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O MODERNISMO A histéria do Modernismo comega, a rigor, com o movimento saudosista, de Teixeira de Pascoaes e outros, instalado em térno da revista A Aguia (1910-1930), 6rgao da “Renascenga Portuguésa”. E o Modernismo propriamente dito inicia-se em 1915, quando se publicou a revista Orpheu, que aglutinou um punhado de jo- vens insatisfeitos, de idéias “futuristas”, como Fernando Pessoa, Mario de Sd-Carneiro, Almada-Negreiros, Santa Rita Pintor, Rui Coelho Alfredo Guisado e Armando Céortes-Rodrigues. Keagindo contra as formulas estacionarias e passadistas de arte, pregavam o incorformismo e a deificagéo do ato poético. Tal espirito vigo- rou até 1927, quando surgiu a revista Presenca, que a um sé tempo continuava e renovava 0 pensamento Orfico. Este, essen- cialmente poético, apenas por excecgéo deu origem a uma obra em prosa, o romance Nome de Guerra, de Almada-Negreiros. Nesse meio tempo, ja se impunham dois escritores que, embora modernos em parte de sua sintaxe estética, ainda refletiam va- léres culturais dos comecos do século: Florbela Espanca e Aqui- lino Ribeiro. Com a Presenga, representada por José Régio, Mi- guel Torga, Antonio Botto, Irene Lisboa, José Rodrigues Miguéis e tantos outros, a Literatura Portuguésa abre-se ao convivio com determinadas tendéncias européias (encarnadas em Dostoievski, Proust, Gide e outros), mas nado sem examindélas a luz dum cédigo critico que se deseja cada vez mais rigoroso e vigilante. Em 1940, com Gaibéus, de Alves Redol, instala-se o Neo-Realis- mo, que, colocando-se frontalmente contra a Presenga e progra- matizando alguns aspectos “realistas” da obra de Ferreira de Castro, propugna por uma literatura empenhada, social e documental; além de Alves Redol e Ferreira de Cas- tro, citam-se Vergilio Ferreira, Fernando Namora, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, dentre tantos, como represen- tantes dessa corrente. Em 1947, deflagra o Movimento Surrea- lista, que nao obsta a marcha do Neo-Realismo, mas contribui 391 com dados novos para o progresso das letras em Portugal: Ma- rio Cesariny de Vasconcelos é sua maior figura, ao menos em poesia. Depois de 1950, sobretudo por meio de revistas, perma- nece um clima de efervescéncia literaria, marcado pelo apare- cimento ou amadurecimento de uma leva de escritores de ta- lento, como Agustina Bessa-Lufs, José Cardoso Pires, Joaquim Pago d’Arcos, Urbano Tavares Rodrigues, Fernanda Botelho, Jo- sé Gomes Ferreira, Bernardo Santareno, Luis Francisco Rebélo, Maria Judite de Carvalho e tantos outros. TEIxEIRA DE Pascoags Teixeira de Pascoaes, nome literdrio de Joaquim Teixeira de Vasconcellos, nasceu em Gatao (freguesia do concelho de Amarante, distrito do Pérto), em 1877. De familia abastada, es- tudou Direito em Coimbra, e formou-se em 1901. Inicia ent&éo sua carreira literaria, com o livro Sempre (1898), seguido de Terra Proibida, publicado no ano seguinte. Terminado o curso, tenta a pratica do Direito algum tempo, até que a atividade agricola e a liter4ria 0 absorvessem por completo. Em 1912, comeca a di- rigir A Aguia, 6rgio da “Renascenca Portuguésa’, e em sua di- recéo permanece até 1916, quando termina a primeira fase da revista. A pouco e pouco vai abandonando a vida literdria em favor de uma existéncia bucdlica em sua vila natal, mas con- tinua a escrever até o fim, em 1952. Deixou obra numerosa, di- vidida entre a prosa de vario tipo (O Génio Portugués na sua Expressdo Filoséfica, Poética e Religiosa, 1913; A Arte de Ser Portugués, 1915; Os Poetas Lusiadas, 1919; S. Paulo, 1934; O Ho- mem Universal, 1937; O Penitente — Camilo Castelo Branco, 1942; Santo Agostinho, 1945;) e a poesia (Sempre, 1898; Terra Proibida, 1899; Jesus e Pa, 1903; Para a Luz, 1904; Vida Etérea, 1906; As Sombras, 1907; Senhora da Noite, 1909; Mardnos, 1911; Regresso ao Paraiso, 1912; Elegias, 1913; O Doido e a Morte, 1913; Cantos Indecisos, 1921; Canticos, 1925, etc.). MARANOS Publicado em 1911, Mardnos constitui-se num vasto poema em dezenove cantos, composto em decass{labos brancos e ri- mados. Seu entrecho gira em torno de Mard4nos, figura mitica entre visionério e iluminado, que trava continuos didlogos com simbolos ou séres sobrenaturais, como Eleonor, a Saudade, a 392 Primavera, a Montanha, o Outono, Apolo, os Deuses, 0 Bruxo, a Paisagem, a Pastéra, Jesus, D. Quixote. O fragmento que se i ler, corresponde aos primeiros versos do poema, em que se da o encontro entre Maranos e Eleonor: MARANOS E ELEONOR Mardnos era o ser que divagava, Consigo, pelo mundo solitdrio. A sua prépria alma o alimentava E dava-lhe a beber das suas ldgrimas. Empecera-lhe a noite, E, desde entao, Rodeado de espantos e de assombros, Vive numa perpétua inquietacao. Falho de Animo e pobre de esperanga, Apenas o salyou da negra morte, Esta misteriosa simpatia, Que, semelhante A tua lira, Orfeu, As feras enternece e a luz do dia! Atrai as selvas virgens que murmuram, Os inertes penedos taciturnos E as estrélas do céu que nos procuram, Com seus olhos de eterna claridade. Por isso, éle ia andando, neste doce Enlévo da paisagem, neste encanto, Que paira, magoado, sdbre as cousas, Onde, em siléncio, jaz divino canto. Nos princfpios do outono quando as nuvens Aparecem nos montes revestidos De folhinhas doiradas: e, nos vales, Hé frios tons de cinza, umedecidos. . . Chegou, j4 tarde, a um sitio, com pinheiros, Fragas cheias de musgo, tojo bravo, Que domina dois ingremes outeiros, Um rio, verdes campos e a montanha. 394 Ali, parou Mardnos. Do infinito, Uma infinita l4grima descia E lhe tomava © coracio aflito E perturbado de {ntimos receios! Quando viu, perto déle, uma Figura Desenhar-se, no escuro do arvoredo, Em diluidas formas e apagados Contornos de esplendor e de segrédo. E, aténito e surpréso, olhava, olhava, Aquela milagrosa aparicio, Que, em brumas transcendentes, disfarcava Seu angélico rosto de mulher. A lua, que era nova e ia espargindo Um luminoso e vago encantamento, Nas érmas cousas lividas, sorrindo, Mostrou-se, dentre as nuvens que se abriram. E Mardnos, ao vé-la, mais perfeita, Banhada em luz, lhe disse de repente: “Quem és tu? De onde vens? Nao te conheco! Es da terra e da vida? ou simplesmente Ilusério fantasma de beleza? Destas sombras que surgem, ao luar E A superficie va da Natureza? Sentimentos aéreos, flutuantes, Do coragdo da noite, esparso ¢ oculto?” E o siléncio gemia, trespassado Pela voz de Mardnos, que cra um vulto De som, alada sombra que se ouvia E a noturna Visio, aproximando-se Do noturno Viandante: “Eu sou aquela Nuvem que teu espfrito derrama, Sdbre o mundo, que a sente, como a estréla Sente, de longe, os olhos que a contemplam. “Eu sou a tua alma aparecida, Criatura imortal da tua dor! E vivo, como tu, mas outra vida, E choro, como tu, mas outras légrimas... “Um mistério me encobre, e faz de mim A sombra que te empece... Muito em breve, Tu saber4s, Mardnos, por que vim A tua soledade. ..” (Mardnos, Lisboa, Bertrand, s.d., pp. 35.) Bastam ésses poucos versos para se perceber o quanto Tei- xeira de Pascoaes esta substancialmente vinculado a melhor tra- dig&o da poesia portuguésa, sobretudo a do século XIX, na sua facéta romantica (Joao de Deus), ou na realista (Guerra Junquei- ro e Antero). Na verdade, o inicio de Mardnos, conquanto bre- ve, revela até que ponto seu autor era um romantico extempora- neo; alids, os proprios poetas realistas que Ihe marcaram a sen- sibilidade filiavam-se ao espfrito instalado por Garrett em 1825. Mas tudo isso torna Teixeira de Pascoaes um poeta igualmente comprometido com o Simbolismo, ao menos na medida em que a estética romantica se prolonga néle. A rigor, seu enquadramento simbolista obedece também a outras férgas, como, por exemplo, a presenca do Vago, do Oculto, do Mistério, do Sobrenatural. E que sua adeséo a moda simbolista dimana da consangiiinidade profunda entre sua constituicgéo e aquela estética literaria. Daf que apenas se pareca com Eugénio de Castro, Anténio Nobre e Camilo Pessanha de um modo geral e esquematico: dir-se-ia que o Simbolismo, trazia-o na linfa, e que éle seria simbolista em qualquer tempo e lugar. Por outro lado, vé-se que o poeta su- pera o “eu odioso”, em cuja sondagem se comprazia Eugénio de Castro e Anténio Nobre, ou o “eu profundo”, em que imergia doloridamente Camilo Pessanha. E com a superagao, muda o “eu” para “éle”, e caminha rumo do “Ele” ou do “Nos”, isto é, para,assumir postura de poeta épico, a conceber sinteses do Universo. Note-se que Pascoaes o realiza sem abdicar um sé momento de criar grande poesia. Pois bem: essa projecéo do “eu” para fora de si anuncia o Modernismo, por exemplo, de Fernando Pessoa, em que pese as diferencas marcantes entre ambos, Assim, percebe-se, no encontro entre Mardnos e Eleonor, 395 um poeta de alto folégo e vasta concep¢&o do mundo, transitando do Simbolismo para 0 Modernismo, ou seja, ultrapassando o pla- no da subjetividade simbolista para o da fusdo entre 0 sujeito e 0 objeto, operada com o grupo do Orpheu e seguidores. Fernanpo Pessoa Fernando Anténio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888. Orfao de pai aos cinco anos, é levado para Durban (Africa do Sul), onde faz 0 curso primdrio e o secunddrio com excep- cional brilho. Em 1905, regressa a Portugal e matricula-se na Faculdade de Letras de Lisboa; assiste as aulas por algum tem- po, mas acaba abandonando os bancos escolares para se tornar correspondente comercial em linguas estrangeiras. Em 1912, esté como critico dA Aguia, e trés anos depois lidera o grupo do Orpheu. Extinta a revista, passa a colaborar em outras, co- mo Centauro, Athena, Contempordnea e Presenga. Na altura em que esta ultima apareceu, o seu nome ja é considerado como o de um mestre. Em 1934, participa no concurso de poesia promovido pelo Secretariado Nacional de Informagées, de Lis- boa, e sdmente recebe o segundo lugar. Doente, recolhe-se ao hospital, e falece a 30 de novembro de 1935. Escreveu poesia (Mensagem, 1934; Poesias de Fernando Pessoa, 1942; Poesias de Alvaro de Campos, 1944; Poemas de Alberto Caeiro, 1946; Odes de Ricardo Reis, 1946; Poemas Dramédticos, 1952; Poesias Inédi- tas, 1955-1956; Quadras ao Gésto Popular, 1965; Antinous, 1918; 35 Sonnets, 1918; Inscriptions, 1920: ésses optsculos de poe mas ingléses foram reunidos sob o nome de English Poems, I, I, e II, 1921) e prosa (Pdginas de Doutrina Estética, 1946; A Nova Poesia Portuguésa, 1944; Andlise da Vida Mental Portu- guésa, s.d.; Apologia do Paganismo, s.d.; Paginas Intimas e de Auto-Interpretagao, 1966, Pdginas de Estética e Teoria e Critica Literdria, 1966, etc.). HORA ABSURDA © teu siléncio é uma nau com tédas as velas panda Brandas, as brisas brincam nas flamulas, teu sorriso... E o teu sorriso no teu siléncio é as escadas e as andas Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraiso... 396 Meu coragéo é uma Anfora que cai e que se parte.. O teu siléncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto Minha idéia de ti é um cadaver que o mar traz a praia..., € Tentanto Tu és a tela irreal em que erro em c6r a minha arte.. Abre tédas as portas e que o vento varra a idéia Que temos de que um fumo perfuma de écio os salées... Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia, E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histrides... Chove ouro baco, mas nao no lé-fora... E em mim... Sou a (Hora, E a Hora é de assombros e téda ela escombros dela... Na minha ateng&o ha uma vitiva pobre que nunca chora. No meu céu interior nunca houve um tnica estréla... Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um porto... A chuva mitida é vazia... A Hora sabe a ter sido. N&o haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido... Tédas as minhas horas sao feitas de jaspe negro, Minhas Ansias tédas talhadas num mérmore que nao ha, Nao é alegria nem dor esta dor com que me alegro, E a minha bondade inversa nao é nem boa nem ma Os feixes dos lictores abriram-se 4 beira dos caminhos Os pendées das vitérias medievais nem chegaram as cruzadas... Puseram in-félios uteis entre as pedras das barricadas... E a erva cresceu nas vias férreas com vicgos daninhos... Ah, como esta hora é velha!... E tédas as naus partiram! Na praia sé um cabo morto e uns restos de vela falam Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram Aquela angustia de sonhar mais que até para si calam... O palacio esta em ruinas... Déi ver no parque o abandono Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada E sente saudade de si ante aquéle lugar - outono... Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada... 397 A doida partiu todos os candelabros glabros, Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas. Ea minha alma é aquela luz que nao mais haverd nos can- [delabros. .. E que querem ao lado aziago minhas Ansias, brisas fortuitas?... Por que me aflijo e me enfermo?.., Deitam-se nuas ao luar Tédas as ninfas... Veio o sol e ja tinham partido... © teu siléncio que me embala é a idéia de naufragar, E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingindo. .. Ja nao ha caudas de pavées tddas olhos nos jardins de outrora... As proprias sombras estado mais tristes... Ainda Ha rastos de vestes de aias (parece) no chao, e ainda chora Um como que eco de passos pela alaméda que cis finda... Todos os ocasos fundiram-se na minha alma... As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios... Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma, E eu ver isso em ti é um porto sem navios. Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas Passou uma saudade de nao serem o mar... Em frente Ao meu trono de alheamento ha gestos com pedras raras... Minha alma é uma lampada que se apagou e ainda esta quente... Ah, ¢ © teu siléncio é um perfil de pincaro ao sol! Tédas as princesas sentiram o seio oprimido... Da ultima janela do castelo sé um girassol Se vé, e 0 sonhar que ha outros poe brumas no nosso sentido... Sermos, e nao sermos mais!... © ledes nascidos na jaula!... Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto? Arde o colégio e uma crianca ficou fechada na aula... Por que nao ha de ser o Norte 0 Sul?... O que est descoberto?... E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te E o teu siléncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho... Ha coisas rubras e cobras no modo como medito-te, E a tua idéia sabe A lembranga de um sabor de medonho... 398 Para que nfo ter por ti desprézo? Por que nao perdéo? Ah, deixa que eu te ignore... O teu siléncio é um leque — Um leque fechado, um leque que aberto seria tao belo, tao belo, Mas mais belo é nao o abrir, para que a Hora nao peque... Gelaram tddas as mfos cruzadas sobre todos os peitos... Murcharam mais fléres do que as que havia no jardim... O meu amar-te é uma catedral de siléncios eleitos, E os meus sonhos uma escada sem principio mas com fim... Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir... Tecedeiras vitivas gozam as mortalhas de virgens que tecem... Ah, o teu tédio é uma estatua de uma mulher que ha de vir, O perfume que os crisantemos teriam, se o tivessem... E preciso destruir o propésito de tédas as pontes, Vestir de alheamento as paisagens de tédas as terras, Endireitar a férca a curva dos horizontes, E gemer por ter de viver, como um ruido brusco de serras... Ha tao pouca gente que ame as paisagens que nao existem!... Saber que continuard a haver o mesmo mundo amanha — como [nos desalegra!... Que o meu ouvir 0 teu siléncio nao seja nuvens que atristem O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra... Suave, como ter mae e irmas, a tarde rica desce... Nao chove ja, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito. A minha consciéncia de ter consciéncia de ti é uma prece, E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito... Ah, se féssemos duas figuras num longinquo. vitral!. Ah, se féssemos as duas cores de uma bandeira de gloria!... Estdtua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal, Pendao de vencidos tendo escrito ao centro éste lema — Vitéria! O que é que me tortura?... Se até a tua face calma S6 me enche de tédios e de dpios de 6cios medonhos... Nao sei... Eu sou um doido que estranha a sua propria alma... Eu fui amado em efigie num pais para além dos sonhos... (Poesias de Fernando Pessoa, 4a. ed., Lisboa, Atica, 1952, pp. 21-26.) 399 Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e andnima viuvez, Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E ha curvas no enrédo suave Do som que ela tem a cantar. Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz ha o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razdes pra cantar que a vida. Ah, canta, canta sem razio! O que em mim sente ’std pensando, Derrama no meu cora¢ao A tua incerta voz ondeando! Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciéncia, E a consciéncia disso! O céu! © campo! O cangao! A ciéncia Pesa tanto ¢ a vida é tao breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai! (ibidem) pp. 110-111.) O que nés vemos das coisas sio as coisas, Por que verfamos nés uma coisa se houvesse outra? Por que é que ver ¢ ouvir seria iludirmo-nos Se ver e ouvir séo ver e ouvir? O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vé, E nem pensar quando se vé, Nem ver quando se pensa. 400 Mas isso (triste de nds que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender E uma seqitestragao na liberdade daquele convento De que os poetas dizem que as estrélas sao as freiras eternas E as fléres as penitentes convictas de um sé dia, Mas onde afinal as estrélas nao so senao estrélas Nem as fléres senio fléres, Sendo por isso que lhes chamamos estrélas e flores. (Poemas de Alberto Caeiro, Obras Comple- tas de Fernando Pessoa, 2.* ed., Lisboa, Ati- ca, 1952, pp. 48.) Vem sentar-te comigo, Lidia, a beira do rio, Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e nao estamos de mios enlacadas. (Enlacemos as mios). Depois pensemos, criangas adultas, que a vida Passa e nao fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses. Desenlacemos ‘as mos, porque nao vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como 0 Tio, Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassossegos grandes. Sem améres, nem édios, nem paixdes que levantam a voz, Nem invejas que dao movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse 0 rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar. Amemo-nos tranqiiilamente, pensando que podiamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abracos ¢ carfcias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr 0 rio e vendo-o. 401 Colhamos fléres, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perfume suavize 0 momento — Este momento em que sassegadamente nao cremos em nada, Pagios inocentes da decadéncia, Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-4s de mim depois Sem que a minha lembranga te arda ou te fira ou te mova, Porque nunca enlacamos as maos, nem nos beijamos Nem fomos mais do que criangas. E se antes do que eu levares 0 dbolo ao barqueiro sombrio, Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Ser-me-ds suave 4 meméria lembrando-te assim — A beira rio, Paga triste com fléres no regaco. (Odes de Ricardo Reis, Obras Completas de Fernando Pessoa, Lisboa, Atica, 1952, pp. 23-24.) LISBON REVISITED (1923) Nao: nao quero nada. Ja disse que nfo quero nada. N&o me venham com conclusées! A unica conclusio é morrer. Nao tragam estéticas! Nao me falem em moral! Tirem-me daqui a metaffsica! Nao me apregoem sistemas completos, nao me enfileirem [conquistas Das ciéncias (das ciéncias, Deus meu, das ciéncias!) Das ciéncias, das artes, da civilizagio moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos? Se tém a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica sé dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sé-lo. Com todo o direito a sé-lo, ouviram? Nao me macem, por amor de Deus! Queriam-me casado, futil, cotidiano e tributdvel? Queriam-me 0 contrdério disto, 0 contrario de qualquer [coisa? Se eu fésse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. Assim como sou, tenham paciéncia! Vio para o diabo sem mim, Ou deixem-me ir sdzinho para o diabo! Para que havemos de ir juntos? Nao me peguem no brag ‘Nao gosto que me peguem no braco. Quero ser sdzinho. J& disse que sou sdzinho! Ah, que magada quererem que eu seja de companhia! © céu azul — o mesmo da minha infancia —, Eterna verdade vazia e perfeita! O macio Tejo ancestral e mudo, Pequena verdade onde o céu se reflete! O migoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. Deixem-me em paz! Nao tardo, que eu nunca tardo E enquanto tarda o Abismo e o Siléncio quero estar [sdzinho! (Poesias de Alvaro de Campos, Obras Com- pletas de Fernando Pessoa, Lisboa, Atica 1951, pp. 245-246.) Fernando Pessoa é, como sabemos, 0 maior poeta portugués depois de Camées, tanto pela altura de suas intuigdes, como pela complexa mundividéncia que lhe informou o espfrito. De umas e de outra, os poemas transcritos, ainda que poucos, nos ofe- recem flagrante exemplo: por meio déles, conhecemos algumas 403 das metamorfoses assumidas pelo poeta, e damo-nos conta do nivel estético que atingiu. Partindo de um ponto pacifico, isto 6, o de que estamos em face de textos poéticos de superior qui- late, vejamos que idéias criticas nos sugerem. “Hora Absurda” apresenta Fernando Pessoa na fase inicial de sua carreira, em que, contagiado pelo Saudosismo de Pascoaes mas querendo ul- trapassé-lo, se entregava a experiéncias que rotulava de Sensa- cionismo, Paiilismo (de “paul”) e Interseccionismo. Qs princi! pios do Sensacionismo, Fernando Pessoa resume-os nos seguin- tes: “1. Todo o objeto é uma sensacio nossa. 2. Téda a arte é a conversiéo duma sensag’o em objeto. 3. Portanto, téda a arte é a conversao duma sensacao numa outra sensagao.” (Fer- nando Pessoa, Pdginas Intimas e de Auto-Interpretagado, Lisboa, Atica [1966], p. 168). Quanto ao Interseccionismo, seria “o Sen- sacionismo que toma consciéncia de cada sensacdo ser, na reali- dade, constitufda por diversas sensagdes mescladas” (idem, ibidem, p. 187). Pois bem: “Hora Absurda” é nitidamente um poema sensacionista e interseccionista, porquanto ao predominio da sensagéo “pura” se acrescenta a intersec¢o de planos, co- mo se as sensacdes fundamentais do poeta convocassem para o Ambito do poema tédas as sensagdes decorrentes e situadas nas mais dispares esferas. A atmosfera geral lembra Pascoaes — um Pascoaes licido, mais amplo e mais poeta, — e parece vaticinar o Surrealismo. Ao mesmo tempo, ja se observa pa- tente a fusdo entre o “real” e o “irreal”, entre o concreto e 0 abstrato, que assinala a poesia pessoana. Resultado: é dos poe- mas mais ricos e emotivos de quantos escreveu Fernando Pes- soa; sem duvida, uma de suas obras-primas. O poema seguinte (“Ela canta, pobre ceifeira”) é ainda de Fernando Pessoa “éle- -mesmo”, como dizia, para diferengar dos heterénimos, que assinam as demais composicgées citadas), e néle vemos a nota que o caracteriza: a magoa. Esta, que embebe todos os recantos do poema, coagula-se em dois pensamentos que se tornaram cli- chés e fundamentais para a compreensaéo do fenémeno pessoano: “O que em mim sente ‘stA pensando”; “Ah, poder ser tu, sen- do eu! / Ter a tua alegre inconsciéncia, / E a consciéncia disso!”. Pelo primeiro, o poeta manifesta até que ponto havia dentro dé- fe uma inextricdvel congruéncia entre “sentir” e “pensar”, ou, mais exatamente, a entidade ou faculdade que néle “sente ‘std pensando” esta pensando além de sentir, ou esta sentindo e pensando ao mesmo tempo; assim, sentir e pensar constituem atos indissocidveis de um 6rgao intimo que sé por absurdo po- deria deixar de sentir e, portanto, de pensar simulténeamente sentir é pensar, pensar é sentir. Pelo segundo que completa o 404 primeiro, 0 poeta confessa o recOndito desejo que Ihe perpassa todos os poemas: sendo extremamente lticido, sonha com ser inconsciente (tal como a ceifeira), mas sem perder a lucidez; aqui, o drama (se houve) imanente na poesia de Fernando Pes- soa éle-mesmo. O poema lembra o Anténio Nobre de “O Virgens que passais, ao Sol-poente” (cf. a Ultima estrofe pessoana), mas enriquecido de andlise e dialética. A composicgéo encetada com “O que vemos das coisas sao as coisas” pertence a Alberto Caeiro, heter6nimo de Fernando Pessoa, isto é, um dos seus desdobra- mentos de personalidade. Vé-se-Ihe bem o contérno psicolégico: @le prega um naturismo absoluto em que os verbos “ver” e “ouvir” ocupam lugar proeminente, e dos quais fica dissociado o “pensar”, ou seja, abolir o “pensar” para apenas “ver” e “ouvir”. Valorizagéo duma concep¢ao ingénua e “realista” das coisas, nem por isso deixa de ser altamente intelectualizada e pensada: o poeta pensa o seu propésito de ndo pensar, ou antes, de limitar- -se a ver e ouvir. LExpresséo de fuga para a simplicidade da Natureza (representada, no poema, pelas estrélas e pelas fléres), ou duma ansiosa busca de conhecer t6das as configuragdes do real, Alberto Caeiro completa-se com outros dois heterénimos, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. O primeiro esta voltado, como se vé (“Vem sentar-te comigo, Lidia, & beira do rio”), para a Antiguidade classica, imbuido de uma visdo estéica do mundo, visto ser éle e Lidia “pagados inocentes da decadéncia”: a méa- goa de Fernando Pessoa “éle-mesmo” volve-se desencanto e a sen- sacao de tudo ser inttil, pois “quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio”. Essa imagem heraclitiana nucleia um poema de amor dos mais belos da Literatura Portuguésa e nos oferta uma das férgas-motrizes da mundividéncia pessoana, Al- varo de Campos representa-se com “Lisbon Revisited”, no qual se estampam algumas de suas caracteristicas bAésicas: heter6nimo moderno, whitmaniano, irritadigo, agressivo, éle simboliza a vo- lupia de libertag&o total num mundo impregnado de idéias-feitas, nao raro provenientes da civilizagio da maquina. Um niilismo tenso e ofensivo (“Nfo: nao quero nada. / Ja disse que nao quero nada.”) ampara-lhe a vis&éo das coisas, levando-o a irre- veréncias perante tudo e todos: as ciéncias, a técnica, os deuses, Deus, o casamento, etc. Entretanto, sua indignacéo se abranda diante do “céu azul — o mesmo da minha infancia — / Eterna verdade vazia e perfeita!”, e éle se mostra dotado de uma essén- cia comum com a dos heterénimos e Fernando Pessoa “éle-mesmo” : “O magoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!”. Uno e diviso a um s6 tempo, Fernando Pessoa criou poesia de alta tensdo épica, que muito nos toca de perto, contempordneos ou préximos 405 do mundo em que viveu, mas que, por isso mesmo, sdmente sera aquilatada em sua verdadeira grandeza quando pertencer ao passado remoto e tudo estiver mergulhado no Abismo e no Si- léncio de que fala Alvaro de Campos. Mirto pe SA-CarNEIRO Nasceu em Lisboa em 1890. Filho unico de um engenheiro, perdeu a mae com dois anos de idade. Terminados os estudos secundarios, segue para Paris em 1912, com o fito de seguir o curso de Direito, Nesse mesmo ano, publica um livro de contos, Principio, e comeca a escrever poesia. Em 1914, de férias em Lisboa, junta-se a Fernando Pessoa e aos demais jovens que vi- riam a langar o Orpheu (1915), e publica Dispersao e A Confissao de Lucio. De regresso a Paris, entra numa profunda crise financeira e moral que o acaba arrastando ao suicidio, em 26 de abril de 1916. Escreveu poesia (Dispersdo, 1914; Indicios de Oiro, 1937), prosa pottica (Principio, 1912; Céu em Fogo, 1915; A Confisséo de Liicio, 1914) e teatro (Amizade, 1912, em colaboragio com To- mas Cabreira Jr.). DISPERSAO Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto, E hoje, quando me sinto, E com saudades de mim. Passei_ pela minha vida Um astro doido a sonhar. Na Ansia de ultrapassar, Nem dei pela minha vida Para mim é sempre ontem Nao tenho amanha nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sdbre mim feito ontem. (O Domingo de Paris Lembra-me o desaparecido Que sentia comovido Os Domingos de Paris: Porque um domingo é familia, E bem-estar, é singeleza, E os que olham a beleza Nao tém bem-estar nem familia) O pobre mdgo das Ansias... Tu, sim, tu eras alguém! E foi por isso também Que te abismaste nas Ansias. A grande ave doirada Bateu_asas para os céus, Mas fechou-as saciada Ao ver que ganhava os céus. Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo: Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo. Nao sinto 0 espago que encerro Nem as linhas que projeto: Se me olho a um espelho, erro — Nao me acho no que projeto. Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada! Tenho a alma amortalhada. Sequinha, dentro de mim. Nao perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida, A morte da minha alma. Saudosamente recordo Uma gentil companheira Que na minha vida inteira Eu nunca vi... mas recordo A sua béca doirada E 0 seu corpo esmaecido, Em um hilito perdido Que vem na tarde doirada. (As minhas grandes saudades Sao do que nunca enlacei. Ai, como eu tenho saudades Dos sonhos que nao sonheil. E sinto que a minha morte — Minha dispersao total — Existe 14 longe, ao norte, Numa grande capital. Vejo o meu ultimo dia Pintado em rolos de fumo, E todo azul-de-agonia Em sombra e além me sumo. Ternura feita saudade, Eu beijo as minhas maos brancas... Sou amor e piedade Em face dessas maos brancas Tristes mios longas ¢ lindas Que eram feitas pra se dar Ninguém mas quis apertar... Tristes mios longas e lindas. Eu tenho pena de mim, Pobre menino ideal. Que me faltou afinal? Um elo? Um rastro?... Ai de mim!... Desceu-me n’alma o creptisculo; Eu fui alguém que passou. Serei, mas j4 nao me sou; Nao vivo, durmo o creptisculo. Alcool dum sono outonal Me penetrou vagamente A difundir-me dormente Em uma bruma outonal Perdi a morte e a vida, E, louco, nao enlouquego.. . A hora foge vivida Eu sigo-a, mas permaneco Castelos desmantelados, Lees alados sem juba... QUASE Um pouco mais de sol — eu era brasa, Um pouco mais de azul — eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém... Assombro ou paz? Em vao... Tudo esvaido Num baixo mar enganador de espuma; E o grande sonho despertado em bruma, O grande sonho — 6 dor! — quase vivido. Quase 0 amor, quase o triunfo e a chama, Quase o principio e o fim — quase a expansao Mas na minh’alma tudo se derrama... Entanto nada foi sé ilusao! De tudo houve um comégo... ¢ tudo errou.. — Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... — Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, Asa que se elancou mas nao voou... 409 Momentos de alma que desbaratei. Templos aonde nunca pus um altar. Rios que perdi sem os levar ao mar... Ansias que foram mas que nio fixei Se me vagueio, encontro sé indicios.. . Ogivas para 0 sol — vejo-as cerradas; E mios de herdi, sem fé, acobardadas, | Puseram grades sobre os precipicios. .. Num {mpeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuf... Hoje, de mim, sé resta o desencanto Das coisas que beijei mas nao vivi.. Um pouco mais de sol — e fora brasa, Um pouco mais de azul — e féra além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém.. A QUEDA E eu que sou o rei de téda esta incoeréncia, Eu proprio turbilhdo, anseio por fixd-la E giro até partir... Mas tudo me resvala Em bruma e sonoléncia. Se acaso em minhas mios fica um pedago de ouro, Volve-se logo falso... ao longe o arremesso. .. Eu morro de desdém em frente dum tesoiro, Morro 4 mingua, de excesso. Alteio-me na cér 4 forga de quebranto, Estendo os bragos de alma — e nem um espasmo vengo! . Peneiro-me na sombra — em nada me condenso... Agonias de luz cu vibro ainda entanto. Nio me pude vencer, mas posso-me esmagar, — Vencer as vézes € 0 mesmo que tombar — E como inda sou luz, num grande retrocesso, Em raivas ideais, ascendo até ao fim: Olho do alto o gélo, ao gélo me arremesso... Tombei... E fico s6 esmagado sobre mim! * Eu nao sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro. O LORD Lord que eu fui de Escécias doutra vida Hoje arrasta por esta a sua decadéncia, Sem brilho e equipagens. Milord reduzido a viver de imagens, Pra as montras de jéias de opuléncia Num desejo brumoso — em divida iludida... (— Por isso a minha raiva mal contida, — Por isso a minha eterna impaciéncia.) Olha as Pragas, rodeia-as... Quem sabe se éle outrora Teve Pracas, como esta, e paldcios e colunas — Longas terras, quintas cheias, Iates pelo mar fora, Montanhas ¢ lagos, florestas e dun: 4 (— Por isso a sensaco em mim fincada ha tanto Dum grande patriménio,algures haver perdido; Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido — Ea Cér na minha Obra o que ficou do encanto...) AQUELOUTRO O dibio mascarado, o mentiroso Afinal, que passou na vida incégnito; O Rei-lua postico, o falso aténito; Bem no fundo o covarde rigoroso. Em vez de Pajem bébo presungoso. Sua alma de neve asco de um vémito. Seu 4nimo cantado como indémito Um lacaio invertido e pressuroso. . O sem nervos nem Ansia, 0 papa-acorda. (Seu coragao talvez movido a corda...) Apesar de seus berros ao Ideal, O corrido, o raimoso, o desleal, O baléfo arrotando Império astral, O mago sem condio, o Esfinge Gorda. FIM Quando eu morrer batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes, Facam estalar no ar chicotes, Chamem palhagos e¢ acrobatas! Que o meu caixao v4 sObre um burro Ajaezado a andaluza. . A um morto nada se recusa, E eu quero por forga ir de burro! (Poesias com um est. crit. de Jodo Gaspar Simées, Lisboa, Atica, 1946, pp. 61-65, 68-69, 79-80, 94, 140, 166-167 e 168.) Mario de S&-Carneiro descreveu percurso diametralmente oposto ao de Fernando Pessoa: egocéntrico, em vez de multipli- car-se como fz 0 outro, dispersou-se no labirinto do préprio “eu” e acabou por desintegrar-se e desintegrd-lo (cf. “Disperséo” e¢ “Eu no sou eu nem o outro”). Essse aspecto, evidente nos poemas escolhidos, marca-lhe indelévelmente a cosmovisdo. Assim, © que se observa como nota indefectivel é um doentio solipsi: mo, conduzido ao extremo da neurética fragmentagao do “ego”. Vé-se que as causas possiveis, ao menos aquelas situadas ao ni- vel dos versos, residem num idealismo infrene (cf. “Quase”, dos gritos mais lancinantes que se podem encontrar em verndculo), que acompanha uma vaidade de narciso irremediavel, megalo- manjiaco e passivo (cf. “A Queda”, “O Lord”), contrabalangada por uma correspondente e compensatéria tendéncia para o auto- desprézo (cf. “Aqueloutro” e “Fim”). Tal dilacerante ensimesma- mento faz corpo com uma viséo demasiado femindide e estetizan- te das coisas: o poeta esta a mercé dos perigos oferecidos pelo dé- dalo interior, precisamente porque encara a realidade sob o prisma emocional. Quer dizer: néle, o racionalismo nao tem maior presenca, e deixa o campo livre para a emocio reinar dis- cricionariamente. Jogado por suas emogées, destituido de ali- cerces filoséficos, ou de ordem semelhante, é natural resvalasse para os profundos abismos do “eu”. O resultado foi, no plano civil, 0 suicidio, em que mergulhou quando mal transpunha a adolescéncia; todavia, no plano literdrio, €é uma poesia como ra- ras em Literatura Portuguésa: indiscutivelmente, sua intuigdo, divinatéria & Rimbaud e a Baudelaire, rasgou horizontes no- vos na poesia portuguésa, e dotou-a de temas e de férmulas ex- pressivas que fazem déle o grande alquimista verbal moderno, junto de Fernando Pessoa. Por certo, Mario de Sé-Carneiro deveu muito ao Simbolismo, ao Interseccionismo e Sensacionismo, ao Cubismo, ao Futurismo, e quicd a Gomes Leal, mas 0 recheio de sua poesia nasce de uma profunda originalidade, vivida em seu grau m4ximo e comunicada duma forma nada vulgar em Literatu- ra Portuguésa. E ainda que por vézes adotasse esquemas mé- tricos tradicionais (como, por exemplo, o redondilho maior, em “Dispersdo”), era essencialmente um poeta, e um poeta conscien- te e insatisfeito, para descobrir-Ihes facétas novas ou inexplo- radas. ” ALMADA-NEGREIROS José Sobral de Almada-Negreiros nasceu em Lisboa, a 7 de abril de 1893. Terminados os estudos secunddrios, encetou uma 413 intensa campanha cultural que visava a colaborar para que Portugal se colocasse ao nivel das demais nagdes européias. Em 1915, integra o grupo do Orpheu e néle ocupa lugar de relévo. Inconformista, pde-se contra tédas as modalidades de academi- cismo (Manifesto Anti-Dantas e por Extenso, 1915) e procura di- vulgar em sua patria as modernas correntes estéticas (Cubismo, Futurismo, etc.). Em 1919, segue para Paris com o intuito de estudar pintura, e 14 permanece até o ano seguinte. Ainda as artes plasticas o levarao 4 Espanha, onde vive de 1927 a 1932. De regresso 4 P&tria, continua sua campanha de esclarecimento e divulgagdéo das vanguardas culturais. Por causa disso, tem-se dividido entre a poesia, a pintura, o romance, o desenho, o tea- tro, a critica de arte, as conferéncias, etc. Em tédas essas ati- vidades tem revelado um espirito criador incomum, por vézes chegando a rasgos de verdadeira genialidade. Escreveu: O Moi- nho (1913), Os Outros (1914) 23, 2° Andar (1914), Manifesto Anti. Dantas e por Extenso (1915), K4 O Quadrado Azul (1917), Li- toral (1917), A Engomadeira (1917), Invengéo do Dia Claro (1921), Pierrot e Arlequim (1924), Deseja-se mulher (1928), S.O.S. (1929), Portugal, Direcéo Unica (1932), Elogio da Ingenuidade (1936, Nome de Guerra (1938), Mito-Alegoria-Simbolo (1948), Orpheu (1965). NOME DE GUERRA Escrito em 1925, Nome de Guerra somente foi publicado em 1938. O romance, cuja acao transcorre em Lisboa, na década de 20, focaliza a histéria de um jovem provinciano, Antunes, que vem para a Capital e em contacto com o meio urbano, sobretudo com Judite, a do “nome de guerra”, se transforma e se encontra de- finitivamente. Dos sessenta e quatro capitulos em que o romance se fragmenta escolheu-se o capitulo LVIII, intitulado “Os No- vos Amigos do Protagonista Falam-lhe da Diferenga entre Todos Juntos e cada Qual em Separado”. Note-se que Maria era uma jovem que éle namorara em sua terra natal e que morrera “em menos de quinze dias durante a estada do Antunes em Lisboa, por ela nfo saber nem ter quem Ihe explicasse aquela ausén- cia” (capitulo LVI): Cada um de nés nao pode deixar de ser o préprio, e ainda que para isso lhe seja indispensdvel a maior das forgas de von- tade. Efetivamente, 0 que os astros mandam njo é para ficar no céu. No céu ficam os astros apenas. Nés somos exatamen- 414 te o que éles mandam. E, verdade verdadinha, antes obedecer aos astros do que a outros. A nossa obediéncia aos astros é a um tempo involuntéria ¢ herdica. Involuntéria, porque a vontade é a déles, e heréica, porque nao ha de ser vencida pela dos humanos. Ha em cada pessoa um espirito de vitéria e € 0 mais legitimo da sua vida intima. Nenhuma alma em vida deixou de ser instada por éste espirito de vitéria. Ele é a mais bela expressio da cara huma- na, € a sua auséncia a pior. O espfrito de vitéria é... 0 espi- rito de vitéria nao é..., e éstes pensamentos gaguejavam na cabeca do Antunes como se éle fésse também gago da fala. Tinha-se-lhe ido de repente a idéia tao clara, e as palavras nao tiveram tempo de a agarrar. Quando se quer outra vez uma idéia que nos fugiu, dei- tamos mo de qualquer imagem que se nos apresente, a ver se ela se liga com a que tinhamos antes, assim também o Antunes reparava que nunca ninguém o tinha admirado. Foi tao sensa- cional para éle esta descoberta que se passou inteiro para o seu névo pensamento. Tirando os pais, naturalmente, sé a Maria ficava diante déle como diante de um génio. E entao o Antu- nes ligou logo com a idéia perdida: o espirito de vitéria tem um visor de referéncia imediata na admiragio que inspiramos aos outros. Nao hd melhor compensac&o para a nossa vida do que a admiracao dos outros pelo que merecemos, mas também nao hé pior momento humano do que aquéle em que nos admi- ram sem acertar com o exato do nosso valor. A pessoa verdadeira prefere inimigos auténticos a admiradores sem pontaria. Pelo justo da admiracao ou repulsa dos outros podemos verificar se vamos bem com 0s astros, por conseguinte se nao deturpamos o sentido do espirito de vitéria. A comunicagio entre humanos faz-se pela admiracao. Nao sio as idéias o que a humanidade admira senao o prdéprio dos sentimentos. Otimos ou péssimos, é relativo, e pouco importa para admirar, basta que se ajustem perfeitamente Aquele que com éles se move. Nos fatos da nossa vida mandam os astros, nos nossos sentimentos mandamos nés e todos os que estiveram no nosso sangue, nas nossas idéias mandam os astros € os nossos sentimen- tos. Os fatos decidem, o entimento revelam-no, a idéia sao resultados de fatos e de sentimentos. Os fatos ¢ os sentimentos nao 415 se podem sintetizar, como se faz com as idéias, mas admiraveis sé os sentimentos. O Antunes recordava a cara linda de Maria diante déle ¢ ainda via que ela gostava déle a valer, que ela dava-se-lhe como se éle lhe correspondesse, que éle Ihe correspondia de fato, mas apenas por causa dela, por causa daquela sua maneira de se dar total, leal, fatal, por ser impossivel dissuadi-la disso, por ser assim precisamente que os astros mandavam a ambos. Nao era por engano que ela o admirava com aquela paixio. Ele, pelo contrario, é que por engano estéve quase a receber aquela dd4diva que sem dtivida alguma era a éle que se destinava. E se nao féssem os astros aquilo tudo ia a caminho de um contrato Segal, déstes de que gosta a socieda de. Est€ve quase a prevalecer o legal, isto é conforme a lei para todos, sdbre o leal, ou seja, confor- me a lei para cada um. (Nome de Guerra, 2* ed., Lisboa, Atica, 1956, pp. 232-234.). “Romance de uma aprendizagem, o tmico ‘romance de apren- dizagem’ que se escreveu em Portugal” (José-Augusto Franga, “Nota de Releitura de Guerra”, in Estrada Lar; A Confisséo de Liicio e de Nome de ga, Porto, Pérto Ed., s.d., vol. I, p. 495). Nome de Guerra é uma obra insdlita e unica na histéria da fic- c&o em Portugal. Pena grar-se nesta antologia, seu contetido. Assim se! aspectos, e desejar que romance, corra imediata: a A Confissao de Lucio que, mutilada como deve ser para inte- nao se possa ter uma idéia global de ndo, apenas cabe rastrear alguns de seus o leitor, acordado para a importancia do mente a conhecélo na integra. Ligando-se sdmente na medida em que também re- flete o espirito érfico, a narrativa de Almada-Negreiros impée-se logo pelo seu primitivismo, no melhor sentido dessa palavra. Ou seja: apesar de avizinhar-se da ficgéo francesa dos anos 20 (como acentua José-Augusto Franca no referido ensaio), Nome de Guerra parece escrito fora de qualquer condicionamento, como se o romancista estivesse realizando a arte de narrar em sua expresso mais ingénua e direta, sem participacio do intelecto. Lembra a posi¢fo assumida por um Trancoso ou os velhos con- tadores de histérias e de fabulas. Af esta: Nome de Guerra constitui uma fabula, uma fabula dos tempos modernos, incluin- do uma moralidade(“Nao te métas na vida alheia se nao que- res ld ficar.”). De onde 416 o tom irénico e Iudico, evidente no capi- tulo transcrito; e tudo se passa como numa anedota, num a-von- tade picaresco, numa disponibilidade sem angtstia. A fabulacdo cresce por actimulo de dados, por justaposi¢ao de minticias, como uma bola de neve, ou se girasse em circulos concéntricos, e cada capitulo estivesse colocado naquela ordem por uma questdo de mero arranjo grafico. O prdéprio carater do herdi se nos revela Jentamente, como se, soterrado num palimpsesto, fésse sendo desvendado aos poucos, pormenor a pormenor, nuanga a nuanga. E que a sondagem no “eu” de Antunes e nas situagdes se pro- cessa dum modo simples, quase geométrico, de molde a dar a impressao de que é a esséncia mesma da psicologia individual e coletiva que se concretiza aos nossos olhos. Dir-se-ia que Nome de Guerra contém o absurdo as claras, ou o claro cotidiano entre- visto em sua absurdidade. A estrutura do romance denota-o lu- minosamente: a ac¢io decorre em dois planos principais, o do interior de Antunes, e o do seu exterior em _ rela- cao a Judite. Por fim, qualifica ainda mais o romance o fato de ser obra de linguagem estrita, uma rigorosa construgao esté- tica pela palavra, um organismo verbal coeso e completo em si, como se as palavras féssem tao pesadas, fortes e concretas quanto as arquitraves e as abébadas duma catedral. FrorseLa Espanca Florbela de Alma da Conceigao Espanca nasceu em Vila Vicosa (Alentejo), em 1894. Seus primeiros versos datam dos anos em que faz o curso secunddrio em Evora, e que sdmente viriam a ser reunidos em volume depois de sua morte, com o titulo de Juvenilia (1931). Malogrado seu casamento, vai para Lisboa com o fito de seguir Direito, e nesse mesmo ano (1919) publica Livro de Mdgoas, que passa despercebido. Igual destino teve a obra seguinte, Livro de Séror Saudade, dado a lume em 1923. Novamente infeliz no casamento, retira-se do convivio so- cial, embora continue a escrever poesia e a publica-la ao acaso. Recolhe-se a Matosinhos, j4 agora estimulada pelas renovadas esperancas de felicidade conjugal, mas seus nervos entram a dar sinal de exaustao. Morre, talvez de suicidio, em 1930. Escreveu poesia (Juvenilia, 1931; Livro de Mdgoas, 1919; Livro de Séror Saudade, 1923; Reliquiae, 1931; Charneca em Flor, 2.* ed., 1931) e contos (As Mascaras do Destino, 1931; Domind Negro, 1931). “4 417 418 EU y¥ Eu sou a que no mundo anda perdida Eu sou a que na vida nao tem norte, Sou a irma do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada... a dolorida... Sombra de névoa ténue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendidal. . . Sou aquela que passa e ninguém vé... Sou a que chamam triste sem o ser. Sou a que chora sem saber por qué. Sou talvez a visio que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver E que nunca na vida me encontrou ! SOROR SAUDADE * A Américo Duréo Irma Séror Saudade me chamaste. E na minh’alma o nome iluminou-se Como um vitral ao sol, como se fésse A luz do préprio sonho que sonhaste. Numa tarde de outono 0 murmuraste; Téda a magoa do outono éle me trouxe; Jamais me hao de chamar outro mais doce: Com éle bem mais triste me tornaste... E baixinho, na alma de minh’alma, Como béngao de sol que afaga e acalma, Nas horas més de febre e de ansiedade, Como se fdssem pétalas caindo, Digo as palavras désse nome lindo Que tu me deste: Irma Séror Saudade... NOITINHA A noite sdbre nés se debrugou... Minha alma ajoelha, poe as mios e ora! O luar, pelas colinas, nesta hora, E a 4gua dum gomil que se entornou.. Nio sei quem tanta pérola espalhou! Murmura alguém pelas quebradas fora Fl6éres do campo, humildes, mesmo agora, A noite, os olhos brandos, lhes fechou. .. Fumo beijando o cédlmo dos casais... Serenidade idilica de fontes, E a voz dos rouxindis nos salgueirais. Tranqitilidade... calma... anoitecer.. Num éxtase, eu escuto pelos montes O coragio das pedras a bater.. . AMAR! - Eu quero amar, amar perdidamente! ‘Amar sé por amar: Aqui... além... Mais Este e Aquéle, o Outro e téda a gente.. Amar! Amar! E nao amar ninguém! Recordar? Esquecer? Indiferente!... Prender ou desprender? E mal? E bem? Quem disser que se pode amar alguém Durante a vida inteira é porque mente! 419 Ha uma primavera em cada vida: E preciso cant4-la assim florida, Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar! E se um dia hei de ser pé, cinza e nada Que seja a minha noite uma alvorada, Que me saiba perder... pra me encontrar... AMBICIOSA ° Para aquéles fantasmas que passaram, Vagabundos a quem jurei amar. Nunca os meus bragos languidos tra O voo dum gesto para os alcangar aram Se as minhas maos em garra se cravaram Sébre um amor em sangue a palpitar... — Quantas panteras b4rbaras mataram Sé pelo raro gdsto de matar! Minha alma é como a pedra funerdria Erguida na montanha solitdria Interrogando a vibracio dos céus! O amor dum homem? — Terra tio pisada, Géta de chuva ao vento baloicada Um homem? — Quando eu sonho o amor dum Deus!. (Sonetos Completos, com um estudo de José Régio, Coimbra, Liv. Goncalves, 1952, pp. 35, 69, 120, 130 e 132.) Florbela Espanca é a primeira, e wmica, poetisa que se in- clui na presente antologia: a qualidade de sua obra justifica-o plenamente, e os cinco sonetos que acabamos de ler, exemplifi- cam-no 4 perfeicgéo. Vé-se que pode ser aproximada dos grar des sonetistas da Lingua (Camées, Bocage, Antero), embora dé- les difira numa série de pontos (resultantes, no geral, de ser uma mulher e, por isso, cantar apenas o Amor). De qualquer mo- 420 do, nota-se que ao apuro formal, que avulta na carreira da poetisa conforme os poemas iam sucedendo, se junta uma te- matica nova, ao menos na pena de uma representante do sexo feminino. Vése que sua poesia oscila entre um auto-enterneci- mento e uma explosao erética que tudo avassala. Na verdade, a tristeza decorrente da primeira atitude (“Sdéror Saudade”), sé- bre parecer um tanto “liter4ria”, dissimula a outra: a propésito de Florbela Espanca pode-se falar perfeitamente em donjuanis- mo feminino (“Amar!”, “Ambiciosa”). Quer dizer: seu sensualismo desconhece grilhGes ou limites, e espraia-se, cdlido e franco, no magma dos poemas; seu erotismo supera as hipocrisias e as convengSes pequeno-burguesas, e cumpre-se direto e “natural”, li- vre de qualquer intelectualizagao ou mentalizacao deformadora. A poetisa confessa os transportes de seus sentidos sem trava alguma, mas alcanga conferir grandeza ética e estética aos so- netos precisamente porque os transfunde com sua riquissima sensibilidade e imaginacao. Noutras palavras: o incéndio dos sentidos encontra uma alta expressao literéria e torna-se arte da melhor categoria, assim evitando a possibilidade de reduzir-se a uma confidéncia equivoca de sentimentos que o pudor femini- no reclamaria féssem mantidos secretos: a “verdade” da expe- riéncia mais a “verdade” da fantasia deram-se as maos para gerar uma poesia de primeira Agua, como nenhuma outra poe- tisa realizou em Literatura Portuguésa. ‘ Aguitino Riserro Nasceu em Carregal da Tabosa (Beira Alta), em 1885. Em Viseu, segue cursos de Filosofia e Teologia, com vistas a abra- car a carreira eclesidstica, mas abandona-os a meio do caminho e translada-se para Lisboa (1907). Envolve-se na corrente anarquista, e depois de um atentado a mao armada, é obrigado a fugir para Paris, onde estuda na Sorbonne e inicia sua vida literaria (Jar- dim das Tormentas, 1913). No ano seguinte, volta a Portugal, e, apés dedicar-se ao magistério por algum tempo, entra para con- servador da Biblioteca Nacional, onde permanece até 1927, ao mesmo tempo que prossegue publicando suas obras. Envolvido em névo movimento conspirador, é préso e foge. No regresso, continua sua trajetéria de escritor de idéias republicanas, numa intransigéncia que nao se alterou até sua morte, ocorrida em Lisboa, em 1963. Prosador fecundissimo, deixou obra volumosa, repartida entre 0 conto (Jardim das Tormentas, 1913; Estrada de Santiago, 1922), o romance (A Via Sinuosa, 1918; Terras do Demo, 421 1919; Andam faunos pelos bosques, 1926; O homem que matou o Diabo, 1930; Batatha sem Fim, 1931, As Trés Mulheres de Sansdo, 1932; Maria Benigna, 1933; S. Banaboido, Anacoreta e Martir, 1937; Monica, 1937; Volframio, 1944; A Casa Grande de Romarigées, 1957; Quando os lébos uivam, 1958, etc.), a biografia e a crénica histérica, (O Galante Século XVIII, 1936; Anastdcio da Cunha, O Lente Penintenciado, 1936; Luis de Camées, Fabuloso e Verda- deiro, 1950; O Romance de Camilo, 1956), a literatura infantil, etc. O MALHADINHAS Inserta na Estrada de Santiago (1922), a novela O Malhadi- nhas é a obra-prima de Aquilino Ribeiro. O entrecho gira em térno do Malhadinhas de Barrelas, almocreve de muitas andan- gas, que no fim da vida se pée a contd-las “perante escrivaes da vila e manatas”: Danado aquéle Malhadinhas de Barrelas, homem sébre o meanho, reles figura, voz tio untuosa e tal ar de sisudez que nem o préprio Demo o julgaria capaz de, por um nonada, cri- var @ naifa o abdémen dum cristéo. Desciam-lhe umas farripas ralas,em guisa de suigas, a borda das orelhas pequeninas e \car- nudas como casca de noz; trajava jaleca curta de montanhaque; sapato de tromba erguida; faixa preta de seis voltas a aparar as volutas dobradas da corrente de mutta prata — e, Aveiro vai, Aveiro vem, no oficio de almocreve, os olhos sempre frios mas sem malicia, apenas as mandibulas de dogue a atraigoar 0 bom- -serds, as suas faganhas deixaram eco por téda aquela corda de povos que muitos anos recorreu. Na velhice, o negécio tilin- tado através de geragées, as andangas de recoveiro, o ver e atu- rar mundo, tinham-no provido de labia muito pitoresca, leve- mente impregnada dum egotsmo pdndego e glorioso. Nas tar- des de feira, sentado da banda de fora do Guilhermino, ou num dos poais de pedra, donde jd tivessem erguido as belfurinhas, alegre do verdeal, desbocava-se a desfiar a sua crénica perante escrivies da vila e manatas, e eu tinha a impresséo de ouvir a gesta bdrbara e forte dum Portugal que morreu. Ora! Vai-se para o mercado de S. Francisco, que se faz no tem- po do mosto 4 sombra do conyento da Ordem Terceira, de que 422 ha vinte anos sou irmao pagante, sem grande esperanca de os meus pecados pesarem menos na balanga do Paraiso — que aquilo nao é confraria, mas falperra de cordao — vai-se, ia di- zendo, para o mercado de S. Francisco, e com quem dou eu de cara ao pisar na feira das béstas? Com o birbantéo do Tenente. O homem deita-me o rabo de dlho e muito na sua com- postura — estou a vé-lo de botas altas 4 Frederica, jaleca curta de alamares, um chapéu branco de muita aba, com um vergalho na cova do braco, alto, garboso, que era mégo alentado e bem- -parecido, 14 isso era, meter pelo meio da ciganada e sumir-se-me da vista. “Hum! — funguei eu — o diabo feito ermitao! Estas a pregd-la”. Desgo para a feira do linho, e ponho-me a amarrar o machito ao toro dum castanheiro. E, estava eu a dar a lacada, de olhos nos senhores padres que 14 iam levados em suas garnachas pretas a esfolar o geral, pumba! desce um acoite sdbre as ancas do animal, como se fésse a tornar-lhe o tréco de tropelia, e oigo: — Estupor, ensinou-te o amo a coicinhar!? Boi mau em corno cresce. Era o Tenente, pois quem havia de ser. Sem me bulir, contestei-lhe: — Que febre que lhe faz o machinho?... Olhe que tam- bém Ihe déi como a nés. — Apanhou éle e apanha vocé... — E por qué, se nao fica mal o perguntar? — Por que sim! Vocé é o pedago dum velhaco... Dei-lhe salto A garganta mais ligeiro que uma onga — con- tava depois o Afranio — e, em menos dum amém estava tom- bado por terra e eu de joelhos em cima déle, na arca do peito.. . Varreu-se-me a luz dos olhos e j4 a faca descia de alto quando atalharam o golpe. Foi o miraculoso Padre Santo Anténio, pelo braco, j4 nao sei de que bom burgesso, que se meteu de permeio. Apartaram-nos... ¢ antes assim. Dorido, envergonhado, mais amarelo que a céra, a sacudir os argolhos da roupa, bem embora foi-me jogando: — Se és homem, 6 Malhadas, vem 4 feira de Lamas, na quinzena... — Pois nao faltes, que eu nao falto! Nem que o diabo dé estoiro 423 La levou o chincaravelho e com isso s¢ quebrou de todo a minha lida de almocreve. Mas tenho saudades, tantas, que as vézes me parece ter no peito um ninho de lacraus. Quando por aqui me véem abordoado a éste pauzinho de marmeleiro — ja tem um bom par de anos... a certiddo de idade tr4-la na cdr, esta bela cér de vinho palhéte que eu tanto apreciava — quando por aqui me véem de taverna em taverna a matar o bicho ou com ares de andar A sirga, é a safar-me do vespeiro das saudades, mui- to mais se me ponho a contar o que cram os tempos do meu tempo. E a vida 14 vai... ligeira como uma galga doida, esparvada. Ja noutro diaco julguei que era chegada a minha hora derradeira. Uma febre que abrasava, o félego dificil, muitas dores pelos lom- bos como se os Iédaos que defrontei em trinta anos de almocreve me cafssem a uma voz sdbre o corpo todo — meti-me na cama. Mandei chamar o padre, que me ouviu de confissao e me trouxe o Viatico a casa, com téda a pompa, honra lhe seja. Depois a Brizida enviou um préprio ao barbeiro do Touro, ao Afonso Lajas que apareceu sem tardanca ¢ a vista do meu nariz torceu o déle. Em voz muito présa, tao présa que até a mim se me afigurou de moribundo, pedi que me desenganasse do meu es- tado... nao tivesse médo de dizer a verdade, pois queria ajustar de vez tédas as contas com o mundo. Aquilo, 14 que se afoitasse com o siléncio dos meus herdei- ros, que nao podia deixar de ser consentidor, rendido também ao entono da minha voz proferida no trago da vida para a morte, o barbeiro declarou que eu devia estar por horas, visto ter j4 no peito o roncadoiro da agonia. — Bem haja o amigo Lajas — disse-lhe eu. — Bem ha- ja... e Deus Ihe pague o bem que me f€z... descobrindo-me a verdade. Despedi-me duns e doutros e roguei que me deixassem a sés com Brizida. Depois de muito lhe apertar as mos e a con- siderar, reloucado de todo, falei-lhe assim, por modos, na minha maluqueira: — Mulher da minha alma, deixa-me ver a espingarda, aque- la leal companheira, que também lhe quero dizer adeus. Dei- xa-me c4 ver... A escopeta, lazarina de dois canos, estava a ouvir-nos pen- durada do frontal pela bandoleira, junto 4 bélsa do chumbo e 424 o polvorinho. Sé faltava o podengo. Sempre ali a tive carregada, pronta ao que desse e viesse, um tiro as perdizes ou num ma- riola. Mas nao me esquecia, um sarrafo de papel entre 0 cio e o fulminante acaimava-a contra jeito desastrado ou hora do Porco-Sujo. Brizida algou o braco para ma dar, mas ou porque lhe acudisse ao pensamento que tresloucado como estava era por 14 capaz de atentar, antes da hora cheia, contra a alminha que Deus me deu, ou nao sei por qué, disse-m — Olha que coisas! Vais A caca? Deixa a arma... Encomen- da-te mas é 4 Virgem Santfssima que te receba em seus divi- nos bragos. Bem me carpi, pelo que ela depois me contou: — Diabos te levem mais ao amor que me tens. Nem da es- pingardinha me deixas despedir. Olha que a nao levo para a tum- ba, alma de Barbazu! CA te fica! Podes fazer do cano uma roca. Estive dois dias 4 4gua do cAntaro cozido em febre, uma cantilena zaranza nos l4bios, nos ouvidos os zunzuns das coma- dres que se punham de cara encapuchada 4 volta da cama, As vézes tantas que nem gralhas num vidoeiro: esté a passar! estd a passar! Qual o qué. na manha do terceiro dia, quando {4 ninguém me julgava, dou um pulo da cama. Ao contr4rio dos prognésticos do barbeiro, preguei um senhor pontapé na Morte. M’amigos. vi-me entre as quatro tébuas! E verdadel Nao dei £€ do Diabo, mas. isso vos juro eu, cheguei a avistar 0 ou- tro mundo e Nosso Senhor. sentado numa cadeira de oiro ma- cico. a acenar-me com a mao: — Chega-te c4. Malhadinhas, che- ga-te c4, nfo tenhas médo. Olha que tenho cA dentro ovelhas mais tinhosas do que tu! Deitei os olhos 4 roda e nao avistei ninguém de Barrelas. Mau negécio. Sim, senhores, e nao se admirem. A Ana Malaia, que morreu santa como Vossorias sabem, tanto assim que o seu corpo est4 inteirinho na sepultura, teve um dia uma visao. S. Ludovico, o santinho de quem era devota e que desceu ao inferno enquanto vivo, alcancou-lhe licenca do Senhor para ver os trés reinos do outro mundo. Comecou pelo Céu. Que beleza! Eram tudo miisicas e cAnticos, pivetes, manjares do fino, passeatas. Nada de fome, de frio, de ralhos e maus tratos, e muito menos de pontapés na bunda de ricos e tiranos. Quem a dera 14! 425 — E os da minha terra? O santo apontou a criancada, mais basta que as areias do mar, que ocupava uma grande parte do reino da gléria. — A gente grada? — Nao sei. Estarao por 14 no purgatério... — Coitados, se estéo no purgatdério desde que Barrelas é Barrelas, é uma tal chusma de gente! A estas horas hao de cus- tar a reconhecer, estorricadinhos que nem torresmos! — A ver vamos, como dizia o cego de Nacomba. Levantaram-se umas telhas da segunda mansio: 0 purgatério, para a Ana Malaia esgrelhar. Os caldeirdes com as almas a na- dar no pez e no azeite a ferver ¢ as fogueiras em que eram as- sados, grelhados, fritos, de escabeche, sé 4 vista. Nem as cozi- nhas de todos os regimentos, de todos os colégios, de todos os asilos, de tédas as maltesias e todo o farrobodé das fabricas ¢ forjas de Alemanha davam idéia do que aquilo era, Ainda 14 nao tinha chegado o carvao nem a eletricidade, de modo que todo o aquecimento era a lenha e demandava muito braco. A Ana Malaia de principio muito se confrangeu, mas 4 vista das almas, tédas de m&os postas a dar gracas ao Altissimo e umas com um 6lho a rir, outro a chorar, conformou-se com a dureza daquela purificacdo necessdria A gléria de Deus. — Estdo préximos a ter alta — segredou-lhe S. Ludovico ante os tais de dois rostos. — E os da minha terra? — Apresentem-se as almas de Barrelas — bradou o forneiro- -mor. Safram entao dos caldeirdes ¢ fornalhas uma meia diizia de almas macarenas, muito rotinhas, muito acanaveadas, umas tris- tes da maleita. Quem éles eram? Uma era o pai da Ana Malaia, um bom-serds, cosedor de panelas, que levava a sua menina as costas de terra em terra com os utensflios do offcio. Outra — ela assim mo jurou — era a minha santa mae. Pobrezinha, fartou-se de carretar molhos da lenha, de dar o dia, para eu nao ter fome, que meu pai, malvado, nao quis saber de mim. Ou- tra era um pobre cego que cantava pelas portas, de quem os ra- pazes faziam gato-sapato. — Sé6 estas? — atalhou a Ana Malaia. 426 _— E viva o velho! — respondeu o S. Ludovico, — Vamos adiante... A Ana Malaia nao quis ir mais longe com médo de que Ihe cafsse a alma aos pés. Mas, como eu ia dizendo, nao cheguei para junto de Deus daquela vez, e cA ando com a cruz As costas até quando os seus altos designios hajam decretado. Mas campa quebrada nunca sara. Estou no fim dos dias. Pouco faltou para dar o tombo. Escapei por um cabelo. A que pontos a minha imaginagdo an- dava desgovernada, eu Ihes conto: Quando pedi a lazarina 4 Brizida, sabem Vossorias para que era? Para lhe malhar um tiro e ela ir dormir comigo na mesma cova, Tinha o Deménio a chocalhar-me nos miolos, mais quentes que as papas quando fervem na cagoila, esta de ela quedar para ai téda lépida, ainda frescalhota, a gozar-se com outro do que levei a amanhar com tanto trabalhinho. A vitiva rica com um 6élho chora, com o outro repica. E sendo certo que 4 minha Brizida para rica falta-Ihe muito, mas também n§o precisa de andar As cédeas, nin- guem me garantia que a coisa nao levasse as mesmas voltas. Mas a criatura 14 desconfiou e bem haja ela. Se me passa a ca- nifrecha para as unhas, com o delirio que tomara e o Diabo A travesseira, era milagre se nao estivesse hoje vitivo. Seja pelos tormentos que Nosso Senhor padeceu! Mas aquéle Afonso do Touro precisava a bochada arrancada pelas costas e deitada aos cies. Um salafrério que me d4 por morto ¢ eu ainda para la- var e durar! Provecto dos anos, uma tarde, ergueu-se do borralho e saiu @ porta para fora, amparado ao porretinho de marmeleiro. An- dava hé dias a chocar a morte e deixaram-no ir, que era relapso a prevengdes e cuidados. Sentou-se no poial de pedra, que ser- via de amassadoiro do linho. Com mao incerta aconchegou as abas da capucha contra os joelhos regélidos. Nevara, codejara, ¢ as drvores, com o sincelo, estalavam ao péso das candeias. An- ténio ‘Malhadinhas fechou os olhos 2 semelhanga do romeiro que torna de Santiago, farto de correr léguas, ver terras, passar pontes e.vaus, enxotar cies que arremetem ameagadores de cur- rais € quintas, e adormece a sonhar com o céu num recésto do caminho. Vergou brandamente a cabega para 0 chéo como va- gens maduras. E — 0 Justo Juiz the perdoe as facadas que as nio 427

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