distancia critica diante de algo de que nao se pode escapar? deve-se abrir mao da dis- tancia critica e refugiar-se no inevitavel, com escdrnio ou cinismo, indiferen- ¢a ou jabilo, apenas porque se trata de algo de que nfo se pode escapar? Novas desiguatdades internacionais A equalizagao mundial das situagdes de ameaga nao deve, entretanto, camuflar as novas desigualdades sociais no interior da suscetibilidade ao ris- co. Estas surgem particularmente quando — ao menos em escala internacio- nal — situagées de classe ¢ situagées de risco se sobrepdem: o proletariado da sociedade do risco mundial instala-se ao pé das chaminés, ao lado das refinarias e indtistrias quimicas, nos centros industriais do Terceiro Mundo. ‘A “maior catdstrofe industrial da histéria” (Der Spiegel}, o acidente toxico na cidade indiana de Bhopal, chamou a atengdo da opiniao ptiblica mundial para esse fato, As inchistrias de risco foram transferidas para os paises com mao de obra barata. Isto nao aconteceu por acaso. Existe uma sistemdtica “forca de atragdo” entre pobreza extrema e riscos extremos. No patio de triagem da distribuigiio dos riscos, estagdes situadas em “rincdes provinciais subdesenvolvidos® gozam de especial popularidade. E um tolo ingénuo ainda Sobre a logica da distribuicao de riqueza 49 presumiria que os responsfveis pela triagem ndo sabem o que fazem. Tam- bém fala em favor desse proceso a comprovada “alta aceitac4o” de uma po- pulagdo provincial desempregada (!) diante de “novas” tecnologias (capazes de gerar empregos), Em escala mundial, isto ocorre de forma pacticularmente eloquente: miséria material e cegueira diante do risco coincidem. “Um especialista em. desenvolvimento relata o manuscio imprudente com pesticidas, no caso, no Sri Lanka: ‘o DDT é espalhado com as mios, as pessoas ficam polvilhadas de branco.’” Na ilha caribenha de Trinidad (1,2 milhdo de habitantes), fo- ram registrados no ano de 1983 um total de 120 casos de morte por pestici- da, “Um fazendeiro: ‘se vocé no passa mal depois da pulverizagdo, é por- que ndo pulverizou o bastante’” (Der Spiegel, n° 50/1984, p. 119), Para essas pessoas, as complexas instalagdes das inditstrias quimicas, com seus imponentes tubos e tanques, so simbolos caros do sucesso. A ameaga de morte nelas contida fica, em contraste, invisfvel. Para eles, os fer- tilizanves, inseticidas e herbicidas que elas produzem sao vistos, antes de mais nada, sob a Stica da libertagio da precariedade material. $40 pré-condicdes da “revolugao verde”, que — sistematicamente apoiada pelas nacdes indus- triais do Ocidente — aumentou nos tiltimos anos a produgao de géneros ali- menticios em 30%, em alguns paises da Asia e da América Latina em até 40%, O fato de que, enquanto isto, a cada ano sejam “pulverizadas sobre pomares ¢ campos de algodio, arroz e tabaco {...] varias centenas de milha- res de toneladas de pesticidas” acaba sendo ofuscado por esses éxitos tangf- veis, Na concotréncia entre a morte pela fome, visivelmente iminente, com a morte por intoxicagio, iminente mas invisivel, impde-se a preméncia do combate 4 miséria material, Sem o emprego em larga escala de substancias quimicas, a produtividade das lavouras cairia ¢ os insetos e fungos devora- tiam a parte que thes coubesse. Com a indiistria quimica, os paises pobres da periferia podem preencher seus préprios estoques de alimentos, aleancan- do uma certa independéncia em relag&o ao poder das metrépoles do mundo industrial. As indiistrias quimicas estabelecidas localmente reforgam a im- presso de independéncia na produgao ¢ de independéncia de caras impor- tages, A luta contra a fomee pela autonomia compde 0 escudo atrds do qual os riscos, de todo mado imperceptiveis, 40 abafados, minimizados e, em de- corréncia, potencializados, disseminados e, finalmente, devolvidos aos ricos paises industriais ao longo da cadeia alimentar, Regulamentos de protegiio e seguranca nfo foram suficientemente de- senvolvidos, sendo que, quando existem, so com frequéncia letra morta. A “ingenuidade industrial” da populac&o local, que no mais das vezes é inca- 50 No vulcdo civilizatério paz de ler ou escrever, quanto mais de usar adequadamente roupas de pro- tegdo, oferece aos administradores das empresas possibilidades insuspeitas, hd muito indisponiveis nos circulos mais sensiveis ao risco dos paises indus- triais, de manipulacao legitimatéria dos riscos: sabendo da impossibilidade de que se facam adotar regulamentos de seguranca, podem-se isentar de cum- pri-los. Dessa forma, eles podem “lavar as m4os” e, com a consciéncia tran quila e com baixos custos, transferir a responsabilidade pelos acidentes e casos de morte 4 “cegueira” cultural da populagao em relago aos riscos. No caso de catdstrofes, o emaranhado de competéncias e as posic&es de interes- se nos paises pobres oferecem boas oportunidades para uma politica de con- tengo definitéria, de minimizagao e de encobrimento dos efeitos desastro- sos. Condiges de producao favoraveis em termos de custos, imunes as cons- trigées legitimatérias, atcacm os conglomerados industziais como imis, ¢ acabam vinculando-se ao interesse proprio dos pafses em superar a caréncia material ¢ em alcangar a autonomia nacional numa combinagao explosiva, no mais verdadeiro sentido da palavra: 0 diabo da fome é combatido com o belzebu da potenciagao do risco. Indistrias de risco particularmente elevado s&io transferidas para os paises pobres da periferia. A pobreza do Terceiro Mundo soma-se o horror das impetuosas forgas destrutivas da avancada in- dustria do risco. As imagens e relatos de Bhopal ¢ da América Latina di- zem-no em suas palavras. Vila Parisi “O municipio mais sujo do mundo encontra-se no Brasil [...] Todo ano, os moradores da favela precisam trocar o revestimento de zinco do telhado, pois a chuva dcida os corréi. Quem vive aqui tempo o bastante adquire piistulas, “pele de jacaré”, como dizem os brasileiros, Os mais intensamente afetados sao os moradores de Vila Pa- risi, uma favela de 15 mil habitantes, dos quais a maioria se aloja em modestos casebres feitos com tijolos de cimento. Mascaras de gas jd s4o vendidas no supermercado. A maioria das criangas sofre de asma, bronquite, inflamagées na garganta ¢ nas vias respiraté- rias e eczema. Em Vila Parisi, pode-se facilmente orientar pelo cheiro. Numa esquina, o esgoto borbulha a céu aberto, na outra, escorre um cor- go de limo esverdeado. Um fedor de penas de galinha queimadas anuncia a sidertirgica, o cheiro de ovos podres, a fabrica de pro- dutos quimicos. Um medidor de emissdes de poluentes, instalado Sobre a légice da distribnigtio de riqueza st pelas autoridades municipais, parou de funcionar em 1977, cerca de um ano e meio apés sua inauguragao. Certamente no foi capaz de dar conta da sujeira. _ A histéria do municipio mais sujo do mundo comecou em 1954, quando a Petrobras, a empresa brasileira de petréleo, esco- 3 Theu a 4tea de mangue como sede para sua refinaria. Logo vieram também a Cosipa, grande siderdrgica brasileira, e a Copebrés, uma indtstria americano-brasileira de fertilizantes, multinacionais co- mo Fiat, Dow Chemical e Union Carbide chegaram em seguida. ] Era a fase do milagre do capitalismo brasileiro. O governo militar 5 convidou empresas estrangeiras a transferir para lé a fabricagao de 4 Produtos nocivos ao meio ambiente. ‘O Brasil ainda pode impot- 4 tar poluicio’, gabava-se o ministre do planejamento Paulo Velloso y em 1972, ano da Conferéncia do Meio Ambiente de Estocolmo. O Gnico problema ecolégice no Brasil seria a pobreza. | “As causas principais das docngas so a subnutrig3o, o dco! ] € ocigarro’, diz o porta-voz da Petrobras. ‘As pessoas j4 vém doen- tes de Cubatdo’, também é 0 que diz Paulo Figueiredo, director da Union Carbide, *e quando a doenca se agrava, péem a culpa em nés. Isto é simplesmente ilégico.’ O governador de Sao Paulo ten- ta ha dois anos trazer ar fresco & pestilenta Cubatio. Ele demitiu 13 funciondrios da leniente Secretaria do Meio Ambiente e deter- minou o uso de computadores para controlar as emissdes. Mas as timidas multas de alguns poucos milhares de délares no chegavam a incomodar os transgressores do meio ambiente. Foi entdo que veio a catéstrofe, no dia 25 de fevereiro deste ano. Em razio de negligéncia da Petrobras, 700 mil litros de pe- a tréleo acabaram sendo derramados no mangue que abrigava as palafitas da Vila Socé, Em menos de dois minutos, uma tormenta de fogo ircompeu pela favela, Mais de 500 pessoas foram incine- radas. Os cadaveres das criangas pequenas nao foram encontrados. ‘Elas foram simplesmente pulverizadas pelo calor’, disse um fun- ciondrio do governo” (Der Spiegel, n° 50/1984, p, 110), Bhopal “Os pssaros cafam do céu. Buifalos, vacas, cies jaziam mor- tos pelas ruas e campos — estufados depois de poucas horas devido A ao calor da India Central. E por todo a parte as pessoas sufocavam —contorcendo-se, espumando pela boca, maos contraidas crava- [ 52 No wuledo civilizatério das na terra: eram 3 mil no fim da semana passada, e surgem sem- pre novas vitimas, as autoridades j4 deixaram de contabilizd-tas. 20 mil pessoas provavelmente ficarao cegas. Cerca de 200 mil fi- caram feridas. Na cidade de Bhopal, na noite de domingo para se~ gunda, ocorreu um apocalipse industrial sem paralelo na historia: uma nuyem venenosa vazou de uma industria quimica, estenden- do-se em seguida como uma mortalha por 65 quilémetros quadra- dos densamente habitados — quando finalmente se dissipou, espa- Ihou-se 0 odor repulsivo da puttefagio. A cidade transformou-se numa praca de guerra, em pleno perfodo de paz Os hindus inci- neravam em seus crematérios os mortos, 25 de cada vez. Logo passou a faltar madeira para a cremagdo ritual — assim, eram em labaredas de querosene que ardiam os corpos. O cemitério dos muculmanos revelou-se demasiado estréito, Velhos tiimulos preci- saram ser abertos, mandamentos sagrados do Isla, desrespeitados. ‘En sei’, lamentava um coveiro, “é pecado enterrar dois mortos no mesmo tumulo. Ald que nos perdoe — enterramos trés, quatro ¢ ainda mais’ (ibid., pp. 108 ss.). A difecenca da pobreza, contudo, a pauperizagao do risco no Terceiro Mundo é contagiosa para os ricos. A potenciago dos riscos faz com que a sociedade global se reduza a comunidade de perigos. O efeito bumerangue também acaba por afetar os paises ricos, que justamente se haviam livrado dos riscos através da transferéncia, mas que acabam reimportando-nos jun- to com os alimentos baratos. Com as frutas, gros de cacau, ragées animais, folhas de cha etc., os pesticidas voltam 4 sua altamente industrializada terra de origem. As extremas desigualdades internacionais ¢ as interdependéncias do mercado global lancam os bairros pobres dos paises periféricos 3s portas dos ricos centros industriais. Eles convertem-se em incubadoras de uma con- taminago de alcance mundial, que — semelhante as doengas contagiosas dos pobres na densidade das cidades medievais — tampouco preservam os dis- tritos‘ricos da aldeia global. 5. Duas EPOCAS, DUAS CULTURAS: DA RELACAO ENTRE PERCEPGAO E PRODUGAO DE RISCOS Desigualdades de classe c desigualdades da sociedade de risco podem- -se sobrepor, condicionar mutuamente, estas podem produzir aquelas, A dis- Sobre a légica da distribuigiio de riqueza 53 tribuicao desigual da riqueza social guarnece com anteparos e justificativas a producio de riscos, Nesse caso, é preciso justamente diferenciar a atencao cultural e politica despertada pelos riscos de sua efetiva disseminacio. Sociedades de classe sto sociedades nas quais, para além das trincheiras de classe, a disputa gira em torno da conspicua satisfaciio das necessidades materiais. Contrapdem-se fome e fartura, poder e impoténcia. A miséria nao exige qualquer medida de autoafirmagao. Ela existe. Sua imediatez ¢ ob- viedade correspondem a evidéncia material da riqueza e do poder. As certezas das sociedades de classe so, nesse sentido, as certezas da cultura da visibili- dade: a fome esquelética contrasta com a robusta saciedade, os palicios, com as chogas, 0 fausto, com as migalhas. Justamente essas evidéncias do tangivel deixam de valer nas sociedades do isco. O visivel incorre nas sombras de ameagas invisiveis. Aquilo que escapa A percepgio j4 nfo coincide com o irreal, podendo chegar mesmo a possuir um grau elevado de concretude em termos de ameaga, A necessida- de .imediata rivaliza com o teor de risco. O mundo da caréncia ou fartura visiveis ensombrece-se sob © peso da superioridade de forcas dos riscos. A corrida disputada entre riqueza perceptivel e riscos imperceptiveis nao pode ser ganha por estes. O invisivel no pode competir com o visivel. O paradoxal é que, justamente por isto, 0s riscos invisiveis acabam ganhando a parada, A indiferenga diante dos riscos, de todo modo imperceptiveis, que sem- Pre encontra na superacao da caréncia palpavel sua justificagdo — c, na ver- dade, ten-na (vide o Terceiro Mundo!) —, é 0 terreno cultural e politico no qual os riscos e ameagas florescem, crascem e frutificam, Na sobreposigao e concorréncia entre as situagées problemiticas da sociedade de classes, da sociedade industrial e da sociedade de mercado, de um lado, ¢ aquelas da sodiedade de risco, de outro, a légica da produgao de riqueza, dadas as rela- Ges de poder e os critérios de relevancia vigentes, acaba por prevalecer — ¢ justamente por conta disto prevalece no fim das contas a sociedade de risco, Aeevidéncia da caréncia ofusca a percepgao dos riscos; mas, em compensago, apenas sua percepcdo, ¢ nao sua concretude e eficdcia; riscos denegados pros- eram patticularmente bem e rapido. Num certo estégio da produgio social, marcado pelo desenvolvimento da indiistria quimica, mas também pelo da tecnologia de reatores, da microcletrénica, da tecnologia genética, a prepon- derincia da légica ¢ dos conflitos da produgio de riquezas, ¢ consequente- mente da invisibilidade social da sociedade de risco, ndo chega a ser uma Prova de sua inconcretude, e sim o inverso: um motor mesmo de seu sur- gimento e, portanto, uma prova de sua concretizacdo. 54 No vulefo civilizatério

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