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Uma atualização da miopia em marketing1

Todos os anos, grande parte dos lançamentos de produtos fracassa. Há uma controvérsia
sobre qual é exatamente essa porcentagem — alguns falam em 75%, outros arriscam
perto de 95%. Independentemente de qual seja o número correto, não há dúvida que
muito tempo e energia são investidos no marketing dos produtos, que, um ano depois, já
não existirão. Porque isso acontece? Parte do fracasso pode ser atribuída ao fato de que
muitos líderes empresariais, incluindo executivos, sofrem do que é conhecido como
miopia em marketing — um foco de curto alcance na venda de serviços e produtos, em
vez de ver o perceber os consumidores realmente querem.
Eu conversei com John Deighton, professor da Harvard Business School e uma
autoridade em comportamento do cliente e marketing, para entender melhor esse
conceito clássico, suas origens e sua relevância para as organizações de hoje.

Qual a origem do conceito?


O termo foi cunhado pelo ex-professor de marketing da Harvard Business School,
Theodore Levitt, num artigo de 1960 com o mesmo nome (republicado em 2004). O
“coração do artigo”, segundo Deighton, é o argumento de Levitt de que as empresas
estão focadas demais na produção de mercadorias ou serviços e não dedicam tempo
suficiente para entender o que os consumidores desejam ou precisam. Por isso, ele
“encorajou os executivos a mudar de um modelo orientado para a produção, para um
modelo orientado para o consumidor”. Como Levitt costumava dizer aos seus alunos,
“as pessoas não querem um broca de um quarto de polegada. Elas querem um furo de
um quarto de polegada!”.
“O ponto alto do artigo original é que é muito fácil ser míope quando se trata
de marketing”, afirma Deighton. “Qualquer profissional de marketing tem obrigação de
se interessar em programas, táticas, campanhas, etc. Infelizmente, o relógio não para o
tempo suficiente para responder a pergunta, ‘por que você está fazendo o que está
fazendo?’. Por isso é muito fácil perder a dimensão do panorama. Outra coisa que
tornou o artigo tão importante quando foi publicado é que ele lembrava aos CEOs que
o marketing faz parte do seu trabalho: “(Levitt) diz ao líder da organização: você está no
negócio porque tem clientes. Então precisa pensar em marketing”, explica Deighton.

O que é miopia em marketing?


A miopia que Levitt descreve é a falta de insight sobre o que o negócio está fazendo por
seus clientes. As organizações investem demasiado tempo, energia e dinheiro no que
atualmente fazem e acabam, muitas vezes, cegas para o futuro. Elas se sentem
confortáveis em pensar que estão numa “indústria em crescimento”, o que, de acordo
com Levitt, não existe. Por outro lado, existem realmente empresas que estão
continuamente só capitalizando oportunidade de crescimento.
Inúmeros exemplos no artigo ilustram o conceito principal de que seu produto não é seu
negócio. Talvez o mais famoso seja o das ferrovias, que, segundo Levitt, sofreram um
vertiginoso declínio porque acreditavam que estavam no negócio de trens e não no

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Disponível em: https://hbrbr.uol.com.br/uma-atualizacao-da-miopia-em-marketing/
negócio de transportes. Se aqueles líderes tivessem percebido que estariam ajudando os
clientes a se deslocar de um lado para outro, deveriam ter expandido o negócio para
outras formas de transporte como carros, caminhões ou aviões. Infelizmente, em vez
disso, eles permitiram que outras empresas agarrassem essas oportunidades e roubassem
seus passageiros.
Felizmente, a miopia em marketing tem cura. Levitt sugere que os líderes se
perguntem: em que negócio realmente estamos? Deighton observa que a melhor forma
para os líderes responderem a essa pergunta é fazendo-se outra pergunta: O que estamos
realmente fazendo pelo cliente? Empresas bem-sucedidas focam nas necessidades do
cliente, não em seus próprios produtos e serviços, o que pode — e deve — ser
substituído por alternativas competitivas, produzidas por elas mesmas ou pelos
concorrentes existentes ou potenciais.

Qual sua relevância hoje?


Deighton afirma que a ideia da miopia em marketing “ainda é muito aplicável”
atualmente, “em parte, porque a ideia original não foi muito prescritiva, Levitt não
forneceu os ‘dez passos para eliminar a miopia em marketing’. Ao contrário, ele estava
sempre instigando as pessoas a pensarem de forma diferente”. Na verdade, Deighton
ainda usa o conceito com frequência quando ele apresenta o que é marketing para seus
alunos da faculdade de administração.
E você não precisa olhar muito longe para encontrar empresas ou indústrias que sofrem
dessa doença hoje. Deighton mostra um exemplo dentro de casa para este escritor: o
setor editorial. Ele sugere que é hora de os editores fazerem a pergunta central de Levitt:
em que negócio realmente estamos? “Parece haver uma ligação míope com a palavra
‘publicar’ que é a parte orientada para a produção do setor. Mas o que os clientes estão
realmente procurando?” Eles não querem jornais e revistas, ele diz. “Eles querem ser
entretidos, informados, estimulados, por pessoas mais interessantes que seus amigos e
conhecidos”. “Somente um editor orientado para a produção colocaria a forma de
entrega acima do valor da experiência que ela representa”.
Obviamente existem organizações contemporâneas que estão levando o conselho de
Levitt muito a sério. Deighton menciona a IBM Interactive Experience, uma consultoria
da IBM que combina métodos analíticos, design e tecnologia (e capta US$2 bilhões de
receita) como uma “tentativa de pensar além do que produzem e dizer, ‘não estamos no
negócio de processamento de informação, estamos produzindo as comunicações que os
consumidores valorizam’”.

Como a miopia em marketing evoluiu?


O conceito permaneceu intacto nos últimos 50 anos ou mais. Deighton afirma que foi
porque o artigo original era um tanto “polêmico, quase como uma religião. E qualquer
tentativa de ampliar, complicar ou interferir na polêmica não funcionava”. A ideia
tornou-se a base do marketing moderno.
Isso não significa que ela não teve seus limites. Em 2010, Craig Simith, da Insead,
Minette Drumwright, da Texas University, em Austin, e Mary Gentile Babson
publicaram um artigo intitulado “A nova miopia em marketing”. Eles postularam que os
profissionais de marketing exageraram ao seguir o conselho de Levitt, criando um novo
tipo de falta de visão marcada por um foco fixo no cliente, uma definição muito limitada
do cliente, e uma total impossibilidade de atender os vários stakeholders que surgiram
fora do “contexto social transformado do negócio”. Não há dúvida de que Levitt
acreditava que a corporação inteira precisava ser vista como um organismo que cria
para o cliente e que satisfaz o cliente, e Deighton admite que essa é uma das potenciais
armadilhas da ideia original de Levitt: ela “deposita muita confiança no cliente”. No
artigo original, Levitt concorda que pode ser muito difícil ouvir o cliente. Ele escreveu:
“os clientes são imprevisíveis, volúveis, variados, tolos, sem visão, teimosos e quase
sempre chatos”. Mas Smith. Drumwright e Gentile vão ainda mais longe, argumentando
que não se trata somente de ouvir o cliente, mas de ouvir todos os stakeholders que
contribuem para o sucesso da empresa, como funcionários, fornecedores, acionistas,
concorrentes, mídia, e membros da sociedade.
Deighton observa que o conceito de “indústrias” também foi desafiado ao longo da
última década. A indústria na qual uma empresa está inserida atualmente pode não ser a
mesma que estará no próximo ano: “em tempos tão fluidos atuais, é mais correto dizer
‘ecossistema’. As disrupções estão constantemente desafiando a estabilidade das
indústrias”. Considere uma compra de anúncio programática. Como Deighton explica.
“As pessoas que aplicam a tecnologia para um anúncio com alvo bem determinado não
necessariamente pensam que estão numa indústria específica. Elas reconhecem que o
produto mudará, o ambiente mudará, tudo o que está do lado da produção está em jogo.
A única constante são as necessidades do cliente que elas preenchem”.
A miopia em marketing continua sendo um lembrete importante dos riscos que sua
companhia corre se você não prestar muita atenção às necessidades do cliente. Levitt
acreditava que os executivos não podem prever o futuro — e não devem tentar. Se as
empresas se concentrarem em satisfazer as necessidades do cliente, em vez de se
preocupar em vender produtos — sem nunca se esquecer do negócio em que realmente
estão — elas poderão estar mais bem preparadas para o que quer que o futuro lhes
reserve.

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